Este é Patrick Macedo Ramos Paiva de 33 anos. Em uma das fotos ele está com a saúde normal e seus 65 quilos habituais. A outra foto retrata o mesmo Patrick, depois de sair da Colônia no dia 04 de maio deste ano, uma das unidades prisionais em Santa Isabel, onde se encontra o Presídio de Americano no Estado do Pará.
Por João Paulo Guimarães, dos Jornalistas Livres
Patrick, sobrevivente aos maus tratos no Estado do Pará. Foto: João Paulo GuimarãesPatrick, sobrevivente aos maus tratos no Estado do Pará. Foto: João Paulo Guimarães
“Não há no nosso protocolo tortura e espancamento. Não é esse o nosso protocolo. Nós temos hoje um protocolo que garante como nunca dignidade ao preso.” Jarbas Vasconcelos – Secretário de Administração Penitenciária
O uso feito, pelo Secretário de Administração Penitenciária, da palavra “dignidade”, em uma entrevista ao vivo para o TeleJornal Bom Dia Pará, não é apropriado para a realidade na qual o sistema carcerário do Pará vive. A barbárie, a tortura, a privação dos direitos básicos e o assédio a profissionais do sistema penitenciário, assim como aos advogados dos reclusos, se transformaram em política pública no Estado do Pará, sancionada pelo Governador Hélder Barbalho.
Patrick foi preso por dois assaltos. Um dos assaltos foi em uma escola na Ilha de Mosqueiro. Desse, Patrick assume a autoria. O outro assalto, à casa de um policial militar, ele nega. Diz que foi coagido a assumir. Pegou 13 anos. Já estava preso há quatro anos e dois meses e lhe faltariam apenas 15 meses para que alcançasse a liberdade condicional. Patrick cumpria pena na Cadeia da Vila em Mosqueiro quando foi transferido para a Colônia em Americano, onde ficou por um ano e oito meses.
No dia 15 de fevereiro foi constatado que Patrick adquiriu pneumonia. O quadro evoluiu para a tuberculose. Ele conta que havia feito um teste para trabalhar na área externa do presídio como “roçadeiro” e passou, mas no exame final a médica constatou que ele não poderia trabalhar devido à perda exagerada de peso.
O detento não recebia medicamentos baratos como o sulfato de salbutamol, que funciona em quadros de asma, bronquite ou enfisema pulmonar, nem tampouco um simples Tylenol, analgésico para febre ou dores de cabeça. Foi internado em Castanhal e dois dias depois saiu para tratamento domiciliar.
Ao sair, Patrick não foi pesado. Agentes avisaram-no que conheciam sua família e que se falasse algo sobre como foi tratado lá dentro eles saberiam onde encontrá-lo.
Patrick, sobrevivente aos maus tratos no Estado do Pará. Foto: João Paulo Guimarães
Patrick conta que ainda vive sob o terror psicológico constante mesmo dentro de casa. O medo de, ao acordar, ser mandado de volta para o Presídio de Americano, a lembrança das torturas e situações que ocorriam antes dos Procedimentos (ações executadas pelos agentes prisionais para se certificar de que os reclusos não estejam portando armas brancas ou celulares), tudo isso aterroriza Patrick. Nos procedimentos, os presos são obrigados a ficarem nus, sentarem no chão com as mãos na cabeça, de pernas abertas para que cada preso na fila fique encaixado no outro, dificultando ações com movimentos rápidos, de modo a aumentar a segurança dos agentes.
“Lá, eles batiam nas celas com as armas, acordavam a gente de madrugada, entravam nas celas de quatro a cinco horas da manhã já com bomba de efeito moral e spray de pimenta. Alguns presos se defendiam com o colchão e esses que se defendiam eles tiravam da cela e batiam mais. E então ficava todo mundo nu concentrado num campo. Todos os pavilhões. Um colado no outro. Toda essa violência pra tomar café às seis e meia. Diziam que não era pra olhar para eles senão a gente ia apanhar. Todo o tempo eram ameaças.”
Patrick terá de fazer pelo menos seis meses de tratamento para recuperar a saúde e seu advogado vai tentar conseguir um laudo médico para que ele não retorne à detenção. Em sua casa, Patrick conta que dormia no chão do corredor das celas, onde existe uma enorme população de ratazanas. Como esses roedores transmitem a leptospirose, essa é uma doença muito comum entre presos e agentes. Ele também conta que eram 240 presos só em uma das celas, dormindo sem colchão e na maioria das vezes com o chão molhado. A capacidade de cada cela é de 160 presos.
Patrick, sobrevivente aos maus tratos no Estado do Pará. Foto: João Paulo Guimarães
Torturas no sistema prisional do Pará
A tragédia de Patrick, infelizmente, é vivida cotidianamente pelos cerca de 20 mil detentos do Pará. Para que se tenha uma idéia, o Estado detém um recorde sinistro: lá os presos morrem 5 vezes mais que média verificada em presídios do país. Em julho de 2019, uma rebelião no presídio de Altamira acabou com 58 detentos mortos, boa parte esquartejada e degolada.
Na origem dessa situação de violência estão a tortura, a privação dos direitos básicos e o assédio a profissionais do sistema penitenciário, assim como aos advogados dos reclusos. Segundo a revista eletrônica Consultor Jurídico, advogadas de presos têm sito obrigadas a se submeter a revista íntima como pré-condição para que entrem na carceragem para atender a seus clientes. Para piorar, os defensores não têm conseguido nem sequer se reunir reservadamente com os presos, já que são obrigados a se encontrar com eles em locais abertos, cercados por agentes penitenciários.
À Consultor Jurídico, Viviane de Souza das Neves, uma das denunciantes da revista íntima das advogadas, afirmou que imposições absurdas como essa estão sendo adotadas desde que o atual secretário da Administração Penitenciária, Jarbas Vasconcelos, assumiu o posto, em janeiro de 2019. “A gestão começou a afetar diretamente as pessoas custodiadas, as famílias das pessoas custodiadas, e aqueles que frequentam as unidades prisionais, que são os advogados criminalistas”, diz. E acrescenta:
“Não estamos mais conseguindo entrar no presídio a hora que a gente precisa, não conseguimos mais ter entrevistas com nossos clientes de forma pessoal e reservada, estamos tendo que nos submeter à revista. Estamos sendo hostilizados, tratados como braços das facções, como criminosos.”
Por outro lado, agentes prisionais em estado probatório, uma vez aprovados em concurso estadual e feito o curso de quatro meses ministrado pelo Comando Operações Penitenciárias (COPE), são impossibilitados de assumir cargos dentro das unidades prisionais porque o secretário Jarbas Vasconcelos prefere contratar em regime de comissionamento (em confiança).
Não é caos. É política pública anti-direitos humanos, para manter os detentos dóceis e fragilizados no intuito de se garantir a ordem e a aprovação da sociedade, que quer os presos longe do convívio sociais -custe o que custar. O governador Helder Barbalho também coloca-se, assim, a favor das diretrizes truculentas da administração no Governo Federal.
A violência física, a tortura, a privação de sono e de alimentação, além de abusos sexuais, enquadrados como estupro, são uma realidade infernal dentro dos estabelecimentos prisionais administrados pela Secretaria de Administração Penitenciária do Pará.
Aqui está uma lista de algumas das práticas da SEAP, lidas pela Deputada Federal Sâmia Bomfim, na Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher em audiência pública que ocorreu na Câmara Federal:
Superlotação
Falta de acesso à água
Falhas na assistência médica
Número limitado e restrito de refeições
Maus tratos a presos com transtornos mentais
Espancamentos com cabos de vassoura
Existência de um calabouço de tortura
Uso de spray de pimenta tanto para homens quanto para mulheres (detentos e parentes apontaram a morte, por asfixia, de um interno após o uso de spray de pimenta)
“Deus é maravilhoso”
“Estou levando meu filho para morrer em casa” (Dona Risoneide Alvez – Mãe de Patrick)
Dona Risoneide Alvez Ramos Paiva tem 50 anos. Perdeu recentemente o marido, mas é uma mulher simpática e alegre, mesmo vivenciando a realidade relatada aqui. A mãe de Patrick conta como foi reencontrar o filho nesse estado:
“A última visita que fiz pra Patrick ele estava bem, tomado banho, tirado a barba e de cabelo cortado. Duas visitas que eu fiz pra ele, ele tava bem. Isso foi antes da intervenção da Força do Departamento Penitenciário Federal, enviada para o Pará depois do massacre de Altamira. Depois da intervenção, eu fiquei seis meses sem ver ele. Quando eu vi o Patrick nessa situação, dia 6 de maio, meu mundo desabou. Você olha pro lado olha pro outro e diz: O jeito é levar pra morrer em casa. Mas Deus é maravilhoso e ele tá aí. Pesando 36 quilos.”
Foto: João Paulo Guimarães
Outro lado. A secretaria de administração penitenciária tenta explicar a situação:
A SEAP, há alguns dias, através de duas notas oficiais, negou todas as acusações e diz se encontrar em meio a um complô de forças antagonistas que têm o interesse em enfraquecer a administração carcerária do Estado do Pará. Também critica as denúncias e desmerece advogados de detentos assim como nega a utilização de protocolo interno de tortura e maus tratos para com os reclusos.
Jarbas Vasconcelos, titular da SEAP, em entrevista ao vivo para o Bom Dia Pará no dia em que o Massacre de Altamira, o segundo maior massacre do Brasil, fazia um ano.
Moradores e comerciantes da região conhecida por cracolândia, bairro da Luz em São Paulo, denunciaram que seus comércios foram fechados com truculência e repressão e sem notificação ou algo que valha efetivamente como instrumento legal. Maria, moradora de uma pensão onde paga aluguel, quase foi despejada, não tivesse reagido à ação dos agentes da prefeitura, que alegavam que o imóvel onde ela mora era uma ocupação ilegal. Ela provou que pagava aluguel, e conseguiu permanecer no imóvel com os seus pertences.
Além do aparato policial ostensivo e violento, a pressão sobre esta população é gigantesca e os deixa desorientados e acuados.
Alice desabafa com os olhos lacrimejantes: “fui pegar meu filho na escola e o GCM passou por mim e ameaçou pegar meu filho e levar para a assistência social. Outro dia um policial entrou na minha casa e agrediu meu marido.” Eu moro aqui há oito anos, e ele vem e me diz: “Vocês é que moram no lugar errado” “.
O Fórum Aberto Mundaréu da Luz reúne diversas instituições e pessoas que atuam nas regiões da Luz e Campos Elíseos, formado como reação as investidas autoritárias e violentas do Estado e da Prefeitura, tem entre outras coisas o intuito de orientar moradores do território e monitorar as ações da Polícia, e auxiliar no encaminhamento das denúncias.
O dia 1 de março foi mais um dia muito tenso, e na reunião do Fórum foi possível escutar o depoimento dos moradores sobre as violações de seus direitos. A rede de pessoas da sociedade cível que está se empenhando neste apoio, durantes as açoes acionou os representantes da Defensoria Pública e da Ouvidoria para irem ao bairro da luz coletar as denúncia de violência de agentes de Estado e da Prefeituira e acionar instrumentos legais possíveis.
A partir da presença destes representantes, os funcionários da prefeitura, e mesmo os agentes da Polícia, passam a agir de forma menos desrespeitosa, e foi possível evitar concretamente algumas ações de lacração e interdição.
Na página do Fórum Aberto Mundaréu Luz foi publicada esta carta da defensoria pública condenando as violações cometidas nos dias 1 e 2 de março.
Nota da Defensoria Pública divulgada pela página Fórum Aberto Mundaréu
Outras entidades, preocupadas com o aumentos das ações nos próximos dias estão elaborando vigílias. No dia 2 de março a violencia e as violações continuaram intensas.
Debate “Drogas e Democracia: Desafios em tempos de polarização” da Plataforma Brasileira de Políticas de Drogas, que reuniu algumas personalidades entre elas Luciana Boiteux (PSOL) e Preto Zezé (CUFA e FFB), o Teatro da Companhia Turma do Faroeste, na rua do Triunfo, região da Luz. 01.03.2018. Foto Joana Brasileiro | Jornalistas Livres
Ainda no dia 1º, logo ali, na rua do Triunfo, no Teatro da Companhia Turma do Faroeste ocorria o debate “Drogas e Democracia: Desafios em tempos de polarização” transmitido pela Plataforma Brasileira de Políticas de Drogas (compartilhamos parte do AO VIVO na nossa página do Facebook), que reuniu algumas personalidades entre elas Luciana Boiteux (PSOL) e Preto Zezé (CUFA e FFB). Houveram falas sobre o que pode vir a ser a agenda eleitoral sobre a política de Drogas, incluindo aí o combate ao encarceramento em massa e aniquilamento da população negra e pobre, e questões pertinentes à Intervenção Militar no Rio de Janeiro.
Um inicitiva importante, mas que mesmo inserida dentro de um território sistematicamente castigado por esses questões, permaneceu teórico e distante, a ponto de parecer pertencer ao outro lado da cidade.
Um misto de cinismo e desfaçatez, típico dos piores torturadores da Ditadura Militar, marca o comportamento do Governo Temer nos quatro meses que sucederam o suicídio do reitor da UFSC Luiz Carlos Cancellier. Mesmo com a indignação e denúncia da unanimidade dos setores democráticos do país, os agentes do Estado de Exceção permanecem impunes, num dos casos de violação dos direitos jurídicos constitucionais mais assombrosos da história recente do Brasil. Valendo-se de pareceres corporativistas forjados para inocentar e até promover os responsáveis, além de intimidações e perseguição aos que lutam por justiça; a República de Temer deu até agora clara demonstração de que não está disposta a reconhecer o que qualquer estudante de Direito sabe: Cancellier foi vítima de abuso de poder.
Herzog e Cancelier: duas vítimas do fascismo e da farsa em dois tempos
Foto: divulgação
Como é próprio dos governos mais obscuros, o Ministério da Justiça não só deixou de reconhecer os erros escandalosos cometidos pela Corregedoria Geral da União, Polícia, Justiça e Ministério Público Federal na prisão e exclusão do reitor da universidade, como humilhou a família com artifícios crueis até para um leitor acostumado aos pesadelos jurídicos de Kafka. Na véspera do Natal, o ministro Torquato Jardim apresentou ao irmão mais velho do reitor, Antônio Acioli Cancellier de Olivo, um parecer atestando a inocência da delegada tão fajuto quanto a grotesca simulação de suicídio com a qual os assassinos de Vladimir Herzog pretendiam encobrir a tortura até a morte do jornalista.
A inconsistência e desfaçatez desse relatório logo viria à tona. Em reportagem intitulada “Assessor produziu parecer para eximir delegada da PF em sindicância”, publicada pela Folha de S. Paulo no dia 31 de janeiro, o repórter Walter Nunes apurou que o parecer foi produzido pelo “assessor de marketing” da delegada na Operação Ouvidos Moucos, Luiz Carlos Korff. (https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/02/1954885-assessor-produziu-parecer-para-eximir-delegada-da-pf-em-sindicancia.shtml). Acumulando os cargos de chefe da Correição da PF em Santa Catarina e diretor de Comunicação do órgão, o delegado torna esse resultado no mínimo suspeito ao encaminhá-lo para arquivamento. Mas a debilidade do parecer corporativista, que não passou do nível administrativo, vai além: numa análise mais detalhada do relatório a pedido dos Jornalistas Livres, um grupo de advogados avaliou que sequer houve investigação: o “parecer Korff” inocentando a colega constitui apenas uma análise superficial das informações, sem que tenha havido de fato apuração de provas e depoimento de testemunhas sobre a legalidade da prisão do reitor; as humilhações às quais foi submetido e seu banimento da universidade. “É apenas um relatório superficial. Não houve de fato nenhum inquérito, nem em nível administrativo”, atesta uma comissão de juristas que se formou em apoio à família e ao processo de criminalização do caso. “Trata-se de um juízo de inadmissibilidade de inquérito”, esclarece Fabrício Guimarães, um dos novos corregedores da UFSC.
Numa operação espetaculosa, 105 agentes federais de todo o país foram mobilizados para a prisão do reitor é de outros seis professores
A matéria se contrapõe a outra, publicada pela mesma Folha, no apagar das luzes de 2017, que deveria entrar para a história como um caso exemplar de conluio entre a mídia e os aparatos de repressão. Sob o título “Depoimentos reforçam suspeita da Polícia Federal sobre reitor da UFSC”, o veículo publicou “com exclusividade”, no dia 22 de dezembro, uma denúncia da Polícia Federal pela qual o órgão se esquiva de sua própria investigação. E de que forma? Acusando o reitor morto. Quem leu a reportagem de Rubens Valente, atraído pelo anúncio de novas informações incriminando o reitor, encontrou os mesmos dados requentados do processo, fundamentado em denúncias de tentativa de interdição das investigações que num país cujo Estado de Direito não tivesse sido comprometido pelo governo policialesco, ou pelo “lavajatismo”, como diz o senador Requião, jamais justificariam as medidas tomadas contra Cancellier. Confira a matéria da Folha: http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2017/12/1945326-depoimentos-reforcam-suspeita-da-policia-federal-sobre-reitor-da-ufsc.shtml.
Foi como seca família tivesse recebido a cabeça do irmão de presente de Natal. “Cada notícia dessas representa para todos nós uma segunda morte, um sofrimento indescritível”, desabafa Acioli, funcionário aposentado do Instituo Nacional de Pesquisas Espaciais de São José dos Campos (SP). ( https://jornalistaslivres.org/2017/12/matem-o-que-uma-pessoa-mais-ama-e-valoriza-e-o-que-resta-e-um-cadaver-ambulante/ ). Ao fundo, a matéria só reforça a denúncia de que o processo não tem sustentação legal, como defendem juristas renomados do país, a exemplo do senador Roberto Requião, o ex-senador Nelson Wedekin, o desembargador aposentado Lédio Rosa de Andrade, o procurador-chefe do Estado de Santa Catarina João dos Passos Martins, o criminalista Rui Spíndola e Fábio Simantob, presidente do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD).
No que tange à incriminação do reitor, “é feito de areia de praia”, como se diz na gíria da construção civil. Além disso, traz uma revelação importante contra os próprios inquisidores: dos R$ 80 milhões informados pela PF como total investigado em seu anúncio midiático da prisão do reitor e de outros seis membros da UFSC, restaram apenas suspeitas sobre “R$ 372 mil em gastos indevidos”, conforme auditoria da Capes, que apurou “casos de professores coagidos a repassar metade da bolsa para outros professores”. (A versão dos acusados é de que a bolsa era dividida pela metade por pares de professores para poder manter, mesmo com proventos reduzidos, o mesmo número de profissionais dos cursos de Ensino a Distância. Conforme noticiado na época, o programa de EaD estava sofrendo corte nos repasses da Capes e corriam risco de paralisação). A batida da Operação Ouvidos Moucos do dia 2 de outubro foi anunciada pelo Bom Dia Brasil da Rede Globo como a “prisão do reitor acusado de desviar R$ 80 milhões da UFSC”, seguida pelo comentário: “É roubalheira de tudo quanto é lado”.
O parecer do relações públicas da PF é demonstração inequívoca de que o Ministério da Justiça usou a denúncia da família contra ela mesma, no momento em que lhe sobrava apenas lutar para reaver a reputação de Cancellier, como aponta a carta do coletivo Floripa Contra o Estado de Exceção, publicada abaixo. Nos últimos dias de janeiro, em passagem por Florianópolis, ao ser indagado pela imprensa local sobre o inquérito do reitor, o ministro da Justiça Torquato Jardim evocou a referida inocência atestada pelo parecer amigo e devolveu para a família a responsabilidade de contestá-lo. “Ou se encerra o procedimento disciplinar ou mando seguir por algum motivo”. Ele omite, contudo, que no parecer o delegado já encaminha a denúncia para arquivamento, conforme documento anexado ao final desta reportagem. Siga o diálogo entre os repórteres e o ministro no trecho específico sobre a prisão do reitor:
Ano passado tivemos aqui em Santa Catarina a Operação Ouvidos Moucos que prendeu o ex-reitor Luiz Carlos Cancellier. Como o senhor avalia a ação? O senhor se aprofundou sobre ela?
Pedi à Polícia Federal depois de receber uma representação dos irmãos do ex-reitor junto com o senador Dario Berger que fosse feita a sindicância. Já recebi o resultado, a sindicância interna entende que não houve equívoco nenhuma na conduta da delegada. Enviei esse documento para a família, para que se pronuncie, não recebi resposta. Com a reabertura do Congresso semana que vem, vou enviar ao senador Dario Berger. Depois disso vou tomar as providências.
Qual sua avaliação?
Quero ouvir os outros primeiro.
Outros quem?
A família e o senador.
E o que pode ocorrer internamente?
Não sei, há várias hipóteses. Ou se encerra o procedimento disciplinar ou mando seguir por algum motivo. A questão para mim está em aberto. http://dc.clicrbs.com.br/sc/noticias/noticia/2018/01/ministro-da-justica-descarta-presidio-federal-em-itajai-e-fala-sobre-a-operacao-ouvidos-moucos-10136364.html
A forma como os aparatos de justiça e repressão do Governo Temer se inocentam de sua responsabilidade no caso Cancellier só ganha parâmetros mesmo nos momentos mais torpes da Ditadura Militar. Antes desses fatos novos, a premiação da delegada Érika Mialik Marena, responsável pela desastrosa Operação Ouvidos Moucos, já tinha sido recebida no apagar das luzes de 2017 como uma afronta. O parecer Korff teve ainda por cima o mérito de legitimar sua controvertida promoção para o cargo de superintendente da Polícia Federal do Estado do Sergipe. Para universidades, parlamentares de partidos de esquerda, de centro e até de direita, inclusive de base governista, além de entidades representativas do direito e juristas respeitados de todo país, o prêmio soou como uma bofetada na cara dos que clamavam por justiça, denunciando o flagrante ilegal da prisão do reitor. “Um deboche”, nas palavras do irmão Antônio Acioli de Olivo.
Acioli, sobre o caixão do irmão que tanto orgulho deu à família. “Cada matéria dessas é um sofrimento indescritível” Foto: Pipo Quint Agecom/UFSC
Houve quem se iludisse com a possibilidade de incriminação da delegada, mas os agentes de exceção continuaram surpreendendo. No final do ano, um inquérito criminal foi aberto pela Polícia Federal em Santa Catarina contra membros do coletivo Floripa Contra o Estado de Exceção para apurar responsabilidade na produção de uma faixa que estampa o rosto e o primeiro nome dos agentes responsáveis pela prisão e linchamento moral do reitor, incluindo o corregedor da UFSC, Rodolfo Hickel do Prado; a delegada da PF, Érika Marena; a juíza federal, Janaína Cassol; o procurador da República MPF/SC, André Bertuol, e o superintendente da Corregedoria Geral da União em SC, Orlando Vieira de Castro Júnior.
Outros dois repórteres ligados ao coletivo, um deles integrante dos Jornalistas Livres, foram arrolados pelo corregedor em um Inquérito Policial Militar aberto no BOPE da Polícia Militar de Santa Catarina. O inquérito apura acusação apresentada por Hickel contra dois policiais que teriam vazado informações do Sistema de Acesso Privativo de Agentes da Polícia sobre seus antecedentes criminais para os Jornalistas Livres. Mesmo valendo-se do direito ao sigilo de fonte, os JL afirmam com vigor que fizeram consultas a pessoas e processos públicos identificados na reportagem, sem receber qualquer informação de policiais de nenhuma das corporações, seja civil, militar ou federal. Sobre o perfil e os antecedentes criminais de Rodolfo Hickel do Prado, em cujas denúncias a delegada Érika Marena e a juíza Janaína Cassol se basearam para decretar a prisão e banimento do reitor, confira a reportagem: https://jornalistaslivres.org/2017/10/exclusivo-corregedor-que-denunciou-reitor-a-pf-ja-foi-condenado-por-calunia-e-difamacao/
Em todas essas situações de inversão da lógica da justiça, o Governo Temer só confirma que inaugurou e encorajou um indisfarçado Estado de Exceção, no qual quem deveria ser investigado ataca intimando, processando e perseguindo. Em pouco ou nada perde para os “heróis” de 64, quando os militares perseguiam e incriminavam os parentes e apoiadores de suas vítimas desaparecidas ou assassinadas.
Para Fraser frente a essa ofensiva, o propósito do Coletivo Floripa Contra o Estado de Exceção é somar forças com OAB, Congresso Nacional, Senado, Assembleia Legislativa de Santa Catarina, Câmara de Vereadores, Associação Nacional de Dirigentes de Instituições de Ensino Superior, conselhos profissionais, sindicatos, juristas e parlamentares que se indignaram com a injustiça cometida contra o professor Cancellier. Além da ação do Coletivo, o ministro da Justiça receberá uma resposta coletiva da Andifes, entidade nacional representante dos reitores de universidades e Institutos Federais de Educação, que no dia 1° de março estarão oportunamente todos reunidos no Centro Sul de Florianópolis. Os dirigentes deverão, segundo o reitor pro tempore da UFSC, o diretor do Centro de Ciências Jurídicas, Ubaldo Balthazar, entrar com uma ação coletiva por violação da autonomia das universidades e dos direitos básicos constitucionais no caso do reitor.
CRIME E IMPUNIDADE EM DOIS ATOS
Tortura psicológica, assédio moral e sofrimento insuportável levaram o reitor ao óbito, atestou médica do trabalho da UFSC em comunicação ao Ministério da Saúde
Na manhã de 14 de setembro, Cancellier foi arrancado da cama ainda de pijamas, levado com as mãos algemadas e pés acorrentados por uma operação que mobilizou 105 policiais federais de diversas partes do Brasil. Encarcerado numa penitenciária de segurança máxima em Florianópolis, onde passou um dia e uma noite, o professor de Direito Administrativo experimentou o tratamento de um criminoso comum: foi desnudado durante duas horas em público e submetido a exame anal e penial; dormiu no cimento, tremeu de frio e chorou. Ao contrário do corregedor da UFSC, que o intrigou na Corregedoria Geral da União e na PF com uma denúncia de interdição das investigações apoiadas em calúnias, o reitor não apresentava quaisquer antecedentes criminais e nunca havia sequer respondido a um processo administrativo. Depois de recorrer sem sucesso ao Ministério Público Federal para retornar à sala de aula, Cancellier soube por fontes não esclarecidas que não haveria chance de voltar ao cargo de reitor. No dia 2 de outubro, atirou-se de cabeça das escadas do piso L4 do Shopping Beira-mar Norte (correspondente ao sexto andar), com um bilhete no bolso: “Minha morte foi decretada quando fui banido da universidade”.
Conforme laudo técnico da médica do Trabalho da UFSC, Edna Maria Niero, o reitor foi levado ao suicídio por sofrimento insuportável, tortura física e psicológica provocada por assédio moral. O ex-líder estudantil, diretor do CCJ da UFSC, mestre e doutor em direito optou pelo gesto político extremo do suicídio para denunciar a opressão que sofria. Do dia para a noite o conceituado jurista tornou-se um chefe de quadrilha depois de uma prisão vexatória e espetacularizada que se desdobrou em um processo de linchamento moral jurídico e midiático.
Hickel, o algoz de Cancellier que fundamentou o pedido de prisão da delegada, continua perseguindo pessoas e abrindo processos, mesmo afastado do cargo
Se o reitor tinha ficha limpa, seu algoz, Rodolfo Hickel do Prado, contudo, apresenta uma diversificada lista de antecedentes criminais com condenações e processos por calúnia e difamação com produção de falso testemunho de ameaça à mão armada; tortura psicológica e espancamento de ex-mulheres e crime de trânsito pondo em risco a coletividade. Na denúncia ao Ministério, a família reivindica a ilegalidade da sua prisão, quando sequer era citado ou investigado na denúncia de desvios de verbas do Programa Ensino a Distância, muito anteriores a sua gestão.
O corregedor e a juíza Janaína Cassol tiraram licença de saúde depois do suicídio. Hickel tirou mais 30 dias de férias, mas mesmo afastado continuou requerendo as câmaras de vigilância da UFSC, intimidando pessoas e abrindo processos. Outros cinco professores e um técnico-administrativo continuam banidos da UFSC: Marcos Baptista Lopez Dalmau, Gilberto de Oliveira Moritz, Rogério da Silva Nunes, Eduardo Lobo e Marcio Santos (professores); Roberto Moritz da Nova (funcionário da FAPEU). No final de janeiro, o TRF-4 negou liminar impetrada pelo advogado de Eduardo Lobo para que pudesse retornar à UFSC. Todos tiveram suas vidas expostas e foram julgados e condenados pelo tribunal policialesco e midiático, no qual não há presunção de inocência nem direito à defesa. Enquanto prevalece a impunidade e nenhuma ação concreta de apuração e investigação de responsabilidades é instaurada contra os abusadores, a Polícia Federal prorrogou por mais 60 dias as investigações da Ouvidos Moucos, sem apresentar nenhuma conclusão, conforme reportagem de Jussara Soares, publicada pelo no jornal O Globo em 14 de janeiro. Confira: https://oglobo.globo.com/brasil/ouvidos-moucos-completa-4-meses-sem-conclusao-22286582
ARQUIVAMENTO DA DENÚNCIA DE ABUSO DE PODER:
Escárnio, Hipocrisia e Desfaçatez!
O Ministro da Justiça, Torquato Jardim, quer isentar de responsabilidade o Estado e seus agentes na morte do reitor Luiz Carlos Cancellier de Olivo, que hoje faz quatro meses.
O abuso de poder típico do Estado de Exceção que se abateu sobre a UFSC tem o DNA de agentes públicos da PF, da Justiça Federal, do MPF e da CGU. A posição do ministro Torquato, em entrevista à imprensa nesta semana, poderia ser classificada como parte de uma comédia policialesca, não fosse por tamanho escárnio, hipocrisia e desfaçatez com o princípio constitucional de imparcialidade da Justiça.
O ministro disse ter devolvido o processo de sindicância da PF à família e aos interessados, e divulgou conteúdos da “apuração interna” cujo parecer inocenta os acusados e orienta pelo arquivamento por falta de provas. No entanto, a investigação das denúncias de abuso de poder pelos agentes do Estado, entre eles a Delegada da PF Erika Marena, foi claramente viciada por corporativismo e parcialidade.
O ministro age ao estilo dos órgãos e agentes da Ditadura Militar, algozes cujas narrativas imputavam às vítimas a responsabilidade pelas mortes anunciadas nos processos do regime. Em ação corporativista, covarde e irresponsável, o Ministério da Justiça não apurou as responsabilidades de forma imparcial.
Trata-se de uma farsa, sem a mínima preocupação com as aparências, típica de quem se sente intocável por dispor das garantias do regime de exceção legitimado por uma mídia acrítica e servil. Ministro e PF tomaram por base relatório do delegado Luiz Carlos Korff, que também é o responsável pela comunicação daquele órgão e assessorou a delegada investigada na malfadada operação que levou à morte o professor Cancellier. Korff, portanto, fez parte do longo processo de linchamento público da UFSC (iniciado muito antes de setembro de 2017) e dos acusados pela operação Ouvidos Moucos.
Diante disso, mais uma vez, nós, do Coletivo Floripa Contra o Estado de Exceção, exigimos justiça. É inadmissível que o Ministério da Justiça ignore o conjunto de evidências contra os agentes do Estado responsáveis pela operação, denunciadas em inúmeros relatos e artigos, em eventos e sessões públicas nas universidades, na Assembleia Legislativa do Estado de Santa Catarina, no Senado Federal e na imprensa nacional e internacional. Mais de 500 cidadãos assinaram nosso Manifesto de denúncia do estado de exceção, incluindo membros das três categorias da UFSC, governadores, senadores, deputados, juristas, acadêmicos de todo o país, jornalistas, advogados, religiosos e lideranças de movimentos sociais e dos direitos humanos.
Apresentamos mais uma vez nossa solidariedade à comunidade universitária e em especial à família de Cancellier, neste momento de luta e de dor. Para dar efetividade a essa solidariedade e para exigir justiça, apelamos à UFSC (Reitoria e Conselho Universitário), ao Governador do Estado, à ALESC e a seus parlamentares, à OAB e a outras lideranças e personalidades públicas, para que promovam abertura imediata de Processo Civil Criminal de Perdas e Danos, em favor da UFSC e das vítimas, contra o Estado e seus agentes públicos, por sua responsabilização e criminalização em atos de abuso de poder, nos termos encaminhados pelo Ofício ao Reitor pro tempore da UFSC e ao Conselho Universitário, em 6 de Dezembro de 2018.
Do bugreiro degolador do início do século XX, ao matador de aluguel, sobreviventes Xokleng enfrentam os novos exterminadores do Sul racista. “Foi racismo, sim, e não só do assassino”, afirma o presidente da Terra Indígena Laklãnõ, Tucun Gakran, que se reúne hoje (8/1) à tarde com o procurador do Ministério Público Federal em Santa Catarina para pedir, em nome dos nove caciques das aldeias e de todo o povo Xokleng, abertura de inquérito criminal para apurar as circunstâncias do homicídio brutal do educador Marcondes Namblá. Para os caciques, houve negligência do delegado da Polícia Civil no cumprimento da prisão preventiva do criminoso; das testemunhas, que não tentaram impedir as agressões e do hospital, que negligenciou o seu atendimento porque era um indígena.
Professor morto a pauladas era um dos mais importantes pesquisadores e lutadores dos sobreviventes da Terra Indígena Laklãnõ
Desde que Marcondes Namblá morreu em consequência do espancamento sofrido antes dos primeiros raios de sol mancharem de vermelho-sangue o amanhecer do Ano Novo, seu pai repete um ritual dilacerante para os habitantes da Terra Indígena Laklãnõ Xokleng. Criado na reserva de José Boiteux como o único filho homem entre oito irmãs, o educador era tributário de grandes esperanças desse povo que sobreviveu ao violento extermínio no Alto Vale do Itajaí, em Santa Catarina. Todos os dias, às oito horas da noite, Ângelo Namblá, cuja idade se perdeu no não-tempo da vida indígena, canta em frente ao rio que corta a aldeia de Coqueiro, onde ele e dona Candinha criaram os nove filhos. É na correnteza do rio, e não no cemitério onde o corpo foi enterrado, que navega a alma gentil do jovem e brilhante pesquisador, que cativava o povo Xokleng com seu sorriso de poeta, músico e educador. Durante muito tempo, o velho canta bem alto na precisosa língua de seus antepassados para que toda aldeia ouça. O sentido do que ele canta e grita chorando em Laklãnõ está vedado para uma repórter não-índia. É algo terrível e sagrado sobre o qual um indígena não pode sequer falar com não-iniciados.
À frente do grupo de educadores, Marcondes Namblá, à esquerda, e Nanblá Gakram, doutor em linguística, que foi seu professor
Quem entende a raríssima língua dos sobreviventes Xokleng diz apenas: “É um canto de desespero. Só isso posso dizer”. E preciso aguardar em silêncio que Nanblá Gakran, primo do líder assassinado e maior autoridade mundial em pesquisa da língua Laklãnõ, se recomponha para voltarmos a conversar. Ele retorna alguns minutos depois, na voz ainda um tom de profunda consternação. Explica que os indígenas compreendem a morte como uma passagem natural para outra vida; que todos os rituais fúnebres têm esse sentido, mas quando perdem um ente adorado de forma tão violenta e gratuita, a morte se traduz em horror. “É algo que nós simplesmente não compreendemos”, afirma o professor Gakran, criado junto com Marcondes na aldeia Coqueiro. Quando o horror atravessa a vida da comunidade indígena, é preciso esse clamor diário para que a alma do morto encontre paz.
No dia 2 de janeiro, logo que o povo Xokleng soube da morte cerebral de Marcondes na Unidade de Terapia Intensiva do Hospital Marieta Konder Bornhausen, em Itajaí, um grito coletivo ecoou pelas nove aldeias que compõem a reserva de José Boiteux. “Eu vim de Florianópolis na madrugada do dia 3 para o enterro e, na entrada da Terra Indígena, já se ouvia os choros e gritos de desespero; a comunidade em peso sofrendo à espera do corpo do nosso guerreiro chegar”, conta Isabel Prestes, 28 anos, da etinia Munduruku, nora de Nanblá Gakran e esposa de Carl Gakran, primo e amigo de infância de Marcondes. Pouco depois, o corpo chegou e a dor só piorou, ela conta. “Meu marido, as irmãs, os filhos, os parentes, amigos, todos ficaram muito abalados. E aqui, quando uma pessoa adoece, todos adoecem junto. Nós somos uma grande família de um povo sobrevivente ao massacre cometido pelo Estado”.
Crianças da aldeia Barragem, onde Namblá vivia com a esposa e os cinco filhos
Há uma informação antropológica conhecida por todas as nações indígenas, mas ignorada pela absoluta maioria da sociedade branca: o povo da reserva da Barragem Norte, que só existe no Brasul, é o único sobrevivente da etnia Xokleng no Planeta! Foram completamente exterminados nos estados do Paraná, Porto Alegre e Palmas na segunda metade do século XIX e primeira metade do XX. Os 400 indivíduos que se refugiaram no Alto Vale do Itajaí, em Santa Catarina, dando origem ao Território Indígena, resistiram ao violento extermínio patrocinado pelos governos e companhias de colonização, que contratavam bugreiros para caçá-los e degolá-los. Vivas ou mortas, as crianças eram trazidas como troféus pelos caçadores de índios e quando sobreviviam, tornavam-se mão-de-obra escrava. Com língua, cultura e território diferenciados de outros povos indígenas, como mostrou o antropólogo Sílvio Coelho dos Santos, falecido em 2008, os remanescentes da etnia deveriam só por isso ser protegidos e cercados de cuidados pelo governo de Santa Catarina como um povo raro e único no mundo. Em Os índios Xokleng, memória visual (1997), Silvio Coelho conta que a colonização pretendia “ocupar o vazio demográfico” do Vale do Itajaí, numa clara demonstração de que a sociedade branca não reconhece o índio como gente.
As vítimas dos bugreiros. Em: Os índios Xokleng, memória visual (1997), de Sílvio Coelho dos Santos
GRITO DE GUERRA AO RACISMO: INDÍGENAS PREPARAM HOMENAGEM E PROTESTO
As aulas do Curso de Licenciatura Indígena Intercultural da UFSC, por onde passam as principais lideranças das etnias do Sul da Mata Atlântica do país, recomeçam na quarta-feira, 10/1, pela manhã. É o curso onde Marcondes Namblá se formou, em março de 2015, como aluno de destaque da primeira turma, depois de já ter concluído licenciatura indígena pela Secretaria de Estado da Educação. Já começam a retornar das aldeias para Florianópolis os 40 educadores. Eles ingressaram no curso com a missão de tomar o conhecimento não para si, mas de multiplicá-lo nas escolas indígenas para fortalecer culturalmente o seu povo e salvá-lo do extermínio,
Na quarta-feira dia 10, contudo, os professores-estudantes estarão vestidos de guerreiros e as aulas serão transferidas para o campo de batalha: o local do crime, na avenida Eugênio Krause, no município de Penha, onde o juiz da terra indígena Laklãnõ Xokleng foi morto a pauladas na madrugada do Réveillon. A partir das 14 horas, farão um protesto contra o assassinato brutal do educador e os outros episódios recentes de violência e agressão aos povos indígenas de Santa Catarina, reunindo uma frente de luta com as três etnias Guarani, Kaingangue e Xokleng. Os líderes espirituais farão uma cerimônia ritualística fúnebre para que o alma de Namblá retorne a sua aldeia e seu espírito siga em paz, explica o professor Gakrán. “Esse lugar agora é sagrado porque ali foi derramado sangue do povo Xokleng”, explica o professor Gakran. Marcondes aproveitava a temporada de praia em Penha para vender picolé com uma turma de dez amigos indígenas. Aprovado em concurso público recente, ele ainda atuava como professor Admitido em Caráter Temporário da rede pública estadual, que não remunera o período de férias. Segundo a esposa Cleusa, Namblá, pretendia ganhar um extra para comemorar o aniversário do filho.
A partir de hoje, os professores pedem apoio às entidades, empresas e pessoas solidárias ao povo indígena para levar o maior número possível de habitantes da reserva ao município de Penha. Ganharam um ônibus da universidade, que é suficiente apenas para os integrantes do curso de Licenciatura, mas precisam de ajuda de transporte, principalmente, para trazer os integrantes da aldeia.
Convite para a cerimônia de homenagem fúnebre no Templo Ecumênico da UFSC. No dia 10, às 14 horas, ocorrerá o protesto em Penha
Um dia antes do protesto, na terça-feira, dia 9, às 9 horas, os professores farão uma homenagem ao pesquisador assassinado no Templo Ecumênico da UFSC, que é aberto a todas as crenças e culturas religiosas. Diz o convite: “Condoídos pela tristeza da perda de nosso ex-aluno Marcondes Nanblá e indignados pelas circunstâncias cruéis e desumanas do seu assassinato, convidamos para uma cerimônia em sua homenagem, a ser realizada na terça-feira, dia 9 de janeiro de 2018, às 9 horas, no Templo Ecumênico da UFSC. Será uma ocasião para celebrar a memória deste jovem líder Laklãnõ-Xokleng que vinha trabalhando com afinco para melhorar as condições de vida de seu povo, assim como vinha despontando como um brilhante intelectual indígena. A cerimônia fúnebre será celebrada pelo cacique presidente da Terra Indígena, Tucun Gakran e por seu sobrinho Carl Gakran, estudante do Curso de Medicina da UFSC e presidente da Associação de Estudantes Indígenas da Universidade (AEIUFSC).
Com cacique da aldeia Guarani M’Biguaçu, Karaí Moreira, celebrando aliança pela espiritualidade indígena
Ironicamente, em novembro, Marcondes esteve por três dias na casa do primo em Florianópolis, tentando conscientizá-lo de que, mesmo estudando fora, não deveria abandonar o culto e a propagação das práticas espirituais do povo Xokleng entre as novas gerações. O juiz cobrou-lhe o cumprimento da aliança selada pelos dois na aldeia em novembro de 2013, quando numa cerimônia ritualística marcante para a comunidade, os dois jovens líderes se comprometeram a manter viva e presente nas aldeias a espiritualidade Xokleng. “Não imaginava que dois meses depois eu teria que celebrar o ritual da morte do meu amigo-irmão”, lamenta Carl, 28 anos.
Fundação da AEIUFSC, de Estudantes Indígenas em dezembro do ano passado, com Carl de branco, ao lado do reitor pró-tempore, Ubaldo Balthazar, de Cocar
CACIQUES PEDEM PROCESSO DE INVESTIGAÇÃO CRIMINAL NA PROCURADORIA DA REPÚBLICA
Ao modo discreto e polido que é peculiar dos indígenas, os guerreiros dão todos os sinais de que não engoliram a narrativa divulgada pelas autoridades policiais e pela grande mídia para o assassinato de seu líder e não pretendem deixar impune a barbárie que sofreram. Em silêncio, dois dias após enterrarem o educador, os caciques se reuniram com o presidente da T.I. e com o professor Gakran para firmar um documento em que requerem a abertura de um processo de investigação criminal ao Ministério Público Federal, encaminhado à Procuradoria da República em Santa Catarina. Pela gravidade das denúncias, a resposta veio no mesmo dia 5 e nesta segunda-feira, às 14 horas, o cacique presidente Tucun Grakan e o irmão Nanblá, que é uma autoridade científica do povo Xokleng já terão uma audiência com o superintendente do MPF, André Stefani Bertuol. “Nós queremos que a Polícia Federal investigue as circunstâncias do crime com profundidade porque a Polícia Civil não irá além do que já fez”, afirma o presidente.
Os caciques Xokleng exigem que o órgão investigue por que a ordem de prisão preventiva contra o acusado não foi cumprida assim que expedida, no dia 3 de janeiro, dando tempo para que o criminoso fugisse. E ainda indagam por que Gilmar César de Lima estava solto, se havia um mandado de prisão anterior por tentativa de homicídio envolvendo tráfico de drogas, além de outras denúncias de crimes de furto e espancamento de mulher contra ele não apuradas. Consideram inexplicável o fato de ele não ter sido capturado ainda, uma vez que o seu local de moradia foi facilmente localizado a duas quadras do crime por uma testemunha. O cacique presidente considera que o delegado da Polícia Civil, Glauco Teixeira Barroco, foi racista ao declarar para os jornais locais que a polícia havia passado em ronda pelo local onde Marcondes agonizava, mas não o socorreu porque parecia um bêbado. Com isso, ele ficou jogado na calçada, sem nenhum tipo de atendimento, das 5:18 da manhã até as 8 horas. Por fim, as lideranças apontam ainda a necessidade de averiguar a ocorrência de omissão cúmplice por parte das testemunhas porque ficou evidente nos depoimentos que elas assistiram ao massacre do indígena sem fazer nada para deter o assassino, que deu de costas e voltou a espancar o professor ao perceber que ele ainda vivia. Baseados nessas circunstâncias não explicadas, consideram racismo também o fato de o delegado desautorizar, sem a devida fundamentação, que não se trata de crime racista.
Isso não é tudo: a comunidade Xokleng em peso alimenta a forte suspeita de que o jovem identificado como réu não era apenas um psicopata ou um delinquente que agiu sozinho. “Ele é um pistoleiro que tem tudo para ser autor de um crime encomendado”, acredita o professor Gakran. Pelo envolvimento do sujeito identificado como assassino com drogas, Tucun acredita que o crime está relacionado ao fato de que ele havia proposto um pedido de investigação do tráfico de entorpecentes nas aldeias por homens brancos que se infiltram na comunidade se valendo da inocência e hospitalidade de alguns. Segundo ele, Gilmar de Lima foi visto circulando na aldeia em maio do ano passado. “Tudo leva a crer que seja uma retaliação contra os líderes pela iniciativa de erradicar essa invasão na Terra Indígena”, afirma. Essas suspeitas comentadas com reserva nas aldeias, impactam as famílias pelo medo e pela consternação.
Quanto mais a Polícia Civil de Piçarras afirma que o crime não pode ser relacionado à questão étnica, mais as lideranças se recusam a tratar o assassinato como um crime comum, típico de páginas policiais. descontextualizado dos massacres históricos e desconectado dos outros crimes hediondos ocorridos contra indígenas em Santa Catarina no espaço de pouco mais de um ano. “Evidente que não se trata de um crime comum”, afirma Gakran, que reivindica a investigação da relação do assassinato também com conflitos de disputa territorial e ódio contra as lideranças educadoras, “entre outras questões que preferimos guardar por enquanto”.
A indígena Xokleng Ana Patté, 22 anos, estudante do Curso de licenciatura indígena da UFSC, afirma que a questão do racismo nunca pode ser descartada de antemão num caso de violência de um branco contra um índio. E a líder Guarani Kerexú Yxapyry, que sofreu incontáveis ameaças de morte e violência racista contra ela e membros de sua família, afirma que as cenas do vídeo do espancamento com requintes de crueldade flagrado pelas câmaras de vigilância eletrônica não deixam nenhuma dúvida de que o assassino é movido por ódio racista.
NEGLIGÊNCIA HOSPITALAR TERIA SIDO FATAL PARA O INDÍGENA, DENUNCIA FAMÍLIA
Às questões de contexto social e histórico somam-se outros acontecimentos indicando que o porrete nas mãos do assassino foi segurado por outras mãos invisíveis igualmente encorajadas pelo racismo. O professor Nanblá e a nora Isabel denunciam circunstâncias gravíssimas em que o hospital Marieta Konder Bornhausen teria se negado a fazer a internação do indígena. Isso porque seus documentos havia ficado no Hospital de Penha, para onde foi levado primeiramente pelo Corpo de Bombeiros e transferido. Enquanto os documentos não chegaram, o hospital Marieta Konder Bornhausen, para o qual foi transferido após confirmado Traumatismo Craniano Encefálico e várias fraturas cranianas, teria tratado o pesquisador como um indigente, recebendo-o na UTI, mas sem tomar os procedimentos urgentes, apesar dos apelos da família.
Isabel avisou os familiares na Terra Indígena que, acompanhados pelo cacique regional de Palmeirinhas, a irmã mais velha, Nésia Namblá, e o marido Zeca Ndilli, saíram de casa as 8h30min do dia primeiro, percorreram 220 quilômetros da Terra Indígena, entrando em Penha para pegar os papeis até chegar ao hospital em Itajaí por volta de duas horas, para que só então ele finalmente fosse operado. Segundo depoimento do professor Nanblá e de Isabel, a espera pela cirurgia por muitas horas desde que Marcondes foi recolhido pelo Corpo de Bombeiros, às 5h30min do dia 1°, teriam sido fatais para o jovem professor, que faleceu no dia seguinte. “Ele deveria ter sido operado de imediato, assim que entrou no hospital, mas houve descaso e falta de ética do hospital que o atendeu mas não fez a cirurgia que ele precisava”, afirma Nanblá, que vai relatar o caso hoje ao Ministério Público Federal. “Além da brutalidade que passou sendo espancado brutalmente como todo o país viu, ele ainda teve que passar por essa negligência da saúde”, desabafa Isabel.
Conforme contam, assim que foram avisados pelo cacique da aldeia Palmeirinhas que Marcondes havia sido diagnosticado com traumatismo craniano, o professor Nanblá pediu a Isabel, estudante de Fonoaudiologia na UFSC e com conhecimento na área de saúde, para ligar de Florianópolis aos dois hospitais de Penha e Itajaí se informando da situação, pois a família estava sem sinal de celular. Às 8 horas, ela falou por telefone com a enfermeira que atendeu Marcondes no Hospital de Penha e o transferiu para o hospital de Itajaí por falta de estrutura da unidade para atender à gravidade do caso. A enfermeira alertou para o fato de que na transferência do paciente, os documentos e pertences haviam ficado em Penha. Em seguida, ela se comunicou com a recepção do Hospital de Itajaí avisando que havia dado entrada um paciente indígena, resguardado por normas específicas de atendimento da Secretaria Especial de Saúde Indígena, que tem convênio com o SUS. “Sabendo da gravidade do estado dele, solicitei que a internação e os procedimentos cirúrgicos necessários fossem realizados de imediato e garanti que os documentos já estavam sendo levados pela família, mas a administração informou que nada seria feito sem eles”, denuncia. “A própria enfermeira do Pronto Atendimento do Hospital de Penha já havia alertado que nada seria feito com o paciente no Hospital de Itajaí sem os documentos”, afirma ainda Isabel, que publicou um relato a respeito na sua página do Facebook. O cacique geral, Tucum Gakran, reforça a denúncia: “O hospital se negou a atender porque já sabia que se tratava de um indígena e impôs essa condição absurda e desumana”.
Grande defensor da cultura Xokleng, o guerreiro-sorriso era adorado pelo seu povo
A acusação de negligência não é confirmada pela irmã Nésia Namblá, que é técnica de enfermagem, nem pelo marido José Ndilli. Os dois contam que ao chegar ao hospital em Itajaí, encontraram Marcondes já entubado, medicado e internado na prática, embora não oficialmente. Conforme ela, o médico chamado Luciano repassou todos os procedimentos realizados aos familiares e informou que, embora não houvesse vaga na UTI pelo SUS, o paciente ficou numa vaga particular de internação. “Nós até agradecemos pelo atendimento”, dizem eles. “Só não tinha sido internado no papel ainda, mas já estava com acesso venal, pronto para a operação, apenas aguardando a nossa presença para que pudéssemos acompanhar”, confia Nésia.
Com esse depoimento, José e Nésia confirmam, contudo, que o paciente só foi encaminhado para a cirurgia no abdômen e de retirada do baço depois das 14 horas, com a chegada da família ao Marieta Bornhausen. De fato, a cirurgia, de acordo com o prontuário, só ocorreu às 16 horas. “Não houve negligência: o problema é que ele estava muito machucado”, acredita José, segundo quem o cunhado apresentava marcas de pauladas no abdômen, costas, cabeça, nuca e um grande corte nas têmporas, próximo à orelha, mas não viram marcas de pneu indicando que ele teria sido atropelado, como chegou a ser especulado nos jornais e redes sociais. Nós tentamos conversar com a direção do hospital durante todo o final de semana e hoje pela manhã cedo, mas a recepção informou que era preciso aguardar a chegada de um dos diretores.
Apesar da controvérsia, a família está considerando entrar com processo contra o hospital por negligenciar o atendimento à pessoa indígena, que segue recomendações e normais específicas do Ministério da Saúde regidas pela Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai).
Por todas essas circunstâncias que contradizem a narrativa da Delegacia de Polícia, é possível que a Polícia Civil do Balneário de Piçarras prenda o assassino em poucas horas, como está prometendo há três dias o delegado Douglas Teixeira Barroco. É possível e até provável que isso aconteça. (A Rádio Cidade, de Itajaí, inclusive já anunciou essa prisão de modo antecipado, informando no dia 4/1, até a hora em que Gilmar teria sido detido, às 22 horas do dia anterior). Com o pescoço, o peito e o braço coberto por tatuagens exuberantes, o homem do porrete de madeira que esmigalhou o crânio de um dos mais brilhantes cérebros da nação indígena Laklãnõ Xokleng foi facilmente identificado por testemunhas do crime e por filmagens de câmaras de monitoramento desde o dia 2 de janeiro e imediatamente após o falecimento de sua vítima.
Com dois mandados de prisão em aberto, uma tentativa de homicídio e um assassinato, fotografado pela polícia de todos os ângulos, o criminoso só escapou até agora por algum “milagre” do recesso do Ano Novo. Com o assassino do homem que era o registro vivo da cultura e da língua Laklãnõ metido atrás das grades, a justiça seria restabelecida e as três etnias indígenas de Santa Catarina se apaziguariam, assim como sossegaria a indignação das entidades de apoio aos povos originários de todo o Brasil com essa nova barbárie contra os indígenas de Santa Catarina. Mas os movimentos tribais mostram que muito pouco ou nada vai mudar com a prisão do empacotador nascido em Blumenau, como consta em sua ficha criminal. Para as lideranças indígenas são muitas as outras mãos que seguraram o porrete assassino erguido contra o povo Xokleng por mais um dos jovens desajustados e violentos, desses “jeruás” malvados que a degeneração da sociedade branca produziu desde os tempos dos bugreiros.
Entre os homens brancos, a prisão do criminoso é a catarse que o coliseu precisa para aplacar sua sede de justiça imediata. Mas no pensamento indígena não se passa desse modo. “Este rapaz deve ser preso, nem sei por que ainda continua foragido, mas isso não vai mudar nada”, afirma Nanblá Gakran, primo-irmão de Marcondes Namblá, de quem era parceiro num projeto messiânico e grandioso de salvar a língua Laklãnõ Xokleng do desaparecimento. “Vão prendê-lo e outros crimes bárbaros continuarão acontecendo contra os indígenas”. Com muita gravidade na voz e na expressão, professor Gakran assume o que grande parte da comunidade indígena acredita, mas nem todos têm a coragem de manifestar além das redes sociais: a ideia de que Gilmar César de Lima é um pau mandado. “Um pistoleiro, com homicídios anteriores, que foi provavelmente pago para fazer o que fez. Nós queremos é chegar ao que está por trás desses crimes”, afirma veemente.
A comunidade indígena recusa com firmeza a hipótese sustentada pelo delegado de que se trata de um crime comum, cometido por “motivo fútil”, sem “relação com racismo ou etnia”, como ele afirmou aos jornais. Esse ponto de vista é compartilhado pela ex-cacique Guarani da T.I. Morro dos Cavalos, Kerexú Yxapiry, por Laura Parintintins, que estuda antropologia na UFSC e Pietra Dolamita, da etnia Kauwá Apurinã, que vive no Rio Grande do Sul. Nas redes sociais, parentes ironizam, com a tradicional elegância, o motivo que Gilmar teria alegado a uma testemunha para espancar o pesquisador, de que Marcondes teria mexido com o seu cachorro Rottweiler. Mostram que a justificativa na qual o delegado Douglas Teixeira Barroco norteia seu trabalho, segundo ele mesmo, é desmentida pelas próprias imagens das câmaras de vigilância, nas quais Namblá não esboça qualquer reação contra o agressor ou qualquer movimento direcionado ao cachorro.
O assassinato do Xokleng Marcondes Namblá foi o terceiro de caráter hediondo ocorrido no berço da colonização europeia no prazo de um ano e contra indivíduos das três etnias: além dele, o bebê Vitor Kaingangue foi degolado em dezembro de 2016 por outro psicopata, movido por ódio contra indígenas enquanto era amamentado pela mãe na rodoviária de Imbituba, depois de fazer um carinho na cabeça da criança. E no Dia dos Finados, em novembro passado, Ivete Souza, mãe da líder Guarani Kerexú, teve a mão decepada a golpes de facão na aldeia Itaty do Morro dos Cavalos. Como dia Dolamita, “Nós acreditamos que quando ocorre o assassinato de um negro, uma mulher, um homossexual, um indígena, nunca é apenas um indivíduo que suja suas mãos de sangue. São sempre muitas mãos da sociedade racista que puxam o gatilho ou baixam o porrete”
Vídeo publicado em homenagem a por amigos de infância na aldeia
Era uma roda de conversa em junho, dia 25. Discutia-se o “sistema penitenciário e população LGBT”, na Casa 1, centro de cultura e acolhimento de LGBTs. O evento foi parte do ato “30 Dias por Rafael Braga”, mês dedicado à denúncia da criminalização da juventude negra –que representa 60% das pessoas em privação de liberdade nos cárceres brasileiros.
Rafael, um negro em situação de rua, foi o único manifestante da jornada de julho de 2013 a ser preso quando portava uma garrafa de pinho sol. Um mês depois da sua liberdade, em janeiro de 2016, foi preso novamente e condenado a mais de 11 anos de cadeia por tráfico de drogas. As únicas testemunhas do suposto crime foram os policiais que o prenderam. Não por acaso o debate sobre segurança pública acontecia na na Casa 1, cujos acolhidos em geral estão em situação de rua, muitos egressos do sistema prisional.
A roda de conversa levantou uma discussão urgente: a violência contra travestis e transexuais no ambiente carcerário. Na mesa estavam o antropólogo Marcio Zamboni, que pesquisa sobre a diversidade sexual e gênero no sistema penitenciário, a representante do grupo mulher e diversidade da Pastoral Carcerária Anna Carolina Martins, a advogada Carolina Gerassi, criminalista atuante na defesa de pessoas trans, o ator e Jornalista Livre Leo Moreira Sá, além da maquiadora Veronica Bolina.
Veronica Bolina na roda de conversa na Casa 1 durante evento que fez parte do ato “30 dias por Rafael Braga”: a pessoa negra e pobre é alvo primário da violência e é importante que a população LGBT se aproxime desse debate.
Veronica é personagem de caso emblemático. Mulher transexual*, negra, depois de ser presa por agredir uma vizinha sofreu violência policial nas dependências de uma delegacia no centro de São Paulo em 2005. Ela foi colocada em celas com homens cisgêneros quando já existe legislação garantindo um espaço adequado pra pessoas trans. Depois de ser violentamente espancada, Veronica reagiu e mordeu a orelha de um agente. Após a agressões, os policiais divulgaram na internet fotos mostrando seu corpo semi nu e o seu rosto deformado pelo espancamento. Veronica, depois de dois anos presa, foi absolvida das agressões cometidas contra sua vizinha, foi absolvida das agressões cometidas contra sua vizinha, por ter sido considerada inimputável à data dos fatos. Atualmente, passa por acompanhamento psicológico.
A repercussão do caso na grande mídia depois que as imagens foram divulgadas nas redes sociais e irradiadas pelos ativistas LGBTs deu visibilidade ao caso e garantiu a sua segurança e o tratamento condizente com sua identidade de gênero. No entanto, nenhum dos policiais agressores foram punidos porque a corregedoria da Polícia Militar não deu andamento à denúncia de tortura.
O Ministério Público ainda está apurando o caso e as investigações continuam. A advogada de Veronica, Carolina Gerassi, está recolhendo provas para que esses policiais sejam punidos e afastados da corporação. Também luta para defender sua cliente da acusação de lesão grave ao carcereiro que, em seu entender, agiu em legítima defesa: “É uma total violação de direitos pegar uma pessoa que está visivelmente transtornada em surto e encarcerar em vez de levar pro hospital e dar o tratamento humanitário”. Veronica ficou 48hs em 2 delegacias onde foi espancada e torturada. De tanto apanhar, a prótese de silicone está deslocada. “Isso demonstra que a lesão causada no carcereiro foi de legítima defesa”, completa a advogada.
A advogada lembra ainda que a resolução 11 da Secretaria de Estado da Administração Penitenciária (SAP) , de 30/01/2014, teria como objetivo criar dispositivos de defesa à travestis, mulheres transexuais e homens trans dentro do sistema prisional Paulista. “Mas ela já nasceu transfóbica”, diz a especialista. Carolina cita o exemplo do artigo 3º da resolução, no qual existe imposição de procedimento cirúrgico de transgenitalização como requisito para inclusão da pessoa em “unidades prisionais do sexo correspondente”. Isso, por si, exclui a maior parte das pessoas trans que ou simplesmente não querem fazer as cirurgias ou por conta da fila de espera do SUS (Sistema Único de Saúde).
Outro artigo, o 6º, impõe que os procedimentos de ingresso na unidade prisional de visitantes transexuais e travestis devem ser “realizados por agente de segurança penitenciária conforme o sexo biológico”, excetuando-se esta regra apenas em caso de cirurgia de transgenitalização. Isso significa que travestis e mulheres transexuais não operadas terão que passar pela revista com agentes masculinos e homens trans, com agentes femininos. E há lacunas em toda a resolução SAP 11, que flexibiliza cada unidade prisional a adotar ou não os dispositivos. Ou seja, no artigo 2º, diz claramente que “as unidades prisionais podem implantar, após análise de viabilidade, cela ou ala específica para população de travestis e transexuais de modo a garantir sua dignidade, individualidade e adequado alojamento”.
Homens trans são muito bem aceitos no sistema prisional feminino e não há, até o momento, nenhum relato de maus tratos. Mas são muitos os casos relatados de violência sexual contra pessoas trans em presídios masculinos. Um local separado do convívio com homens cisgêneros para a população de travestis e mulheres transexuais é fundamental para preservar sua integridade psicológica e física. Vale lembrar, ainda, que a polícia leva travestis e mulheres transexuais diretamente para o seguro onde são usadas como escravas sexuais e obrigadas a fazerem os trabalhos que são considerados “femininos” como limpar a cela e lavar roupa.
Presente no evento, a ativista independente Neon Cunha, fez uma perspectiva histórica da violência contra travestis e transexuais no Brasil. Neon foi frequentadora da “boca do lixo” – região do centro de São Paulo no bairro da Luz, nas décadas de 80 e 90, e contou que a violência contra pessoas trans vem desde o regime militar. Ela presenciou e foi muitas vezes vítima de violência policial. Foi presa nos “arrastões” do delegado Ricchet (1982) e na “operação tarântula” (1987) que tinham um objetivo higienista muito parecido com a forma como os dependentes da cracolândia foram recentemente tratados.
Neon lembrou que os policiais paravam os camburões nos guetos sociais LGBTs e todas as pessoas que estavam ali iam presas e libertadas depois de fichadas. As travestis e mulheres transexuais recebiam um tratamento mais cruel e eram frequentemente extorquidas nas delegacias. Elas costumavam se automutilarem com a lâminas de barbear que escondiam na gengiva: “você quebra a lâmina no meio e encaixa na gengiva com a parte cortante pra baixo… não machuca”, lembrou Neon. Os policiais não pegavam nas travestis machucadas com medo de contrair o vírus da AIDS.
Todo esse histórico de violência contra a população trans reflete a desumanização e consequente criminalização de travestis, mulheres transexuais e homens trans no Brasil, o país campeão de crimes por transfobia no mundo. Até o momento a RedeTrans contabilizou 90 assassinatos e 38 tentativas de homicídio em 2017 e em 2016 foram 144 mortes por transfobia. A própria população não se comove com a crueldade com que travestis e transexuais são assassinadas e assassinados diariamente.
A falta de acesso à uma moradia digna, à educação e ao mercado de trabalho formal empurra essa população para as margens sociais onde estão expostas a todo tipo de violência inclusive à violência policial. Se não são assassinadas e assassinados ficam expostas ao encarceramento como forma de higienizar uma sociedade construída sobre uma cultura misógina, racista e transfóbica.
“Quando a gente passa a analisar as engrenagens do sistema prisional brasileiro, fica claro que opressões de raça e classe são a base de tudo, e é justamente por isso que a pessoa negra e pobre é alvo primário da violência gerada através desse processo. Então, é importante que a população LGBT se aproxime desse debate, porque até mesmo entre nós, a exemplo de Veronica Bolina e Luana Barbosa (mulher cisgênera lésbica que morreu após ser espancada por policiais em Ribeirão Preto, no interior de São Paulo), é a pessoa LGBT negra quem esta mais vulnerável”, disse em discurso da abertura do evento Henrique Santana um dos organizadores da campanha “30 dias por Rafael Braga”. E como concluiu Neon: “esse país não chora por travestis e mulheres transexuais e em especial por negras e pobres”.
*Embora tenha sido amplamente divulgado pela mídia que Veronica é uma travesti, ela na verdade se autodefine como mulher transexual. Ainda que exista uma luta política preocupada em desconstruir o estigma negativo que a palavra travesti carrega, é preciso também desconstruir o estereótipo de que mulher transexual é aquela que é branca, feminina, teve acesso à informação e fez ou quer fazer cirurgia de transgenitalização.