Foi julgada ontem (16/08) no Palácio da Justiça em São Paulo a apelação da decisão que havia absolvido Daniel Tarcísio Cardoso no ano passado. Acusado de dopar e estuprar 6 estudantes da USP, segundo apuração feita pelo CPI dos Trotes, dos quais apenas 3 casos foram denunciados, além de ter sido condenado pelo homicídio de um rapaz no metrô com 10 tiros, mas por legítima defesa, quando era policial militar. Apenas uma das vítimas do ex-estudante de medicina da USP, e atual médico, conseguiu dar prosseguimento à denúncia, desde 2012.
Em uma agilidade surpreendente, o recurso foi julgado e decidido em menos de um mês. Na semana passada, dia 02/08, durante a sessão de julgamento, após a sustentação do advogado da vítima, Luis Eduardo Greenhalgh, o revisor pediu vistas do processo, para analisar melhor, o que havia reacendido a esperança para a vítima e sua família, e para estudantes e professoras da USP que acompanharam o processo. Na quarta-feira (15/08) a tarde, com menos de 24 horas de aviso, foi informado que a decisão aconteceria no dia seguinte às 9 e meia da manhã. Porém, o desembargador que pediu a revisão decidiu seguir o voto do relator, e o resultado foi unânime: 3 a 0 pela manutenção da absolvição do estuprador.
Registro do CRM de Daniel Tarciso da Silva Cardoso que pode estar atuando como médico
No ano passado o juiz Klaus Arroyo havia proferido a sentença a favor da absolvição alegando que pela jovem ter consentido em entrar no quarto do rapaz no alojamento universitário, para usar o banheiro, logo ela haveria consentido em manter relações sexuais com ele.
Hoje, além de concordarem com a visão machista do juiz, adicionam mais uma. Os desembargadores defenderam seu voto indicando também que “a ofendida queria afeto, intimidade e vivência acadêmica de um ambiente salutar da faculdade, tinha vontade de aproximação e queria relacionamento com o homem, esse homem não dispensa um trato muito louvável ao ente feminino e portanto, a vítima subjetivamente se sentiu abusada e estuprada.”
Ou seja, o indivíduo estuprava uma pessoa que estava em estado de vulnerabilidade e quando a vítima consegue reagir e pede para que pare com a agressão e ainda assim, o indivíduo continua o ato contra a vontade da vítima, entendem os desembargadores que subjetivamente a vítima se sentiu violada e pode ter experimentado um trauma. Segundo os desembargadores, o laudo do exame de corpo de delito estabelece vestígios e achados mas que não reportam a violação sexual não consentida.
Não levaram em conta em nenhum momento as apurações realizadas na CPI dos Trotes Universitários, que apurou todo tipo de violência, inclusive inúmeros casos de estupros. Não levaram em conta que a universidade suspendeu o agressor por 18 meses e também não consideraram que o CRMSP negou o registro médico ao estuprador. E enquanto isso a vítima não conseguiu dar continuidade aos estudos, trancou sua matrícula na universidade, e segue há 6 anos com o processo em busca de justiça.
O Judiciário, que deveria balancear as forças da sociedade, ignora as provas do auto e a própria jurisprudência de casos de violência sexual que indica levar em consideração a palavra da vítima, para decidir com base em um julgamento moral que recai apenas sobre a conduta das mulheres, e não dos homens. Existe uma repetição em sentenças em casos semelhantes de violência sexual contra a mulher da depreciação do sexo feminino, como parte de uma misoginia institucionalizada e que resulta na contínua não penalização dos agressores em muitos processos.
Ao invés de combater, o Tribunal de Justiça de São Paulo corrobora com a cultura do estupro, seguindo a visão majoritária da sociedade de que a culpa é da vítima. Segundo pesquisa feita pelo IPEA em 2014, 58,5% dos brasileiros concordam total ou parcialmente com a afirmação de que “se as mulheres soubessem se comportar haveria menos estupros”.
A vítima e a família seguirão firme na batalha por justiça, e irão apelar para instâncias superiores, com o apoio dos coletivos feministas da USP e de demais entidades e pessoas que estiveram presentes nas audiências em solidariedade.
Enquanto isso, que fiquem registrados aqui para a história os nomes dos excelentíssimos membros do Judiciário que deram às costas para mais um caso de violência contra a mulher:
Maurício Henrique Guimarães Pereira Filho – Relator
O estupro coletivo de uma adolescente de 16 anos no Rio de Janeiro e a divulgação de imagens do crime pelas redes chocou o país. A bárbarie ocorrida reacendeu o debate sobre a cultura do estupro e motivou milhares de mulheres a protestarem nesta quarta-feira(1) em diversas cidades brasileiras.
São Paulo, 1 de junho de 2016. Foto: Felipe Raizer
A cultura do estupro é um mecanismo de normalização da violência com base em construções sociais, ela é responsável pela criminalização das vítimas e isenta os agressores, além de ser reforçada pelos mais diversos meios, como música, cinema, publicidade e até na abordagem dos veículos jornalísticos. Fato sintomático para um país onde a cada 11 minutos uma pessoa é estuprada, segundo o 9º Anuário Brasileiro da Segurança Público de 2014.
Mas banalização dessa violência contra as mulheres não viola apenas nossos corpos, ela é política e tem intenção de nos calar. No primeiros dias do governo ilegítimo de Michel Temer já temos exemplos de como isso tem se agravado. De estuprador confesso se reunindo com ministro de um governo sem mulheres, à nomeação da fundamentalista religiosa Fátima Pelaes (PMDB-AP) para a secretaria de Política para Mulheres. Por isso iniciativas nas redes tomam tanta força. A chamada primavera feminista no ano passado aumentou o campo de ação das mulheres agora para as ruas. Das redes, em todo Brasil, o ato “Por Todas Elas”, nos reuniu novamente. Em capitais como São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília ou em cidades como Botucatu, deixamos bem claro: somos mais que 33.
Jornalistas Livres agradecemos às nossas leitoras e leitores que nos enviaram as belas imagens na galeria.
Relato de uma professora negra agredida e presa arbitrariamente em São Paulo
Por Jeniffer Mendonça, especial para os Jornalistas Livres
Ser mulher não é fácil em São Paulo (como e resto em todo o Brasil). Ser negra, é ainda mais difícil. Agora, mulher, negra e professora de escola municipal da Zona Leste é só pra quem tem muita coragem. Coragem de mulher, coragem de negra, coragem de quem tem amor pelo que faz e pelos alunos, muitos como ela: negros e periféricos. Infelizmente, em São Paulo é preciso provar isso todos os dias. Em 31 de Outubro passado, por exemplo, o professor Severino Honorato, da rede estadual, procurou nossa reportagem para contar sobre a prisão arbitrária e a uma sequência de violações ocorridas no dia anterior contra uma amiga sua: a professora Andreia Rosa.
Conseguimos contato com Andreia, que leciona para crianças na Vila Jacuí, e soubemos mais detalhes de sua detenção. Segundo ela, o motivo foi simpelsmente questionar a ação da Polícia Militar que se recusava a dar assistência a um dos dois jovens baleados pelos próprios policiais na rua onde mora.
Nesse momento, meu vizinho disse que não era ‘um dos nossos’, perguntei se o rapaz baleado no chão era negro. A resposta foi sim. Então, eu disse: ‘se é negro, é um dos nossos, sim. Não vai ser hoje que vai morrer mais um irmão de cor por omissão socorro’.
Leia a seguir o relato da própria professora Andreia, especial para os Jornalistas Livres:
Na noite de sexta-feira, do dia 30 de outubro de 2015, cheguei em casa por volta de 23h30, com fome, para variar. Liguei na minha pizzaria favorita pedi esfihas e um refrigerante. Depois de algum tempo esperando, o entregador me ligou e disse que não poderia chegar na minha casa, pois a polícia não deixava ele passar, porque a rua onde eu moro estava interditada. Então, o entregador perguntou se eu poderia retirar a comida com ele, do outro lado da rua. Pedi para aguardar um momento e fui até lá. Nesse instante, vizinhos se aproximaram e perguntei o que estava acontecendo, porque havia tanta polícia na rua, e porque a rua estava interditada.
Os vizinhos me disseram que a polícia havia atirado em dois rapazes que teriam tentado roubar uma moto. Também, relataram que os policiais disseram que os rapazes estavam supostamente armados, mas que não houve troca de tiros, que apenas os policiais atiraram. Continuaram a contar que se aproximaram dos rapazes baleados para ver se não eram conhecidos. Disseram então que apenas um dos rapazes seria socorrido, que o outro ainda encontrava-se no chão e parecia estar em pior estado. Disseram também, que na rua da feira aqui próximo de casa, no domingo passado, policiais atiram em um rapaz que morreu sem atendimento médico, pois a PM não deixou que o SAMU o socorresse, quando ainda estava com vida. Nesse momento, meu vizinho disse que não era “um dos nossos”, perguntei se o rapaz baleado no chão era negro. A resposta foi sim. Então, eu disse: “se é negro, é um dos nossos, sim. Não vai ser hoje que vai morrer mais um irmão de cor por omissão socorro”.
A indignação foi maior que o medo, me aproximei do policial que estava ao lado do rapaz baleado e perguntei:
— Nossa, moço! O que houve com o rapaz? Ele está morto?
— Não, não está. Foi baleado.
— Então, por que vão socorrer apenas um? Já que os dois foram baleados?
— Por que você está solicitando socorro à vítima? Você conhece a vítima? É parente da vítima?
— Não, eu não sou parente. Mas ele está baleado e caído no chão. Ele precisa de socorro. Por que vocês estão negando socorro a uma pessoa baleada? Por que o carro do Corpo de Bombeiros está indo embora?
— Moça, o que a senhora está fazendo aqui? Como veio parar aqui?
— Sou moradora aqui. Moro naquela casa e apontei onde eu morava.
— Retire-se do local. Passe por esse lado da fita e dê a volta no quarteirão para ir para sua casa. A senhora sabia que está interferindo em uma ocorrência policial?
Um policial puxou meu braço e disse que eu não poderia passar pelo mesmo local onde meus vizinhos estavam passando. Daí em diante, começaram agressões físicas e verbais. Pedi para que me soltasse, que eu queria apenas ir para minha casa, apontando onde morava. Foi quando um policial gritou: joga ela na viatura, isso é carniça. Um outro disse: é só uma nega maluca, joga logo na viatura.
O mesmo policial que me puxou pelo braço, puxou meu cabelo e me jogou no chão retirando meu turbante. Eu caí na rua, ele chutou meu refrigerante, e ficou pisando com um dos pés nas minhas costas. Eu, já no chão disse: “policial, estou ouvindo você me xingar de carniça. Qual o seu nome?” Então, ele
me respondeu:
“meu nome é vai se fod%#&r!”
Comecei repetir o xingamento dele bem alto, para que todos pudessem ouvir: “vocês estão ouvindo? Ele está me xingando de carniça, está mandando eu me fod%$&r!” O PM continuava a me xingar de carniça, repetindo diversas vezes e se aproximando do meu rosto, que nesse momento, estava colado no chão pela força de um outro policial, enquanto o que pisava nas minhas costas, mantinha uma arma apontada para mim. Dois policiais se aproximaram e um deles me algemou, os dois me pegaram pelo braço, me levando para a viatura, enquanto eu gritava os nomes de meus vizinhos que passavam no local, pedindo para que avisassem meu companheiro que a polícia estava me levando. Eles me jogaram na viatura e bateram a porta.
No local, havia muitas pessoas, muitos conhecidos. Afinal, são meus vizinhos. E eu me questiono: por qual motivo ninguém fez nada? Por qual motivo ninguém questionou a omissão de socorro ao rapaz negro caído no chão? Por que ficaram indiferentes quandoapenas o rapaz branco foi socorrido, ou enquanto eu sofria repressão e abuso policial?
Uma das respostas à essas perguntas, muitos já sabem, pelo menos nós pretos sabemos, chama-se racismo institucional. Uma outra resposta é o medo.O que mais ouvi de pessoas conhecidas, de colegas de trabalho, de familiares foi: masvocê não sabe que não se pode “mexer” com a polícia? Eu não consigo ver dessa forma.
Realmente, não acredito que eu estava agindo contra os policiais, mas sim em defesa da vida, dos bons profissionais e da correta apuração do crime.
Sei muito bem que a autoridade do policial não dá a ele o direito de agredir física ou verbalmente qualquer pessoa e que conduta violenta é ilegal. Mas, quem se importa, quando esses casos de abuso são cometidos contra pessoas negras, na periferia???
Na viatura, tentei ficar calma, embora, estivesse totalmente apreensiva quanto o que poderia me acontecer. Só pensava, se meu companheiro iria saber onde eu estava, porque nem documentos eu tinha comigo. Chegamos na delegacia. Como, nunca havia sido presa antes, fiquei aguardando o que eles fariam. Os PMs saíram da viatura e vieram outros perguntar o que havia acontecido e o porquê de eu estar na viatura. Aí policial que me levou à delegacia disse: “é louca. Deve tá drogada. É defensora de bandido”. Nisso, mantive-me sentada mais um pouco e dizia para mim mesmo: “eles não vão me intimidar dizendo essas coisas”. Mal sabia eu, que eles usam essa tática há anos. Que, nós negras e negros recebemos o mesmo tratamento desde que fomos trazidos da África as Américas. Há 300 anos atrás, meus antepassados eram açoitados até sangrar. Depois, jogavam água salgada do mar em suas feridas para que gritassem, até urrarem de dor. Então, diziam que eram macacos, que gritavam feito animais, que não sabiam falar, apenas gritar. E assim, ficaram a me insultar, foi quando me levantei na intenção de mostrar que estava presa, mas minha dignidade, ainda estava de pé. Nisso, os dois policiais entraram na viatura e disseram para eu sentar que iriam rodar comigo mais um pouco até planejarem o que diriam à delegada.
Me desesperei e comecei a gritar de dentro da viatura: “Me tirem daqui, vocês disseram que eu seria trazida para prestar queixa. Quero sair daqui. Qual a necessidade de me manterem aqui dentro? Então é isso? Vocês vão me deixar aqui agonizando, igual fizeram com o rapaz baleado? Socorro, abram essa porta, por favor!” E eles ignoraram meus pedidos gritados e me chamaram de vagabunda, mandaram eu calar a boca porque eles queriam combinar o que falariam à delegada para que ela me prendesse e ficasse todo “redondinho” o depoimento deles. E eu me desesperando dizia: “Ei, eu estou aqui, eu estou ouvindo o que vocês estão falando. Parem, quero falar com delegado, eu não fiz nada disso”. Eles falaram: “cala boca vagabunda que vamos falar com a base”. Quando percebi que estavam falando no rádio, gritei ainda mais alto: “eu não sou vagabunda, sou uma professora, sou mais que um indivíduo, sou uma mulher que foi agredida por vocês, porque questionou omissão de socorro a uma pessoa baleada por vocês”.
Nesse instante, meu companheiro chegou à delegacia e perguntou aos policiais porque eu ainda estava na viatura. Disse que aquilo era desinteligência por parte deles me manterem ali, que não havia necessidade para isso, pois eu não representava nenhum perigo a eles, já que eu estava algemada, disse que eu era professora, que eu não os havia desacatado, que eu era funcionária pública como eles. Foi, quando eles abriram aporta e falaram: vai sua louca, não era isso que você queria? Agora vai, sai, pode sair”. Me levaram algemada para o interior da delegacia. E lá ficamos por algumas horas, eu e o policial Rogério. Este, por sua vez ficava me encarando e me chamando de louca, fazendo gestos com as mãos.
Passados alguns muitos minutos, a delegada foi falar comigo. De forma bem irônica me perguntando se eu estava mais calma. Dizendo que esteve no local do crime e que viu a fita que eu cortei e continuou insistindo que eu havia agredido os policiais e que eles tinham testemunhas. A essa altura, a delegada já sabia que eu era professora, que assim como ela, era uma funcionária pública. Mas, ela insistia em tentar me incriminar, sem me dar chances de eu me defender. Deu ordens para o policial me manter algemada até que eu resolvesse colaborar e concordar com a versão dos policiais.
E lá fiquei algemada e sendo insultada por policiais que me chamavam de louca, vagabunda, desonesta, entre outras coisas disseram até que eu deveria chorar, me ajoelhar e implorar para delegada me soltar. Um PM de nome Petterson, sabendo que eu era uma professora, ouvindo o PM Rogério me chamar de louca, resolveu pegar seu celular, acender o flash e tirar minha foto. Eu disse para ele que eu não o autorizava tirar minha foto, ele me mostrou que estava utilizando whatsapp, então falei pra ele que estavam me chamando de louca, mas que eu tinha sanidade suficiente para saber que uma pessoa só liga o flash quando vai tirar foto, que ninguém precisa ligar flash para falar no whatsapp. Nesse instante, chegou uma policial feminina para me revistar. Perguntei a ela se esse procedimento estava correto: a presença de dois homens enquanto ela iria realizar revista.
Ela ignorou e me perguntou por que eu estava tremendo e reinterou dizendo, “agora todo mundo é bonzinho, disseram que você agrediu os policiais”. Perguntei se ela acreditava mesmo que eu, sendo uma mulher de 1m e 60cm, pesando cerca de 56 kg poderia agredir quatro policiais homens e armados.
Também perguntei como ela ficaria se tivesse sido jogada no chão e chamada de carniça, nega maluca, vagabunda, louca, drogada e desonesta, quando se é apenas uma professora questionando omissão de socorro por parte dos policiais que te deram voz de prisão e depois de estar algemada há duas horas. Também perguntei se ela já havia sido tão insultada dessa forma, ela apenas respondeu: boa sorte. Não entendo muito de direitos humanos a pessoas encarceradas, mas me senti violada, sendo humilhada de várias formas: xingamentos, olhares de condenação, fotos sem autorização, julgamentos baseados na sua aparência e cor da pele, seu direito de defesa negado, sua liberdade negada, sem voz, sem comunicação, apenas eu, um corpo feminino em um ambiente totalmente hostil, tentando manter sua dignidade.
Ainda há pessoas que conseguem manter sua humanidade em uma delegacia. Tive a chance de conhecer uma dessas pessoas. Quando, finalmente tiraram as algemas, um funcionário veio colher minhas impressões digitais, perguntou se eu queria utilizar o banheiro, beber água e lavar o rosto. Perguntou meu nome e ficou tentando me tranquilizar dizendo, que meu companheiro estava lá fora aguardando, que se eu quisesse ele poderia falar com meu companheiro para ir em casa buscar uma roupa e algo para eu comer. Também me disse eu não precisava assinar a versão dos policiais, que eu deveria me manter calma que ele iria pedir para a delegada colher meu depoimento. Eu disse a ele que queria sim que ele falasse com meu companheiro para trazer algum advogado.
E então, depois de horas esperando, a delegada resolveu ouvir meu depoimento. Porém, antes ficou repetindo a versão dos policiais e me encheu de perguntas. Penso que a intenção dela era me deixar nervosa. A única pessoa que tentava me tranquilizar, a delegada impediu que ficasse na sala, mandou que ele ficasse no corredor. Tentei o máximo que pude ficar indiferente às provocações.
Sim, considero provocações dizer que fiz coisas que não fiz, como chutar propositalmente os cartuchos de balas/projeteis, cortar a fita de isolamento, agredir os policiais. Não, eu não alterei o local do crime. Não, não agredi os policiais, não eu não os xinguei. Não, eu não os ofendi.
O mais estranho, é que não foi registrado no boletim de ocorrências que eu fui agredida, que eu tinha arranhões nos ombros, joelhos, nos cotovelos, no queijo, no abdômen, o lábio inferior cortado e inchado. Ela apenas disse que eu estava sozinha, que até meu companheiro havia me abandonado, que eu não tinha testemunhas, que meus vizinhos não se importavam comigo.
Enquanto, a delega tentava me intimidar e tomar meu depoimento, um funcionário entrou e disse que o perito que foi ao local, estava dizendo que o caso não poderia ser registrado ali, que deveria seguir para o DHPP. Nesse momento, aquela delegada me passou impressão de total insegurança, por desconhecer as portarias relacionadas a seu trabalho. Ela pediu para que o funcionário pesquisasse sobre uma tal portaria, dizendo “assim não dá, toda hora muda essa portaria. Ninguém morreu no local. Só porque ele viu a pessoa baleada no chão, tá achando que houve homicídio”. Ela se dirigindo a mim, disse: “tá vendo, ninguém morreu! O que você foi fazer lá? Por que tinha que cortar a fita? Você que causou tudo isso para você”. Respondi: “se o perito, é um especialista e pode se confundir, por que eu, que sou só uma professora, também não posso ter pensado que o rapaz estava morto. E mais uma vez respondi que não rompi a fita, que eu estava na rua porque fui buscar as esfihas que a PM não deixou que o rapaz da pizzaria entregasse, porque a rua estava interditada. Mas, ela continuava alegando que os policiais tinham testemunhas.
Já que a delegada não estava disposta a investigar o que eu dizia, resolvi fazer alegações. Disse a ela que eu também tinha testemunhas, mas que ela não deixava eu falar com meu companheiro, pois ele era testemunha de que eu não havia cortado a fita e que o entregador da pizzaria também era testemunha, afinal ele tinha me ligado dizendo que não poderia fazer minha entrega porque a rua estava interditada, logo quem alterou o local do crime, foram os policiais, trocando a fita de local. Mas, tudo isso foi em vão, pois o escrivão não registrou nada do que eu disse, e ela como delegada, também não deu atenção ao fato dessa inconsistência no depoimento dos policiais. Perguntei a ela se as testemunhas eram válidas, pois estão diretamente ligadas ao ocorrido. Já que todos eram vítimas do suposto assalto de moto à mão armada e troca de tiros (com arma de brinquedo dos assaltantes). As testemunhas apresentadas pelos policiais eram: o dono da moto, a outra é a pessoa que solicitou a viatura, que era a mesma que havia pedido uma pizza. Como assim, a pessoa pede pizza e já pede viatura? Então, o cara já sabia que os entregadores seriam vítimas de assalto??? Na minha humilde opinião, mais inconsistências por parte dos policiais.
Continuei fazendo alegações à delegada: se eu não conheço as pessoas baleadas, por qual motivo chutaria propositalmente, e no escuro, os projéteis? Se as testemunhas estão, de certa forma diretamente ligadas ao crime, pois elas tem interesse que se efetue a prisão dos assaltantes, elas servem como testemunhas? Será que elas não compareceram à delegacia para registrar a tentativa de furto de seu veículo? Onde elas estavam e por que o depoimento delas foi tomado sem a minha presença?
Nesse momento, o policial que me levou à delegacia, chegou com o rapaz negro que fora baleado. A delegada começou a falar em tom alto, seguido de nervosismo: “se você não tem o papel com a laudo do médico, não posso ficar com ele aqui. Leva ele de volta para o hospital. Cadê o outro assaltante?”. E o policial disse: “o outro tá no hospital. Não posso levar esse de volta, porque a coregedoria está já tá no nosso pé. Não posso ficar rodando com ele”. A resposta dela: “não quero saber, se vira. Aqui ele só fica se tiver alta do hospital, assinada pelo médico”. “Não doutora, isso é mole, fica com ele aqui que eu volto no hospital e trago a assinatura do médico. Só precisa disso”. E mais uma vez, ela demonstrou que não conhecia os procedimentos. Perguntou para o escrivão se era isso mesmo, se só precisava da assinatura do médico.
E eu, pergunto: se não houve mortes, por que só o rapaz branco ainda estava no hospital? Por que o policial trouxe o rapaz negro sem alta médica? Por que uma pessoa branca quando é baleada merece ficar no hospital em observação e a pessoa negra pode sair, com uma calça azul do hospital com sangue escorrendo pela perna , sem direito de ficar em observação após ser baleado e retirado do hospital sem alta médica?
Para a delegada sou apenas uma “defensora de bandido”. Foi o que ela disse, apontando para o rapaz: “tá vendo? Olha aí o que você defende, bandido”.Mas, eu sei o que eu estava defendendo um direito básico do ser humano, ser socorrido após ser baleado. E respondi a ela: “doutora, eu não sou juíza, sou professora. Você também não é juíza, é delegada. Os policiais que dispararam suas armas contra os rapazes, também não são juízes. Portanto, não podemos condená-los. Eles têm direito de serem socorridos, afinalomissão de socorro é crime, e eles também têm direito a um julgamento justo diante de um juiz.
No Brasil, não existe pena de morte decretada por policiais”.
Minha intenção era deixar bem claro que não defendo bandidos, sou ativista de direitos humanos básicos, principalmente da população negra.
Acho que minha militância contundente a deixou irritada, porque ela disse que nada do que eu disse iria mudar a decisão dela e finalizou dizendo:“você sabe que você está presa, né?” Eu questionei o motivo, ela disse que os motivos eram: desacato, desobediência e resistência. Ainda tentei fazer minha defesa, perguntando se eu poderia pagar fiança, porque nunca vi ninguém ficar preso por desacato, ou desobediência. Mas, ela alegou que somando os três artigos, passava de quatro anos, portanto eu não teria direito de pagar fiança, que eu ficaria presa até terça-feira (dia 03/11), quando teria direito a uma audiência de custódia e um juiz decidiria minha vida. Nesse instante fiquei com medo, totalmente desesperada, foi quando a única pessoa humana, até então naquela delegacia, entrou na sala e esclareceu a delegada, dizendo que assim que ela finalizasse a ocorrência, ela deveria comunicar, imediatamente, minha prisão, que era só encaminhar para o juiz de plantão, no fórum criminal da Barra Funda, que não havia motivos para eu ficar detida até terça-feira. Ela, mais uma vez demonstrou que não conhecia os procedimentos e perguntou ao escrivão se isso era possível. Ele disse que sim, que era tudo informatizado, que ela poderia encaminhar ao juiz de plantão. Então, pedi a ela que encaminhasse ao juiz, ela se negou. E um tom, que demonstrava irritabilidade com meu pedido, deu ordens para um funcionário me levar de volta para cela, para que eu assinasse o boletim de ocorrência com a versão dos policiais e meu depoimento.
Antes de assinar, comecei a ler e questionar ao funcionário que me acompanhava porque eu deveria assinar aqueles papeis, já que eu não concordava com nada do que estava escrito. E ele me disse: “não precisa ler. É só assinar. Você não tem que concordar, só tem que assinar. São só procedimentos de rotina. É melhor você assinar. Para o seu bem, assina logo e para de ler, ou você não vai poder ver seu marido”. Quanto mais eu lia, mais eu chorava, de raiva, de indignação por tanta injustiça, ter que assinar declarações que eu não concordava e já passava de quatro horas da manhã e eu ainda não tinha falado com meu companheiro. Por fim, pedi uma cadeira para o funcionário, porque estava com muita dor nas costas e tinha que agachar até a mesa para assinar. E ele disse que ia perguntar a doutora de era possível trazer uma cadeira. Ao ler o boletim de ocorrência, vi que a delegada não mencionou as agressões físicas ou verbais que relatei ter sofrido por parte dos policiais. Afinal, eles são funcionários públicos e devem agir sempre de acordo com a lei. Assim, quando cometem algum abuso estão sujeitos a punição e devem ser denunciados. Eu os denunciei, porém nada foi registrado.
Nesse momento, senti que não poderia fazer mais nada, minha prisão estava decretada, iria amanhecer e eu sem saber se iria ou não conseguir um advogado.
Pedi para o funcionário deixar a cadeira comigo, porque estava com muitas dores e com medo dos ratos que estavam transitando na delegacia. Ele me deixou ficar com a cadeira na cela. Um outro funcionário, passou e disse: “vocês deram uma cadeira para essa louca, com esse pano na cabeça. Agora é só ela se suicidar. Pronto agora não falta mais nada”.
Quando terminei de assinar os papeis e voltei para a cela, o mesmo funcionário que colheu minhas impressões digitais, foi colher do rapaz negro baleado no incidente. Então, perguntei seu nome, era Danilo e perguntei também se lembrava de mim, se tinha visto eu agredir e xingar os policiais.Ele respondeu que que lembrava de mim, que me viu quando me aproximei do policial e perguntei porque iriam socorrer só uma pessoa, e que eu não havia xingado ou agredido os policiais. Em um tom de arrependimento, me pediu desculpas, dizendo que ele havia me colocado naquela situação. E eu disse que ele não me devia desculpas, que ele assim como eu era uma vítima dessa situação.
Por volta, de 5 horas, depois de ter assinado todos os papeis, finalmente pude conversar com meu companheiro. Ele foi até mim e disse que esteve lá na delegacia o tempo todo, porém a delegada não o deixava entrar. Que ele estava desesperado, sem saber o que tinham feito comigo e como eu estava. Pedi a ele que avisasse todos nossos amigos sobre a minha prisão arbitrária e perguntei se já havia conseguido um advogado. Ele respondeu que estava tentando contatar um advogado e que iria avisar aos nossos amigos o que estava acontecendo.
Então, quando amanheceu o funcionário que colheu minhas impressões digitais, veio me dizer que o plantão dele estava acabando e que a delegada, ainda não havia encaminhado meu caso ao juiz de plantão do fórum da Barra Funda. Eu agradeci pelo apoio e força que ele me deu durante seu plantão e pedi que falasse com meu companheiro sobre esse fato. E houve troca de plantão, um delegado chegou à delegacia e me cumprimentou e perguntou qual meu artigo. Respondi que estava presa por desacato, desobediência e resistência. E ele comentou:
“como assim? Ninguém fica preso por desacato. Foi essa delegada que está aí que efetuou sua prisão? Nossa isso é um absurdo! Você sabe que essa sua prisão é arbitrária, né?!
Espera um pouco que eu vou falar com ela”. Foi então que pensei: “meu Deus existe bons profissionais! Nem tudo está perdido”. Logo em seguida em policial civil veio conversar comigo, perguntou se eu queria tomar café, ou beber água, ou ir ao banheiro, seu eu havia passado a noite lá e se desculpou pela atitude da colega de trabalho. E me disse: ‘você sabe que vai ter que procurar a corregedoria”. Mas, naquele momento eu só pensava em sair, em ir para minha casa.
De onde eu estava podia ouvir a delegada falando que iria me manter presa, porque os policiais tinham testemunhas e que iria me transferir, já que o delegado não me queria na delegacia. E ela dizia que era para colocar todo mundo na viatura: a mulher (eu), os menores e os nóias, palavras dela. Depois de muita discussão, dois policiais civis vieram falar comigo que eles iriam fazer minha transferência. E finalmente, um advogado chegou e veio falar comigo, por volta de sete horas. Eu perguntei se ele iria colher meu depoimento novamente e se iria pedir um habeas corpus, mas a resposta dele foi não. Que ele já havia falado com a delegada, e que no meu caso não caberia habeas corpus, e sim outra medida.
Dois policiais civis me levaram, sem algemas, sem viatura oficial, para fazer exame de corpo de delito no IML (Artur Alvim), e seguiram comigo até a 89 DP de forma muita respeitosa e compreensiva, conversaram comigo durante todo o trajeto. Chegando lá, fui revistada por um carcereiro (isso mesmo, um funcionário do sexo masculino), perguntei a ele por qual motivo ele estava fazendo essa revista e não uma policial feminina e ele me respondeu que era procedimento de rotina, que não tinha nada de mais. Eu entendo isso como violação de direitos. Esse mesmo funcionário, ficava me fazendo ameaças o tempo todo que estive na 89 DP. Mesmo, ele sabendo que meu companheiro já se encontrava na mesma delegacia desde às 14hs, ficava dizendo para mim:
“se seu marido não chegar com seu diploma, vou te colocar lá na outra cela com todas aquelas detentas (aproximadamente 20 mulheres). Tá chorando por que? Tá com dor? Vai rezando para o seu marido chegar logo, senão você vai para lá”.
Eu sem saber se meu companheiro estava ou não na delegacia, chorava muito, enquanto o carcereiro parecia se divertir com meu sofrimento. Estava tão desesperada, sem noticias, que perguntei e implorei várias vezes para ele ligar e avisar meu companheiro que eu estava ali e precisava desse documento, mas ele ria e dizia para eu esperar mais um pouco.
Por volta de 16h00, o deputado Carlos Giannazi compareceu à delegacia, se aproximou da cela onde eu estava presa, me cumprimentou e me acalmou, dizendo que meu companheiro, meus amigos e um advogado da Apeoesp se encontravam na delegacia. Que eu ficasse tranquila, pois meu alvará de soltura já havia sido expedido pelo juiz, só estava aguardando chegar à delegacia através de um oficial de justiça. Disse também, que depois eu poderia procurá-lo, para que juntos pudéssemos acionar o Ministério Público e a corregedoria para apurar o caso. Agora, o choro era de alívio. Pelo menos, já sabia que não iria passar mais uma noite na delegacia. Porém, as horas foram passando e nada de sair daquele pesadelo. Então, por volta de 20:00hs, o carcereiro me chamou para assinar uns papeis, dizendo que eu estava livre.
Quando, sai pude abraçar meu companheiro e minhas amigas, um amigo e o Dr. Marco Aurélio da Apeoesp. Também fiquei sabendo que o Secretario Municipal de Direitos Humanos, o ex-senador Eduardo Suplicy, ligou na delegacia para falar com o delegado sobre meu caso. Foi muito reconfortante saber que não ando só, que tenho ao meu lado pessoas que assim como eu, são solidárias a dor do outro, que são favoráveis aos direitos humanos, à vida e contra qualquer tipo de descriminação. Pessoas que são contra abusos de autoridades e violações de direitos.
Muito mais que as lesões, dores físicas e emocionais causadas pelo vexame e constrangimento, ficaram em mim as marcas de um Estado opressor, que ainda tem resquícios de autoritarismo da ditadura militar. Que prefere punir que, identificar às causas de tantas formas de violência. Um Estado que viola direitos e que perpetua o racismo.
Não culpo os policiais, porque assim como eu, são trabalhadores, funcionários públicos cumprindo ordens. Vivemos em uma sociedade inversão de valores, doente e omissa, onde as pessoas se calam diante de abusos de autoridades e violações de direitos humanos.
Quero acreditar em dias melhores, para todas e todos. Quero viver sem medo. Quero viver em uma sociedade mais justiça e equidade, onde cada um seja respeitado apenas por ser um ser vivente.
Andreia Luiza Rosa, 42 anos, professora da rede municipal de educação da cidade de São Paulo, mulher negra e ativista dos direitos humanos, contra o genocídio da população negra.
O show Frou Frou é marcado pelo non-sense da arte do disco, pela simplicidade. As letras das músicas tiram sarro dos amores e suas dores, mas também falam de curar o coração e se conectar. Tem música sem letra, libertação da palavra! Fui juntando tudo isso, visualizando um convite à diversão, à liberdade, ao desbunde, à felicidade, ao amor.
Vejam bem que quando falo tanto sobre amor, estou falando do amor incondicional, cósmico, daquilo de que somos feitos, do essencial. E amar-se significa aceitar o que se é, como se é. Amar os outros significa aceitá-los exatamente como são.Somos humanos, feitos de carne, somos uma máquina genial. Porém não passa disso. O corpo é só essa embalagem, esse vaso. É natural e é lindo. Em algum momento na história, decidiram que era feio e vulgar. Principalmente o corpo feminino. Crianças são criadas para esconderem o corpo, terem vergonha, é um tabu! Que coisa mais atrasada esse negócio de tabu…
Mulheres ficam de calcinha rendada fazendo pose sensual, ficam praticamente nuas em vídeos musicais, em festas populares. Isso, tudo bem. Por que não pode mostrar tudo? Por que ser natural não pode? O que pode é ser vulgar, é alimentar a cultura machista em que vivemos, alimentar uma indústria do medo.
Preconceito é medo, violência é medo.
Pensando nisso tudo, tive a ideia de fazer uma performance, uma intervenção no meu show. Ficar nua e dizer algumas palavras, mostrar que um corpo é só um corpo, que não tem nada além. Chegando ao Sesc Belenzinho, local do show, falei com meus parceiros queridos Tatá Aeroplano e Peri Pane, que iriam participar em algumas canções, e os convidei para entrarem comigo segurando uma faixa escrita: “você tem medo de que?”
Fiquei muito feliz por eles toparem, fortaleceu a ideia toda. São só corpos, o que importa? Homem, mulher, somos todos feitos de partículas subatômicas que vibram criando a matéria. Na essência, somos a mesma coisa. Pra que tanto barulho, por que tantas barreiras?
Não lembro exatamente minhas palavras ali no show, mas foi algo mais ou menos assim: “eu queria dizer que quanto mais se olha pro que tá de fora, pro superficial, menos se olha pro coração. Essa desconexão é a grande causa de toda essa merda que está acontecendo. Falta olhar pra dentro. E respirar. Vai dar tudo certo. Nada é tão importante assim.”
Por uma bela sincronicidade da vida, esse show acabou acontecendo no mesmo fim de semana em que mulheres (e muitos homens) saíram às ruas a favor de sua liberdade, após aprovação na CCJ de um projeto de lei absurdo e escabroso (PL5069/2013) em que, basicamente, a mulher violada tem seus direitos negados.
Estamos próximos a um abismo perigoso, porém acredito que nada vá derrubar essa força que é a mulher. Os papeis estão se redefinindo após um longo limbo. Existirão choques, haverá confusão, e faz parte. Sugiro que trabalhemos, todos os dias desde o mínimo ato, para que reine a harmonia. Deveria ser natural, mas se é necessário um esforço então vamos arregaçar as mangas!
Não é pela naturalidade da nudez, é pela naturalidade da vida.
Agradeço demais todo mundo que está apoiando e espalhando a mensagem de forma positiva!
E espero que os maldosos encontrem sua paz.
Cada um no seu processo, mas aqui sem retrocesso, seguimos adiante!!!
Por Diógenes Júnior*, especial para os Jornalistas Livres
Nas 5 horas e meia (ou 330 minutos) de duração da prova do ENEM realizada no domingo, que incluiu a elaboração da redação com o tema “A persistência da violência contra a mulher na sociedade brasileira”, nada menos que 825 mulheres foram agredidas.
Como um dos 7 milhões de brasileiros que fizeram a prova do Enem, ao abrir meu caderno de questões, ansioso que estava para saber qual seria o tema da redação, recebi a primeira bofetada:
“Nos 30 anos decorridos entre 1980 e 2010 foram assassinadas no país mais de 92 mil mulheres, 43,7 mil só na última década. O número de mortes nesse período passou de 1.353 para 4.465, que representa um aumento de 230%, mais que triplicando o quantitativo de mulheres vítimas de assassinato no país.”
A constatação de que não teria muita dificuldade para escrever sobre o tema proposto não diminuiria a dor que a próxima bofetada causaria:
“237 mil relatos de violência foram feitos ao Ligue 180, serviço telefônico da Secretaria de Políticas para as Mulheres. Sete em cada dez mulheres que telefonaram para o Ligue 180afirmaram ter sido agredidas pelos companheiros.”
Essas informações, que me alertavam para uma triste realidade, estavam escritas na contra capa do caderno de questões de todos os candidatos.
Imagem ilustrativa do texto III no caderno de respostas azul do ENEM — contra capa
Mais de 7 milhões de candidatos leram essas informações, além de mim mesmo, e não apenas nós.
A discussão sobre o tema se tornou em polêmica e ultrapassou o universo acadêmico.
“Ponto para as mulheres, ponto para a humanidade, ponto para a luta contra a violência!” — comemorei com meus botões.
A violência contra a mulher no Brasil tem persistido e precisa ser combatida, isso é fato e tem de ser o ponto de partida para qualquer discussão séria sobre o assunto.
A redação do ENEM trouxe para os holofotes da mídia, para o centro do palco das discussões, uma agenda que alguns preferem relativizar, ou abordar com a indigência intelectual que é característica de pessoas truculentas, cuja violência cauterizou o bom senso.
Pessoas para as quais a violência é algo natural, e a violência contra as mulheres é apenas mais um tipo de violência:
“Formulado pelo corrupto e tresloucado governo federal, o ENEM virou uma aberração acadêmica, o pior de tudo é saber que o dinheiro dos nossos impostos é usado pela quadrilha que nos governa para produzir esse lixo cultural.”
A frase acima foi escrita em uma página de Facebook que se diz “de utilidade pública”. (Nota deste que vos escreve: “utilidade pública” para essa — e outras — páginas significa, entre uma foto ou outra de um buraco na rua ou um cãozinho perdido, inserir dezenas de críticas ao Governo Federal, cuja responsabilidade não é tapar buracos nas ruas e muito menos cuidar da gestão da Sociedade Protetora dos Animais local.)
Para o editor dessa página a questão da violência contra as mulheres se reduz à crítica ao Governo Federal cuja representante máxima, pasmem… é uma mulher!
Para ele e para seus “seguidores” a ideia da violência contra as mulheres não tem importância.
Importa mesmo é a oportunidade de fazer uma crítica ao governo (de uma mulher, repito) que eles desejam derribar do poder. E os impostos que eles pagam, claro!
Os impostos… talvez as mulheres, inclusive as agredidas, segundo a visão de mundo do autor da frase infeliz, não paguem impostos.
A questão da violência contra a mulher transcende questões políticas e ideológicas, transcende a questão da direita ou da esquerda.
Transcende qualquer opinião a favor ou contra o governo Dilma.
A questão da violência contra as mulheres vai muito além de alguém ter votado em um candidato acusado de ser espancador de mulheres, ou ter votado em uma mulher que durante a ditadura foi espancada por homens.
Não se trata disso!
Trata-se de algo muito maior, mais elevado e que se encontra em um nível que temos por obrigação alcançar, colocando de lado as diferenças ideológicas, sejam quais forem.
É violência, é desumanidade, é injusto, é indigno, é sórdido.
É inadmissível: ponto.
Nisso todos temos de concordar.
A escolha do tema da redação do ENEM foi um marco, um degrau que subimos em direção a um nível mais elevado, um nível onde a sociedade em uníssono condena a violência em geral, mas especialmente a violência contra as mulheres.
Tenho plena convicção de os 7 milhões de brasileiros que leram no caderno de questões do ENEM os alarmantes dados sobre a violência contras as mulheres no Brasil saíram da sala do exame pessoas diferentes.
Ouso dizer que as bofetadas que receberam — na forma de informações — fará com que lutem para que nenhuma mulher em lugar algum do mundo receba uma bofetada, de maneira alguma.
Tenho plena convicção de os 7 milhões de brasileiros que fizeram o ENEM entregaram suas redações na condição de brasileiros que não mais podem permitir que a violência seja admitida, sob que formato for, contra quem for.
Eu sou um desses brasileiros.
E mais do que um bom resultado no ENEM, que é o que todos desejam, desejo que essa discussão nos eleve àquele nível o qual creio ser nossa obrigação alcançar, colocando de lado as diferenças ideológicas, sejam quais forem.
Ano que vem tem outro ENEM.
“No Brasil, 7 milhões e 200 mil mulheres com mais de 15 anos já sofreram agressões, das quais 1 milhão e 300 mil nos 12 meses que antecederam a pesquisa. Quanto aos homens, 8% admitem já ter agredido fisicamente uma mulher, 48% dizem ter um amigo ou conhecido que fizeram o mesmo e 25% têm parentes que agridem as companheiras.”
Espero que esses números sejam outros, e que a violência contra a mulher não seja mais tema de jornais, e jamais precise ser novamente tema de redação.
*Diógenes Júnior é ativista social, militante do PCdoB e pesquisador independente. Estudante de Ciências Sociais, paulistano de nascimento, caiçara de coração e gaúcho por opção está radicado em Porto Alegre, RS, de onde escreve sobre Política, História, Cinema, Comportamento, Movimentos Sociais, Direitos Humanos e um pouco de um tudo.