Jornalistas Livres

Tag: violência policial

  • Aldeia dos quatro Chiquitanos mortos por policiais é alvo de ameaças

    Aldeia dos quatro Chiquitanos mortos por policiais é alvo de ameaças

    Após um mês da chacina, com indícios de tortura, de quatro indígenas na fronteira do Brasil com a Bolívia (veja relato completo em https://jornalistaslivres.org/policia-mata-quatro-chiquitanos-na-fronteira-com-a-bolivia/) por policiais do Gefron, a aldeia é alvo de novas ameaças. O professor da Universidade Federal de Mato Grosso – UFMT Aloir Pacini, que acompanha o caso de perto, relatou essa semana que os Chiquitanos estão ligando desesperados depois dos policiais dizerem que vão matar outros dez habitantes do lugarejo. Por causa das ameaças e para dar apoio e visibilidade ao caso,Pacini, que também é padre jesuíta e antropólogo, está publicando semanalmente relatos da situação no site da Unisinos (http://www.ihu.unisinos.br/). Os Jornalistas Livres continuarão acompanhando o caso.

    “A boiada não vai passar e a mentira, mesmo que saia da boca de uma mesma pessoa, dita milhares de vezes não se tornará verdade, principalmente porque sabemos que o pai da mentira é o diabo. Vamos somente aprender com os índios, caboclos e pequenos produtores rurais a cuidar da floresta como cuidar do fogo para queimar os roçados nas roças de toco ou usar de modos agrossistêmicos e agroecológicos adequados em busca da sobrevivência e produção de alimentos em áreas já desmatadas”, escreve Pacini.

    Eis o artigo. 

    Brasil está sendo criticado desde o ano passado na ONU e internacionalmente por causa de sua política ambiental e o massacre dos povos tradicionais, porque não quer aprender com os povos indígenas a cuidar dos nossos biomas, possui uma visão equivocada e idolátrica da natureza como local de roubo e de enriquecimento, como se esse fosse um banco pronto para assaltar e roubar. Não bastasse, as formas de negacionismo são tantas e tão perversas que encontra formas de colocar a culpa nos outros e, constantemente, minimiza os problemas causados pela forma equivocada de grande parte do agronegócio se portar, devastando em vez de cuidar. Bem diferente é a agricultura ecológica que possui um cuidado extremo com o uso do fogo, aprendeu que quem põe a mão no fogo queima.

    No dia 23 o Coiso já havia dito que o Brasil era “vítima” de uma campanha “brutal” de desinformação sobre a Amazônia e o Pantanal e que os indígenas e caboclos eram que colocavam fogo, e foi duramente questionado por isso. Não aprendeu porque a cabeça é dura, algum problema existe, pois no dia 30 voltou a declarar na cúpula sobre biodiversidade da Organização das Nações Unidas (ONU) que “ONGs” comandam “crimes ambientais” no Brasil.

    Todas as pesquisas científicas mostram que é a agropecuária que provoca no país tal impacto nos incêndios, o que é chamado dilúvio de fogo por causa do desmatamento e queimadas descontroladas que estão ocorrendo nas regiões de floresta, cerrado e pantanal, para o susto de todos, pois se tratava de um bioma com grande parte alagada, algo que jamais fora visto no país, ou seja, principalmente no Pantanal e na Amazônia temos grande precipitação de chuvas e isso gerava antes do aquecimento global e do desmatamento que faz com que grande quantidade de massa orgânica é devastada para colocar fogo sem os cuidados tradicionais que os povos indígenas tradicionalmente possuem.

    Em vez do agropecuário recuperar as áreas devastadas por ele no Brasil, trazendo para todos um expressivo aumento de produtividade alimentar para nós e para o mundo, e parar de avançar sobre as áreas ainda preservadas como seria de bom tom, o que provocaria um impacto benéfico sobre o meio ambiente. Quando o Coiso tem dificuldades mentais de aprender com a prática fiel do bem, insiste na mesma narrativa de que os incêndios têm origem natural e que a ação humana nos locais não tem muita interferência. Parece que voltamos para o tempo da pedra lascada, não sabemos nós que a venda dos grandes tratores teve um aumento sem precedentes no mês de maio deste 2020. Para entrar na Floresta um desses tratores em cada ponta levam os correntões e vão derrubando a mata nativa em proporções nunca visto na Amazônia, começando é claro pelos seus entornos.

    boiada não vai passar e a mentira, mesmo que saia da boca de uma mesma pessoa, dita milhares de vezes não se tornará verdade, principalmente porque sabemos que o pai da mentira é o diabo. Vamos somente aprender com os índios, caboclos e pequenos produtores rurais a cuidar da floresta como cuidar do fogo para queimar os roçados nas roças de toco ou usar de modos agrossistêmicos e agroecológicos adequados em busca da sobrevivência e produção de alimentos em áreas já desmatadas.

    O que venho observando nas pesquisas que faço desde 1989, quando fui morara com os Rikbaktsa é que as comunidades organizam-se para botar fogo e poder controlar, os indígenas seguem a mesma lógica. Acompanhei os Rikbaktsa nas suas derrubadas de mata, tudo feito de forma ritualizada, em vista de uma festa. O dono da festa designava cada um dos homens para derrubar as árvores maiores e a mulherada derrubava na frente as menores. Quando uma árvore grande iria cair, tocava-se a buzina tradicional, tudo no respeito, pedindo licença para poder derrubar a árvore e não prejudicar ninguém, ao contrário, poder fazer a roça de toco como dizem. Na hora de botar fogo, toda a comunidade se organiza e todos a postos ao redor da derrubada para o fogo não espalhar para dentro da mata, e ali era mata amazônica. Não se pode mais ficar nos preconceitos tão grosseiros, que não conseguem olhar para essa sabedoria dos povos tradicionais que valorizam cada árvore, cada fruto, cada planta e cada animal. Todos têm nome, não é uma floresta a ser derrubada para plantar pasto para o gado.

    Chiquitana assumida, Miraci falou como Abelha Rainha na live da Comissão Pastoral da Terra a respeito das queimadas, como tradicionalmente os indígenas e os sem-terra cuidam do fogo e o usam para fazer comida, para preparar a roça e nunca provocaram os incêndios que atualmente está o agronegócio provocando no nosso meio para espanto de todos. E ainda tem um governo louco que acusa os indígenas e caboclos de serem eles os que provocam essa devastação sem precedentes na floresta amazônica, no Pantanal e no cerrado.

    Todos os biomas no mundo e no Brasil (PampaMata AtlânticaCaatingaPantanalCerrado e Amazônia) possuem a ação do fogo, contudo não é essa a questão que me ocupa aqui. Desde os inícios as civilizações utilizaram o fogo para preparar seu alimento, para se proteger dos animais, para iluminar nas noites com um tição de fogo (ver filme A guerra do fogo). Os fogos numa casa indígena representam claramente as unidades de produção de alimentos para núcleos menores das famílias mais extensas que podem formar um clã, uma etnia numa aldeia. O controle do fogo tem sido uma preocupação tradicional dos povos indígenas e isso aparece nos seus mitos relacionados ao fogo. Contudo, o dilúvio de fogo na cosmologia Chiquitana é parte desses incêndios descontrolados feitos pelos fazendeiros que não se importam com o quanto queime, ou melhor, desejam que queime o máximo para que se possa jogar depois as sementes de pasto e não ter custos maiores com essa atividade de formação de pastagens. Assim, os incêndios que estamos presenciando estão diretamente relacionados ao desmatamento descontrolado levado avante pelo agronegócio, dado que até o ministro do meio ambiente propõe fazer a boiada passar enquanto estamos ocupados com a pandemia. Assim, as gigatoneladas (bilhões de toneladas) de dióxido de carbono jogadas no ar aumentam e tudo se torna um círculo vicioso no aquecimento global. [1]

    A cruz com os nomes dos 4 chacinados na capela de San José de la Frontera (01/10/2020) | (Fotos enviadas pelo autor)

    No primeiro dia do mês missionário, os Chiquitanos levaram a cruz esculpida na madeira de ipê roxo (tahivo) por Conrado Ardaya para a capela da comunidade e ali rezaram pelos falecidos. Perguntei por que não foi de aroeira e eles explicaram que a aroeira não permite gravar os nomes dos falecidos na madeira, é muito dura. Quanto à cor das flores do ipê, o roxo é porque ainda estão de luto. Mas chegará o dia da Justiça e os ipês amarelos, rosa, branco vão florescer junto com o roxo. Toda vez que virem um tahivo florir nesse cerrado, no Pantanal ou na floresta, vão lembrar das flores de ressurreição que os sacerdotes do templo de Jerusalém tinham enterrado para que ninguém encontrasse. Mas Santa Helena mostrou como encontrar a cruz de Jesus Cristo mais ao fundo, cavaram e primeiro encontraram a cruz do mau ladrão, depois a cruz do bom ladrão, São Dimas, só bem mais profunda é a fé para encontrar a cruz de Cristo. Lembrei também dos Xoklem e dos cafusos de Santa Catarina que fazem a cruz com cedro para brotar e, quando brota, é sinal que a pessoa por quem rezam ressuscitou.

    O plano era no dia seguinte, o dia dos anjos da guarda, ir plantar a cruz com o nome dos quatro mártires no chão sagrado onde eles foram mortos covardemente pelo Gefron, pois ali, dizem eles, foi derramado sangue inocente, uma mancha pesada que clama aos céus por Justiça. Assim pensam que as bênçãos de Deus vão proteger os que ficaram. Esperam que suas orações, por meio da cruz que pendurou o corpo de Jesus que foi elevado para o Céu, também leve os quatro Chiquitanos a um bom lugar. Quando eles chegarem na porta dos céus estarão com essa cruz para abrir a fechadura que foi colocada ali para que os maus policiais não entrem. Alguns acontecimentos cuidadosamente lidos e interpretados pelos Chiquitanos vão mostrar os meandros dessa história.
    Já fora denunciado que Mato Grosso carece de uma produção jornalística independente e que não é saudável simplesmente repetir palavras vazias e preconceituosas como essa: Gefron mata mais quatro mulas bolivianas [2]. Isso é quase pior que matar, pensar as pessoas abaixo de animais, pois a qualidade desses animais específicos é a mais cruel. E quando vamos ver do que se trata nessa Operação Hórus/VIGIA, não há possibilidade de refletir a complexidade de uma tal notícia, baseada num BO sem reflexão:

    “… quando a equipe policial realizava patrulhamento rural nas margens do Rio Jauru, em local conhecido por travessia de ‘mulas humanas’, a equipe abordou pessoas armadas carregando mochilas. Que no momento em que os policiais abordaram e verbalizaram se identificando como policiais os suspeitos começaram a desferir disparos contra os policiais. Por sua vez, os policiais revidaram a injusta agressão com disparos de arma de fogo no intuito de resguardar as suas vidas e após cessar o confronto armado, os policiais fizeram varredura de segurança no local, onde encontraram 04 suspeitos caídos ao solo e alvejados, cada um portando arma curta e mochila. […] os suspeitos foram encaminhados para o pronto socorro mais próximo, porém não resistiram aos ferimentos e vieram a óbito.”

    A imagem que aparece no noticiário mostra dois Chiquitanos de San José de la Frontera e dois aliciadores brasileiros que provocaram mais essa tragédia. Os policiais não sofreram nenhum arranhão, todos os 4 morrem para não contar outra versão dos fatos. E o comando do Gefron, logo em seguida anuncia que um dos falecidos é irmão de outro assassinado no dia 11/08. Em reunião no dia 28/09 com o Tenente Coronel Fábio R. de Araújo que comanda o Gefron no Mato Grosso, esclarecemos que o César não era irmão de nenhum dos outros assassinados. Mesmo assim essa notícia continuou vinculando os dois fatos de forma equivocada. [3]

    Jesus orienta que não adianta jogar pérolas aos porcos porque eles não sabem o que fazer com elas. O contraditório tem que sempre ser considerado, principalmente nesses casos tão complexos. Quem contratou o brasileiro que estava casado com uma pessoa da comunidade a fim de aliciar os dois Chiquitanos para o trabalho de mula humana? Somente um jovem e um adolescente se prestou a esse trabalho e a mãe de Carlos Socoré (16 anos) disse que o filho falou ao sair que iria fazer um trabalho porque queria comprar uma roupa nova, mas ela não pensava que era para levar droga para Cáceres. Foram mortos depois, pois os policiais já sabiam onde estavam, o que faziam e assim poderiam querer livrar a pele da atrocidade ocorrido no dia 11/08, dando a impressão que ninguém é inocente como afirmou o Secretário de Segurança Pública (ver adiante). César Alvarez Lopez (27 anos) era filho de Adelina Lopes e Romelio MartinezCarlos Socoré Algarañaz (16 anos), era filho de Carmelo Socoré Bautista e mãe Úrsula Algarañaz; os dois brasileiros são pouco conhecidos e uma pessoa da comunidade pensa que se chama Tiago Silva (34 anos) e o outro era genro do César, e deixou a esposa grávida. A comunidade reconhece nesse caso que “faziam coisas erradas, mas não precisava logo matar, não andam armados!”, disseram. ”Assim fica mais difícil de saber a verdade!”

    Boletim de Ocorrência do dia 11/08 é semelhante ao do dia 27. Está com esses nomes: 3º SGT PM dos Santos; 3º SGT PM Sílvio; SD PM Cristiano; SD PM Marcos Aurélio. Contudo, a execução pode ter sido feita por um grupo e o BO ter sido registrado por outros. Nessa semana a comunidade ficou desesperada porque o Gilson Macaúba, do Gefron ameaçou as pessoas de San José, dizendo que vão matar mais uns dez, isso em dois momentos, com pessoas diferentes, segundo testemunhos da comunidade. Michel de Foucault (in Vigiar e Punir) já analisou que as instituições como as polícias que vivem do monopólio e controle da violência. A raiz do problema está no tráfico, e sabemos que que o tráfico é possível se existe agente do Estado envolvido, nesse caso ninguém está imune, pois é um negócio que dá muito dinheiro. O certo é que os Chiquitanos não inventaram o tráfico, mas são vítimas de uma situação cruel na Fronteira. Mesmo que são utilizados como “mulas humanas” para terem um dinheiro mais fácil, já sugeri quebrar as pernas do tráfico em outro texto, ou seja, muitos estão sendo mortos sistematicamente e os traficantes enriquecem soltos por aí.

    O dia 30/09 foi o dia mais quente dos últimos 100 anos em Cuiabá, segundo o Instituto Clima Tempo, que marcou 44°C por volta das 15 horas, o terceiro recorde histórico de calor em Cuiabá registrado no mês de setembro. As causas são uma cortina de fumaça que encobre ainda a cidade por causa das queimadas no Pantanal e uma bolha de calor sobre a região que impede o avanço das frentes frias e das massas de umidade da Amazônia que poderiam formar as chuvas. Cuiabá bate recorde de calor no domingo dia 4, com 46°C e uma sensação térmica extenuante por causa da fumaça. O secretário de Segurança Pública de Mato Grosso, em entrevista nesse dia 30/09 falou coisas que interessam para a corporação. Evidente que o espírito de corporativismo é gritante e vergonhoso, pois o que deveria ser a segurança pública virou algo privado e a morte do povo brasileiro pouco importa por esses que tomaram os governos: “Independente se é índio, branco, negro, chiquitano…Traficante que atirar em polícia vai levar bala de volta. E é assim que está acontecendo na fronteira”, afirmou o secretário. Como prova o Secretário essa afirmação descabida: “Nenhuma dessas vítimas aí estava carregando flores. Todas estavam carregando cocaína. As apreensões são na ordem de 400 quilos, 500 quilos.”[4] Nem inquérito policial foi feito como pode dizer que nenhuma das pessoas mortas em confronto com o Gefron na região da fronteira era inocente? Onde estariam os 400 ou 500 quilos que estavam com os quatro Chiquitanos mortos no dia 11/08? Como pode ser tão enfático em afirmar que eles não são inocentes ou será que um crime justifica o outro?

    Por isso fomos nesta sexta (02.09) como Conselho Estadual de Defesa da Pessoa Humana de Mato Grosso à SESP para conversar com o Secretário de Segurança Pública de Mato GrossoAlexandre Bustamante, para tratar das investigações sobre a morte dos quatro Chiquitanos, ocorrida no dia 11 de agosto, no município de Cáceres. O Ouvidor Geral de Polícia de Mato Grosso, Lúcio Andrade, apresentou a preocupação em relação à letalidade que aumentou em diferentes ações do Grupo Especial de Fronteira: “O problema do tráfico de drogas é real, a dificuldade de lidar com o problema é sabida em tantos quilômetros de fronteira seca, mas a letalidade das ações é preocupante. Cobramos uma investigação isenta desse caso, que tem repercussão internacional, por se tratarem de indígenas e cidadãos bolivianos” [5]. Pensa o Secretário ser urgente os militares que estão nos Quartéis da fronteira terem a incumbência de auxiliar o Gefron a coibir o tráfico, pois não tem sentido ficar esperando que a Bolívia ataque o Brasil. Parece que a fala do Secretário incentivou mais a agressividade dos policiais na Fronteira e os Chiquitanos não estavam conseguindo dormir na noite de quinta-feira:

    “Estou com um grande aperto no coração como si tivesse algo acontecendo […] sinto no meu coração como si tivesse levando os tiro que meu irmão levo. É um medo grande. […] teve um policial que paro meu tio e disse que são 10 pessoa padre que eles vão matar ainda na nossa comunidade. Isso me deixa cada vez mais preucupada. Não sei si esse policial quer amedrontar a gente para tipo agente retirar o caso” (01/10/2020).

    Esse encontro com o Secretário foi para procurar convencer, pressionar até, porque parece que sua postura de defesa dos seus policiais foi superficial, segundo o que foi anunciado nos meios de comunicação. O policial Macaúba passou a ameaçar as pessoas da comunidade, falou lá: “matamos mais quatro… vamos matar mais uns dez!” O fazendeiro Fabinho, patrão de José Mário Oliveira também foi parado pelo Gefron e avisado que eles não iriam parar por aí. Realmente, o caso está pegando fogo, pois as mentiras inventadas no BO não se sustentam. Vamos ver alguma forma de pedir proteção para as famílias da comunidade de San José de la frontera. Eles pedem também orações, pois os policiais que mataram os 4, no dia 11/08; no dia 27 mataram mais 4 e estavam ameaçando que vão matar mais uns 10. A comunidade estava especialmente amedrontada no dia 01/10 e não conseguiam dormir… pois alguns sinais foram dados: uma coruja passou por cima da casa de uma das viúvas como que zombando deles e depois voltou com a mesma forma de cantar. Perguntaram se seria o demônio que tomou conta dos policiais. Explicaram que também estão aparecendo mariposas marrons e entrando nas casas das famílias: “Tudo mau presságio. Hoje o filho mais novo do Yona chorou desesperado e só acalmou com banho com água benta!”

    Yona de vermelho e o seu Zé, o gerente, de camiseta azul carneando porco na fazenda do Japonês

    Seu , o gerente da fazenda do japonês Getúlio mantinha amizade e procurava os Chiquitanos para trabalhar na fazenda, “sempre convidava para auxiliar quando precisava de nós por lá” disse um morador da comunidade. Essa prática de chegar alguém na aldeia San José de la Frontera buscando trabalhadores é comum. E nem sempre os pais conseguem segurar os filhos diante das propostas de trabalho mais avantajadas, pois quando o milagre é grande demais, até o santo desconfia, disse uma moradora.

    Rezaram para São Miguel Arcanjo e Melânia conseguiu dormir. Acordou sobressaltada com o sonho: o seu fogão estava em chamas e ela conseguiu desligar o gás para não explodir a casa. Nisso, o filho mais velho de Yona (5 anos) pediu água que estava com muita cede e Melânia lhe deu. Estava refletindo sobre a sabedoria dos nossos pais. Meu pai chamava de patente, o lugar onde a gente ia cagar, pois ele estava cagando e andando para as patentes dos militares que oprimiam o povo já no tempo da ditadura militar. Quando meu pai queria xingar alguém chamava de alcalde. E agora na Bolívia observei que o alcalde é o prefeito. Havia uma crítica velada até na forma de nomear as coisas. A árvore toda cravejada de balas pela polícia do Gefron no dia 11/08.

    Rezador que foi professor de Yona (03/10/2020)

    Foram para o local da chacinagem o pai de Yona (+) os rezadores Carmelo Candia da paróquia e da comunidade, Antônio Tosube e sua esposa; o irmão e a irmã de Ezequiel (+), a viúva e o filho de Pablo (+); Kênedi, Melânia e seu esposo, João Camilo, que reza o rosário todos os dias para que pare toda violência contra os Chiquitanos. Em vários lugares do país a comunhão cósmica foi grande com esse momento de oração. Ressalto a oração pela arte de Lucilene França de Belo Horizonte, MG. [6]

    José, pai de Yona, o guardião da cruz (03/10/2020)

    O ato ritualizado de fazer a cruz e levar ao lugar do massacre é uma dedicação que direciona os corações dos Chiquitanos na direção certa. Ali rezaram para Jesus que também derramou seu sangue por nós, para que tenha piedade de toda a comunidade, pois agora já perceberam que a polícia está reagindo com mais violência e intimidação, uma vez que estão pedindo justiça de forma sistemática, algo inusitado nesses últimos anos, pois a lei é sofre calado. A naturalização das mortes das “mulas humanas” a que chegamos na fronteira é algo dramático. E o Gefron tem um histórico de não passar nenhum arranhão na sua imagem, algo que já é um sinal de uma opressão sem limites. E quem terá coragem de enfrentar o Golias?

    Melânia disse que Deus tocou no seu coração para deixar água no pé da cruz para eles e ela deixou como uma bênção de Deus para que eles também peçam chuva, principalmente nessa secura. Nesse dia dos mártires Ambrósio e André, agora também lembrará os Chiquitanos. O Conselho Indigenista Missionário (Cimi) alerta para o aumento exponencial da violência contra povos indígenas e esses casos das mortes dos Chiquitanos preocupa o mundo inteiro, pois tem pessoas sofrendo em todo lugar Tem cruz plantada de Oiapoque ao Chuí, apesar de sermos todos irmãos, uma verdade óbvia que ganha relevância na Encíclica Fratelli Tutti do Papa Francisco.

    Notas: 

    [1] No Acordo de Paris, aprovado em 1992 por 195 países que participaram da Convenção das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima (UNFCCC) para reduzir emissões de gases de efeito estufa (GEE) em vista de um planeta sustentável, foi estabelecido o compromisso de manter o aumento da temperatura média global em menos de 2°C. acima dos níveis pré-industriais. Contudo, Cuiabá está pegando fogo.

    [2] Acesse aqui

    [3] OPERAÇÃO HÓRUS/VIGIA-MT | GEFRON/SESP/SEOPI-MJSP/DEFRON/6°CR/PMMT/CÁCERES-MT | Fato: Tráfico ilícito de drogas / Associação para o tráfico / Porte ilegal de armas;
    Data: 27/09/2020; Horário: 00h20min; Local: Proximidades do Rio Jauru; Autor: 04 (quatro) pessoas; Antecedentes Criminais: 01 Suspeito com uma passagem por tráfico de drogas e uma por homicídio; 02 Suspeito com uma passagem por tráfico de drogas, com mandado de prisão em aberto e fuga de presídio; 03 Após ocorrência verificou-se que esse suspeito de nacionalidade boliviana era irmão de um suspeito que confrontou com equipe do GEFRON no dia 11/08/2020, onde quatro suspeitos de narcotrafico vieram a óbito, conforme bo n° 2020.188027.
    Histórico: Durante Operação Hórus/VIGIA, em força tarefa entre GEFRON, DEFRON e 6°CR/PMMT, com foco no combate ao tráfico de entorpecentes na região de fronteira entre Brasil e Bolívia, equipe policial realizava patrulhamento rural nas margens do Rio Jauru, em local conhecido por travessia de “mulas humanas”, onde a equipe abordou pessoas armadas carregando mochilas. Que no momento em que os policiais abordaram e verbalizaram se identificando como policiais os suspeitos começaram a desferir disparos contra os policiais. Os policiais revidaram a injusta agressão com disparos de arma de fogo no intuito de resguardar as suas vidas. Após cessar o confronto armado, os policiais fizeram varredura de segurança no local, onde encontraram 04 suspeitos caídos ao solo e alvejados, cada um portando arma curta e mochila. No interior das mochilas os policiais encontraram substâncias aparentando ser pasta base de cocaína e alimentos. Foi solicitado apoio policial no local. Os suspeitos foram encaminhados para o pronto socorro mais próximo, porém não resistiram aos ferimentos e vieram a óbito.
    Apreensão:
    90kg Substância análoga a pasta base de cocaína;
    3,2kg Cloridrato de cocaína;
    5kg Ácido bórico;
    01 Pistola calibre 9mm;
    01 Pistola calibre .22;
    02 Revólveres calibre .38.
    Prejuízo ao crime: R$ 2.000.000,00 (dois milhões de reais);
    B.O. N°: 2020.231526;
    Anexo: 01 (uma) foto e 01 (um) vídeo.
    Disque Denúncia 08006461402
    GEFRON, há 18 anos os olhos da fronteira!!!
    Servir e Proteger. Fronteira!!!

    [4] Acesse aqui e aqui.

    [5] Acesse aqui.

    [6] Acesse aqui.

    Leia o artigo original em http://www.ihu.unisinos.br/603461-crimes-na-terra-de-santa-cruz

  • Polícia mata quatro Chiquitanos na fronteira com a Bolívia

    Polícia mata quatro Chiquitanos na fronteira com a Bolívia

    A violência policial explodiu em todos os estados a partir do início do governo Bolsonaro. Na divisa entre Mato Grosso e a Bolívia, que recentemente passou por um golpe de estado anti-indígena, isso não é diferente e tem atingido principalmente os indígenas da etnia Chiquitano, que vivem num território com partes nos dois países. Depois de três indígenas mortos em circunstâncias ainda nebulosas no início do mês passado, no dia 11 de agosto outros quatro foram mortos por policiais do Gefron, o grupo especial de proteção da fronteira baseado em Cáceres, Brasil.

    Segundo as informações colhidas até agora, os indígenas Arcindo Sumbre García, Paulo Pedraza Chore, Yonas Pedraza Tosube e Ezequiel Pedraza Tosube Lopez estavam retornando de uma caçada perto da cidade boliviana de San Martias, levando inclusive as carnes já secas de porcos do mato nas mochilas, quando foram cercados por policiais e se assustaram. Os indígenas teriam sido baleados e levados ainda vivos para o hospital em Cáceres, onde gritaram que eram inocentes para os médicos e enfermeiros, mas não resistiram aos ferimentos. Os relatos em vídeo e áudio aos quais essa reportagem teve acesso são terríveis. O canal Pantanal Comunicación tem uma matéria em espanhol sobre o acontecido no Facebook (https://m.facebook.com/story.php?story_fbid=3566329250078615&id=100001047241695&sfnsn=wiwspwa&extid=0RwknczLGNjPIjDF&d=w&vh=i)

    Até o momento não há notícia de qualquer apreensão de entorpecentes pelo Gefron, o suposto motivo do conflito, e pelo menos dois indígenas têm claras indicações de tortura como orelha cortada e dentes quebrados. Assim, entidades ligadas aos Direitos Humanos e aos Povos Indígenas estão se organizando no Brasil para dar assistência às famílias afetadas pela tragédia. Elas buscam, além de justiça, uma reparação do Estado brasileiro que retirou da comunidade quatro adultos que eram fundamentais no sustento das famílias e de toda a aldeia localizada no município boliviano de San José de la Frontera.

    Na manhã desta quarta-feira 2 de setembro, o padre Aloir Pacini, membro do CIMI Conselho Indigenista Missionário e antropólogo da Universidade Federal de Mato Grosso, irá com um grupo de quatro pessoas da UFMT, Fepoimt, Centro de Direitos Humanos Henrique Trindade e Ouvidoria das Polícias, se encontrar em Cáceres com Dom Máximo Bienès, Dom Jaci e o casal Chiquitano Melania e João Camilo, primos dos que foram brutalmente assassinados na fronteira do Brasil. Juntos, eles visitarão outros parentes dos falecidos, todos deixaram esposa e filhos, para levar apoio espiritual e jurídico. O bispo de San Ignácio com os padres da Bolívia já se mobilizaram para celebrar uma missa na aldeia.

    “Queremos prestar solidariedade aos familiares e à comunidade, por isso vamos com 20 cestas básicas e com desejo de mostrar que a sociedade brasileira não está de acordo com essa forma truculenta como a polícia brasileira, não toda, mas nesse caso, atuou na fronteira”, explica padre Pacini. “As notícias são divulgadas aos poucos, mas as pessoas de lá pedem justiça e ressarcimento pelas perdas irrecuperáveis.”

    Apesar da quarentena, os Jornalistas Livres estão acompanhando essa história e traremos mais informações e relatos assim que o grupo retornar a Cuiabá. Nesse momento em que o estado de Mato Grosso é um dos piores na infecção por coronavírus entre indígenas (veja matéria aqui: http://grislab.com.br/pandemia-acelera-processo-de-genocidio-dos-povos-originarios/), quanto menos brancos tiverem contato direto com esses povos, melhor.

  • Advogados. Os campos de concentração no Pará

    Advogados. Os campos de concentração no Pará

    “Cala a tua boca senão tu vai levar um soco”.

    Essa foi a frase proferida pelo agente prisional concursado Marcos Vinícius da Costa Villanova antes de desferir um soco na advogada Dra. Juliana Borges Nunes.

    Agressão dos agentes prisionais

    .

    Advogados: Agressões físicas

    “Ele me chamou de preta, vagabunda, além de outros xingamentos”.

    Juliana foi agredida defendendo o direito de um colega advogado exercer seu ofício. Foi agredida dentro de um contexto que é negado diariamente. Negado pela Seap e ignorado pela sociedade paraense.

    Josiel Abreu advoga a seis anos. Foi na unidade prisional chamada Colônia que ele foi interpelado pelo agente que exigiu que o advogado lhe mostrasse anotações de seus clientes. Essas anotações são invioláveis.

    “Ele usou a frase, Aqui não é pra fazer anotação. Você não pode entrar com papel aqui.”

    Durante a discussão o agente Vila Nova chamou Josiel de “analfabeto de procedimentos”.

    Agressão dos agentes prisionais
    Grupo de advogados acompanhando Juliana par prestar depoimento. O medo de exercer a profissão entre a classe é constante.

    O artigo 7 da lei 8.906/1994 garante a “inviolabilidade de seu escritório ou local de trabalho, bem como de seus instrumentos de trabalho, de sua correspondência escrita, eletrônica, telefônica e telemática, desde que relativas ao exercício da advocacia”. 

    O agente Marcus Vinicius Vila Nova não conhece a lei e nem o artigo. É fruto de um estado totalitário, da misoginia e do racismo. O agente não socou o advogado Josiel. Ele socou Juliana. Uma mulher negra em uma posição de poder e respeito e isso é algo que a pseudo autoridade não tolera. Uma mulher negra em posição de poder.

    O agente prisional precisou ser contido pelo seu coordenador de plantão que conseguiu retirar a pistola do coldre de Marcos Vila Nova no meio da discussão. 

    Na delegacia prestando depoimento, Juliana pergunta chorando para o Delegado de plantão:

    “Ele vai precisar me matar? Matar algum de nós pra que vocês façam alguma coisa Doutor?”

    Advogados paraenses e o Estado
    A advogada Dra. Juliana Borges Nunes presta depoimento

    Um dos jornais paraenses que foram à delegacia para cobrir a matéria, o Jornal O Liberal, não coletou o depoimento da advogada. Alegou que a mesma estava em depoimento e por isso foi inviável falar com a agredida. Na mesma matéria o Liberal conseguiu facilmente uma nota da SEAP assim como fotos do agente prisional com sua camisa rasgada como prova da violência da advogada.

    Na matéria do Jornal paraense, a impressão que temos é de que o agente prisional é a vítima. Juliana foi xingada de vagabunda e chamada de preta antes do soco ser desferido em seu rosto. Mas a SEAP acredita ser o agente prisional a vítima assim como a mídia local.

    Sistema prisional paraense
    Delegacia onde Juliana prestou seu depoimento. O agressor não foi até a delegacia. O delegado teve de ir até o agente em Santa Izabel para sua oitiva.

    Para entender como o agente prisional se tornou vítima no episódio de agressão insólito é preciso ler a matéria completa aqui no Jornalistas Livres onde destacamos uma campanha de censura promovida pelo Governo do Estado do Pará.

    Marcos Vinícius Vila Nova que de acordo com a SEAP, foi agredido pela advogada. Além da camisa rasgada, o agente concursado não apresenta nenhuma marca de violência.

    Nessa série iremos abordar as denúncias de tortura e corrupção dentro da SEAP PARÁ sob a gestão duvidosa do Secretário de Administração Penitenciária Jarbas Vasconcelos recebidas por advogados. Na primeira parte falamos sobre Patrick, um detento que segue em tratamento domiciliar por ter contraído Tuberculose na unidade prisional na qual cumpria pena.

    Nesta segunda parte iremos abordar o lado da história contada por alguns advogados que, assim como seus clientes reclusos, também têm passado por constrangimentos e assédio do lado de fora dos muros de Americano. Falaremos também sobre a censura promovida pelo Governador Hélder Barbalho e sobre o desmonte da Comissão de Direitos Humanos assim como o Conselho Penitenciário.

    Sistema prisional paraense
    Patrick. Sua história foi mostrada na primeira parte dessa série de matérias sobre a SEAP.

    Os relatos apresentados são de advogados que, apesar de todo o clima de terror dentro do Estado do Pará, se mostram resilientes na postura. Profissionais que têm suas vidas, e de familiares, envolvidas em ameaças de morte e assédio durante o exercício de sua profissão. São homens e mulheres que desafiam o coronelismo regional e estão enfrentando o sistema de opressão vigente.

    André Leão, Advogados Antifascistas declarou:

    “Hoje uma advogada, no seu exercício de suas funções prerrogativas, foi socada por um agente penitenciário dentro do Complexo de Americano. Fazem isso com operadores do direito, que estão em liberdade. Imagina o que podem estar fazendo com as pessoas cumprindo pena?”  

    No dia 17 de julho, às 16h 46m, o advogado André Leão, que já integrou a Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-PA) escreveu uma postagem no Twitter sobre situações ocorrendo no sistema penitenciário de Belém do Pará.

    “Relatos de tortura ocorrendo no Complexo de Americano. Na Colônia Agrícola apenados e advogados relatam que os encarcerados são torturados por agentes prisionais, são obrigados a ficarem na luz solar mais tempo que o previsto e não podem olhar para o rosto dos servidores penais.”

    Advogados paraenses e o Estado
    Dr. André Leão. O advogado levantou dúvidas sobre a administração carcerária em um tuíte.

    A partir daí começaram a chegar mais denúncias e informações de outros advogados, familiares de presos e de agentes prisionais. Detentos sofrendo torturas física e psicológica, assédios por parte de agentes DAS a advogados e a outros agentes prisionais concursados. 

    Arquivos de vídeo e imagens, assim como os áudios de pedidos de intervenção legal, impressionam pela variedade de personagens envolvidos. Não são apenas os parentes dos reclusos, vítimas das torturas ainda cumprindo pena, mas também agentes prisionais implorando por uma intervenção surpresa de advogados e juízes para que estes apareçam no complexo de Americano sem aviso, pois só assim seria possível constatar a barbárie.

    André conta que os relatos chegam há alguns dias e não só sobre a capital, mas também falam sobre irregularidades no interior do estado.

    Ele conta que a SEAP está, “de alguma forma, dificultando até o atendimento dos próprios advogados junto aos internos”.

    André continua:

    “Inicialmente é preciso dizer que as famílias somente estão tendo acesso aos seus familiares presos por meio da teleconferência. Os advogados estão sim tendo acesso aos seus clientes, mas isso está sendo feito de forma completamente desordenada, a comunicação entre advogado e os apenados se resta prejudicada. Há relatos de falta de uso de máscaras no complexo e que há muitos presos com tuberculose, outros diversos problemas. Juízes não estão liberando a saída, mesmo com diagnóstico de risco para a Covid-19. A gente percebe que está acontecendo algo muito estranho com essas denúncias.”

    André Leão e outros advogados, deram entrada em um protocolo junto ao Ministério Público do Pará pedindo averiguação de fatos e denúncias. O documento foi encaminhado por ele para Gilberto Valente Martins. Procurador Geral de Justiça.  Segue um trecho do documento:

    Carta de repúdio

    “Outros relatos versam sobre o envio de comida estragada aos encarcerados que estão em regime fechado. Além de espancamento por cacetete e gás lacrimogêneo em horários noturnos para todos os internos do Complexo. Práticas que precisam ser apuradas, investigadas e punidas caso sejam verdadeiras. Alguns servidores da Secretaria de Estado de Administração Penitenciária relatam também perseguição e total descumprimento da Lei de Execução Penal por outros servidores e gerentes da instituição. Muitas denúncias não tiveram identificação das pessoas por medo de represálias pois são internos, familiares, advogados e até servidores da Secretaria de Estado de Administração Penitenciária.”

    O principal objeto de denúncias é Carlos Alex Valino Figueredo. Diretor do Centro de recuperação penitenciário do Pará 2 (CRPP 2). Capitão Valino do COPE, como é conhecido.

    Manifestação dos agentes prisionais
    Faixa colocada na frente do Tribunal de Justiça do Estado do Pará por agentes prisionais em manifestação recente por direitos da classe.

    O Capitão Alex Valino está sendo investigado pela Corregedoria geral penitenciária da SEAP por ações e iniciativas que vão de impedir que o almoço ou a janta sejam servidos, tiros de bala de borracha na cabeça de detentos, dificultar e impossibilitar a visita dos advogados com seus clientes.

    No caso das denúncias da Dra. Herna Azevedo, advogada criminalista que vem sofrendo assédio, Alex Valino nega todas por não conseguir recordar se a advogada estava agendada para atender seus clientes. Ele não recorda os nomes de três detentos atingidos com balas de borracha, entre eles um atingido na cabeça, não recorda ter visto qualquer situação de tortura e maus tratos, nunca deu nenhuma ordem a qualquer dos agentes prisionais da área de segurança para bater, agredir ou torturar um detento.

    Sistema prisional paraense
    Complexo Penitenciário Santa Izabel

    Outras denúncias são da utilização de gás lacrimogêneo de madrugada, presos obrigados a passar mais tempo tomando banho de sol, presas da unidade feminina sentando nuas em cima de formigueiros, espancamentos aleatórios na madrugada, retirada dos colchões das celas para que os detentos durmam na pedra (estrutura construída nos dormitórios onde são colocados os colchões) com o chão molhado, proibições como a de beber água por horas e a retirada de cadeiras de roda e muletas de presos incapazes de se locomover por apresentar situação de saúde frágil.

    Após as denúncias, a Seap lançou duas notas de esclarecimento negando todas as denúncias como visto na matéria anterior.

    Logo após a secretaria negar todas as denúncias, uma outra situação corrobora a crise administrativa penitenciária. O programa local da comunicadora Karol Resende, falando sobre as denúncias de tortura em Americano, é censurado e proibido de ir ao ar.

    Censura. A política pública de Hélder Barbalho

    Quem conta sobre o episódio de censura é a apresentadora que também é Presidente Estadual da Federação Nacional dos Comunicadores do Estado do Pará.

    “Fui procurada pela Advogada Criminalista Herna Azevedo que me apresentou provas sobre as torturas nos presídios.”

    Em uma live no Facebook, Karol Resende desabafa para seus seguidores sobre o episódio:

    “Eu não imaginava que fosse esbarrar no que está acontecendo aqui no Estado do Pará. Estamos vivendo um estado fascista. Nós não podemos falar nada que envolva o Governador do Estado ou que respingue na imagem dele por cargos de indicação.”

    Assédio, ataques pessoais e desrespeito ao Direitoe aos advogados

    Herna Azevedo, advogada criminalista relata:

    “As torturas estão acontecendo aos sábados. O próprio diretor tá fazendo as torturas aos fins de semana que é quando não tem advogado, ninguém da saúde e nem do administrativo.”

    No programa que traria luz sobre a crise carcerária no estado do Pará, a advogada criminalista, Herna Azevedo, faria o relato sobre os casos de violência contra seus clientes.

    Advogados paraenses e o Estado
    A advogada criminalista, Dra. Herna Azevedo

    A advogada nos contou sobre assédios que vem sofrendo ao visitar seus clientes assim como o impacto desse assédio por parte da SEAP em sua vida pessoal onde até seu marido foi usado como objeto para ameaças.

    Ela conta que desde a intervenção está impossibilitada de ter acesso a seus clientes. Até seu marido, artista conhecido de Belém do Pará, foi usado como ameaça. O esposo de Herna vem sendo acusado de ser um criminoso faccionado. As tatuagens do marido da advogada foram citadas para outros advogados, que estavam em visita profissional, e relataram para Herna as conversas absurdas.

    “Hoje me colocaram para falar com um cliente apenas. Cancelaram um monte de agendamentos meus. Mas porque me colocaram só com esse cliente?  Porque se porventura eu fale sobre algo que ocorreu lá esse cliente vai sofrer sanções né porque vão saber automaticamente que foi ele que me falou. Mas eu entrei com mandado de segurança pra poder falar com 17 clientes.”

    Herna continua o relato agora sobre as torturas:

    “Ele tava me falando que agora as torturas estão acontecendo aos sábados. O próprio diretor tá fazendo as torturas aos fins de semana que é quando não tem advogado, ninguém da saúde e nem do administrativo.

    Ele os coloca pra fora do pavilhão dando borrifada de spray de pimenta, batendo nos dedos deles e agora ele falou que já sabe como torturar sem deixar marcas porque nos que deixaram marcas eu levei pro IML e foi feita a perícia neles. Agora ele pega a toalha molhada e afoga os presos. Tem um preso meu chamado Luan Williams Freire da Silva. Esse é o preso que mais sofre no CRPP2, tanto por parte do Capitão Valino quanto por parte do Chefe de Segurança Machado e pelos policias penais. Eu perguntei porque ele fazia isso com o detento Luan. Ele respondeu que se ele quisesse atrapalhar a vida do Luan ele podia. Ele ia canetar, encher o Luan de processos disciplinar penitenciário que atrapalha na progressão do preso.”

    Ela reitera que o preso Luan corre risco de vida já que é o preso que é o mais torturado da Unidade CRPP2.

    O desmonte dos Direitos Humanos e do Conselho Penitenciário

    Juliana Fonteles, integrante do setor de Direitos Humanos da OAB, nos diz:

    “Eles partiram pra cima da gente. Nos desrespeitaram e nos coagiram ao ponto de dizer que se ficássemos ali algo podia acontecer com a gente.”

    Advogados paraenses e o Estado
    Advogada Dra. Juliana Fonteles

    Juliana Fonteles foi quem protagonizou essa luta como Presidente da Comissão dos Direitos Humanos através do Conselho Penitenciário do Estado na sua gestão. Juliana é filha de Paulo Fonteles, advogado sindicalista que foi morto na década de oitenta no período pós ditadura. Juliana é ameaçada de morte constantemente e tem seu telefone grampeado. Ela nos conta o esquema do Governador e de seu secretário da SEAP para desarticular a luta da Comissão de Direitos Humanos no Estado do Pará.

    “É vergonhoso toda a esquerda do Pará estar calada pra essa crise Carcerária. PT, PSol e PCdoB. Isso me enoja. Ninguém quer defender preso porque não dá voto. A esquerda está calada na mão desse governador fascista.”

    Esse governador nomeou como secretário de justiça dos Direitos Humanos o filho do inimigo histórico dos Direitos Humanos e maior representante da Bancada da Bala. Então o Direitos Humanos estava sendo desoxigenado e perseguido pelo fascista do Governador do Estado, o filho do Éder Mauro e pelo Jarbas Vasconcelos que leva uma rixa com a OAB Pará e comigo pra dentro da Secretária e transforma essa rixa em política pública contrariando órgãos importantes como o Ministério público Federal e o ministério público do estado. O Copen Pará não é só a Juliana Fonteles entende? São instituições que fazem parte da fiscalização da execução penal desse estado. Quando estourou Altamira eu já era presidente da Comissão dos Direitos humanos e já era presidente do Conselho Penitenciário do estado.

    Sistema prisional paraense
    Complexo Penitenciário Santa Izabel

    A comissão de direitos humanos por lei não pode fazer inspeção carcerária, mas o Conselho Penitenciário pode. Existe a prerrogativa legal de entrar a qualquer hora em qualquer presídio. Quando fizemos ano passado a inspeção em Americano o procurador federal Dr. Ricardo Negrini ouviu um dos detentos que trabalhava no Sol afirmando na frente dos agentes que existia tortura e assim ele disse que precisaríamos fazer a oitiva dos presos.

    Foi aí que se iniciou o assédio violento por parte dos agentes e pelo chefe da FTIP Maycon César Rottava que era secretário de assuntos penitenciários e que responde por ação de improbidade administrativa. Eles partiram pra cima da gente. Nos desrespeitaram e nos coagiram ao ponto de dizer que se ficássemos ali algo podia acontecer com a gente.

    Em setembro de 2019 houve uma audiência judicial pra combater a violação da prerrogativa da OAB que permitia a fiscalização nos presídios por parte do COPEN assim como os advogados cerceados de entrar nos cárceres para atender seus clientes. Foi determinado que nós entrássemos. Quando foi em outubro o Governador Hélder Barbalho mandou uma lei a toque de caixa pro parlamento do Pará e a minha gestão foi golpeado. Era um mandato de 4 anos e independe de mudança de governo. Nesse ponto ele coloca a SEAP como membro que fiscaliza ela mesma. Nesse dia, na ALEPA foi uma guerra.

    Dra. Juliana afirma:

    “Todo o parlamento do Pará está comprado pelo governador com exceção de quatro deputados. Hélio Faustino, a Dra. Heloisa, o Thiago Araújo e a Marinor Brito. Então nesse dia lutamos pra que a SEAP não assumisse o Conselho Penitenciário do estado do Pará por que como é que a Secretaria vai assumir o Conselho que fiscaliza ela mesma? Em janeiro o Conselho Penitenciário deixa de existir. A sala foi fechada e as atividades foram encerradas. Há oito meses não existe fiscalização carcerária no estado. Nem o Governo do Estado e nem SEAP se pronunciaram após a divulgação da primeira matéria desta série produzida pelo Jornalistas Livres.”

    A SEAP continua negando qualquer denúncia. Emitiu duas notas de esclarecimento com ameaças veladas aos advogados e vem investindo em anúncios publicitários que são veiculados em redes sociais como o twitter onde o conteúdo versa sobre o tratamento digno a que os reclusos são submetidos como instalações limpas e atendimento médico para reclusas grávidas.

    Nota oficial
    Grupo de advogados acompanhando Juliana para prestar depoimento. O medo de exercer a profissão entre a classe é constante.

    Coincidentemente o investimento ocorreu logo após a divulgação da primeira matéria e da participação catastrófica de Jarbas Vasconcelos no Bom Dia Pará que vai ao ar pela TV Liberal.

    Sistema prisional paraense
    Condições de moradia e higiene em dormitórios sem colchões com superlotação.

    Abaixo uma das falas que beira a realidade alternativa do secretário. Uma mostra pública de que o Governo do Estado ainda acredita que o autoritarismo com que eles vêm gerindo o estado ainda é um segredo:

    “Você entrará no presídio e dará bom dia para os presos. Os presos darão bom dia pra você, cumprimentarão você. Uns estarão trabalhando, outros estarão estudando e outros estarão em diversas atividades que têm em todas as unidades prisionais durante o dia. Nós estabelecemos um programa que quer assegurar a Dignidade do preso.”

    Jarbas Vasconcelos. Secretário de Administração Penitenciária do Estado em entrevista ao Bom dia Pará ao vivo.

    Complexo Penitenciário Santa Izabel

    Veja também o primeiro capítulo da série:

    https://jornalistaslivres.org/tortura-os-campos-de-concentracao-do-estado-do-para/

    Texto e fotos: João Paulo Guimarães

  • Edifício Caveirão: entre ruínas e violência policial, mulheres lutam para não ir para a rua

    Edifício Caveirão: entre ruínas e violência policial, mulheres lutam para não ir para a rua

    Por Laura Capriglione e Lina Marinelli

    “Aqui tudo parece
    Que era ainda construção
    E já é ruína
    Tudo é menino, menina
    No olho da rua
    O asfalto, a ponte, o viaduto
    Ganindo pra lua
    Nada continua” (Caetano Veloso)

     

    O prédio localizado no número 103 da rua do Carmo, a poucos passos do marco zero da cidade de São Paulo, contém hoje 100 moradores equilibristas. São idosos, portadores de deficiências físicas e mentais, mulheres, algumas grávidas, e crianças, muitas crianças, vivendo em um prédio-símbolo da Arquitetura da Especulação de que a cidade de São Paulo está repleta. Monstro urbano à espera de valorização imobiliária, o edifício recebeu o apelido de “Caveirão” porque é praticamente um esqueleto de prédio: vigas de concreto recheadas de vergalhões de ferro e 23 lajes, imensas lajes, que foram construídas para abrigar automóveis. No projeto, o Caveirão seria um edifício-garagem.

    Dançarinos no vácuo, equilibristas sem rede de proteção, os moradores do Caveirão se situam no último elo da cadeia alimentar que define quem come e quem é comido na cidade. Eles são os comidos. Todo o prédio ecoa a música evangélica que sai aos berros de um dos barracos –sim, dentro do esqueleto, os moradores construíram uma favela com os restos mortais de São Paulo (tapumes de obras, portas descartadas, caibros comidos por cupim). A música evangélica parece que fala com cada um dos equilibristas: “O Deus do Impossível não desistiu de mim. Sua [mão] destra me sustenta e me faz prevalecer…”

    O prédio tem lixo espalhado por todo lado. São toneladas de dejetos, que os moradores tentam agora limpar. E está condenado. Em março de 2012 o engenheiro Merinio C. Salles Jr. atestou que “a estrutura vem sofrendo deterioração com o tempo, podendo vir a ruir, tendo em vista que sua estrutura de concreto armado já apresenta sua armadura exposta e sem condições de reparação, podendo assim vir a entrar em colapso causando grave acidente na região”. Mas o ruim tem ficado pior porque, nos últimos sete meses, o Caveirão está assombrado por 18 homens, soldados da PM, que aparecem todos os dias para esculachar os moradores, ameaçá-los e exigir que saiam do lugar. “Vai, sua puta, vagabunda, encosta na parede!” É pé na porta, humilhação das mulheres, destruição dos barracos, pontapés nas televisões e celulares esmigalhados sob os coturnos (para os moradores não filmarem a violência). Em um dos ataques, uma moradora com um bebê no colo e um cadeirante foram jogados no chão. Sofreram ainda com os efeitos do spray de pimenta. Os militares aparecem fardados, mas sem a identificação colada no uniforme.

    Caveirão: policiais militares ameaçam moradoresl, torturam moradores; moradores denunciam torturas e maus tratos gridem moradores, destroem tudo e
    Caveirão: policiais militares ameaçam moradores

    Há relatos de tortura contra os homens, que são obrigados a deitar no chão, de bruços, mãos nas cabeças. Os soldados chutam os corpos e pisam neles. Uma moradora tomou choques elétricos no pescoço e nos bicos dos seios, a energia vinda dos varais de fios elétricos que percorrem a ocupação. Na terça-feira passada (23), os policiais chegaram pouco antes das 19h. Entraram de novo no prédio, sem mandado nem nada e, usando os métodos de milicianos, disseram que ou os moradores do Caveirão saíam por bem ou haveria mortes. Para reforçar a ameaça, rasgaram um colchão a facada, o talhe em forma de cruz. E deixaram o bilhete: “O prazo é hoje”. O Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos está oferecendo auxílio jurídico para as famílias ameaçadas.

    O incrível em toda essa história do Caveirão da rua do Carmo é que o proprietário atual, Rivaldo Sant’anna, também chamado de “Rico”, que afirma ter comprado o prédio em 2009 por R$ 800 mil (cerca de 1,5 milhão de reais em valores de hoje), nem sequer possui decisão judicial apoiando sua pretensão de despejar as pessoas que lá residem.

     

    Sofrimento demais

    Caveirão abriga vítimas de violência doméstica, como Elisângela (à esq.), que foi arremessada pelo ex-marido do 1º andar, quando estava grávida de 8 meses
    Caveirão abriga vítimas de violência doméstica, como Elisângela (à esq.), que foi arremessada pelo ex-marido do 1º andar, quando estava grávida de 8 meses

    Miseráveis, os moradores têm um histórico de dor e sofrimento bíblicos. Elisângela Neves David, 37 anos, sempre foi espancada pelo marido. Grávida de oito meses, ele a arremessou da varanda do apartamento em que viviam. Elisângela foi recolhida pelo SAMU. Vergada de dor, ouviu uma agente de saúde lhe perguntar:

    –Você quer fugir?

    Ela nem ouviu. Ela sentiu:

    –Meu filho ainda está comigo? Minha filha está aqui?

    –Sim!

    –Quero!

    “Era tudo o que eu precisava. Dali, eu fui levada para uma Casa-Abrigo, onde fiquei escondida.” Benjamim, o menino que Elisângela carregava no útero quando foi atacada pelo marido, sobreviveu. “Eu desapareci do mundo e, quando vi, estava aqui.”

    Elisângela é auxiliar de enfermagem. Como há três anos não consegue pagar a taxa de anuidade do Conselho Regional de Enfermagem (R$ 172,45 em 2020), não pode exercer sua profissão. Ela vende, então, balas nos semáforos, trufas na porta da escola das filhas, o que der. Agora, em época de pandemia, está impossível trabalhar. As pessoas nem abrem o vidro dos carros, por medo de assalto e do contágio. “Da pobreza eu caí na degradação ”, diz Elisângela.

    Valéria da Silva Nascimento, 43 anos, mãe de cinco, vive para o filho portador de deficiência, João Gabriel Henrique da Silva Dias, de 20 anos. Hoje músico e compositor, o jovem toca violão, guitarra, baixo, ukulele. Paraplégico, isso não o impediu de jogar basquete e tornar-se dançarino de hip hop. Na escola, escutou pela primeira vez Geraldo Vandré: “Pra Não Dizer que não falei das Flores”. Um professor tocava ao violão. “Eu me apaixonei e pedi para o professor me ensinar. Um dia ele me deu um violão. Eu chorei de alegria. Não parei mais de tocar.” Gabriel é um sujeito doce, com uma auto-estima de gigante. A mãe sempre o cumulou de amores, de olhares e cuidados. Para sobreviverem, ela cata reciclagem, compra e vende na feira do rolo, costura, lava roupa para fora, às vezes até para pessoas que moram em albergue.

    Infância no Caveirão: O menino Samuel David, de 3 anos, é autista e sofre com problemas respiratórios. A mãe, Cristiana, já mora no prédio há 18 anos
    Infância no Caveirão: O menino Samuel David, de 3 anos, é autista e sofre com problemas respiratórios. A mãe, Cristiana, já mora no prédio há 18 anos

    Cristiana Alessandra Moreira, de 40 anos, tem dois filhos atualmente: Cauê, de 21 anos, e Samuel Davi, de três anos. Mas Cristiana pariu sete, dos quais cinco morreram logo. Mora no Caveirão há 18 anos, interrompidos quatro vezes por despejos. Voltou sempre. Ela precisa estar todo o tempo com o filho Samuel Davi, que é autista e sofre com problemas respiratórios. Da última vez que foi despejada, a Prefeitura pagou auxílio-aluguel para as famílias que viviam no Caveirão (R$ 400 por mês), mas o benefício foi cortado e Cristiana voltou para o prédio.

    Cristiana sai de seu barraco por volta das 11h, com um vasilhame usado de margarina. Está repleto de urina. Samuel Davi, agitado, não deixou que ela dormisse a noite toda. O menino só se acalmou por volta das 5h, quando ela, enfim, descansou. A urina terá de ser despejada no térreo do prédio, porque o Caveirão não tem banheiros funcionando. Aquele que Cristiana construiu com as próprias mãos foi destruído pelos usuários de crack que ocuparam o prédio depois do despejo dos moradores e pela Polícia Militar.

     

    Moradia de carros

     

    Anúncio publicado na "Folha de S.Paulo", em 1964: A sua garagem automática, por 50.000 cruzeiros
    Anúncio publicado na “Folha”, em 1964: compre sua garagem automática, por 50.000 cruzeiros

    O drama do Caveirão vem de longe. Em 1964, a Folha de S.Paulo publicou anúncio da construção de um edifício-garagem a poucos metros da praça da Sé. Era ele, o espigão da rua do Carmo, ainda em fase de vendas. Nessa época não existia nem o metrô. Mas havia edificações espetaculares e reluzentes de novas. Como a própria Catedral da Sé, inaugurada havia apenas 10 anos (a construção só seria finalizada em 1967). Ou o Fórum João Mendes Júnior, março histórico da cidade de São Paulo e símbolo da Justiça paulista. Pois o Fórum foi inaugurado em 1958, apenas seis anos antes do anúncio da Folha.

    O novo empreendimento representava a crença inabalável daquele período de que as cidades do futuro seriam as cidades dos automóveis. Portanto, era preciso construir apartamentos, escritórios e edifícios-garagem, para armazenar gente e dezenas de milhares de veículos. No anúncio da Folha, lê-se que era possível tornar-se o feliz proprietário de uma vaga de carro a poucos metros da praça da Sé, com uma entrada de 50 mil cruzeiros, hoje equivalentes a 2 mil reais.

    O fato é que as tais garagens jamais foram entregues e, inconclusas, resultaram em um dos retratos mais obscenamente explícitos da cupidez materialista na megalópole.

     

    Casa sem banheiro, sem teto, sem nada

     

    O Caveirão não tem telhado. Quando chove, chove dentro. Instalações sanitárias existem apenas no térreo. Porque carros não precisam delas. A polícia também fez questão de arrancar e destruir escadas e degraus que ligavam as lajes dos andares. Os moradores sobem e descem escalando escadas imaginárias ou banguelas, com degraus quebrados ou simplesmente faltando. Cristiana sobe e desce essas escadas surreais carregando os cilindros de oxigênio de que o filho Samuel Davi precisa para sobreviver.

    Amor de mãe no Caveirão: Valéria e João Gabriel, paraplégico: o jovem está morando no prédio há um mês; para ele, é um "lugar maravilhoso"
    Amor de mãe no Caveirão: Valéria e João Gabriel, paraplégico: o jovem está morando no prédio há um mês; para ele, é um “lugar maravilhoso”

    João Gabriel, o filho paraplégico de Valéria, mudou-se para o Caveirão há um mês, depois que a mãe pavimentou o chão e construiu rampas para o trânsito da cadeira de rodas. “Pra mim, aqui é um lugar maravilhoso. Eu sinto uma alegria, uma união, um prazer. Aqui tenho amigos para conversar. Sei que posso contar com muitas pessoas aqui dentro e elas sabem que podem contar comigo também.”

    “Eu sou muito feliz aqui dentro. E eu sofro por ver que o prédio está se acabando sem cuidado nenhum, o proprietário não o usa para nada, e a gente tem milhares de pessoas vivendo nas ruas”, diz Cristiana.

     

    O drama das famílias do Caveirão é a condição de existência de milhares de pessoas na cidade de São Paulo. A Prefeitura de São Paulo calcula que, em 2019, havia 24.344 pessoas vivendo em situação de rua. Mas o Movimento Pop Rua calcula que o número correto seja superior a 32 mil pessoas. E segue crescendo à medida em que a inadimplência gera despejos por falta de pagamento de aluguel. E a rua é um terror, principalmente para as mulheres, conforme depoimento de Valéria:

    “Eu sou uma ex-moradora de rua. Passei sete anos vivendo na rua. Você não pode fazer sua comida, você não pode trazer os seus filhos para a rua, você fica vulnerável, você é mal vista, você é apontada, as mulheres não têm valor nenhum. Se você arrumar um homem, ele vai te espancar, ele vai te estuprar, ele vai te usar. E se você não tiver força, você vai virar uma usuária de droga ou vai se prostituir. A rua é o último lugar. Não tem mais para onde cair quando você chega na rua. Por outro lado, ninguém quer viver em albergue. Porque no albergue você é maltratada, você é pisada, você é humilhada. Os funcionários dos albergues te tratam como lixo. A casa de parentes também não dá. O parente joga na tua cara, quando você tem filhos, maltrata os seus filhos. Vivendo na rua, a gente tem medo do Conselho Tutelar, a gente tem medo de tocarem fogo na gente, de estuprarem minhas filhas. Minha filha foi estuprada num abrigo. Eu achei que ela estava num lugar seguro e ela não estava. Eu sou costureira, sempre trabalhei. Já aluguei um cantinho, mas dali a pouco você é mandada embora do emprego e é despejada. Ninguém mora numa ocupação porque quer. Você mora ao lado de pessoas que não conhece, tem muito barulho, a luz cai, a polícia invade. Você tem mais medo do que qualquer outra coisa.

    Mas é infinitamente melhor do que a rua.”

     

    “A minha luta só termina quando eu tiver a minha moradia. Porque para a rua eu e meus filhos não vamos. A PM tem a arma, mas eu tenho o direito legítimo. Eu ofereço o meu peito para a a bala. E, se me matarem, meus filhos lutarão por mim” (Elisângela)

    Veja o vídeo gravado na ocupação:

     

     

     

     

  • Enquanto houver RACISMO, não haverá DEMOCRACIA

    Enquanto houver RACISMO, não haverá DEMOCRACIA

    Cidadãos e organizações da sociedade civil, população negra organizada, mulheres negras, pessoas faveladas, periféricas, LGBTQIA+, quilombolas, religiões de matriz africana e pretos e pretas com distintas confissões de fé, povos do campo, das águas e da floresta, trabalhadores explorados, informais e desempregados, em Coalizão Negra por Direitos, lançaram um manifesto e abaixo-assinado para EXIGIR  a erradicação do Racismo como prática genocida contra a população negra.
    Confira a íntegra do manifesto em www.comracismonaohademocracia.org.br 

    Enquanto houver RACISMO, não haverá DEMOCRACIA

    “Convidamos você a praticar seu antirracismo! Una-se à nós neste manifesto, às nossas iniciativas históricas e permanentes de resistências e às propostas que defendemos como forma de construir democracia, organizada nestas propostas.

    Nós, população negra organizada, mulheres negras, pessoas faveladas, periféricas, LGBTQIA+, que professam religiões de matriz africana, quilombolas, pretos e pretas com distintas confissões de fé, povos do campo, das águas e da floresta, trabalhadores explorados, informais e desempregados, em Coalizão Negra por Direitos, viemos a público exigir a erradicação do racismo como prática genocida contra a população negra.

    O Brasil é um país em dívida com a população negra – dívidas históricas e atuais. Portanto, qualquer projeto ou articulação por democracia no país exige o firme e real compromisso de enfrentamento ao racismo. Convocamos os setores democráticos da sociedade brasileira, as instituições e pessoas que hoje demonstram comoção com as mazelas do racismo e se afirmam antirracistas: sejam coerentes. Pratiquem o que discursam. Unam-se a nós neste manifesto, às nossas iniciativas históricas e permanentes de resistências e às propostas que defendemos como forma de construir a democracia, organizada em nosso programa.

    Esta convocação é ainda mais urgente em meio à pandemia da Covid-19, quando sabemos que a população negra é o segmento que mais adoece e morre, que amplia as filas de desempregados e que sente na pele o desmantelamento das políticas públicas sociais. Em meio à pandemia de Covid-19, o debate racial não pode mais ser ignorado.

    Neste momento, em que diferentes setores se unem em defesa da democracia, contra o fascismo e o autoritarismo e pelo fim do governo Bolsonaro, é de suma importância considerar o racismo como assunto central.

    “Estamos vindo a público para denunciar as péssimas condições de vida da comunidade negra.” Este trecho, retirado do manifesto de fundação do Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial, de julho de 1978, é a prova de que jamais fomos ouvidos e de que sempre estivemos por nossa própria conta.

    Essa é uma luta que não começa aqui, mas que se materializou no pensamento e na ação de homens e mulheres que, em todos os momentos históricos em que a brutalidade foi imposta ao povo negro, levantaram suas vozes e disseram: NÃO!

    Não há democracia, cidadania e justiça social sem compromisso público de reconhecimento do movimento negro como sujeito político que congrega a defesa da cidadania negra no país. Não há democracia sem enfrentar o racismo, a violência policial e o sistema judiciário que encarcera desproporcionalmente a população negra. Não há cidadania sem garantir redistribuição de renda, trabalho, saúde, terra, moradia, educação, cultura, mobilidade, lazer e participação da população negra em espaços decisórios de poder. Não há democracia sem garantias constitucionais de titulação dos territórios quilombolas, sem respeito ao modo de vida das comunidades tradicionais. Não há democracia com contaminação e degradação dos recursos naturais necessários para a reprodução física e cultural. Não há democracia sem o respeito à liberdade religiosa. Não há justiça social sem que as necessidades e os interesses de 55,7% da população brasileira sejam plenamente atendidos.

    O racismo deve ser rechaçado em todo o mundo. O brutal assassinato de George Floyd demonstra isso, com as revoltas, manifestações e insurreições nas ruas e a exigência de justiça racial. No Brasil, nos solidarizamos com essa luta e com esses protestos e reivindicamos justiça para todos os nossos jovens e para a população negra. E, entre muitos que não podemos esquecer, João Pedro presente!

    Em nosso passado, formamos quilombos, forjamos revoltas, lutamos por liberdade, construímos a cultura e a história deste país. Hoje, lutamos por uma verdadeira democracia, exercício de poder da maioria, e conclamamos aqueles e aquelas que se indignam com as injustiças de nosso país.

    Porque a prática é o critério da verdade.”

  • Os camisas negras de Bolsonaro

    Os camisas negras de Bolsonaro

    Mais de 1 milhão de crianças, 2 milhões de mulheres e 3 milhões de homens foram submetidos ao assassinato e à tortura de forma programada pelos nazistas com o objetivo de exterminar judeus e outras minorias. Nos primórdios da Itália fascista, os camisas negras – milícias paramilitares de Mussolini – espancavam grevistas, intelectuais, integrantes das ligas camponesas, homossexuais, judeus. Quando a ditadura fascista se estabeleceu, dez anos antes da nazista, Mussolini impôs seu partido como único, instaurou a censura e criou um tribunal para julgar crimes de segurança nacional; sua polícia secreta torturou e matou milhares de pessoas. Em 1938, Mussolini deportou 7 mil judeus para os campos de concentração nazista. Sua aliança com Hitler na 2ª Guerra matou mais de 400 mil italianos.

    Perdoem-me relembrar fatos tão conhecidos, ao alcance de qualquer estudante, mas parece necessário falar do óbvio quando ser antifascista se tornou sinônimo de terrorista para Jair Bolsonaro. Os direitos universais à vida, à liberdade, à democracia, à integridade física, à livre expressão, conceitos antifascistas por definição, pareciam consenso entre nós, mas isso se rompeu com a eleição de Bolsonaro. O desprezo por esses valores agora se explicita em manifestações, abraçadas pelo presidente, que vão de faixas pelo AI-5 – o nosso ato fascista – ao cortejo funesto das tochas e seus símbolos totalitários, aqueles que aprendemos com a história a repudiar. Jornalistas espancados pelos atuais “camisas negras” estão entre as cenas dessa trajetória.

    A patética lista que circulou depois que o deputado estadual Douglas Garcia(PSL-SP) pediu que seus seguidores no Twitter denunciassem antifascistas mostra que o risco é mais do que simbólico. Depois do selo para proteger racistas criado pela Fundação Palmares, e das barbaridades ditas pelo seu presidente em um momento em que o mundo se manifesta contra o racismo, e que lhe valeram uma investigação da PGR, essa talvez seja a maior inversão de valores promovida pelos bolsonaristas até aqui.

    A ameaça contida na fala presidencial e na iniciativa do deputado, que supera a lista macartista pois não persegue apenas os comunistas, tem o objetivo óbvio de assustar os manifestantes contra o governo e de açular as milícias contra supostos militantes antifas, dos quais foram divulgados nome, foto, endereço e local de trabalho.

    É a junção dos “camisas negras” com a Polícia Militar, que já se mostrou favorável aos bolsonaristas contra os manifestantes pela democracia no domingo passado em São Paulo e no Rio de Janeiro. E que vem praticando o genocídio contra negros impunemente no país desde sua criação, na ditadura militar, muitas vezes com a cumplicidade da Justiça, igualmente racista.

    Como disse Mirtes Renata, a mãe de Miguel, o menino negro de 5 anos que foi abandonado no elevador pela patroa branca de sua mãe, mulher de um prefeito, liberada depois de pagar fiança de R$ 20 mil reais, “se fosse eu, a essa hora já estava lá no Bom Pastor [Colônia penal feminina em Pernambuco] apanhando das presas por ter sido irresponsável com uma criança”. Irresponsável. Note a generosidade de Mirtes com quem facilitou a queda de seu filho do 9º andar.

    Neste próximo domingo, os antifas vão pras ruas. Espero não ouvir à noite, na TV, que a culpa da violência, que está prestes a acontecer novamente, é dos que resistem como podem ao autoritarismo violento. Quem quer armar seus militantes, e politizar forças de segurança pública, está no Palácio do Planalto. É ele quem precisa desembarcar. De preferência de uma forma mais pacífica do que planejam os fascistas para mantê-lo no poder.

    Por: Marina Amaral, codiretora da Agência Pública