Jornalistas Livres

Autor: Aloisio Morais

  • Doar a vida na luta pela terra: causa justa!

    Doar a vida na luta pela terra: causa justa!

    Dia 24 de outubro de 2020, no interior do Paraná, no Assentamento Ireno Alves dos Santos, no município de Rio Bonito do Iguaçu, Ênio Pasqualin, dirigente estadual do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) do Paraná, após ser sequestrado, foi assassinado a tiros. Mais um mártir da luta pela terra no Brasil. “Por causa de um pouco de terra, por uma fatia de pão, mataram mais um irmão…”.

    Por Gilvander Moreira*


    O latifúndio e o agronegócio matam, mas venceremos. Nosso abraço solidário à família de Ênio e ao MST. O sangue de Ênio continuará correndo em nossas artérias. Honraremos sua/nossa luta justa e necessária. A história demonstra que quanto mais repressão, mais a luta pela socialização da terra cresce. Eis um exemplo a seguir.

    Geralda Magela da Fonseca, carinhosamente chamada Irmã Geraldinha, das Irmãs Dominicanas, foi ameaçada de morte inúmeras vezes durante vários anos por causa da luta pela terra no município de Salto da Divisa, no Baixo Jequitinhonha, em Minas Gerais. Quando identificadas, as ameaças eram sempre vindas de pessoas ligadas aos latifundiários do município. Em um único dia, ela chegou a receber três telefonemas no seu celular, de números não identificados. Depois as ameaças eram ouvidas por companheiros/as do acampamento ou por amigos/as na cidade de Salto da Divisa. No Acampamento Dom Luciano, do MST[1], Irmã Geraldinha tinha seu barraco de madeira e palha. Ela teve que passar a dormir em barracos diferentes a cada noite no acampamento para não ser pega de surpresa por jagunços. Companheiros/as da comissão de segurança do acampamento Dom Luciano Mendes conseguiram livrar a irmã Geraldinha de três emboscadas ao descobrir que ela estava sendo esperada em tocaia. Avisada, ela mudou o horário de passar no local e passou sob escolta dos companheiros.

    Em outra tentativa, quatro pessoas em automóvel cor preta, dia 29 de outubro de 2007, foram vistas próximas ao acampamento procurando por irmã Geraldinha e no dia seguinte, na cidade de Salto da Divisa, alguém em um automóvel cor preta procurava por ela.[2] Em uma das ameaças, a mensagem era: “Você vai parar de apoiar o MST e essa luta quando acontecer com você o que aconteceu com a irmã Dorothy Stang”.[3] Após visita ao Acampamento Dom Luciano, dia 17 de setembro de 2009, uma comissão de representantes da Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República expediu um Parecer demonstrando a gravidade do conflito agrário instalado em Salto da Divisa e também a gravidade das ameaças à Irmã Geraldinha e a outros membros do Acampamento.[4] No Parecer se afirma: “É inconteste o fato de que tais violações têm sido causadas por fazendeiros da região e por policiais civis e militares, sendo que todas elas são decorrentes das atividades em defesa dos direitos humanos realizadas pela Irmã Geraldinha e por membros do Acampamento Dom Luciano. Faz-se necessário, ainda, que sejam feitas articulações com autoridades públicas estaduais e locais no sentido de que se tomem as providências legais para que as causas das ameaças sejam resolvidas pelos órgãos competentes” (MANIFESTO DA CPT/MG, 30/10/2009).[5]

    Irmã Geraldinha, mesmo após visitar sua mãe e saber que a notícia das ameaças de morte já tinham chegado a ela e aos seus 15 irmãos, reafirma sempre: “Estou disposta, sim, a entregar minha vida por essa causa justa dos movimentos populares se necessário for, se tiver que ser, para que o povo conquiste a terra e para que a reforma agrária aconteça no nosso país, pois sem a distribuição das terras devolutas e dos latifúndios improdutivos que não cumprem sua função social não haverá justiça, nem vida e nem paz na sociedade. É claro que não vou entregar de bobeira minha vida. Vamos tomar as precauções necessárias, mas estou disposta, sim, a entregar minha vida para que a luta pela terra possa continuar” (Irmã Geraldinha à TVC/BH no Programa Inconfidências Mineiras).[6]

    Orozimbo da Cunha Peixoto, o co­ronel Zimbu, avô do prefeito Ronaldo Cunha Peixoto, tinha vários jagunços para eliminar quem o incomodava. Uma testemunha que vive na região há várias décadas, que não aceita se revelar por temer ser assassinada, afirma: “Essas fazendas aqui do Baixo Jequitinhonha foram tomadas na marra. Eles man­davam os pistoleiros para matar os posseiros. Se algum deles vacilasse e não matasse, morria tam­bém”.

    Ênio Pasqualin (quinto da esquerda para a direita) era uma das lideranças do assentamento Ireno Alves dos Santos – Arquivo/MST PR

    A entrada do acampamento Dom Luciano Mendes passou a ser controlada por equipe de sentinelas 24 horas por dia, um grupo de mulheres se revezando durante o dia e um grupo de homens durante toda a noite, sempre com alguns foguetes para explodir e chamar todas as famílias em caso de alguma coisa estranha. Uma corrente forte foi colocada na entrada do acampamento para impedir a entrada de automóveis ou motocicletas estranhos, sem autorização. Além da entrada do acampamento, à noite, um grupo de companheiros mantém ronda em todo o acampamento e seu entorno com lanternas. Após cobranças do MST e da CPT[7], o comando da PM em Salto da Divisa foi trocado e uma viatura da PM passou a ir ao acampamento duas ou três vezes por dia. Isso também inibiu os ameaçadores. A Secretaria Nacional dos Direitos Humanos, a Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa, o Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos ameaçados, a Defensoria Pública Estadual e a Defensoria Pública da União, entre outras organizações, contribuíram para que as denúncias e reivindicações das famílias acampadas em Salto da Divisa fossem ouvidas.

    Após ameaças, dia 28 de julho de 2009, quatro pessoas chegaram às proximidades do acampamento em um automóvel e atearam fogo no pasto ao redor do acampamento. O incêndio foi detectado a tempo pelos acampados e não se propagou. Dentro do automóvel, estavam Ilton Ferreira Guimarães, Paulo Roberto Inácio da Silva, seu filho Daniel Salomão Silva e Genilton Menezes Santos, cunhado de José Alziton da Cunha Peixoto, primo do prefeito eleito extemporaneamente em eleição dois dias antes, Ronaldo Athayde da Cunha Peixoto, e presidente da Fundação Tinô da Cunha Peixoto na época, que alegava ser proprietária das terras da Fazenda Manga do Gustavo e da Fazenda Monte Cristo. Policiais demoraram a atender ao chamado dos acampados e, pior, ao chegarem ao local do incidente lavraram Boletim de Ocorrência acusando irmã Geraldinha e os acampados de cárcere privado dos quatro agressores que estavam no automóvel. Irmã Geraldinha teve que viajar até a Cidade de Jacinto – cidade vizinha – para, na delegacia, lavrar um Boletim de Ocorrência relatando os fatos verdadeiros sobre a tentativa de incendiar o acampamento.

    Para inibir as investidas dos latifundiários e jagunços ameaçando irmã Geraldinha e outras lideranças do Acampamento Dom Luciano Mendes organizamos uma significativa Rede de Apoio, inclusive, internacional. O bispo Dom Tomás Balduíno, fundador e presidente honorário da CPT por muitos anos, visitou o acampamento e, ao lado do bispo da Diocese de Almenara, na época, Dom Hugo Maria Van Steekelenburg, e de outras freiras e freis, fez missão na cidade de Salto da Divisa hipotecando irrestrito apoio à causa da luta pela terra. Isso contribuiu para frear a ira assassina contra irmã Geraldinha.

    Com a postura aguerrida de Irmã Geraldinha de não arredar o pé da luta, mesmo sob ameaças de morte, a luta cresceu e hoje, em Salto da Divisa, MG, já foram conquistados dois assentamentos – Assentamento Dom Luciano Mendes e Assentamento Irmã Geraldinha – e a Comunidade Quilombola Braço Forte. Enfim, eis um sinal de que as ameaças e os assassinatos não barram a luta, ao contrário, fazem a luta se multiplicar. Se fazem sexta-feira da paixão, façamos domingos de ressurreição com terra partilhada e socializada, convictos de que o sangue dos/as mártires e o suor da luta fecundam o chão… Porvir de ressurreição!

    27/10/2020.

    (*) Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente da CPT, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH e de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br      –       www.twitter.com/gilvanderluis        –    Facebook: Gilvander Moreira III

     Obs.: Os vídeos nos links e o áudio, abaixo, ilustram o assunto tratado acima.

    1 – Live Campanha pelo DESPEJO ZERO: pelo direito à vida. Despejar na pandemia é matar, é cruel. 05/8/20

    2 – “A VALE preparou uma armadilha para matar o povo de Brumadinho, MG.” Justiça! Vídeo 7 – 13/12/2019

    3 – VALE e Estado mataram o rio Paraopeba, peixes e pescadores na miséria. Vídeo 1. 19/4/2019

    https://www.youtube.com/watch?v=05SJrl6DAH8

    4 – Dona Zinha, da Ocupação Vitória/Izidora/BH: “despejo matará todos os idosos das Ocupações.” 19/11/2016

    5 – Dia 25 de julho: Dia da/o trabalhador/a rural, Mulher Negra, Pai Nosso dos Mártires/1,6 ano de crime

    6 – Padre Ezequiel Ramin: Mártir da Opção pelos Pobres (Documentário Verbo Filmes). 24/7/2020: 35 anos

    7 – Mártires vivos na IV Romaria das Águas e da Terra da Bacia do ex-rio Doce. Vídeo 5 – 02/6/2019


    [1] Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – www.mst.org.br

    [2] Denúncia feita por irmã Geraldinha em Boletins de Ocorrência e a muitas autoridades, inclusive no Programa Inconfidências Mineiras, da TV Comunitária de Belo Horizonte, em 60 minutos de entrevista, dia 09/11/2009,  disponibilizada no You Tube em seis partes. Na 3ª parte está a denúncia das ameaças, acima, descritas. Cf. o link https://www.youtube.com/watch?v=Ek3e-ECzGCQ

    [3] Cf. a 4a parte do Programa Inconfidências Mineiras na TVC/BH, dia 09/11/2009, com Irmã Geraldinha no link https://www.youtube.com/watch?v=PFrQNL9elLY em 7’08ss

    [4] Cf. a 4a parte do Programa Inconfidências Mineiras na TVC/BH, dia 09/11/2009, com Irmã Geraldinha no link https://www.youtube.com/watch?v=PFrQNL9elLY

    [5] Cf. http://www.ecodebate.com.br/2009/10/30/manifesto-da-cpt-mg-conflito-agrario-em-salto-da-divisa-vale-do-jequitinhonha-causa-ameacas-de-morte-a-irma-geraldinha/ 

    [6] Cf. a 4a e a 5ª parte do Programa Inconfidências Mineiras na TVC/BH, dia 09/11/2009, com Irmã Geraldinha nos links  https://www.youtube.com/watch?v=PFrQNL9elLY , e https://www.youtube.com/watch?v=UuLxq8v64M4

    [7] Comissão Pastoral da Terra – www.cptnacional.org.br

  • A transição política inacabada de 2015

    A transição política inacabada de 2015

    Há quem sugira que entramos em parafuso com a crise de 2008. Há quem sugira que tudo começou em 2013. Eu proponho que nossa transição para lugar nenhum começou em 2015. Toda periodização elege um critério. O meu é a ascensão e queda da extrema-direita no nosso país.

    Por Rudá Ricci cientista político e presidente do Instituto Cultiva

    Com efeito, a crise econômica de 2008 (subprime nos EUA) provocou um abalo nas estruturas da ordem social da Europa e provocou uma explosão migratória que teve ápice em… 2015, minha data de referência de quando entramos no túnel do tempo defeituoso.
    Em 2014, a direita ultranacionalista já atingia entre 25% e 30% dos votos no Reino Unido, na França e na Dinamarca. Contudo, em 2017, Marie Le Pen se projeta nacionalmente na França; em 2017, foi a vez da Alternativa para a Alemanha; em 2018, a União Cívica Húngara.
    Michael Lewy, num artigo de dezembro de 2015, analisava a ascensão do conservadorismo e extrema-direita na Europa e no Brasil. O autor sugere uma subdivisão dessas forças extremistas europeias:
    a) Partidos de caráter diretamente fascista e/ou neonazista: como o Aurora Dourada, da Grécia; o Jobbik, da Hungria; o Setor Direito, da Ucrânia; o Partido Nacional Democrata, na Alemanha.
    b) Partidos semifascistas, caso da Frente Nacional, da França; do FPÖ, da Áustria; e do Vlaams Belang, da Bélgica, cujos líderes fundadores tinham ligações estreitas com o fascismo histórico e com as forças que colaboraram com o Terceiro Reich
    c) Partidos de extrema-direita que não possuem origens fascistas mas compartilham do seu racismo, xenofobia, retórica anti-imigrante e islamofobia, como a italiana Lega Nord, o suíço UDC (União Democrática do Centro), o britânico Ukip (Partido de Independência do Reino Unido)
    No Brasil, o Instituto Vox Populi identificou o ápice do discurso fascista e pró-regime militar em dezembro de 2015. Este foi o momento em que o discurso histérico de extrema-direita teve maior repercussão na formação da opinião pública. A partir daí, declinou lentamente.
    Este período de reverberação do discurso de extrema-direita prosseguiu até o final do primeiro semestre de 2016. Que fique claro, extrema-direita é rejeitada pelo conservadorismo e não mantém relações com certa literatura que já surgia no Brasil desde 2012.
    O pensamento conservador aceita mudanças, desde que não sejam bruscas e, por este motivo, rejeitam discursos revolucionários e reacionários (este último, caso da extrema-direita).
    O importante é notar que se conservadores e ultraconservadores decidiram atacar a esquerda numa grande ofensiva desde 2015, ao longo deste ano perderam o controle e deram lugar ao discurso extremado que os colocou na mesma cesta dos corruptos e elites.


    O começo do fim de Aécio Neves está vinculado a esta segunda onda que encobriu a que ele fez de tudo para gerar. Os ataques nas redes sociais eram intensos, criando o famoso efeito manada. A listagem de personalidades “comunistas” crescia, envolvendo qualquer crítico.
    Até que começou uma primeira reação no segundo semestre de 2016, vinda das articulações entre centrais sindicais. As manifestações da extrema-direita começaram a demonstrar menor volume que as sindicais. Finalmente, em abril de 2017, ocorre a maior greve geral da história do Brasil. Mais de 150 cidades registraram paralisações, envolvendo adesão de 40 milhões de pessoas.

    Contudo, a partir do segundo semestre de 2017, muitas lideranças sindicais acusavam o golpe da reforma trabalhista enviada pelo governo Temer ao Congresso Nacional. A reforma atingia duramente as fontes de recursos financeiros de todo movimento sindical. Também se dizia, nos bastidores, que havia movimento em vários partidos de esquerda para iniciar a preparação para a eleição de 2018. O fato é que a mobilização sindical iniciada no segundo semestre de 2016, refluiu a partir do segundo semestre de 2017, logo após a greve.


    Minha tese é que a vitória de Bolsonaro não foi fruto da ascensão da extrema-direita. Foi, antes, um ruído. As forças de extrema-direita estavam dispersas naquele momento, com atos isolados. Lula figurava em primeiro lugar nas pesquisas para a Presidência em agosto de 2018.
    O casuísmo vergonhoso que levou à prisão e impedimento da candidatura Lula embaralhou as cartas naquele processo eleitoral. PT demorou para indicar o candidato oficial. Somente em 11 de setembro o PT anunciou oficialmente que Haddad seria o novo candidato do partido.

    Mesmo assim, com um candidato sem grande expressão nacional, o PT chegou ao segundo turno. Até a fatídica facada, Bolsonaro oscilava ao redor de 20% de intenção de votos. A partir deste acontecimento, chegou a 26%. Haddad aparecia com 8%.


    A tese que estou defendendo procura alinhar uma interpretação que cria uma perspectiva para a falta de sustentação popular do governo Bolsonaro após sua eleição e a sua ida, cada vez mais clara, em direção ao Centrão.
    Bolsonaro se elegeu com 55% dos votos válidos. Em dezembro de 2018, o IBOPE revelava que 75% dos brasileiros tinham expectativas positivas em relação ao seu governo. Contudo, após a posse, a queda de aprovação foi despencando.

    Caso a extrema-direita estivesse em ascensão, qual seria o motivo para não sustentar o governo federal que teria apoiado e por qual motivo não continuou nas ruas, procurando desestabilizar as instituições que procuravam domar Jair?
    Esta é minha tese: a eleição de Bolsonaro foi um repique em meio a um momento de crise política generalizada em nosso país que envolveu até mesmo as forças de extrema-direita.
    A movimentação atual de Bolsonaro em direção ao Centrão – e a tímida reação de apoiadores de 2018 -, além do silêncio ensurdecedor do “gabinete do ódio” indicam a fragilidade das forças extremistas do Brasil, assim como a fragilidade da tese da ascensão dessas forças.

    Obs. A ilustração que abre este artigo é de autoria do argentino Al Margen

  • O Grande Inquisidor em várias vestes e as muitas faces do silêncio

    O Grande Inquisidor em várias vestes e as muitas faces do silêncio

    A peça teatral “O Grande Inquisidor”, de Fiódor Dostoiévski, com apresentação de Celso Frateschi, é um pequeno, mas denso, eloquente e contundente capítulo do último romance de Fiódor Dostoiévski: “Os Irmãos Karamazov”.

    Por Gilvander Moreira[1]


    O filósofo Platão nos alerta que estamos em uma caverna, onde se vê sombra e se pensa que é a realidade, mas é difícil ver a luz do sol, que, como a verdade, pode doer, mas liberta. O Grande Inquisidor não esteve presente apenas nos anos de chumbo da mais cruel Inquisição, mas esteve sempre presenta ao longo da história e atualmente, muitas vezes mascarados. Muitos Grandes Inquisidores usam a fogueira da caverna alegando que é a luz do sol, a verdade. José Saramago, em Ensaio sobre a Cegueira, analisa a sociedade atual que mais fura os olhos das pessoas do que faz ver. No Evangelho de Marcos, na Bíblia, os maiores “cegos” e ignorantes são os apóstolos e os discípulos de Jesus. Para o evangelista Marcos, as pessoas violentadas nos seus direitos compreendem melhor o ensinamento e o projeto testemunhado por Jesus de Nazaré.

    Em uma sociedade capitalista estruturalmente desigual, só fazer solidariedade não emancipa e nem liberta, mas reproduz a superexploração. Solidariedade S.A de grandes empresas é propaganda e verniz e não é compromisso com a superação das causas das injustiças e violências. Dá-se algo momentaneamente no varejo e furta-se no atacado constantemente. Para a gente se libertar dos inquisidores não basta libertações individuais, é preciso conquistarmos condições materiais objetivas que viabilizem a liberdade. Por exemplo, em uma pequena cidade do sertão da Paraíba, em julho de 1988, enquanto fazia missão e visitava o povo de casa em casa, ao ficar sabendo que Mônica estava casada há apenas seis meses, brinquei: “Se pudesse voltar atrás, você casaria de novo?” Ela engasgou e não me respondeu. O marido se atreveu e me respondeu: “Casaria, sim”. Vi na hora que tinha feito uma pergunta incômoda e em momento inoportuno. No outro dia, Mônica foi à casa paroquial e, chorando, me disse: “Frei, vim para lhe dizer que eu não casaria de novo”. Comovido com as lágrimas dela, perguntei: “Por quê?” Mônica me disse: “Ele me bate todos os dias, bate minha cabeça contra a parede, mas não posso me separar dele, porque se eu me separar, terei que voltar a passar fome na zona rural aqui do sertão paraibano, serei tratada como adúltera e ainda serei excluída da participação na comunidade religiosa. Logo, muito ruim com ele, mas pior sem ele”. Essa violência inominável acontecia, porque havia condições materiais objetivas que viabilizavam esse machismo e esse patriarcalismo execrável, pois os jovens migravam quase todos para Recife ou São Paulo em busca de emprego. Ficavam apenas alguns jovens na cidade, que podiam se dar ao luxo de namorar com quantas e quais moças quisessem e tripudiar em cima delas. Havia condições objetivas que viabilizavam a reprodução do machismo e do patriarcalismo.

    O poder opressor do Grande Inquisidor não está só nos chefes de instituições religiosas, mas está incrustado nos podres poderes da política, da economia, no mundo jurídico e em outras instituições da sociedade capitalista. Não apenas o cardeal/instituições religiosas foi e continua sendo Grande Inquisidor, mas também os patrões, os políticos profissionais – coisa nojenta e execrável -, os juízes que garantem juridicamente a reprodução das relações sociais de superexploração, entre outros. Muitos encarnam o cardeal Grande Inquisidor de Dostoiévski. Como Ulisses amarrado ao mastro do navio, no Canto 12 da Odisseia de Homero, os executivos e chefes das grandes (trans)nacionais cumprem o papel de Grande Inquisidor o tempo todo, muitas vezes com a fachada de bondade, de filantropia e de solidariedade. O Grande Inquisidor é apresentado como um herói, um messias, um salvador da pátria, como alguém com missão boa e necessária, mas é cruel inquisidor.

    A ideia de pecado, dependendo de como é compreendida, pode ser arma de dominação das consciências e de fortalecimento de um poder religioso inquisidor. Eloquente e interpelante é o silêncio revolucionário de Jesus sob a inquisição de O Grande Inquisidor. O silêncio de Jesus grita, brada, irrita O Grande Inquisidor, mas Jesus não foi um pacifista ingênuo como um Gandhi adocicado da não violência. Jesus também encarou seus inquisidores. Segundo o quarto evangelho da Bíblia, Jesus diante do sumo sacerdote Anás, O Grande Inquisidor do poder religioso, assim se manifestou: “Eu falei às claras para o mundo. Eu sempre ensinei nas sinagogas e no templo, onde todos os judeus se reúnem. Não falei nada escondido. Por que você me interroga? Pergunte aos que ouviram o que eu lhes falei. Eles sabem o que eu disse. […]. Se falei mal, mostre o que falei de mal. Mas se falei bem, por que você bate em mim?” (João 18,20-23).

    Ao longo da história e atualmente em nossa sociedade capitalista, extremamente desigual, há vários tipos de silêncios: a) parte do povo é silenciado de mil formas. Em muitas periferias se diz: “Aqui ninguém vê nada, não ouve nada e nem fala nada. Se ver, ouvir e falar, morre no mesmo dia”. É o terror do Grande Inquisidor do tráfico protegido pela classe dominante e política que acumula capital com o genocídio de mais de 30 mil jovens por ano; b) grande parte da classe trabalhadora é obrigada a se silenciar, porque se falar o que sente e reivindicar seus direitos é sumariamente demitida e jogada no olho da rua. Nas capitais, os metrôs e os ônibus coletivos superlotados se transformaram em lugares para se desabafar as repreensões sofridas durante os dias de trabalho exaustivo sob pressão de metas, com trabalho degradante e chefes que pressionam o tempo todo; c) há também o silêncio dos omissos que para tentar salvar a própria pele se tornam cúmplices e coniventes de tantos Grandes Inquisidores; d) Há o silêncio imposto pelos fundamentalistas religiosos e moralistas que ao defender abstratamente Deus, família e bons costumes, colocam na fogueira quem se rebela diante das mediocridades, puritanismo, cretinice e hipocrisia. Tantos são os silenciados! E o pior, o silêncio, a surdez e a cegueira diante das atrocidades do Inquisidor Mor no Brasil, instalado no Palácio do Planalto, estão nos levando à destruição irreversível. Calar, jamais! A postura de Jesus de Nazaré, segundo o Evangelho de João, foi de encarar os Grandes Inquisidores e não abaixar a cabeça diante das torturas.

    No Brasil atual, Bolsonaro encarna o Grande Inquisidor Mor, e como dragão do Apocalipse, cavaleiro da morte e exterminador do futuro, tem transformado o Brasil em uma grande fogueira, onde ardem em chamas os biomas da Amazônia, do Pantanal, do Cerrado etc. Negacionista que odeia a vida e a verdade, adepto de torturador, parceiro de milicianos, ignorante, medíocre, autoritário etc. O Grande Inquisidor fala de três forças – milagre, mistério e autoridade. No Brasil há uma trilogia inquisitorial também que perpassa os 520 anos de Estado violentador: escravidão, ditadura e tortura. Sob o chicote do Inquisidor Mor, escoltado por milhares de militares e com uma legião de coronéis e generais do desgoverno federal, seguem sendo supliciados os povos indígenas, os quilombolas, todos os povos tradicionais e os biomas. É primavera em chamas no Pantanal e em todo o Brasil! Nas ruas das grandes cidades brasileiras, os irmãos e irmãs em situação de rua já são quase 300 mil e são forçados a dormir com um olho aberto, pois os Grandes Inquisidores podem lhes jogar gasolina e fogo ou envenenar sua comida com chumbinho de forma sorrateira. Grandes Inquisidores com a roupa de latifundiários, de grileiros, de madeireiros, de garimpeiros ou de agentes do agronegócio seguem invadindo os territórios indígenas e dos povos tradicionais, tirando-lhes o sono e impondo terror com jagunços, milicianos e com a cumplicidade do aparelho repressor do Estado. Enfim, no Brasil, O Grande Inquisidor tem muitas faces e vestes.

    23/10/2020.

    [1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente da CPT, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH e de Teologia bíblica no Serviço de Animação Bíblica (SAB), em Belo Horizonte, MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br      –       www.twitter.com/gilvanderluis        –    Facebook: Gilvander Moreira III

     Obs.: Os vídeos nos links e o áudio, abaixo, ilustram o assunto tratado acima.

    1 – Normal absurdo. Quem define o que é normal? Normal que é arma de morte, que reproduz desigualdade?

    2 – Greg News: Eleições Municipais. O que está em jogo nas eleições de 2020? Poder do prefeito. 09/10/20

    3 – Grande Live em defesa do Rio São Francisco: contra barragem de Formoso e usina nuclear – 05/10/2020

    4 – Contra todas as cercas: Homenagem a Pedro Casaldáliga. Por CPT, MST, MAM, CIMI, MAB etc. – 08/9/2020

    5 – Pantanal Vivo! Artistas em defesa do Pantanal. Música: João Ba. Chamado em defesa da vida -29/9/2020

    6 – Pantanal pede socorro(Solos) – Canção do Presente (Anderson Zottis – Crítica 21) – 19/9/2020

    7 – Fome no Brasil volta a subir e atinge mais de 10 milhões de brasileiros, diz IBGE – JN -18/9/2020

    8 – Toneladas de mercúrio entram clandestinamente no país para abastecer garimpo de ouro – 30/8/2020

  • A fogueira do Grande Inquisidor

    A fogueira do Grande Inquisidor

    Ao escrever O Grande Inquisidor, um pequeno, mas denso, eloquente e contundente capítulo do último romance “Os Irmãos Karamazov”, Fiódor Dostoiévski, em 1879, parece que estava revelando a Inquisição em pleno vapor no Brasil, em 2020, sob o arbítrio de muitos Grandes Inquisidores, disfarçados.

    Por Gilvander Moreira[1]


    Lobos em pele de ovelhas, com sede de sangue, continuam atiçando a fogueira da fome, na qual o estômago de mais de 10 milhões de irmãs e irmãos nossos ronca e faz o corpo tremer como se estivesse sendo eletrocutado por fios elétricos de tortura. Mães e avós muitas vezes têm que reprimir as lágrimas para não chorar na presença de filhos/as e netos/as implorando por um pedaço de pão. Centenas de agrotóxicos, que não são defensivos agrícolas, mas produtos tóxicos, injetam arma química no prato do povo brasileiro que, ao comer, está contraindo câncer, obedecendo cegamente os ditames de um mercado idolatrado. Agronegociantes com exagero de agrotóxico mandam para a fogueira do câncer mais de 700 mil pessoas por ano. Por ano, mais de 250 mil pessoas estão sendo mortas na fogueira da inquisição do câncer, epidemia causada principalmente pelo exagero de agrotóxicos e produtos enlatados. “Leite na caixinha é veneno puro”, me disse um trabalhador que trabalhou 18 anos em um laticínio de uma transnacional. Além disso, o agronegócio e seus executivos como Grandes Inquisidores seguem desertificando os territórios e empurrando os camponeses para as periferias das grandes cidades e jogando-os no meio de uma guerra civil não declarada. Agronegócio, um Grande Inquisidor, exterminador do futuro da humanidade.

    O Grande Inquisidor, em outras vestes e em faces metamorfoseadas no Brasil, também está instalado nas grandes mineradoras que como dragão do Apocalipse, de forma cruel e bárbara, seguem planejando e cometendo crimes/tragédias com requintes de crueldade, arrasando territórios, apunhalando as montanhas, exterminando as fontes de água e sacrificando rios e povos. Só em Minas Gerais, com mais de 300 anos de superexploração minerária, as empresas de mineração controlando o Estado deixaram um rastro de milhares de mortos, soterrados vivos ou morrendo um pouco a cada dia de silicose, depressão ou outras várias doenças contraídas em trabalhos extenuantes. Não podemos esquecer que dia 25 de janeiro de 2019, às 12h28, a mineradora Vale, assassina contumaz e reincidente, “sepultou vivos 272 filhas e filhos nossos”, clamam os parentes que sobrevivem vertendo lágrimas. Foi um crime/tragédia da mineradora Vale em conluio com o Estado, em Brumadinho, MG. Esse crime continua e cresce todos os dias. “Todo dia é dia 25” se tornou lema dos milhares de vítimas do Grande Inquisidor também instalado nos grandes projetos de mineração que tritura a mãe terra, superexplora a dignidade da pessoa humana e apunhala mortalmente a dignidade de todos os seres vivos.

    A Campanha Permanente de combate ao Trabalho Escravo, da CPT, desde 1997, demonstra que mais de 30 mil trabalhadores continuam anualmente submetidos à situação análoga à de escravidão. O pelourinho, o chicote e o tronco continuam violentando a dignidade humana em monoculturas da cana, do eucalipto, do café, de grandes projetos de mineração, na construção civil, na produção de roupas e calçados, em telemarketing etc.

    Por integrar uma das dez Comissões do CNDH[1] sei que são ameaçados de morte no nosso país milhares de militantes que lutam por justiça social e direitos humanos fundamentais. Perseguir, ameaçar e tentar tirar a paz e o sono de quem luta por justiça social são tarefas macabras cumpridas por jagunços, milícias armadas com a cumplicidade de um Estado que aplica o direito penal máximo para os empobrecidos e o direito civil/empresarial benevolente para as grandes empresas. Desde 1985, a CPT publica anualmente um grande livro intitulado Conflitos no Campo Brasil, que demonstra que nos últimos 46 anos, mais de 3.000 lideranças camponesas foram assassinadas pelo Grande Inquisidor latifúndio-latifundiário-agronegócio de várias formas: por degola, enforcamento, metralhados, fuzilados, em emboscadas, pelas costas, da garupa de um motoqueiro cúmplice etc. E, pior, há impunidade em demasia para os jagunços e principalmente para os mandantes. E há punição em demasia para os pobres, negros e juventude de periferia.

    Precisamos recordar uma característica fundamental dos Evangelhos da Bíblia, principalmente dos sinóticos (Mateus, Marcos e Lucas): na primeira parte dos evangelhos sinóticos – 1ª fase da missão de Jesus Cristo -, a característica básica é a SOLIDARIEDADE, com ternura, compaixão e misericórdia. Entretanto, no meio da missão acontece uma “crise galilaica”: Jesus faz análise de conjuntura e descobre que está sendo ingênuo, pois mesmo fazendo os milagres no varejo, via processo de solidariedade, está aumentando o número de famintos, de paralisados, de cegados, de excluídos. Jesus percebe que precisa dar uma guinada no rumo da missão e passar a denunciar os podres poderes da religião, da política e da economia e quem reproduz estes poderes. Por isso, na segunda parte dos evangelhos sinóticos – 2ª fase da missão pública de Jesus -, a característica básica passa a ser LUTA POR JUSTIÇA. Jesus Cristo foi condenado à morte não apenas porque era solidário, mas principalmente porque lutou por justiça e, por isso, incomodou os podres poderes da religião, da política e da economia.

    A lógica de democracia formal e representativa é outro Grande Inquisidor do povo ao vender a ideia mentirosa de que basta votar em eleições com regras que beneficiam “os de cima” para se chegar à democracia real, econômica e social. Cruel ilusão, pois entra eleição e sai eleição e o tal de fulano ainda é pior …

    O sistema capitalista, máquina de moer vidas, é O Grande Inquisidor Mor, pois sequestra a terra no campo e na cidade em propriedade privada capitalista como base para promover o capital superexplorando a dignidade da pessoa humana, da classe trabalhadora e da classe camponesa. A manutenção da latifundiarização no campo brasileiro e da especulação imobiliária nas cidades são bases materiais objetivas – Um Grande Inquisidor Mor – que reproduz a inquisição, a repressão, a violência e o enforcamento do povo cotidianamente, de muitas formas.

    Na sociedade capitalista O Grande Inquisidor inquire, tortura, faz guerra e mata em nome de Deus. Eis um exemplo: um cozinheiro dos freis carmelitas, em Houston, descendente de latino-americanos, foi soldado dos Estados Unidos na Guerra do Vietnã. Em julho de 1997, todo piedoso, com camiseta de Nossa Senhora de Guadalupe e escapulário no pescoço, toda vez que me via, pedia para eu o abençoar. Devoto piedoso, um dia me disse: “Na Guerra do Vietnã, eu era soldado paraquedista. A gente pulava do avião e já caía no meio de uma comunidade e eu, com a metralhadora na mão disparava à vontade. Só eu matei mais de 500 vietnamitas”. Quando o cozinheiro piedoso me disse isso, estarrecido, eu perguntei a ele: “Você não se arrepende de ter matado tanta gente?” Ele, altaneiro, me disse: “De jeito nenhum. Estávamos lá no Vietnã em nome de Deus, éramos os defensores de Deus. Guerreávamos contra os comunistas ateus e filhos do demônio.” O cozinheiro piedoso meteu a mão no bolso e me mostrou uma nota de dólar onde estava a inscrição “we trust in God” (Nós acreditamos em Deus). E acrescentou: “Se não fôssemos nós lá na guerra contra os vietnamitas, o demônio teria tomado conta do mundo, pois para eles “a religião é ópio do povo.” Naquele momento, percebi que os capitalistas se dizem pessoas religiosas, mas na prática são grandes inquisidores cotidianamente, abstratamente dizem que acreditam em Deus, na prática são idólatras, pois matam irmãos como Caim.

    Entretanto, a história demonstra que o Grande Inquisidor não tem a última palavra. Os Grandes Inquisidores são jogados na lata de lixo da história e quem faz e entra para a história são os torturados e matados pelo Grande Inquisidor. Nessa linha, o germe da revolução que superará o capitalismo, essa máquina feroz de moer vidas, está inoculado em Assentamentos para milhares de famílias acampadas na luta pela reforma agrária, está nas Comunidades Indígenas, Quilombolas e muitos outros Povos Tradicionais que enfrentam O Grande Inquisidor cotidianamente. Só em Belo Horizonte, nos últimos 13 anos, 30 mil famílias se libertaram da cruz do aluguel ou da humilhação que é sobreviver de favor construindo 30 mil casas em 119 ocupações, enfrentando o Tribunal, jagunços, tropa de choque, resistindo a despejos e construindo “debaixo pra cima e de dentro pra fora” uma cidade que caiba todas e todos. Assim como Jesus ressuscitou ao terceiro dia, todos/as que são submetidos a processos inquisitoriais também ressurgem, combatendo o bom combate e construindo esperança e lutas inspiradoras pelo bem comum. Sigamos na luta como discípulos/as de todos/as que foram vítimas do Grande Inquisidor, seja no poder religioso, político ou econômico

    22/10/2020

    [1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente da CPT, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH e de Teologia bíblica no SAB, em Belo Horizonte, MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br      –       www.twitter.com/gilvanderluis        –    Facebook: Gilvander Moreira III

    [2] Conselho Nacional dos Direitos Humanos.

    Obs.: Os vídeos nos links e o áudio, abaixo, ilustram o assunto tratado acima.

    1 – Francisco de Assis nos inspira e nos interpela – Por frei Gilvander – 20/10/2020

    2 – Soberania Alimentar com Vandana Shiva. Agronegócio e agrotóxicos matam! Dia da alimentação. 16/10/2020

    3 – Dimensão social do Evangelho de Jesus e o lugar social do CEBI: LUTA POR JUSTIÇA. Por Frei Gilvander

    4 – Grande Live em defesa do Rio São Francisco: contra barragem de Formoso e usina nuclear – 05/10/2020

    5 – Contra todas as cercas: Homenagem a Pedro Casaldáliga. Por CPT, MST, MAM, CIMI, MAB etc. – 08/9/2020

    6 – Lagoa da Prata/MG: Águas secadas, monocultura e agrotóxicos/XXI Romaria/Águas/Terra/MG/3a parte/9/18

    7 – Não jogue agrotóxicos na terra/agricultura familiar/agroindústria. Assentamento Padre Jésus. Vídeo 6

    8 – O que as mineradoras estão causando em Minas Gerais? Por Frei Gilvander, em Live, da ADUENF – 23/7/20


  • O primeiro efeito colateral da coronaVac

    O primeiro efeito colateral da coronaVac

    O dia 18 de junho de 2020, quando Fabrício Queiroz foi preso, deu início a novo momento na história do governo de Jair Bolsonaro. Queiroz é fio solto no esqueminha de corrupção de baixo clero que enriqueceu o clã Bolsonaro durante mais de 20 anos. É bomba relógio tiquetaqueando no colo do presidente da República.

    Rodrigo Perez Oliveira, professor de Teoria da História na Universidade Federal da Bahia

    Acuado, Bolsonaro mudou o comportamento.

    Até então, agia como jogador agressivo disposto sempre a dobrar a aposta. Ameaçava a nação dia sim e outro também com golpe de Estado. Depois da prisão de Queiroz, foi amansando. Aproximou-se do “centrão”, tentando construir base parlamentar capaz de lhe garantir alguma governabilidade. Deixou-se flagrar em fotos de congraçamento com Dias Tofolli, Rodrigo Maia e Davi Alcolumbre, sinalizando o interesse em se reconciliar com os outros poderes da República.

    Ventilou-se a possibilidade de que Bolsonaro estava devidamente controlado pelas instituições, que havia sido domado pelo sistema. Em 14 de outubro, a “Revista Veja” publicou editorial com fotografia montada onde o presidente aparece construindo pontes, alegoria daquilo que seria a “drástica mudança de comportamento”. O periódico vaticinou: “O risco de uma ruptura institucional foi superado”.

    A confirmação dessa mudança no comportamento do presidente, aparentemente, veio com a tão esperada indicação do nome para preencher a vaga no STF deixada pela aposentadoria de Celso de Mello. Contrariando sua promessa de que chamaria alguém “terrivelmente evangélico”, Bolsonaro indicou, em 5 de outubro, o desembargador piauiense Kássio Nunes, com histórico garantista.

    Bolsonaro é bruto, homem precariamente letrado, sem verniz intelectual algum, com vocabulário pobre, mas está longe de ser burro.

    É impossível passar tantos anos no Congresso Nacional sem aprender algo sobre política. O presidente sabe muito bem que, em futuro próximo, um garantista no STF pode ser bastante útil. É que depois de passar a faixa presidencial ao seu sucessor, em algum momento, Bolsonaro responderá por seus crimes, sentará no banco dos réus.

    O STF é corte de apelação, é a última corte de apelação do sistema de justiça brasileiro.

    A base orgânica do bolsonarismo protestou, chiou. Alguns chegaram a chamar o presidente de traidor. Bolsonaristas choraram nas redes sociais como maridos mansos traídos.

    Bolsonarismo sem Bolsonaro. Bolsonaro sem Bolsonarismo. Até poucos dias atrás, o cenário era esse, era exatamente esse.

    “Bolsonarismo sem Bolsonaro. Bolsonaro sem Bolsonarismo”. Esse seria, inclusive, o titulo da coluna que eu escreveria nesta semana. A coluna caducou sem sequer ter nascido.

    É que nas crises, o tempo passa rápido, muito rápido.

    Em 21 de outubro, ficou claro que a moderação não significava vitória derradeira das instituições, mas, sim, recuo estratégico feito em momento de fragilidade política e insegurança jurídica.

    Bolsonaro não está domado. Talvez não será domado nem depois de morto.

    O presidente surpreendeu o país desautorizando o ministro da Saúde, que na véspera havia assinado acordo se comprometendo a adquirir 46 milhões de doses da CoronaVac, vacina desenvolvida pela pareceria firmada entre o governo de São Paulo, por meio do instituto Butantan, e a empresa chinesa Sinovac Biotech.

    Ao que tudo indica, a CoronoVac é a mais auspiciosa entre as vacinas contra covid-19 atualmente em fase de teste clínico.

    Havia possibilidade de se apropriar da paternidade da vacina, frustrando a tentativa de João Dória em colher dividendos eleitorais. No acordo assinado pelo ministro, a CoronaVac não era chamada de “vacina chinesa”, tampouco de “vacina do Dória”, ou mesmo de “vacina paulista”. Era “vacina do Brasil”.

    Talvez essa tenha sido mesmo a intenção original, pois é difícil imaginar que o ministro da Saúde assinaria acordo de tamanha importância sem que o presidente conhecesse o conteúdo da minuta.

    Houve pressão dos EUA?

    O Brasil, um dos países mais afetados pela pandemia em todo mundo, sendo imunizado pela vacina desenvolvida na China seria, sem dúvida alguma, dura derrota diplomática para os EUA.

    Por enquanto não dá para saber.

    Fato mesmo é que Bolsonaro recuou no recuo e se reconectou ao bolsonarismo. Ocupou as redes sociais para jogar suspeição sobre a comunidade científica e sobre a imprensa, agindo como o crítico anti-sistêmico que denuncia conspirações globalistas.

    Esse é o Bolsonaro bolsonarista em sua manifestação mais genuína!

    A crítica anti-sistêmica, a desconfiança, o ceticismo em relação às principais instituições nascidas na modernidade (imprensa de massa, universidade, comunidade científica e organismos internacionais como ONU e OMS) são matéria-prima do bolsonarismo, bebidas diretamente nos textos que Olavo de Carvalho vem escrevendo desde a década de 1990.

    Se a segurança e a eficiência da CoronaVac forem confirmadas pela Anvisa, a Justiça obrigará o governo federal a oferecer as doses no sistema nacional de imunização. Duvido que o presidente fará grandes esforços para impedir isso. Repito: ele não é burro.

    Ficará berrando no twitter, tumultuando o processo, agitando sua malta de lunáticos, destilando ceticismos e desconfianças, performando o crítico, dizendo-se defensor da liberdade contra a tirania dos governadores de Estado.

    Liberdade x tirania. Bolsonaro, a seu modo, encena a narrativa política que funda a civilização ocidental.

    Seja como for, a imunização nacional contra a covid-19 já está comprometida.

    Vacinação é, antes de tudo, um acordo coletivo baseado na confiança. Bolsonaro enlameou o acordo. Essa é sua vocação: jogar lama nos acordos estabelecidos.

    Não há acordo possível com Bolsonaro. Tolos são os que ainda tentam.

    Bolsonaro jamais será um presidente de direita normal, como outros tantos que já existiram na história da democracia liberal, disposto a governar por dentro das instituições.

    Fato mesmo é que a CoronaVac, vacina, que ainda nem existe, já apresentou seu primeiro efeito colateral: reaproximou Bolsonaro e bolsonarismo.

  • “Só ouço barulho”. O código Trump: conspiração e a desinformação em chave atualista

    “Só ouço barulho”. O código Trump: conspiração e a desinformação em chave atualista

    Na noite da quinta-feira dia 15 de outubro ocorreram simultânea e separadamente debates com os dois candidatos à presidência dos EUA, Donald Trump e Joe Biden, com eleitores em emissoras de televisão concorrentes. Esse duplo espetáculo político-midiático foi a solução encontrada frente ao cancelamento do debate direto entre os dois candidatos, devido à recusa de Trump em participar em formato remoto após ter contraído o coronavírus.

    Mateus Pereira, Walderez Ramalho, Valdei Araujo, professores da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) em Mariana, MG*

    Cada candidato respondeu a perguntas feitas pelo público e pelos jornalistas responsáveis por conduzir a entrevista. Biden falou em estúdio da rede ABC na Filadélfia, intermediado pelo jornalista George Stephanopoulos, enquanto Trump foi sabatinado no estúdio da NBC em Miami, com a mediação da jornalista Savannah Guthrie.

    Essa separação entre os candidatos em dois debates distintos e simultâneos acentuou o contraste nas estratégias e abordagens que cada um deles adota na disputa pela preferência do eleitorado. Além de ser um símbolo da divisão atual que tem corroído por dentro diversas democracias ao redor do mundo.

    Essa diferença foi amplamente destacada pela imprensa estadunidense e global. No evento estrelado por Biden, o debate foi marcado pela parcimônia e discussão mais moderada. Tanto o candidato democrata quanto o moderador realizaram poucas interrupções. Mesmo quando confrontado com questões mais difíceis, Biden manteve o tom de voz mais baixo e, geralmente, esperava o seu interlocutor concluir a pergunta. Quando criticado por suas falas e posições, Biden contra-argumentou sem adotar uma postura agressiva. Chegou inclusive a reconhecer e lamentar algumas posturas adotadas no passado – por exemplo, a sua participação na aprovação da “Lei de Crimes” de 1994, que muitos apontam como um dos fatores para a ampliação do encarceramento em massa da população negra daquele país.

    Nada mais diferente do que se viu na sabatina com Donald Trump. Um detalhe curioso foi que a transmissão teve início com a mediadora Savannah Guthrie relatando à equipe da NBC que ela estava com alguma falha técnica em seu ponto de ouvido: “Só ouço barulho”: essa foi a primeira frase que o público ouviu quando o espetáculo começou. Parecia um prenúncio do que ocorreria ao longo dos 60 minutos restantes da atração.

    De fato, em comparação com o evento com Joe Biden, o debate com Donald Trump foi muito mais cacofônico e caótico, o volume da fala muito mais alto e o tom mais agressivo e disposto ao confronto e à polêmica. Ao longo do evento houve constantes interrupções, tanto da parte de Trump quanto de Guthrie – que não se escusou em pressionar o candidato republicano todas as vezes que tentava fugir de uma questão ou desviar o assunto, um estratagema que ele empregou à exaustão.

    Um dos momentos mais comentados foi quando Guthrie pressionou Trump sobre as teorias conspiratórias que o elegeram como herói na luta contra a pedofilia (QAnon), e de que Joe Biden teria arquitetado o “falso” assassinato de Osama Bin Laden – mentira que o próprio presidente dos EUA difundiu por meio de sua conta no Twitter.

    Nesta coluna, faremos uma análise mais detida do embate entre Trump e Guthrie a respeito desses temas. As falas demonstram como Trump intensifica a agitação e a confusão por meio de estratégias retóricas muito bem calculadas. Cada frase empregada desempenha uma função, e visa ativar/atualizar em partes do eleitorado determinados afetos e visões de mundo.

    Para Trump, a confusão e a agitação são métodos de mobilização poderosos. Interrupções, tom de voz alto e agitado, frases desconexas e que se contradizem entre si podem parecer apenas sinais de uma mente fraca e perdida. Mas convém não subestimar a capacidade de se conectar com seu público de um “showman” que logrou se tornar o presidente da nação mais poderosa do planeta. Convém também avaliar os recursos retóricos empregados pelo candidato-agitador com referência à condição atualista que caracteriza o nosso presente.

    ***

    Savannah Guthrie – Tudo bem, enquanto estamos denunciando, deixe-me perguntar sobre o QAnon. É essa teoria de que os democratas são uma rede satânica de pedofilia e que você é o salvador. Você pode agora, de uma vez por todas, afirmar que isso definitivamente não é verdade, e…

    Donald Trump – Então, eu sei [um fala em cima do outro]

    SG- Rejeitar o QAnon…

    DT- Sim.

    SG- Em sua inteireza?

    DT- Eu não sei nada sobre QAnon

    (Ao interromper continuamente a fala de seu interlocutor é produzida uma quebra do fluxo comunicativo. O diálogo se transforma em uma cacofonia de alto volume e velocidade – falas quebradas e sobrepostas, onde um tenta falar por cima do outro, o que intensifica a sensação de conflito, em vez de um debate entre ideias e posições. Esse tipo de situação dificulta a compreensão do conteúdo das falas em si; no entanto, ao criar esse ambiente conflitivo, Trump reforça a mensagem de que ele está sob ataque constante da “grande mídia”, ao mesmo tempo que tenta transmitir uma ideia de força e virilidade, alguém que não se intimida perante o inimigo mas, ao contrário, está sempre pronto para o contra-ataque.)

    SG- Eu acabei de te dizer [o que é QAnon]

    DT- Eu sei muito pouco. Você me disse, mas o que você me diz não significa necessariamente que seja verdade. Eu odeio ter que dizer isso.

    (Trump continuamente reforça a desconfiança do público com a grande mídia, utilizando-se de uma estratégia negacionista que alimenta um ceticismo irresponsável; mais como gesto emocional do que como resultado de análise crítica fundamentada. Embora Guthrie tenha apenas descrito um fato conhecido por muitos – a existência da teoria conspiratória QAnon –, Trump se recusa a aceitar como fato, dizendo que se trataria apenas da palavra e opinião da jornalista. No “código Trump” de desinformação, a grande imprensa é um bloco monolítico totalmente corrompido e a serviço dos democratas (e da esquerda radical), isso inclusive justificaria a existência de um suposto outro lado, como a Fox News, que seria tão parcial quanto às demais, mas sua parcialidade estaria justificada como reação à mídia hegemônica. É no interior desse quadro que o negacionismo como estratégia de desinformação adquire sentido e eficácia.)

    DT- Eu não sei nada sobre isso. Eu sei que eles [QAnon] são totalmente contra a pedofilia. Eles lutam muito. Mas não sei nada sobre isso [Não fica claro se está referindo ao QAnon ou aos democratas pedófilos]. Se você gostaria que eu…

    (Na mesma frase diz não saber nada sobre o QAnon e que “eles são totalmente contra a pedofilia”, que “lutam muito”. A coerência interna da sua posição (se ele sabe ou não sabe sobre a teoria) importa pouco do ponto de vista do seu objetivo, que é de ativar sua base de apoio. Afinal, enquanto presidente dos EUA, é factualmente impossível que ele não saiba nada sobre o QAnon. Mas, ao ligar a teoria com uma suposta luta anti-pedofilia, Trump é capaz de, ao mesmo tempo, acenar à sua base de eleitores que acredita na teoria conspiratória, e também para o público em geral que abomina a prática da pedofilia. A função da teoria QAnon consiste exatamente em atribuir essa prática aos democratas, ao passo que Trump figura nessa narrativa como um grande salvador e defensor das crianças e um herói vingador contra os abusadores. Na verdade a comunicação – se é que podemos usar esse conceito – só se efetiva quando a mensagem de Trump atinge as bolhas de desinformação que reproduzem continuamente memes e narrativas conspiratórias. É nesse ambiente que a mensagem de Trump realmente é ativada. Para nós que estamos fora dessas bolhas, tudo soa apenas como barulho, loucura ou má-fé. Trump alimenta a teoria conspiratória sem arcar com os custos de uma afirmação direta e clara.)

    SG- Eles acreditam que é um culto satânico dirigido pelo estado profundo.

    DT- Estude o assunto. Eu vou te dizer o que eu sei. Eu sei sobre o Antifa, e sei sobre a esquerda radical, e sei como eles são violentos e cruéis. E eu sei como eles estão incendiando cidades administradas por democratas, não dirigidas por republicanos.

    (Aqui Trump promove um desvio de foco trazendo à tona os grupos antifascistas e da “esquerda radical”, tema com o qual se sente mais à vontade e que é diariamente coberto pela imprensa que o apoia. Assim, sugere que a jornalista evita abordar o tópico por não fazer uma cobertura imparcial. Novamente a lógica do “doisladismo”, como se a realidade dependesse apenas de sua preferência política, sem qualquer possibilidade de confiança no outro lado acerca inclusive dos mais elementares aspectos da realidade, como as vantagens do uso de máscaras, por exemplo. Desse modo, Trump está atualizando uma narrativa que já circula amplamente no país. Sob esse ponto de vista, importa pouco se os grupos referidos pelo candidato-agitador realmente realizam as ações que ele lhes atribui.)

    SG- O senador republicano Ben Sasse disse que “QAnon é louco e os verdadeiros líderes chamam de teorias da conspiração, teorias da conspiração.”

    DT- Ele pode estar certo.

    SG- Por que não dizer apenas que é loucura e que não é verdade?

    DT- Posso ser honesto? Ele pode estar certo. Eu simplesmente não sei sobre QAnon.

    SG- Você sabe!

    DT- Eu não sei! Não, não sei! Eu não sei! Você me contou tudo sobre isso.

    (Quando confrontado novamente pela jornalista, Trump volta a negar que conheça algo sobre o QAnon. Repete a mesma frase três vezes: “Eu não sei”. Falas repetitivas são um dos recursos retóricos mais utilizados por Trump.[1] Obviamente, trata-se de uma negação falsa, e a jornalista sabe disso. Sendo o presidente dos EUA, como ele pode não saber sobre a teoria que o celebra como salvador? Para sua base mais fiel, esse tipo de movimento pode ser entendido apenas como resiliência e resistência a ceder às armadilhas da mídia adversária.) 

    SG- Ok, eu tenho mais uma desse tipo.

    DT- … deixe-me dizer a você. O que eu ouvi sobre isso é que eles são fortemente contra a pedofilia. E eu concordo com isso. Quer dizer, eu concordo com isso…

    SG- OK.

    DT- … e eu concordo fortemente com isso.

    SG- Mas não há uma seita pedófila satânica sendo dirigida por…

    DT- Eu não faço ideia. Eu não sei nada sobre eles.

    (Ele diz não saber nada sobre QAnon. Mas diz saber que eles são contra a pedofilia. E que ele “concorda fortemente com isso”, isto é, ele diz defender a luta contra a pedofilia. Mas se recusa a se comprometer com a conspiração em seu conjunto, pois “não sei nada sobre eles”. Ao dizer que ele não sabe sobre o QAnon, Trump não está recusando a validade da teoria conspiratória, de algum modo o clima conspiratório é até reforçado. O tema do culto satânico propagado pela teoria QAnon não pode ser afirmado, mas ele deixa uma dúvida no ar sobre a sua existência (“Eu não faço ideia”). Essa centelha, mesmo que mínima, já é o suficiente para quem defende e acredita na conspiração, e também acende a desconfiança entre o público mais amplo, que abomina a existência da pedofilia.)

    SG- Você não sabe disso? OK.

    DT- Não, eu não sei disso.

    SG- Você, apenas esta semana…

    DT- E nem você sabe disso.

    (Novamente Trump denuncia a falta de credibilidade e imparcialidade da jornalista. Ele não sabe nada sobre o QAnon, mas ela também não sabe. Aqui, Trump está jogando com a armadilha criada por teorias conspiratórias, pois a jornalista não poderia apresentar uma prova de que a tal seita satânica dos democratas efetivamente não existe. O ônus da prova é transferido de quem afirma a existência para aqueles que estão empenhados em negá-la. Assim, por mais surreal que pareça, uma questão factual se transforma em questão de falsa opinião, de achismo. Eu acho que existe! Mas não tendo provas, só convicções… Você que não acredita em mim, mesmo não tendo provas, tem apenas outra opinião. Após essa operação, o absurdo é naturalizado e pode, então, ser vivido como realidade, como parece ser um dos traços principais das atuais guerras culturais de atualização em várias partes do mundo, inclusive no Brasil. O princípio básico de que cabe a quem acusa apresentar as provas é cancelado e com ele qualquer possibilidade de justiça.)

    (Essa tentativa de corroer a credibilidade da jornalista é crucial para o código Trump. Reforça a mensagem de que ele está em uma situação de confronto com um inimigo com quem o diálogo não é possível. No limite, ninguém sabe sobre o QAnon; portanto, qualquer tentativa da jornalista de confrontá-lo terá pouca efetividade na base trumpista e é visto apenas como um uso político para beneficiar seu adversário.)

    SG- OK. Ainda esta semana, você retuitou…

    DT- Por que você não está me perguntando sobre o Antifa? Por que você não está me perguntando sobre a esquerda radical?

    SG- Porque você só, porque você já falou voluntariamente…

    DT- Por que não está fazendo perguntas a Joe Biden sobre, por que ele não condena a Antifa? Por que ele diz que não existe?

    SG- Porque é você que está aqui na minha frente.

    DT- Antifa, não, com licença. Isso é tão fofo… Antifa existe. Eles são cruéis, eles são violentos. Eles matam pessoas e estão incendiando nossas cidades. E eles são da esquerda radical.

    (Essa passagem complementa a anterior. Além de não saber nada sobre o QAnon, a jornalista se recusaria a falar de coisas que “ele sabe”: sobre os grupos Antifa e a “esquerda radical”. Deixa no ar a sugestão que a jornalista é comprada, está de má-fé por não querer condenar aquilo que ele considera condenável. Assim, a grande imprensa se associa à “esquerda radical” e ao “Estado profundo”. Importa reconhecer que por mais que essa narrativa do QAnon não tenha nenhum embasamento em fatos, ela tem grande efetividade entre o público mais amplo, que tem boas razões para duvidar da imparcialidade da grande mídia.)

    SG- Ainda esta semana, você retuitou, para seus 87 milhões de seguidores, uma teoria da conspiração que afirma que Joe Biden tramou para assassinar seis integrantes dos comandos especiais da marinha para encobrir a falsa morte de Bin Laden. Por que você mandaria uma mentira dessas para seus seguidores?

    DT- Eu não sei nada sobre isso, posso [falam em cima do outro]

    SG- Você retuitou…

    DT- Isso foi um retuíte. Essa foi uma opinião de alguém…

    SG- Mas…

    DT- …. e isso foi um retuíte. Vou colocar isso aí. As pessoas podem decidir por si mesmas. Eu não me posiciono.

    (Inicialmente, Trump tenta repetir o estratagema da negação – “Eu não sei nada sobre isso”. Mas na sequência, ele adota um outro recurso, o de rejeitar a responsabilidade de sua própria ação – ter espalhado a mentira envolvendo Joe Biden e o assassinato de Osama Bin Laden. O termo técnico para essa figura retórica é “paralipse” ou “preterição”: quando o orador afirma que não diz algo, mas diz. No caso, ele tenta transferir a terceiros a responsabilidade pela autoria da mentira, dizendo que ele apenas “retuitou” a mensagem. Ao mesmo tempo, ele transfere ao público a responsabilidade de checar a veracidade da mensagem, pois caberia a cada um decidir sobre o tema – apesar de ele ser o presidente dos EUA e ter à disposição a polícia e os serviços de inteligência… De sua parte, afirma, “eu não me posiciono”, ou seja, não quer assumir a responsabilidade pela mentira propagada por ele mesmo.)

    SG- Eu não entendo, você é o presidente. Você não é como o tio louco de alguém que pode simplesmente…

    DT- Não não. Não não.

    SG- … retuitar qualquer coisa.

    DT- Isso foi um retuíte. E eu faço muitos retuítes. E, francamente, porque a mídia é tão falsa, e tão corrupta, se eu não tivesse mídia social… Eu não chamo de Twitter, chamo de mídia social. Eu não seria capaz de espalhar minha mensagem. E a mensagem é…

    (Ao ser chamado pela jornalista a assumir a responsabilidade de seus próprios atos, Trump contra-ataca dizendo que não se pode confiar nas instituições, especialmente a imprensa profissional. Ele retuíta a informação (falsa) porque, segundo sua narrativa, seria necessário combater a mídia corrupta e esquerdista. O resultado é a intensificação do barulho, da agitação e da confusão. A premissa aqui é condizente com a ordem ultra-individualista: é preciso contar e confiar na liberdade de cada um para julgar e avaliar as narrativas em disputa. Assim, Trump alimenta e é alimentado pelo atualismo e desinformação político-midiática, em especial, por ser um dos arquitetos de uma realidade que se atualiza em função da própria atualidade sem a necessidade de prestar conta com o dia anterior. Uma realidade atravessada pela ilusão da reprodução automática, onde o valor de novidade e o achismo se confundem com o valor de verdade e o conhecimento fundamentado.)

    SG- Bem, a mensagem é falsa.

    DT- … e você sabe qual é a mensagem? A mensagem é muito simples. Estamos construindo nosso país, mais forte e melhor do que nunca.

    SG- Vamos parar.

    DT- E é isso que está acontecendo. E todo mundo sabe disso.

    (Enfim, Trump foi realmente massacrado pela jornalista? Em nossa opinião, nesse episódio, o código Trump foi efetivamente transmitido para a sua base. Aqueles que não compartilham do código têm a sensação de que Trump foi derrotado no debate. Mas a armadilha está no fato de que quanto mais Trump é pressionado pela mediadora e chamado a assumir a responsabilidade de suas próprias falas, mais se acentua a sensação entre sua base (e potenciais eleitores) de que ele é vítima de perseguição. A agitação e confusão é uma estratégia coerente para reforçar a mensagem. Em vez de prestar contas com o público pela propagação de teorias falsas e conspiratórias, Trump reforça essas teorias constantemente mobilizando seus códigos. Ainda assim, tudo indica que a maioria dos eleitores propensos a votar no confuso e complexo sistema eleitoral americano estão exaustos e dispostos a não renovar mais uma temporada do show de Trump. Ainda assim, não há como esconder a ansiedade e o medo e uma nova virada como a de 2016. Quando fechamos essa coluna novas rodadas de pesquisa mostram uma leve recuperação de Trump e volta-se a falar de interferência russa na promoção de propaganda falsa. Como as últimas eleições aqui e lá demonstraram, hoje pode-se perder ou ganhar um pleito em 24 horas.)


     (*) Mateus Pereira e Valdei Araujo escreveram o Almanaque da Covid-19: 150 dias para não esquecer ou o encontro do presidente fake e um vírus real com Mayra Marques. Ambos são professores de História na Universidade Federal de Ouro Preto, em Mariana (MG). Também são autores do livro Atualismo 1.0: como a ideia de atualização mudou o século XXI e organizadores de Do Fake ao Fato: (des)atualizando Bolsonaro, com Bruna Klem. Walderez Ramalho é doutorando em História na mesma instituição. Agradecemos à Márcia Motta e ao grupo Proprietas pelo apoio e interlocução nesse projeto.


    [1] MONTGOMERY, Martin. Post-truth politics? Authenticity, populism and the electoral discourses of Donald Trump. Journal of Language and Politics, v. 16, n. 4, p. 619-639, 2017.