Jornalistas Livres

Tag: visibilidade lésbica

  • Visibilidade Lésbica: veja em 3 relatos a importância de se fazer visível

    Visibilidade Lésbica: veja em 3 relatos a importância de se fazer visível

    Hoje, 29 de agosto, é comemorado o Dia Nacional da Visibilidade Lésbica. A data foi escolhida durante a realização do I Seminário Nacional de Lésbicas (SENALE), que ocorreu 1996. Para ilustrar a importância desta visibilidade, veja três relatos de mulheres lésbicas sobre como é resistir, diariamente, numa sociedade patriarcal.

    Ilustração especial Visibilidade Lésbica / Vilé

    A volta pra casa

    Helena Martins

    Muitas vezes eu penso, mesmo ciente de que esta pode ser uma perspectiva informada pela auto sabotagem, que a lesbianidade é algo muito recente em minha vida e por isso não tenho condições ou até mesmo o direito de falar sobre ela e sobre como tem sido experienciá-la.

    Depois de mais de 30 anos vividos majoritariamente na heterossexualidade, com inclusive um casamento cristão na conta, como posso de repente me entender como lésbica e falar abertamente sobre isso? É frequente que eu me sinta uma impostora. Tem sido fundamental me voltar para outras mulheres lésbicas em busca de apoio e de trocas que possam me ajudar a entender as nuances desse momento de reconhecimento, que se revela tanto maravilhoso quanto desafiador.

    Recentemente li uma entrevista de Linda Bellos ao blog Feminist Current em que ela diz, sobre sua saída do armário, que “tornar-se lésbica era como voltar para casa”. Essa fala me tocou de forma muito especial, pois era precisamente o que já vinha percebendo há pouco mais de um ano, durante a terapia. É como se eu estivesse voltando a ser inteira após o abandono de mim mesma que vivi durante todos os anos de heterossexualidade compulsória.

    Me dar conta disso também foi um processo interno conflituoso: como poderia ter sido compulsória, se eu consenti a essas relações? Como poderia ter sido compulsória, se eu me dizia feliz ao lado dos homens que seriam meus maridos (e dariam sentido a minha vida)? A resposta pode parecer clara para quem já é familiarizada com teoria feminista, mas os desdobramentos da socialização feminina são tão complexos quanto cruéis.

    Compreender a heterossexualidade como regime político imposto para as mulheres e não apenas uma orientação sexual, bem como a lesbianidade como um posicionamento político feminista que vai além da sexualidade entre mulheres, foi fundamental para entender a minha história, analisando-a com respeito e cuidado, e me ajuda a legitimar quem sou hoje. E eu sou uma mulher lésbica!

    Minha vida, assim como a de todas as mulheres, foi marcada por violências masculinas. Sofri abuso sexual no fim da pré-adolescência, praticado por um namoradinho da época, e me calei por falta de educação sexual, rede de apoio e por internalizar que aquele era um comportamento natural dos homens – só entendi que havia sido estuprada 10 anos depois, numa sessão de terapia, e isso impacta em minha vida até hoje.

    Me envolvi com algumas meninas na adolescência, sem entender direito o que isso significava, mas sempre voltava minha dedicação não a elas e nem a mim mesma, mas aos homens. Namorei um rapaz da escola por cerca de três anos, depois engatei outro namoro que foi extremamente abusivo por mais sete, entre idas e vindas.

    Entendi na terapia que tolerei a violência psicológica, social, sexual e até mesmo uma tentativa de agressão física por desejar a qualquer custo construir a família que julgava não ter tido, pois meu pai morreu quando eu ainda era bem pequena, e meu sonho era me casar com “um bom homem” e ter três filhos até os 28 anos, que não por acaso é a idade em que minha mãe teve sua última filha, eu.

    Nessa época, conheci o feminismo pela mídia e comecei a me inteirar mais sobre política e as questões do mundo, já que entendia que minha função de vida não era mais protagonizar uma comédia romântica hollywoodiana. Comecei a namorar outro homem e foi tudo arrebatador, aceitei um pedido de casamento após cinco meses de relacionamento, o que hoje enxergo como um ímpeto de insanidade romantizada, e no ano seguinte estava finalmente casada com “um bom homem progressista” – e presa no conto de fadas heteronormativo, que acabou sendo ainda mais violento do que o relacionamento anterior. Depois de quatro anos veio o divórcio e me percebi vazia de tudo, sem saber quem eu era por nunca ter olhado pra mim, apenas para os homens e o papel que eu deveria desempenhar ao servi-los.

    Falo sempre da terapia, pois ela foi uma ferramenta fundamental em todo esse processo. Terapia, o feminismo radical e o continuum lésbico, que eu nem sabia que existia enquanto conceito, mas que de alguma maneira inicial já estava presente na minha vida desde os últimos meses do meu casamento, que foram de extrema solidão doméstica, e foi essencial para que eu tomasse posse de mim pela primeira vez. Mulheres me acolheram, ergueram, apoiaram, encorajaram, instigaram, inspiraram. Tudo começou a mudar, pois eu não me dedicava mais aos homens e eles não sugavam mais de mim.

    Eu descobri coisas sobre mim que nunca tinha me dado conta, descobri também sobre as mulheres ao meu redor. Passei a verdadeiramente apreciar sua companhia e tudo o que trocávamos e notei também que não faltava mais nada, que essas relações eram completas. Perceber essa genuína admiração por mulheres me levou de volta pra casa, como Linda menciona, e a descobrir todas as maravilhosas possibilidades de afeto entre nós, nesse processo que me havia sido impedido pela heterossexualidade quando ainda era muito jovem. Nada disso se dá por trauma de homens, como me acusaram em um ataque meses atrás. Não é sobre homens de forma alguma, na verdade, mas sim sobre amar mulheres e também sobre a potência revolucionária que há nas relações entre nós.

    Ainda há um caminho longo pela frente, a começar pelo enfrentamento da minha família, que é muito conservadora, mas sigo me preparando para trilhá-lo quando estiver pronta para as dificuldades que possivelmente virão. Namoro uma mulher que me olha com interesse genuíno sobre mim e minhas minúcias, não pela lente de expectativas do que espera que eu seja, e isso tem me inspirado a exercitar o vislumbre de novas possibilidades para mim mesma, em diversos campos da vida. Esse é o primeiro relacionamento verdadeiramente saudável que tenho. Minhas relações de amizade foram apuradas, muitas vezes de forma dolorida pela lesbofobia de algumas delas, e minha visão de mundo mudou completamente, o que considero uma consequência natural da escolha de focar a vida em mulheres, em plena sociedade patriarcal.

    Escrevo tudo isso para organizar meus pensamentos e reconhecer o que percorri até agora, mas também por imaginar que talvez existam outras mulheres de trinta e tantos anos (ou mais!) se questionando e buscando um relato similar. Eu não “nasci assim”, eu não sabia desde pequena que era lésbica, mas entendi que nunca é tarde para olhar pra si e se permitir viver num modelo diferente do que os homens planejam para nós.

    Entender que toda mulher é uma lésbica em potencial não é mera propaganda, mas um convite para uma análise criteriosa de si mesma e de sua vida afetivo-sexual, que inevitavelmente é moldada pelo patriarcado. Não romantizo a jornada, pois sei que não é fácil, mas pela primeira vez me sinto verdadeiramente viva e empolgada pelo que virá.

    Ilustração especial Visibilidade Lésbica

    Somos muitas e estamos por todas as partes

    Fabiana Oliveira

    1.      Ocasiono o desaparecimento de alguma coisa sem que ninguém dê falta ou perceba.

    2. Afano algo de modo sorrateiro; furto.

    3. Dissimulo (alguma coisa) através de desculpas ou subterfúgios, escondo.

    4. Saio sem que ninguém perceba; escapo sorrateiramente.

    Uma busca rápida em um site popular de pesquisa apresenta essas significações para a palavra escamoteio. Muita gente nunca ouviu falar dela, não sabe o que significa. Tendo a acreditar, entretanto, que toda mulher lésbica sabe o que escamoteio quer dizer. Talvez a palavra seja desconhecida, mas seus significados ressoam em múltiplas experiências de uma mulher que ousou amar a outra.

    Não por menos, falar de lesbianidade sempre demanda muito esforço. Talvez porque o apagamento seja tão grande que é preciso, antes de tudo, romper com os próprios silêncios para escrever sobre o tema. Talvez porque, muitas vezes, ele soe tão desimportante para a maior parte das pessoas, que se torna exaustivo afirmar – com o corpo, as palavras, a política, a raiva e o afeto – que esse é um assunto da maior importância.

    Indizível. É assim que Adrienne Rich – poeta, escritora, professora, feminista e lésbica – descreve aquilo que não é nomeado, é censurado, se “disfarça com um nome falso” e é enterrado na memória. Não se trata apenas de um não-dito. Transforma-se em um indizível. Toda lésbica já foi a “amiga” próxima, muito próxima, sempre presente, quase família e depois sumiu. Já foi uma “colega de trabalho” ou qualquer classificação que falseie a verdade. A verdade é que, todos os dias, por todos os cantos, mulheres se deitam juntas e acordam para construir outros modos de se relacionarem e de se tornarem visíveis.

    Ou invisíveis. Dias desses, uma amiga me narrou a desconfiança de que duas mulheres que moravam juntas e diziam serem irmãs, seriam, na verdade, namoradas. Se a afirmação fosse de que eram amigas, poderia haver mais risco de desconfiança. Optaram por mentir que eram irmãs. Se fazer invisível é violento e constrói muito profundamente a subjetividade de mulheres lésbicas. Para manter algumas das relações mais importantes que uma pessoa comumente tem, é preciso sublimar uma parte central de nossas vidas. Já estive casada com uma mulher sem que ninguém da minha família soubesse. E sou só mais uma.

    Nesse mês da Visibilidade Lésbica e, mais precisamente, no Dia da Visibilidade Lésbica (29 de agosto), os modos de apagar nossas existências se refinam e são reinventados, mas não são exatamente novos. Um deles é nos nomear como LGBT, simplesmente, estabelecendo simetria entre os preconceitos e discriminações sofridos por mulheres e homens. A socióloga, lésbica e feminista, Jules Falquet afirma que simetrizar as experiências de mulheres e homens homossexuais é ignorar o peso das normas patriarcais. Embora haja, de fato, pontos em comum nas duas experiências, desconsiderar o duplo estigma vivenciado por lésbicas é contraproducente, injusto e reducionista.

    Outra forma “sutil” de nos reduzir é nos taxar como sujeitas da diversidade. Cito novamente Adrienne Rich, que afirma que a suposição de que a maior parte das mulheres é naturalmente heterossexual é um problema teórico /político até mesmo para a teoria /movimento feminista. Esta naturalização aconteceria em parte pelo apagamento da existência lésbica e em parte por ser tratada como algo excepcional, diverso, mais do que intrínseca da experiência das mulheres, já que esta classificação pressupõe que haja uma norma.

    Convido todas as mulheres a se perguntarem por qual razão, supostamente, a maioria das mulheres que conhecem seja heterossexual. Se a história da nossa sociedade, tal qual conhecemos hoje, é uma história de desigualdade, não haveria uma razão calcada em valores que sustentam tais desigualdades para que fosse assim? A sexualidade hegemônica não contribuiria para essa sustentação? Se a resposta for sim ou talvez, está feito o convite para refletir sobre a naturalização desta “preferência”.

    Ao se debruçar sobre as medidas que asseguram o direito dos homens de acessar o corpo, o trabalho e a subjetividade das mulheres, Adrienne Rich conclui que um dos meios que reforçam esta licença é deixar invisível outra possibilidade, a das experiências amorosas entre mulheres. As práticas de reciprocidade entre mulheres somente são toleradas, de maneira geral, quando tratadas como concernentes à vida privada e separadas de práticas sociais. No entanto, é justamente a partir da conexão consciente entre práticas sexuais, amorosas e materiais entre mulheres que se produzem verdadeiras revoluções no pensamento e nas práticas, de acordo com Jules Falquet.

    Encerro esse breve amontoado de palavras que são um convite, um desabafo e uma afirmação de que existimos onde querem nos soterrar, com um poema de Cheryl Clarke, feminista, negra e lésbica que fez tudo isso antes e muito melhor do que eu. Somos muitas e estamos por todas as partes.

    Tribadismo* é uma panacéia ancestral

    Intimidade não é luxo aqui.
    Não mais telefones pendurados
    ou linhas sempre ocupadas
    ou conversas ainda censuradas.

    Não mais mirar nossas mãos
    temendo dá-las
    ou se dadas
    temendo soltar.

    Nós estamos aqui.
    Após anos de separação,
    mulheres tomam seu tempo
    dispensam velhas animosidades.

    Tribadismo é uma panaceia ancestral e vale o risco
    uma panaceia ancestral e vale o risco.

    *Tribadismo = esfregar buceta com buceta.

    Ilustração especial Visibilidade Lésbica

    Eu não quero mais forjar nada 

    Martha Raquel 

    A dificuldade para escrever sobre um tema vivenciei durante toda a vida diz muito sobre  as podas que sofremos enquanto mulheres lésbicas. Falar sobre lesbianidade me faz revisitar momentos, sentimentos e angústias que por anos evitei. Não é simples relembrar de todas as vezes que me forcei ficar com homens que não me despertavam nenhum interesse, das vezes que tive que fingir gostar de alguém ou inventei algum nome para que saíssem do meu pé ou não me classificassem como sapatão. 

    Não que tivesse algum problema ser vista como sapatão, mas por um tempo lutei muito para forjar a imagem da hetero legal, que vive rodeada de amigos gays e amigas lésbicas, que não tem preconceito. Me apelidaram de “rainha das bichas”. Não era sobre medo da aceitação, porque sempre tive um ambiente familiar muito acolhedor neste aspecto, era sobre uma tentativa de acreditar que as pessoas poderiam ser boas, legais, compreensivas. Eu me forjava nesse papel de pessoa hetero compreensível mesmo tendo consciência de que eu não gostava de homens. 

    Numa conversa recente sobre a esperança de um mundo menos violento, um amigo que vivenciou boa parte da minha adolescência ao meu lado comentou sobre como tentei me transformar na mudança que eu queria ver no mundo. Claro que de uma forma negativa, reprimindo meus sentimentos, quereres, vontades. Uma perspectiva bem diferente da que estamos acostumados a relacionar esse ímpeto de transformar o mundo a partir de nós mesmos. 

    Essas angústias, que eu pensava terem ficado para trás, vira e mexe me visitam através de inseguranças, receios, auto-sabotagem. É como se a todo momento eu precisasse me convencer que, sim, sou uma mulher lésbica. Sim, eu destino meu carinho, admiração, respeito, amor, desejo às mulheres. E não há nada errado nisso. Não é porque um dia eu senti que precisava fingir ser alguém que eu tinha plena consciência que não era que isso invalida o que eu sou. 

    O mundo é um lugar inóspito para as lésbicas. Mas com o tempo a gente vai se encontrando, se reconhecendo, se fortalecendo. Priorizar mulheres, em todas as esferas da vida, numa sociedade que grita que você deve tudo aos homens é ter que fazer uma revolução diária. É ir contra tudo e todos, é desafiar a lógica patriarcal e impor que mulheres lésbicas também existem e não vão mais se forjar nesse lugar que não as representa. 

    Eu não quero mais forjar nada. Eu quero viver sem medo, angústia, insegurança. Eu não quero mais viver frustrada. Eu mereço ser feliz. Eu mereço estar num relacionamento com alguém que me respeita, me admira, se importa comigo. Mereço ser amada. Sou digna de andar de mãos dadas, de levar minha namorada para almoçar na casa da minha mãe num domingo, de viver esse amor tão revolucionário. 

    Não aceito mais migalhas. Não vou viver na sombra, não vou me adaptar, não vou me esconder. Ser lésbica é ser quem eu sou e isso não é motivo de vergonha. Ainda que às vezes eu me sinta como alguém que precisa sair do armário todos os dias, farei isso com orgulho, pois sei que não estou fazendo só por mim. Que o mundo seja um lugar mais acolhedor para as próximas lésbicas que o habitarão. 

    Ilustração especial Visibilidade Lésbica

    Veja também: Dia da Visibilidade Lésbica e a luta por dignidade no ambiente de trabalho

  • Dia da Visibilidade Lésbica e a luta por dignidade no ambiente de trabalho

    Dia da Visibilidade Lésbica e a luta por dignidade no ambiente de trabalho

    O Dia Nacional da Visibilidade Lésbica foi escolhido durante a realização do I Seminário Nacional de Lésbicas (SENALE), que ocorreu em 29 de agosto de 1996. A funcionária pública Marcelle Fonseca esteve presente em algumas edições do seminário que, posteriormente, se tornou um encontro. Ela explica que as discussões eram pensadas de acordo com a conjuntura política. 

    Publicada originalmente no Brasil de Fato

    “Cada SENALE teve uma programação própria, construída de acordo com o cenário atual, mas de forma geral, sempre houveram debates sobre saúde lésbica; direitos civis (a questão do casamento e da adoção, inclusive quando a Cássia Eller morreu e teve aquele acordo entre a Eugênia e o pai da Cássia, nós tivemos uma mesa apenas para falar sobre judicialização); violência estatal em razão da imensa resistência/dificuldade de gerar números sobre casos de estupros corretivos e de lesbocídio no país”, conta. 

    Ela explica que o fortalecimento do feminismo e o enfrentamento da lesbofobia, em suas diversas faces, também eram pautas fixas. “Tínhamos também uma preocupação com o registro das nossas histórias, de não permitir que nossa memória fosse apagada. No final, fazíamos uma grande plenária, com todas as participantes, para apresentar as propostas produzidas pelos grupos, para votar qual seria a próxima cidade e outras questões que acabavam surgindo, como por exemplo, a votação para alteração do nome de SENALE para SENALESBI”, finaliza.  

    Ainda hoje, um ambiente em que essa violência é vivenciada constantemente é o profissional. O Brasil de Fato conversou com quatro mulheres que sofreram diretamente essa violência em seus ambientes de trabalho e, para protegê-las de uma sociedade que já despreza lésbicas, seus nomes serão fictícios nesta publicação. 

    Rosangela se assumiu lésbica aos 23 anos, mesmo tendo consciência da própria sexualidade há quase uma década. Na infância, ela foi vítima de um estupro por um amigo da família e, após a saída do armário, foi novamente estuprada, desta vez de forma “corretiva”, com a promessa de que “o estupro iria curá-la desses pensamentos de macho de querer beijar e namorar meninas”. Já adulta ganhou uma bolsa de estudos no exterior e só então pode se descobrir e viver sua sexualidade sem medo dos julgamentos. Quando retornou ao Brasil, acabou cortando laços com a família, mantendo contato apenas com a mãe hoje. 

    Os conflitos no ambiente familiar também foram experimentados por Lourdes. Por ser uma lésbica que, de acordo com os padrões patriarcais impostos pela sociedade, se veste com roupas que são consideradas masculinas e que não adere aos estereótipos da feminilidade – como o uso de maquiagem, saias, saltos, ter o cabelo comprido, se comportar de forma doce, submissa-, Lourdes conta que sofreu muito com esse processo de auto-aceitação por causa dos conflitos vivenciados no ambiente familiar. 


    Ilustração especial Visibilidade Lésbica / Sophia Andreazza / @sophiandreazza

    Larissa Caroline Silva de Souza, psicóloga clínica, integrante dos coletivos Psicopretas e Visibilidade Lésbica Campinas, diz que a experiência da lesbianidade impacta todos os âmbitos da vida da mulher. “Nós sofremos lesbofobia quase todos os dias e em diferentes ambientes, isso significa estar de cara com a não aceitação e negação dos nossos corpos pela sociedade, e consequentemente isso impacta de diferentes formas e em todos os âmbitos da nossa existência enquanto ser lésbica. Impacta, por exemplo, na forma como nos vemos e como somos enxergadas, na invisibilidade das nossas pluralidades (negras, pobres, gordas, pessoas com deficiência, mais velhas, mais novas, etc), impacta em como nos portamos frente às dificuldades e possibilidades, impacta na forma como nos relacionamos afetiva e sexualmente entre nós e, principalmente, impacta na nossa saúde mental e na maneira de sentir e existir no mundo”, explica. 

    Sobre a questão familiar, Larissa explica que é um dos primeiros ambientes em que as lésbicas enfrentam o preconceito e vivenciam a violência, seja ela física, verbal ou psicológica. “Impacta na invisibilização do ser mulher, pois muitas vezes a nossa sexualidade é interpretada como uma tentativa de ser homem, e isso impacta na forma como somos tratadas, principalmente quando não se é reproduzida a feminilidade. E ainda impacta na tentativa de aniquilamento da nossa existência através da morte desses corpos, feito em sua maioria por homens, sendo eles da família ou não”, acrescenta.

    Valéria conseguiu contar para a família que estava em um relacionamento com uma mulher apenas depois de se formar na faculdade. Segundo ela, a saída do armário aconteceu depois que ela fez “tudo que havia sido projetado para si”. A reação familiar não foi das melhores e ela chegou a ter que sair de casa para poder viver o relacionamento. 

    A lesbofobia foi experimentada muito cedo por todas as entrevistadas e se expressava desde apelidos masculinos até o isolamento. “As outras meninas não queriam ficar perto da ‘sapatão’, me tratavam com desprezo, com nojo. De um dia para o outro pessoas que eu achava que eram minhas amigas não queriam mais nem me dar oi, não queriam ser vistas comigo porque tinham medo que outras pessoas achassem que elas também eram lésbicas”, contou Lourdes.

    A lesbofobia no mercado de trabalho 

    Rosa não enfrentou conflitos no contexto familiar, mas no ambiente de trabalho. “Entrou uma funcionária nova na empresa e tínhamos interesses em comum. Começamos a trocar dicas de livros e logo surgiram piadinhas sobre a ‘sapatão não perde tempo e já está em cima da menina’. Eu respondi à altura na hora, mas nada foi feito pela direção da empresa”, contou.

    “Sou jornalista e uma vez fui acusada, em um dos meus trabalhos, de entrevistar apenas mulheres lésbicas para as minhas reportagens. Que eu soubesse, nunca tinha entrevistado uma mulher lésbica, até porque quando fazemos entrevistas não perguntamos a sexualidade se não for a pauta, mas a acusação veio porque duas pessoas que eu havia entrevistado no dia anterior tinham o cabelo curto ou colorido”, finaliza. Na ocasião, ela foi advertida, mas se recusou a assinar.  

    No início de 2019, um caso de lesbofobia em Campinas tomou conta dos noticiários. Thais Cyriaco foi impedida de usar o banheiro feminino em seu ambiente de trabalho por cinco meses até conseguir liminar favorável na Justiça. Ela trabalhava como auxiliar de limpeza da rede de supermercado atacadista Makro. Depois de três meses trabalhando, foi comunicada pela empresa que a contratou, a Elofort Serviços, que, a partir daquele momento, estava proibida de usar e limpar os banheiros femininos da unidade. O motivo era o lesbianismo e sua aparência, já que não performava feminilidade. Hoje, Thais não trabalha mais nesta empresa e deixou a cidade. 


    Thais se veste com roupas que são consideradas masculina de acordo com os padrões patriarcais impostos pela sociedade / Arquivo pessoal

    Rosangela e Valéria trabalham na área da educação. Elas contam que a lesbofobia nesse ambiente acontece de uma forma sutil, mas muito violenta. Rosangela conta que uma mãe pediu para que sua filha fosse trocada de turma porque “ter uma professora machinho não seria bom para o desenvolvimento da criança”. Valéria conta que, mesmo quando se relacionava com homens, não comentava sobre a vida pessoal na escola em que dava aulas, mas que depois que começou a namorar uma garota foi procurada pela direção com o pedido de que não deixasse transparecer a lesbianidade e não comentasse sobre isso com as crianças. Um ponto importante levantado por ela sobre como as lésbicas são vistas como ameaça é que, nesta mesma escola, há um professor gay assumido e isso é visto como algo incrível pela direção, enquanto ela precisa se calar e esconder a sexualidade. “Tenho medo de estar na rua andando de mãos dadas com a minha namorada e cruzar com alguma aluna ou com sua mãe e isso não é justo”, explica Valéria.

    Há alguns anos, Rosangela trabalhou em uma grande empresa multinacional, fora da área da educação. Ela conta que as mulheres se incomodavam de usar o banheiro se ela estivesse no ambiente. “Houve um episódio com a minha chefia direta, em que eu estava saindo e ela entrando no banheiro, ela tomou um susto com a minha imagem e se desviou. Estilo Matrix, com uma cara muito assustada, quando percebeu que era eu, se desculpou, e disse que achava que era um homem”, relembra. 

    A mesma sensação foi vivida por Lourdes. “Reparo também que as mulheres heterossexuais parecem ter medo de ficar sozinhas numa sala com uma lésbica, como se a gente fosse pular em cima delas a qualquer momento. Mantêm distância, ficam de longe”, conta. 

    A “aparência profissional” também é lembrada como algo usado contra as lésbicas. “Se você não se feminiliza, não se maquia, não usa salto, etc, você leva chamada de atenção por ser ‘desleixada’ e ‘mal-vestida’, mesmo que os homens do local possam trabalhar de jeans e camiseta sem nenhum problema”, explica Lourdes. 

    “A lesbofobia impacta no nosso não acesso ao mercado de trabalho (muitas de nós estão desempregadas) ou apenas a trabalhos subalternos e que não necessita interação com público. Então, quando estamos inseridas no mercado de trabalho, é despertada e reforçada a insegurança, o medo de rejeição, o não-lugar, o silenciamento e o tratamento diferenciado entre as mulheres héteros. Isso tudo pode e geralmente impacta em como nos sentimos em outros âmbitos da nossa vida, seja na vida social, amorosa ou familiar”, explica a psicóloga que trabalha diretamente com essa população.  

    Quando o assunto é inclusão por parte das empresas, as entrevistadas acreditam que pouco é feito na prática. “Muitas empresas fazem um ‘showzinho’ sobre o quanto são diversas e inclusivas, mas você vai ver os cargos de chefia e só têm homens brancos. Você vai ver o quadro de funcionários e é todo mundo parecido, as mulheres todas de saltinho, de cabelo alisado, embonecadas. Você vai fazer uma entrevista e eles ainda esperam que você seja feminina, que esteja maquiada, ainda perguntam se você tem filhos ou pretende ter. Fiz entrevista onde perguntaram até a data da minha última menstruação para ‘confirmar que eu não estava grávida’. Se você [consegue a vaga e] tenta apontar algum caso de discriminação que acontece lá dentro, você é acusada de ‘não trabalhar bem com a equipe’”, conta Lourdes. 

    Rosangela vivenciou coisas parecidas. “Na prática pouco é feito para a educação e a mudança de comportamento de outros trabalhadores e das chefias. E, mesmo quando dizem que ensinam, é nítido perceber como existe um preconceito velado ainda, que não se expressa verbalmente, mas os comportamentos se expressam naquela cobrança maior em cima da lésbica. O tratamento masculinizado que nos oferecem, na forma como por vezes dizem que somos mais fortes, não somos delicadas. Já aconteceu de chefes e colegas me dizerem que comigo eles “mandam a real” sobre as coisas porque sabem que eu não sou tão delicada quanto outras colegas mulheres”.  

    Lourdes acabou deixando o trabalho presencial por conta das diversas situações enfrentadas. “Tenho bastante dificuldade de conseguir e manter emprego formal. Por causa da minha aparência, tendo a preferir trabalho remoto. Querendo ou não, as pessoas te tratam melhor quando não sabem que você é uma lésbica “butch“, “caminhoneira”. Você deixa sua aparência a critério da imaginação das pessoas, é mais fácil. Existe esse estereótipo de que a lésbica é agressiva, que é turrona, barraqueira, e as pessoas projetam isso em você.

    “Tudo que você fala é interpretado dessa forma. Quando você não é feminina, as pessoas interpretam isso como uma infantilidade ou rebeldia ou desleixo. Já perdi oportunidade de emprego porque o contratador achou que eu tinha “cara de que ia arrumar encrenca com os homens da equipe.”

    “A gente acaba caindo muito pra informalidade, pros freelas, pros bicos. Eu trabalho como [serviços através de Pessoa Jurídica] PJ faz muito tempo e a informalidade deixa a gente estressada, né. A gente nunca sabe quando vai ter dinheiro, morre de medo de quebrar alguma coisa em casa numa época de vacas magras e não poder substituir, de acontecer alguma emergência e não ter uma renda previsível. Eu vejo muitas lésbicas trabalhando na informalidade e passando esse mesmo stress constante de nunca saber como vai ser o dia de amanhã”, desabafa. “Se puder contratar ou escolher uma profissional lésbica para fazer algum serviço, tem muita mina por aí fazendo trabalhos super legais, de maneira autônoma. Vale a pena buscar”. 

    “Vivenciar esses episódios de lesbofobia me marcou de maneira muito negativa. Eu desenvolvi alguns problemas psicológicos que ainda hoje trabalho em terapia para superar. São lutas diárias para me entender como um corpo que não está errado, como alguém que merece ser feliz e ser bem tratada e até mesmo de refletir sobre quando eu sinto uma imensa gratidão ao ser tratada bem, o quanto isso é de fato gratidão e o quanto é a surpresa de, em um raro momento, ser tratada com dignidade. Hoje eu tenho a alegria de trabalhar em um ambiente de qualidade, com pessoas que me respeitam e me valorizam, mas infelizmente isso não é algo que está disponível para todas as lésbicas”, conta Rosangela. 

    A psicóloga explica que essas violências podem deixar impactos durante toda a vida das lésbicas. “As marcas deixadas pela lesbofobia podem ser consideradas um trauma pois tratam-se de lésbicas que experienciam ansiedade, depressão, baixa autoestima, insegurança, constante sentimento de culpa, inadequação, sensação de inferioridade, negação de si, medo de rejeição, abuso de álcool e drogas, distúrbio alimentares, idealização suicida. Isso pode impactar, mas não é determinante, na dificuldade de estabelecer relacionamentos afetivos e criar vínculos, dificuldade de pôr em prática os desejos e planos, reprodução e internalização de estereótipos para ser aceita, entre outros.” 

    “Considero o acompanhamento psicológico como uma das possibilidades de cuidado, assim como estar em coletivo com outras lésbicas, pois a grupalidade auxilia muito no fortalecimento de si e de outras lésbicas, no sentimento de pertencimento, na construção de identidade, pois é ter contato com outras referências de existir e, principalmente, na possibilidade de se enxergar enquanto um corpo político”, completa Larissa. 

    A lesbofobia é vivenciada por todas as mulheres lésbicas, mas pode se manifestar de diferentes formas. A não-feminilidade expressada por algumas mulheres pode ser um fator a mais para o alvo dessas violências.  “Estamos falando de uma sociedade machista e misógina que define qual o padrão aceitável de existência e classifica os seres a partir da dualidade (homem e mulher), já impondo as característica esperadas por essas duas possibilidade que eles mesmo definem e que exclui totalmente outras expressões de gênero e sexualidade. Então se a mulher não performa feminilidade, não tem seu afeto direcionado ao homem hétero, ela se torna uma ameaça a essa sistema todo que depende dos lugares sociais impostos para manter seu funcionamento”, explica a psicóloga. 


    Ilustração especial Visibilidade Lésbica / Sophia Andreazza / @sophiandreazza

    A importância da Visibilidade Lésbica no combate à discriminação

    A criação do Dia da Visibilidade Lésbica propiciou que o debate fosse colocado em diversas áreas da sociedade. Para as entrevistadas, a data é importante para que a existência lésbica seja normalizada. “A lésbica é vista como um ser aberrante, uma desviante, e por isso mesmo encaixada em estereótipos. A visibilidade é importante para que sejamos entendidas como pessoas que têm uma vida interior própria. A mulher já é desumanizada e objetificada, tem um papel social que é construído como receptáculo do desejo do outro. A lésbica é vista como um receptáculo quebrado, uma mulher que não funciona. A visibilidade é dar voz às lésbicas num processo humanizador. Nós não somos mulheres quebradas, ou barraqueiras frustradas, somos seres humanos, temos nossas próprias histórias e precisamos ser vistas e ouvidas”. 

    “É por meio da visibilidade que, pouco a pouco, a gente consegue transformar o imaginário coletivo de quem somos enquanto lésbicas, a cada movimento novo de visibilidade é um próximo passo que a gente tenta dar rumo a uma transformação das realidades das próximas gerações. Eu espero que o mundo seja mais acolhedor para as lésbicas que vão vir e o Dia da Visibilidade Lésbica contribui pra isso. Além disso, marca um momento importante na história das lutas por direitos, por transformação social e é uma data importante politicamente porque rompe com o véu da ignorância, inclusive do movimento LGBT+, de dizer que lésbicas nunca estiveram ativas politicamente, de que mulheres não constroem política”, explica Rosangela. 

    Para a psicóloga, é preciso lembrar, todos os anos, que as lésbicas existem o ano todo. “É visibilidade, para olhar nossa pluralidade, reivindicar respeito, acessos, humanidade. É celebrar todos os corpos lésbicos que são resistência, revolução, que têm voz, têm potência, e que vai contra o patriarcado, o machismo, o racismo e todas outras formas de opressões. É o rompimento da invisibilidade do nosso existir, é mostrar que estamos na luta há muito tempo e, além disso, relembrar toda a caminhada histórica trilhada por mulheres lésbicas que vieram antes de nós. É pensar outras formas de viver em menos sofrimento, pensar outras possibilidade de caminhos, principalmente se for em coletivo, e deixar uma estrada para outras que irão vir depois de nós”. 

    Quando questionada sobre como avançar no combate às violências, Lourdes é assertiva “com mais lésbicas tendo espaço!”. E continua “Em todas as áreas, em todos os lugares, numa posição de protagonismo. Precisamos ter nossas lutas e nossas histórias contadas. E não apenas numa forma de ‘representatividade’  com histórias meia-boca sobre lésbicas de mentira sendo contadas por homens ou por mulheres heterossexuais, mas realmente dar espaço para a nossa voz. Na mídia, no mercado de trabalho, nos círculos feministas, na legislação, em todo lugar”. 

    Combater a lesbofobia diariamente passa por humanizar lésbicas e reafirmar que, assim como todas as demais pessoas existentes, elas também são merecedoras de acessar políticas públicas. “Combater a lesbofobia é a disponibilidade de pensar ações para tudo que é nos é negado – como o acesso à saúde especializada, ginecologia lésbica, programas de saúde mental -, ações de acesso ao trabalho que nos ajudem a permanecer, pois falamos de um ambiente capitalista e competitivo. Disposição de repensar os estereótipos atribuídos e as atitudes direcionadas a nós, repensar ações para a sobrevivência das lésbicas nos presídios e em situação de rua também. É também enfrentar lesbocídio, que é o homicídio direcionado a mulheres lésbicas. Enfim, é pensar formas de a gente poder ter uma existência mais plena e por mais tempo”, finaliza Larissa.  

    Rosangela encerra a entrevista pedindo “que o Dossiê Lesbocídio [primeiro e único levantamento sobre assassinato de mulheres lésbicas no Brasil] não seja o único que se preocupa em contar nossos corpos, que nossas vidas sejam valorizadas por todos os poderes e que sejamos mais que corpos assassinados e suicidados, que sejamos vida também”.

    Dia do Orgulho Lésbico: 19 de agosto, a revolta no Ferro’s Bar

    Localizado próximo à avenida 9 de Julho, no centro da capital paulista, o Ferro’s Bar era um conhecido ponto de encontro de lésbicas a partir dos anos 60. A polícia fazia investidas violentas no estabelecimento e as frequentadoras eram expulsas do bar, além de terem seus panfletos e materiais impressos apreendidos. 


    Jornal “Chana com Chana”, vendido no Ferro’s Bar, local do primeiro levante lésbico no Brasil / Reprodução

    Nesta época, o que mais circulava entre essas mulheres era o jornal não-permitido “Chana com Chana”, produzido de 1981 a 1987, que trazia troca de cartas, poesias, resenhas, entrevistas, dicas de livros, depoimentos, além de tratar questões como legislação, trabalho e família. 

    Depois de muito resistir às expulsões violentas e à proibição dos materiais, no dia 19 de agosto de 1983, as militantes resolveram dar um basta em toda essa violência. Um manifesto contra a repressão e pelo direito das lésbicas foi lido diante da polícia e da imprensa. O protesto resultou em um pedido de desculpas e na liberação da venda dos panfletos. 

    O levante do Ferro’s Bar foi um marco histórico da primeira manifestação lésbica brasileira, incentivando outros grupos a se erguerem contra a repressão também. 


    Levante no Ferro’s Bar, em 19 de agosto de 1983 / Reprodução

    Confira abaixo o conteúdo do panfleto distribuído em julho que mobilizou o levante em agosto. 

    PRA VOCÊ QUE FREQUENTA O FERRO’S 

    BEM, GENTE, ACHO QUE CHEGOU A HORA DE FALARMOS ABERTAMENTE. CHEGA DE SUBTERFÚGIOS. E VOCÊ QUE É UMA PESSOA INTELIGENTE HÁ DE CONVIR COMIGO QUE TEMOS QUE NOS UNIR, POIS SÓ A UNIÃO FAZ A FORÇA. NÃO QUEREMOS QUE VOCÊ EMPUNHE A BANDEIRA DE HOMOSSEXUAL CONTRA A SUA VONTADE, MAS GOSTARÍAMOS QUE VOCÊ OLHASSE PARA DENTRO DE VOCÊ E VISSE O QUANTO GENTE VOCÊ É, QUE SER HUMANO MARAVILHOSO SE ESCONDE ATRÁS DE UMA MÁSCARA, BRINCANDO DE FAZ DE CONTA. 

    FAZ DE CONTA QUE SOU TRATADA IGUALMENTE COMO TODAS AS PESSOAS. 

    FAZ DE CONTA QUE O RESTAURANTE QUE EU FREQUENTO ME RESPEITA COMO EU MEREÇO. 

    FAZ DE CONTA QUE A SOCIEDADE ME ENCARA SEM PRECONCEITO. 

    FAZ DE CONTA ATÉ QUANDO? 

    VOCÊ SABIA QUE COLEGAS SUAS, SERES HUMANOS COMO VOCÊ, SÃO POSTAS PARA FORA DE NOSSO MEIO COMO SERES LEPROSOS? 

    VEJA, POR EXEMPLO, O QUE ACONTECEU NA NOITE DO SÁBADO PASSADO, DIA 23 DE JULHO, SÓ PORQUE UMAS MENINAS ESTAVAM VENDENDO SEU BOLETIM O CHANACOMCHANA, NUM CERTO BAR QUE CONHECEMOS, O DONO DO BAR E OS SEGURANÇAS QUERIAM EXPULSÁ-LAS À FORÇA SÓ PORQUE O BOLETIM FALA DAS NOSSAS VIDAS CLARAMENTE, SEM VERGONHA OU MEDO E ATÉ COM MUITO ORGULHO. E É SÓ POR ISSO MESMO, JÁ QUE, NO MESMO DIA, O EXÉRCITO DA SALVAÇÃO ESTAVA VENDENDO SEU JORNAL PARA NOS LIVRAR DO “PECADO” E NINGUÉM O INCOMODOU. 

    NESSA NOITE, QUISERAM EXPULSAR AS COLEGAS, MAS NÓS NÃO DEIXAMOS E ELAS FICARAM, JANTARAM E PAGARAM A CONTA COMO SEMPRE COSTUMAM FAZER, POIS, PRA UNS E OUTROS, EMBORA NÃO PASSEMOS DE CÃES SARNENTOS, NOSSO DINHEIRO NÃO TRANSMITE NOSSA DOENÇA. E ELES SABEM FAZER BOM USO DELE, NA COMPRA DO CARRO ZERO KM, NO ESTUDO DO FILHO NO EXTERIOR, ETC. QUEREMOS TER OS MESMOS DIREITOS DAS OUTRAS PESSOAS, NÃO SÓ SEUS DEVERES. 

    E PRECISAMOS COMEÇAR A BATALHAR POR ISSO A PARTIR DOS LUGARES QUE FREQUENTAMOS E SUSTENTAMOS. OU NÓS NOS UNIMOS OU CENAS COMO A DO SÁBADO PASSADO CONTINUARÃO A OCORRER E PODERÁ SER COM QUALQUER UMA DE NÓS POR QUALQUER MOTIVO. 

    NOSSAS COLEGAS ESTÃO PROIBIDAS DE ENTRAR NO FERRO’S PORQUE QUEREM VENDER UM BOLETIM QUE TAMBÉM É NOSSO E PORQUE QUEREM CONVERSAR CONOSCO. VAMOS ADMITIR ESSA PROIBIÇÃO?

    GUARDE E PENSE COM CALMA, EM CASA. REFLITA, FAÇA UMA AUTO-ANÁLISE, SE POSSÍVEL RELEIA ESTE TEXTO COM BASTANTE ATENÇÃO E, SE VOCÊ NÃO SE IMPORTA CONSIGO MESMA, JOGUE FORA E FAÇA DE CONTA QUE NADA LEU. 

    CASO CONTRÁRIO NOS PROCURE. NOSSO ENDEREÇO É RUA AURORA, 736, APTO 10. 

    E DEIXE O SEU RECADO. CASO CONTRÁRIO, PROTESTE CONTRA A PROIBIÇÃO DE NOSSA ENTRADA COM O DONO DO BAR. 

    E, CASO CONTRÁRIO, NOS APOIE QUANDO FORMOS VENDER O BOLETIM CHANACOMCHANA. 

    PARTICIPE NA LUTA CONTRA O PRECONCEITO QUE NOS DISCRIMINA, POIS TODA MANEIRA DE AMOR VALE A PENA. 

    GRUPO AÇÃO LÉSBICA FEMINISTA CX.POSTAL 62,618, CEP 01000, SP JULHO DE 1983

    (texto digitalizado do folheto original distribuído no Ferro’s Bar– acervo Rede de Informação Um Outro Olhar, contido na publicação “Quando o preconceito fecha as portas, lute para abrí-las”, de Miriam Martinho)

    Veja também: Eu Sou A Próxima: como morrem as mulheres lésbicas no Brasil