Charles Darwin, o naturalista britânico do século 19, que certo dia deu sua graça no solo brasileiro querendo entender a evolução das espécies, em sua publicação A Expressão das Emoções no Homem e nos Animais, de 1872, associa a ira à expectativa de sofrer alguma agressão intencional ou ofensa de outra pessoa, ressaltando que esse sentimento pode se transformar em ódio ou outras formas, a depender da natureza da relação entre os envolvidos.
Como pensar a intervenção em Paraisópolis, senão como um exercício da ira? A ira e seu protocolo, encurralar jovens em vielas, a face mais perversa da violência do Estado, a penúria de direitos, que se anuncia no sertão da intolerância. Raiva não permite fuga, aniquila, sufoca.
Um dos becos apontados por moradores, como sendo o local do massacre de Paraisópolis.
Um quase nada enxerga, o Estado, seu povo. O ovo da serpente rompeu sua casca, tem fome, tem pressa.
Querem varrer a terra, remover os indesejáveis, fazem ouvidos moucos ao conselho de Zé Bebelo, que em Grande Sertão Veredas, disse o Guimarães Rosa,que a gente carece de fingir às vezes que raiva tem, mas raiva mesma nunca se deve de tolerar de ter. Porque, quando se curte raiva de alguém, é a mesma coisa que se autorizar que essa própria pessoa passe durante o tempo governando a ideia e o sentir da gente; o que isso era falta de soberania, e farta bobice, e fato é.
Segundo familiares, na última terça (12), o jovem foi raptado da frente de sua casa por policiais e colocado dentro de uma viatura. Até o fechamento dessa reportagem, Lucas continuava desaparecido.
Nesta sexta (15), sua família passou o dia no Instituto Médico Legal de Santo André para realizar exames de DNA, isso porque depois da pressão de reportagens veiculadas do dia do rapto para cá, um corpo de um jovem não identificado foi encontrado na represa Billings, região sul de SP, próximo do local onde Lucas fora sequestrado pela polícia.
Na quarta (13), pela manhã, o irmão de Lucas Eduardo Martins dos Santos registrou depoimento no 6° DP de Santo André, num dos trechos do Boletim consta que:
“por volta de 1h30 o declarante diz ter ouvindo barulho de carros e portas batendo em frente a sua residência, momento em que olhou pela janela e viu tratar-se de policiais militares, que se dirigiram a parte de baixo do imóvel, local onde residem seus irmãos e a madrasta T. Os policiais foram recebidos pela senhora T. (…) que foi indagada sobre quem residida naquela local e se havia algo de errado no interior da residência, e se poderiam adentrar”. Os policiais não entraram na casa, mas perguntaram quem morava lá e em seguida teriam ido embora.
Esses fatos aconteceram no Jardim Santa Cristina, região periférica de Santo André, onde Lucas, um garoto negro, como são os alvos prediletos da polícia brasileira, mora. Ainda no Boletim, o irmão de Lucas declarou que:
“no momento da chegada dos policiais, sua madrasta afirmou ter ouvindo uma voz, que não pode afirmar ser de Lucas, dizendo: eu moro aqui! Logo que os policiais deixaram o local, o declarante e seus familiares passaram a procurar por Lucas”.
Durante a busca avistaram um usuário de entorpecentes que costumeiramente perambula nas proximidades. Esse rapaz vestia uma blusa cinza, de moletom pertencente à Lucas.
O jovem irmão de Lucas questionou o usuário sobre como teria adquirido a blusa e esse respondeu: “encontrei atrás da E.E. Antônio Adib Chammas”. Neste momento familiares de Lucas foram até o local e acharam também um boné que o garoto usava naquela noite.
Na própria quarta moradores do bairro organizaram um ato público nas ruas do bairro, exigindo justiça e solução para o rapto do garoto. A manifestação seguiu pelas ruas próximas da Av São Bernardo, até que foi violentamente reprimido pela PM, com sua habitual resposta de tiros a esmo com bombas de gás e truculência. Na quinta (14) mais um ato de resistência foi realizado. Mais uma vez seguindo pela Av São Bernardo, até o terminal Vila Luzita, passando ela escola onde encontram as roupas de Lucas e finalizado na Av. São Bernardo. A polícia foi obrigada a se controlar, uma vez que o caso já havia sido veiculado por alguns veículos de imprensa.
A ouvidoria da PM já abriu um procedimento para acompanhar o caso. Enquanto isso, no exato momento em que você está lendo esse texto, os familiares do garoto seguem aflitos, fazendo buscas mas, principalmente transtornados com o desaparecimento. Fora o clima de terror, medo e hostilização que vizinhos têm passado com a conduta violenta da Polícia que intensificou as patrulhas, como nunca fora visto antes, com movimentações, olhares ameaçadores. A corporação diz ter afastado os policiais envolvidos. No IML, um corpo que fora exposto hoje à família não foi reconhecido. Os parentes fizeram exame de DNA e o Instituto Médico Legal deu um prazo de 10 dias úteis para o resultado.
Enquanto isso, a aflição e a tristeza são os sentimentos da família e moradores da comunidade de Lucas. Mas o medo de um Estado que deveria proteger, sobretudo crianças e adolescentes é sem dúvida, muito maior do que tudo. O pior é pensar que para talvez solucionar o rapto do garoto, o único meio e equipamento acessível para essa família, seja o próprio Estado. Mas como confiar numa Instituição que hostiliza, sequestra, barbariza e mata?
Sem dúvida, um dilema que de dentro dos espaços de privilégio é quase que invisibilizado por uma grande parcela da população. Um caso como esse, suscita, inclusive, a reforma do sistema de segurança, das alternativas sobre a abolição do tráfico de drogas e outros pontos que fazem com que a justiça seletiva esteja tão normatizada nos quatro cantos do país
A rede de colaboradores dos Jornalistas Livres vai acompanhar o caso, minuto a minuto e trará atualizações em breve.
“Tenho apenas 14 anos de idade e moro no Complexo da Maré. Eu só quero pedir uma coisa a vocês, policiais e bandidos: por favor, parem de matar inocentes”. “Acham que a gente está acostumado com os tiroteios, mas todos os dias de confrontos são uma nova aventura de terror”. “De tiros eu não tenho medo, mas o helicóptero me deixa em pânico”. As frases, escritas por crianças e adolescentes entre 11 e 15 anos, da Maré, são uma resposta à iniciativa do governador Wilson Witzel de criar cartilha com instruções a moradores de favelas sobre como agir durante operações policiais. A ‘‘cartilha’’ dos jovens será entregue no Palácio Guanabara na próxima segunda-feira.
Por volta das 11h30 desta quinta-feira, mais um tiroteio entre facções criminosas começava na Nova Holanda, onde jovens do Projeto Uerê, que idealizaram a cartilha, conversavam com a equipe do EXTRA. Uma das meninas, de 13 anos, pediu licença para ir embora. Ela precisava chegar em casa a salvo antes que o confronto se espalhasse pelo restante da comunidade.
A iniciativa começou com Manoela (os nomes nesta reportagem são fictícios para preservar os estudantes). Aos 15 anos, ela disse que já teve a casa invadida por policiais durante uma incursão. Ao ler no jornal a ideia de Witzel, decidiu escrever uma cartilha com papéis invertidos: ‘‘O que os policiais não devem fazer quando entram nas comunidades?’’.
— Lido com isso todos os dias. São situações que me deixam em pânico e me sinto impotente. Vivendo na favela a gente aprende — disse ela.
Crianças do Projeto Urerê do Complexo da Maré escrevem cartilhas para o Governador Wilson Witzel Foto: Agência O Globo
A realidade incomum para boa parte da população do Rio é corriqueira para os moradores de favelas: tanto em confrontos entre traficantes como em operações policiais. A plataforma Fogo Cruzado mostra que houve 5.513 disparos na Região Metropolitana de janeiro a agosto deste ano.
— Aqui a situação é muito complicada. Montamos uma metodologia especialmente para crianças e jovens de escolas públicas da comunidade que têm bloqueios cognitivos e emocionais devido à exposição constante a traumas e violência — explicou Yvonne Bezerra de Mello, criadora do Projeto Uerê.
A sede da ONG tem no telhado uma placa amarela com o alerta ‘‘Escola. Não atire’’. O objetivo é evitar tiros de policiais em helicópteros. O projeto informa que já ajudou mais de 3 mil estudantes desde 1998 e hoje tem cerca de 300 nos turnos da manhã e da tarde.
O termo ‘‘guerra’’ é utilizado repetidamente pelas crianças e adolescentes em sala de aula para se referir ao clima na Maré. A apreensão é tanta que todos estão em grupos de conversas em aplicativos de mensagens e se comunicam quando começam as operações.
Crianças do Projeto Urerê do Complexo da Maré escrevem cartilhas para o Governador Wilson Witzel Foto: Agência O Globo
Matheus, de 14 anos, lembra a primeira vez em que ficou na linha de tiro entre criminosos e a polícia. Ele estava em uma van com a mãe, voltando da escola:
— Não sabia como reagir e só conseguia pensar no meu pai que trabalha fazendo transporte escolar pela Maré. Tive muito medo de nunca mais vê-lo.
No último mês, enquanto tomava banho para ir a escola, Vitória, de 14, ouviu o helicóptero sobrevoar sua casa. Não durou muito e as rajadas começaram. De repente, uma bala atravessou a janela do banheiro, a menos de 1m de onde ela estava.
— Vou para a escola porque quero tentar melhorar de vida e sair daqui — disse Vitória
Apesar de ainda estarem na época de estudar e brincar, a infância e adolescência desses jovens têm uma realidade muito diferente do ideal. Kauan mora com os pais e a irmã mais nova, de dois anos. Ele conta que no início do ano, durante uma operação policial, recebeu um telefonema do pai pedindo para ele correr para casa.
— Ele me ligou desesperado, busquei minha irmã e corri por dez minutos até a minha casa. A operação estava acontecendo em uma outra parte da Maré e não podia deixar ela sozinha na creche — relata o menino, explicando que o pai ficou no meio do fogo cruzado.
Traumas são algo corriqueiro e muitas das crianças sofrem de insônia, crises de ansiedade e tem acompanhamento psiquiátrico. Tudo decorrente dos incessantes tiroteios na disputa dos territórios entre criminosos e das operações policiais.
Crianças do Projeto Urerê do Complexo da Maré escrevem cartilhas para o Governador Wilson Witzel. cartilhas, cartas, carta – Reprodução Foto: Agência O Globo
A professora Joseanne Ferreira, de 56 anos, dá aula há 15 anos no Projeto Uerê. Segundo ela, os diálogos são o melhor remédio para acalmar os alunos.
— Aqui ficamos na divisa entre facções rivais. Quando não são confrontos entre eles, temos as operações em horários escolares. Isso precisa mudar, as crianças ficam escondidas no corredor e as pessoas têm tratado isso como se fosse algo natural. Não é normal. Eles deveriam estar brincando e estudando sem preocupações — afirma a professora.
Segundo o governo do estado, a cartilha citada por Witzel faz parte do Plano de Segurança e Defesa Social, elaborado pelas secretarias de Polícia Civil e Polícia Militar, Defesa Civil, Ministério Público e Judiciário, e será validada pelo Conselho de Segurança Pública do estado. Procurado pelo EXTRA, o gabinete do governador orientou que as secretarias das polícias comentassem. Até o fechamento desta reportagem, os órgãos não se pronunciaram sobre a cartilha dos jovens da Maré.
Sérgio Silva nasceu no dia 22 de outubro de 1980, teve uma infância humilde e sofrida e, embora seja o mais velho seis irmãos, sempre recebeu o mesmo cuidado e carinho da D. Carlinda, sua mãe, uma senhora baiana, de pele enrugada, sofrida, mas de fala e olhar doce, que não mediu esforços para criar em carreira solo, esse time de filhos, na baixada do Ipiranga, em São Paulo.
O pouco ou quase nenhum dinheiro não travou Sérgio. Ele se esforçou e, logo no início da adolescência, tratou de se interessar pela arte, pelos livros e daí, para se interessar pela fotografia foi um pulo. Mas a caminhada não foi fácil. Muita ralação misturada com muito apoio e carinho de sua mãe e mais tarde de sua família, formada em seu primeiro casamento, deram forças para que ele se tornasse o que é hoje, um fotógrafo talentosíssimo e que, através de suas imagens, faz com que a gente se transporte para dentro das realidades que as mídias tradicionais não mostram. As realidades são duras e muito parecidas com a que ele vive agora. Sérgio está condenado.
Hoje, em mais um julgamento no Tribunal de Justiça de São Paulo, espaço de privilégios de magistrados que em suas togas causam uma impressão de imponência, confiança e autoridade e que têm em suas mãos o poder de decidir se interrompem o curso normal ou a justiça sob a vida dessa ou daquela pessoa. Sérgio perdeu tudo.
O fotógrafo não só teve a indenização pedida no processo contra o Estado negada, como também ouviu durante a audiência que não há provas que uma bala de borracha o atingiu no olho esquerdo, naquela noite violenta do tão conhecido 13 de junho de 2013.
O Estado presente na audiência é caótico, atrasado e completamente alheio à realidade da vida do povo. Certamente por isso, a cada caso parecido com o de Sérgio, que envolva provas claras de “nasce” que mais uma vítima da violência do Estado, esse mesmo Estado representado pelos homens de toga, só consiga provar, ironicamente, que não tem nenhuma habilidade para decidir nesses casos. Os homens de toga se auto absolvem e condenam a vítima.
O Estado condena hoje, mais uma vez, Sérgio e certamente sua mãe que está viva e jamais imaginou que esse pudesse ser o destino de nenhum de seus seis filhos que criou com tanto carinho. A mãe de Sérgio também está condenada.
As filhas do fotógrafo, duas meninas de 11 e 17 anos, presentes no Tribunal de Justiça e que presenciaram toda audiência e fatalmente a atroz decisão, também foram hoje condenadas. São mulheres que já traçam a partir de agora, um caminho de forte descrença num Estado falido, cruel e vergonhoso. E embora as duas meninas estejam desde o seu nascimento, traçando um caminho de melhores condições financeiras e de formação, do que na época em que o pai era criança, as meninas têm muita história e bastante realidade para contar pelo resto de suas vidas sobre o significado do Estado em suas vidas. Elas não se calarão.
Como pode um indivíduo investido de importante autoridade, um juiz, um promotor, ser cego à realidade do que é agora a vida de Sérgio sem um olho? Como imaginar o que se passa na mente de alguém com poder para julgar e mandar na vida de outro indivíduo?
Queremos repetir aqui um convite que Sérgio fez para todos quando perdeu olho e entrou com o processo contra o Estado, só que desta vez, o convite é direcionado somente para aqueles que tiveram hoje o poder de decidir pela condenação de Sérgio: os magistrados.
Os senhores já experimentaram tapar o olho esquerdo com a mão e fazer as atividades cotidianas? Se não, tentem, por favor. E pensem que esse olho foi perdido quando se trabalhava, quando se exercia o direito de ser cidadão, para conquistar melhores condições de vida para a família. Um milhão de reais não paga um olho e o trauma que a perda trouxe para ele, as filhas, e a mãe que sofre desde quando colocou Sérgio no mundo e a maior certeza que podemos ter é que o valor não tira os privilégios que uma Casa tão imponente oferece aos senhores. Então, revejam essa decisão.