A economia da cultura fomentada por artistas e produtores afrobrasileiros fortalece o mercado de trabalho gerando renda e investimentos em várias áreas; turismo, entretenimento, comunicação, gastronomia, publicidade, entre outros. O Brasil é o segundo país em população negra do mundo com 115 milhões de pessoas de ascendência africana. É fundamental a implementação de políticas públicas que garantam a transparência e democratização desses recursos oriundos da tributação de todo povo brasileiro. Embora a população negra brasileira produza muita cultura que coloca o país como referência internacional em vários segmentos artísticos; a contrapartida de investimento público é pífia.
As instituições públicas da área cultural são representadas majoritariamente por pessoas brancas; secretarias, conselhos, comitê gestores, etc. Essa disparidade racial é exploratória, a maioria dos artistas e produtores que são contemplados com recursos públicos em projetos ou editais também são brancos. Essa campanha exige a responsabilidade dos poderes; executivo, legislativo e judiciário em garantirem a distribuição democrática desses recursos no que tange os Direitos Constitucionais, Estatuto da Igualdade Racial e Leis afins.
Todos os segmentos da população negra que expressam atividades culturais devem ser informados, catalogados e contemplados com editais específicos e auxilio emergencial. A cultura negra é exercida por profissionais na música, cinema, artes cênicas, dança, carnaval; bem como nas comunidades tradicionais quilombolas e povo de terreiros, entre outras manifestações culturais de ancestralidade africana. A Lei Aldir Blanc é um auxilio emergencial durante a pandemia da Covid-19 que deflagrou a mortalidade majoritária de pessoas negras. Vamos mobilizar o Brasil e exigir do poder público o que é nosso!
por Comitê Ação Permanente pela Cultura e Movimento Negro Unificado
Porque os corpos negros só se tornam relevantes quando alguma tragédia acontece? A imagem consegue por si só contar inúmeras histórias, que nos ensinam e nos forjam dentro de uma estrutura social. Pensar o modo que temos vivido se dá em uma busca constante por conteúdos visuais, somados a uma defasagem educacional gigante e proposital em nosso país. Desde o fim de maio, circulam por todo o mundo imagens do assassinato de George Floyd, causando uma grande onda de denúncias de violência policial e ações de promoção de causas ligadas ao assunto. A questão que se levanta com tal movimento é o que de fato importa: as vidas ou as mortes negras?
Durante os meses de junho e julho, vários veículos de mídia expandiram os debates sobre as questões raciais em seus editoriais, capas e artigos, na busca de suprir violências de mais de 400 anos de extermínio. Fato que tem sua importância no contexto histórico, porém se dá mais uma vez após momentos de violência, repetindo uma estrutura de banalização do mal, pois os casos seguintes se tornaram apenas virais na internet, como na cidade de São Paulo, o caso da comerciante de 51 anos que teve seu pescoço pisoteado pelo soldado da Polícia Militar João Paulo Servato, durante uma abordagem.
Sabemos que uma das bases da nossa educação é a imagem. Partindo disso, essa construção imagética da violência produz narrativas que por muitas vezes reduzem as ações do povo preto às violências sofridas, enquanto processo de documentação. A pesquisadora norte americana bell hooks, em seu livro “Olhares Negros, Raça e Representação”, faz uma síntese de como essas imagens reforçam a violência, pois não criam outras possibilidades concretas para esse povo e o condicionam à violência, fato que a repercussão da imagem no Brasil, causa um efeito reverso, reproduzindo as ações praticadas. Pensar que a imagem de um policial sufocando um homem negro nos EUA fora reproduzida quase que integralmente por um outro policial no Brasil, nos deixa com a reflexão de que isso pode ser uma demonstração de identidade com a violência praticada contra corpos negros.
Foto: Matheus Alves / Jornalistas Livres
Compreender a importância da valorização das vidas negras se faz necessário não apenas quando uma delas é perdida ou colocada em situação de vulnerabilidade. É algo que precisa ser construído cotidianamente através da promoção da cultura e da diversidade do povo, da inserção destes em espaços de criação de narrativas e decisão política e editorial. A construção da documentação do povo preto precisa considerar os mais diversos pontos de vista, inclusive sua própria história, como nos provoca a filósofa Sueli Carneiro sobre essa urgente tarefa de manter o pensamento negro vivo.
Foto: Matheus Alves / Jornalistas Livres
Há de lembrar que as imagens desde o período colonial têm um papel de manutenção da supremacia branca no Brasil, que apesar de sempre ter existido, agora demonstra sua faceta de forma mais explícita através de ações de extermínio. Ao olharmos toda a história brasileira nos museus e galerias, as únicas formas de representação negra ainda reproduzem essas violências estruturais. Se fazem necessárias alternativas que ultrapassem este lugar de denúncia, mas que construa também narrativas de futuro para as pessoas pretas, vide o trabalho e esforço que tem sido levantado pelos movimentos negros, como o MNU e o Ilê Aiyê, nos anos 70, com a apropriação e ressignificação de termos e figuras para a promoção da autoestima negra nos mais diversos segmentos da sociedade, como na arte e na política.
Mortes negras: quantas mais?
Façamos memória das potências negras que já nos deixaram, e que seguem construindo narrativas de transformação, como a própria vereadora Marielle Franco nos alertou pouco antes de ser assassinada: “Quantos mais têm que morrer pra essa guerra acabar?”. Esta frase não fala apenas sobre contar corpos, mas sobre a construção de um projeto de manutenção das vidas negras, onde a necropolítica que a supremacia branca nos determina não seja condicionante da forma que vivemos.
Foto: Matheus Alves / Jornalistas Livres
É necessário um processo de ruptura com a normalização dessas mortes, que não partam apenas do lugar momentâneo, mas da construção efetiva de processos de reestruturação social, que sejam interseccionais, como tem sido a Lei Federal de nº 10.639/2003 para a educação brasileira, em todos outros espaços de poder, uma derrubada das estruturas coloniais que ainda se mantém de pé.
A falácia da democracia racial é grande responsável por promover este sentimento de cooperação e exclui a necessidade de entender a importância dos olhares pretos estamparem de forma positiva os espaços de mídia e os imaginários da sociedade. Por isso, é essencial que haja investimento e reconhecimento, para que sejam efetivados os esforços promovidos por artistas, ativistas e tantas outras figuras negras. Onde possam ocupar espaços na sociedade durante suas vidas. Aqui podemos citar trabalhos como do jovem fotógrafo alagoano Marcelino Melo “Nenê”, 25, que tem documentado de outra forma territórios marcados pela violência na região do Campo Limpo, ou mesmo o do antropólogo Hélio Menezes, 34, através de suas curadorias em espaços das artes, buscando ressignificar as identidades negras em exposições de obras produzidas por artistas negros. Ou, como os dois jovens negros que assinam este artigo – que facilmente poderiam ser manchetes sobre mais um extermínio do estado.
Marcelo Rocha, 22, é fotógrafo, ativista em educação, negritude e mudanças climáticas, graduando em Ciências Sociais, foi curador das mostras “Humano Cidade: Olhares além da medida” e “QUEBRADA: São Paulo, na visão dos cria”. Cria da cidade de Mauá, São Paulo.
Matheus Alves, 22, é fotojornalista freelance baseado em Brasília (DF). Tem seu trabalho dedicado a documentar Movimentos Populares de luta pela terra e direito à cidade. Premiado pelo Concurso Fotográfico “Combater os Retrocessos: Existir e Resistir à Retirada de Direitos”, promovido pelo Fundo Brasil de Direitos Humanos em 2019. Colabora com a rede Jornalistas Livres.
Por Eliane Brum, em texto originalmente publicado no El País Brasil
Fotos: Sílvia Guimarães / Arquivo Pessoal
Três mulheres vivem um horror para o qual será preciso inventar um nome. Elas são Sanöma, um grupo da etnia Yanomami, e sua aldeia, Auaris, fica no que os brancos chamam de Roraima, na fronteira do Brasil com a Venezuela. Elas não compreendem a ideia de fronteira, para elas a terra é uma só —e não tem cercas. Elas não falam português, elas falam a sua língua. Em maio, essas mulheres e seus bebês foram levados para Boa Vista, capital de Roraima, com suspeitas de pneumonia. Nos hospitais, as crianças teriam sido contaminadas por covid-19. E lá morreram. E então seus pequenos corpos desapareceram, possivelmente enterrados no cemitério da cidade. Duas das mães estão com covid-19, amontoadas na Casa de Saúde Indígena (CASAI), abarrotada de doentes. Lá, corroídas pelo vírus, elas imploram pelos seus bebês.
Com a ajuda de várias pessoas, uma delas conseguiu me enviar uma mensagem, gravada, em Sanöma. Ela conta o que vive. E diz: “Sofri para ter essa criança. E estou sofrendo. Meu povo está sofrendo. Preciso levar o corpo do meu filho para a aldeia. Não posso voltar sem o corpo do meu filho”. Eu escuto a mensagem antes da tradução. Não entendo as palavras. Mas compreendo o horror. A linguagem universal daquela que está sendo arrancada do mundo dos humanos.
Ser arrancada de uma aldeia no interior da floresta amazônica porque seu filho tem sintomas de uma doença, a pneumonia, transmitida pelos primeiros brancos que dizimaram parte da população Yanomami, no século passado, é uma violência. Passar deste mundo para o espaço de um hospital, e de um hospital superlotado por conta da covid-19, é outra violência. Ter seu bebê contaminado por uma segunda doença, quando estava ali para ser curado da primeira, que ainda era uma hipótese, é mais uma violência.
E então ela perde o filho. Cada uma delas perde o filho.
As mães Sanöma não entendem o português. Apesar de Roraima ser o Estado mais indígena do Brasil e quase duas centenas de Yanomami já terem sido contaminadas pelo novo coronavírus, não há tradutor para essa população. Ninguém explica nada a elas. As mulheres não entendem o que os brancos falam. E os corpos de seus filhos desaparecem. Uma das lideranças da comunidade, que entende português, explica que os três bebês podem ter sido enterrados no cemitério. Mas não há certeza. Ninguém dá certeza nem a elas nem às lideranças.
O procurador da República em Boa Vista Alisson Marugal enviou um ofício ao Distrito Sanitário Especial Indígena Yanomami (DSEI-Y) para obter informações sobre o paradeiro dos corpos dos bebês. “A situação é muito complicada, especialmente com relação à população Yanomami. Tivemos quatro óbitos oficiais e, em todos eles, tivemos problemas. O primeiro foi o caso do adolescente de 15 anos. Tivemos problemas de atendimento, tivemos falta e desencontro de informações e estamos também apurando se houve falta de assistência médica”, afirma. “O caso dos bebês Sanöma só começamos a apurar agora. Não sabemos se houve o diagnóstico de covid-19 e, se houve, qual protocolo foi aplicado e qual foi o local de enterro.”
Marugal assumiu o posto em plena pandemia, conta estar trabalhando de segunda a segunda para enfrentar um cenário com grandes desafios. “Não descarto a possibilidade de, futuramente, ingressar com uma ação civil pública pedindo danos morais não só para os pais, mas para toda a etnia yanomami”, afirma.
Enterrar o corpo de um Yanomami é arrancá-lo do mundo dos humanos
A quantidade de violência contida nessa série de atos infligidos às mulheres Sanöma é enorme até mesmo para os padrões do Estado brasileiro, um histórico agente de agressões contra os povos indígenas. Mas a violência avança para muito mais, porque se, para um branco, a dor é a que tantas famílias estão vivendo, nesta pandemia, sem poderem se despedir daqueles que amam, sem poderem sepultá-los devidamente, devido ao protocolo de biossegurança, para uma mulher Yanomami, para um homem Yanomami, enterrar um dos seus é incompreensível —e inaceitável.
Os Yanomami não são enterrados. Nunca, sob nenhuma hipótese se enterra um corpo. Os corpos são cremados e há um longo ritual para que o morto possa morrer para si e para a comunidade. Os Yanomami não são indivíduos, como um branco que vive no Brasil ou na Espanha ou nos Estados Unidos é. Um Yanomami se compreende como parte de uma comunidade e se entrelaça com várias dimensões de mundos visíveis e invisíveis em relações mediadas pelos xamãs. Os rituais de morte devem ser seguidos em todos os detalhes e levam meses e até anos para se concluírem. Várias aldeias vão até a comunidade do morto para participar da cremação, num primeiro momento. As cinzas então são guardadas.
Meses depois haverá a segunda parte, quando os visitantes mais uma vez retornam para as celebrações. O morto então será lembrado em seus feitos, em suas desavenças, em todas as marcas importantes de sua trajetória. Será lembrado para então poder ser esquecido, suas marcas serem apagadas e a comunidade seguir adiante. No último ato, as cinzas dos mortos são diluídas em mingau de banana para que aquele que morreu se dissipe no corpo de todos.
O ritual faz o morto morrer também como memória, para que os vivos possam viver. Se o ritual não for realizado, o morto não poderá ser esquecido nem se deixará esquecer, o que provoca muito mal a seus parentes e a toda a comunidade. O ritual de morte dos Yanomami é de uma extrema complexidade e sabedoria em sua simbologia. O rito é coletivo e é também momento de estabelecer relações sociopolíticas e até amorosas. Ao final, há apenas um morto, o que morreu —e não vivos que seguem mortos por não terem sido capazes de fazer o luto, como acontece tantas vezes no mundo dos brancos, que já não têm tempo nem espaço para fazer a transmutação da falta em ausência de que falava Carlos Drummond de Andrade.
Enterrar o corpo de um morto é um horror absoluto para o povo Yanomami. É arrancá-lo do mundo dos humanos. “Para essas mães, saber que seus filhos estão enterrados no cemitério da cidade é equivalente a uma mulher branca ter que conviver com a ideia de que o corpo de seu filho está jogado e exposto em praça pública”, diz Sílvia Guimarães, professora de Antropologia da Universidade de Brasília (UnB), que faz pesquisa junto ao povo Sanöma há muitos anos. Ela é uma das 40 pesquisadoras e apoiadores da Rede Pró-Yanomami e Ye’kwana, formada para enfrentar a invisibilidade dada ao sofrimento dos Yanomami, durante a pandemia, a partir da divulgação de análises qualificadas.
Sem um plano emergencial, 40 % do povo Yanomami pode ser contaminado
A Terra Indígena Yanomami abarca uma área de cerca de 9,6 milhões de hectares na fronteira entre o Brasil e a Venezuela, nos Estados do Amazonas e de Roraima. Mais de 26.000 indígenas se distribuem em mais de 300 aldeias. O subgrupo Sanöma é composto por 3.164 pessoas, segundo dados de 2018 do Instituto Socioambiental. Alguns grupos vivem em isolamento voluntário, o que significa que preferem não conviver com os brancos. Desde que os Yanomami tiveram os primeiros contatos, a partir de 1910, eles vêm sendo dizimados por doenças, que chamam de xawara, e também a tiros, pelos garimpeiros que invadem suas áreas em busca de ouro.
Davi Kopenawa, o grande intelectual e líder Yanomami, tem denunciado ao mundo que seu povo corre o risco de genocídio. Ele chama os brancos de ” povo da mercadoria”. Seu filho, Dario Kopenawa, da Hutukara Associação Yanomami, lidera a campanha “Fora Garimpo! Fora Covid!”. Em plena pandemia, há mais de 20.000 garimpeiros na terra Yanomami, considerada a mais vulnerável ao novo coronavírus na Amazônia. Uma pesquisa realizada pela Universidade Federal de Minas Gerais, pelo Instituto Socioambiental e pela Fundação Oswaldo Cruz mostrou que, caso não exista um plano de contingência emergencial para a transmissão entre os Yanomami, 40% da população que vive em aldeias próximas ao garimpo poderão ser contaminados.
Segundo o boletim mais recente da Rede Pró-Yanomami e Ye’kwana, de 21 de junho, há 168 contaminados e cinco mortos. A Casa de Saúde Indígena (Casai), onde ficam os Yanomami levados à cidade, tornou-se um dos principais focos de contaminação. Segundo a rede de pesquisadores, mais de 80 indígenas já foram infectados ali, 48% dos casos de covid-19 entre os Yanomami e Ye’kwana. Há casos de pacientes Yanomami que tiveram alta de outras doenças e aguardavam há mais de dois meses seu retorno à Terra Indígena. Acabaram sendo infectados por covid-19 na Casai.
Desde que o primeiro adolescente Yanomami, de 15 anos, morreu de covid-19, em 9 de abril, o desespero se multiplicou. Vítimas de massacres de todos os tipos perpetrados pelos brancos, parecia impossível que houvesse alguma forma de violência ainda desconhecida. Mas sempre há. E então os Yanomami começaram a ver os corpos desaparecerem, seguidos de explicações vagas de enterros por parte de autoridades que mal conseguem entender. “É um enorme desrespeito com a nossa cultura. Os corpos são enterrados sem que ninguém explique nada, sem que as famílias sejam consultadas, sem que peçam autorizações para as mães. Elas não sabem onde seus filhos estão enterrados, eu, que sou representante, não tenho nenhuma ideia de onde estão enterrados”, diz Dario Kopenawa. “Queremos saber onde estão e quando poderemos desenterrar os corpos para levá-los para a aldeia, onde nasceram e cresceram, onde seus pais, seus tios, seus primos estão morando, onde a alma das crianças pode ser feliz. Entendemos a necessidade dos protocolos [de biossegurança], mas precisamos ter informação e compreender o que vai acontecer. Precisamos saber quando os corpos serão devolvidos. Queremos saber quanto tempo o vírus sobrevive no corpo. Se os infectologistas nos explicam, a gente entende e pode respeitar. E podemos transmitir essa informação para a comunidade.”
O protocolo de biossegurança, segundo a Rede Pró-Yanomami e Ye’kwana, determinaria três anos para a exumação do corpo, mas até agora não há nem mesmo comprovação de que as crianças tinham a doença. “Por que três anos? Por que não mais? Por que não menos? Quem explica às mulheres Yanomami?”, questiona Sílvia Guimarães, em entrevista ao EL PAÍS.
Braulina Baniwa é uma das mulheres indígenas que, apesar de pertencer à outra etnia, se solidarizou com as mães Sanöma: “Essas mulheres estão sofrendo uma violência sem tamanho. É uma parte de cada uma delas que vai ficar fora do território”, diz. “Além de tudo o que estão vivendo, elas não falam português e não há sensibilidade para entendê-las.” Antropóloga, ela faz parte do Laboratório Matula, criado a partir do grupo de pesquisa do CNPq “Sociabilidades, diferenças e desigualdades”.
Em carta pública, o Matula afirmou: “No caso das mulheres Sanöma, sobressai aqui a dor da indígena mulher nesta pandemia, que deixa os corpos de seus filhos sem a possibilidade de negociar os termos das cerimônias de encerramento desta vida, o que viola seus direitos enquanto povo. Essa cena se repete em vários locais do Brasil, mas, qual é o peso desta dor para uma indígena mulher, que não domina o português, encontra-se distante de sua rede de apoio e aguarda para saber se está contaminada? Qual é a possibilidade de ter sua fala ouvida, de ter sua experiência sobre a morte compartilhada e decidida? Concordamos que as formas de contágio são múltiplas e de grandes riscos, mas há ainda algumas perguntas a serem feitas: é possível ser transparente, se abrir para o diálogo, compartilhar conhecimento e decisões? Que critérios éticos iremos viver nesta pandemia? Essa pandemia escancara a desigualdade social e o que era normalizado. A infraestrutura dos serviços públicos se omitiu para essa parcela da população, os riscos das mortes dos filhos e suas mães indígenas se agudizam. E vigora a paralisia para a ação. As mulheres Sanöma são a força dessa mulher indígena, do território, da floresta, da roça, do alimento, dos rios, que manejam para cuidar da vida e merecem respeito, cuidado e admiração por parte do Estado”.
Mulher Sanöma, na região do rio Auaris, se preparando para ir para a roça.SÍLVIA GUIMARÃES / ARQUIVO PESSOAL
As lideranças Yanomami reivindicam um protocolo indígena para os mortos por covid-19. “Queremos que possa haver uma higienização dos corpos ou, se isso não for possível, que eles sejam cremados. Então poderemos levar as cinzas para as aldeias”, diz Dario Kopenawa. Não há crematório em Boa Vista. E parece também não haver vontade de compreender o drama dos indígenas numa sociedade em que impera o racismo contra os povos originários —896.917 pessoas, o equivalente a 0,47% da população total do Brasil, segundo o Censo do IBGE de 2010. A riqueza cultural que representam é expressada por 256 povos que falam mais de 150 línguas diferentes. Dizimados por vírus e por balas há cinco séculos, eles resistiram até hoje. E então chegou a covid-19. O Governo Bolsonaro, que tem como um dos principais projetos abrir as terras indígenas para exploração privada, nada faz de efetivo para barrar a doença que já atravessa a floresta amazônica produzindo um novo massacre.
Segundo Dario Kopenawa, os Yanomami foram contaminados de covid-19 pelos garimpeiros. Em Boa Vista, os garimpeiros não só circulam e entranham-se no setor público, por vários portas, como também viram monumento em praça pública. Essa realidade cotidiana expressa a tensão entre os povos originários e os brancos que lá chegaram levados por projetos de Estado, no início, depois pelos próprios pés. “Antes da pandemia nós já tínhamos a doença do garimpo, nossos rios estavam sendo contaminados por mercúrio, nosso povo morria de tuberculose e de pneumonia. Agora eles nos trouxeram também a covid-19”, diz ele. Com os garimpeiros, a malária também está se alastrando e fazendo vítimas entre os indígenas por todo o território. “E depois de tudo isso, eles nos enterram”, diz Dario Kopenawa. “Nunca houve um Yanomami enterrado antes. Nunca. Penso que é, sim uma violência. Mas penso que não nos consultarem nem pedirem nossa autorização é também um crime.”
Ao saber qual era o tema da reportagem, o coordenador interino do Distrito Sanitário Especial Indígena Yanomami, Antonio Pereira, alegou ao EL PAÍS, por telefone, que não poderia responder às perguntas porque estava em reunião. Comprometeu-se a procurar a reportagem ao final de seus compromissos. Diante da insistência para marcar um horário, passou o telefone a um assessor, que afirmou que ligariam. Até a publicação desta reportagem, não foi possível restabelecer contato com o responsável pelo DSEI Yanomami.
O bebê que nasceu, morreu e desapareceu
Há ainda uma quarta mulher Yanomami, doente de coronavírus, que foi levada para ter o parto no hospital e nunca mais viu o corpo do bebê. O recém-nascido, segundo o procurador Alisson Marugal, teria morrido de complicações não conectadas com a covid-19, mas um servidor do hospital teria colocado no documento, indevidamente, uma suspeita por coronavírus. Segundo informações obtidas pelo EL PAÍS, a família pertence a um outro grupo Yanomami, que vive na região chamada Missão Catrimani, na aldeia Nara Uhi. Nascido prematuro de sete meses, o menino nasceu e morreu em 28 de abril. E também desapareceu.
O relato do pai deste bebê à Rede Pró-Yanomami e Ye’kwana mostra como o vírus começou a dizimar os Yanomami —e também como o Estado se tornou um perpetuador de violência ao produzir novos sofrimentos. Este Yanomami é conhecido entre os brancos como Remo:
“Foi assim que aconteceu. Primeiro, o xamã André apresentou os sintomas de covid. Ele é mais velho, foi o primeiro a adoecer. Então, Miguel fez xamanismo para curar o pai e também adoeceu. Um dia depois que Miguel começou a se sentir mal, ele foi caminhando até o posto de saúde na Missão Catrimani. A terceira pessoa a adoecer na nossa comunidade foi minha mulher, Zita Rosinete, que estava grávida. Teve tosse, diarreia, febre, dor de cabeça, dor no peito e muita dor na barriga. Os xamãs não fizeram trabalho pra ela, porque ficaram com medo de adoecer, já que essa doença é muito forte.
No dia seguinte, depois que a Zita Rosinete teve febre, caminhamos até o posto da Missão. Eu fiquei muito triste lá. A Rosinete desmaiou três vezes. Estava muito fraca e com muita febre. No dia 27 de abril, fomos removidos de avião da Missão Catrimani para a maternidade em Boa Vista. Quando chegamos no hospital, ela desmaiou de novo e eu fiquei segurando ela… Então, talvez eu tenha Covid dentro de mim. Mas eu fiz o exame pelo nariz e pela boca, deu negativo. [Mais tarde Remo infectou-se na Casa de Saúde Indígena e teve um teste positivo para covid-19].
Minha mulher estava com muita dificuldade de respirar, estava muito fraca e quase morreu! E eu perguntei para o médico: ‘Será que ela vai morrer?’. ‘Não. Ela está um pouco forte por dentro ainda’, disse. Na maternidade, nos colocaram para dormir separados de outras pessoas.
Meu filho morreu. No dia 28 [de abril] mesmo, no dia em que nasceu, ele morreu. Nasceu de manhã e à tarde morreu. Zita Rosinete estava muito fraca, mas estava um pouquinho forte ainda, porque ela não queria morrer. Se tivesse pensado em morrer, ela morreria.
Eu não vi meu filho. A Zita Rosinete fez nascer o bebê, os médicos pegaram e disseram: ‘Levem para o hospital, para a UTI’. Então, ele morreu. Eu fiquei muito triste. Eu estou triste ainda. O médico não disse por que ele morreu. Só me perguntou: ‘Ei, você é papai?’. ‘Sim, eu sou papai’. ‘Desculpa aí, seu filho morreu. Ele estava com muita dificuldade de respirar e por isso morreu’.
Ele morreu acho que às 14h, mas não sei… Só tem no documento. Eu disse para o enfermeiro: ‘Eu quero visitar meu filho!’. Mas ele disse: ‘Espera, só depois. Os médicos estão examinando ainda’. Aí eu esperei, esperei, esperei e depois chegou informação: ‘Seu filho morreu de dia’. O corpo, acho que está lá ainda na UTI, eu não sei onde está. Na Casai [Casa de Saúde Indígena], eles também não disseram onde está o corpo do meu filho. Eles não dão informação sobre onde está o corpo. Eu tenho um papel que fala sobre o meu filho [declaração de nascido vivo] e aqui na Casai a enfermeira perguntou: ‘Onde é que está o seu filho?’. Eu disse: ‘Morreu!’. ‘Onde está o documento falando que ele morreu no hospital maternidade no dia 28?’. ‘Não sei! Os médicos não me deram!’”.
Remo e Rosinete só conseguiram voltar em 19 de junho para a sua aldeia. Sem o corpo do filho. E assim se abriu mais um rasgo de violência no povo Yanomami. O Ministério Público Federal está investigando o caso e também o de outras mortes de adultos cujo corpo é reclamado pelos Yanomami.
“Roubar os mortos alheios é o estágio supremo da barbárie”
O antropólogo francês Bruce Albert compara “o enterro secreto e compulsório (‘biosseguro’!)” das vítimas Yanomami da covid-19″ com o “‘desaparecimento” dos corpos das vítimas dos torturadores na ditadura militar (1964-1985). “Roubar os mortos alheios e negar o seu luto sempre foi o estágio supremo da barbárie, no desprezo e na negação do Outro (étnico e/ou político”, afirma em entrevista ao EL PAÍS. Albert escreveu, junto com Davi Kopenawa, um livro que é um marco na história da Antropologia: A queda do céu (em português, publicado pela Companhia das Letras).
Em 1993, o episódio conhecido como “Massacre de Haximu”, em que 16 indígenas foram assassinados por garimpeiros, mostra a importância inegociável que o povo Yanomami dá aos seus rituais funerários. “Mesmo com o terror de estarem sendo caçados pelos garimpeiros, eles não hesitaram em colocar sua vida em risco para recuperar seus mortos, chorá-los e queimá-los devidamente em seu caminho de fuga”, lembra Albert. “Para os Yanomami, mais vale a pena morrer do que deixar seus mortos sem sepultura.”
Nas guerras antigas, os Yanomami sempre davam uma trégua para que as mulheres dos seus inimigos pudessem recuperar seus mortos na floresta e chorá-los devidamente. Fazer “desaparecer” os inimigos mortos, segundo o antropólogo, era considerado “uma desonra e uma manifestação de hostilidade literalmente inumana: digna dos animais ferozes ou dos espíritos maléficos da floresta”.
Ao final da entrevista, Bruce Albert ainda diz: “Espero que seja útil para que seus leitores entendam: não há pior afronta e sofrimento para os Yanomami do que fazer ‘desaparecer’ seus mortos”.
O caso dos bebês Sanöma expressa a abertura de um novo capítulo de violência de Estado contra os povos originários. O desrespeito e a indignidade com que a morte é tratada pelas autoridades públicas são os mesmos da vida. Não basta matar pela contaminação por vírus, há ainda que torturar mulheres e também homens. Este capítulo está só começando, mas as vítimas já deram a ele um título: genocídio.
Em um lado da Esplanada dos Ministérios, um ato em defesa da democracia, contra o racismo e o fascismo. No outro, a marcha do ódio e antidemocrática dos bolsonaristas defendendo o mesmo de sempre: fechamento do STF, intervenção militar, morte aos comunistas, maconheiros e outros absurdos.
Houve muita provocação verbal dos dois lados, mas apenas os bolsonaristas tentaram criar um embate físico, ao cruzarem a barreira policial no gramado central, para correr entre os manifestantes antifa. A polícia? Parecia mais preocupada em intimidar aqueles que defendem a democracia. Mas a resposta dos que lutam contra o racismo e o fascismo foi linda: muito grito de luta, um ato cheio de emoção e sem violência, como era esperado.
Confira a galeria de imagens da cobertura dos Jornalistas Lives em Brasília
Galeria 1- Fotos: Leonardo Milano / Jornalistas Livres
Para marcar uma semana do indiciamento de Sarí Gaspar Corte Real na morte de Miguel Otávio, 5 anos, um grupo de artistas e ativistas do bairro do Pina, na Zona Sul do Recife, vai fazer, nessa terça-feira (9), um ato no Rio Capibaribe, em frente às “Torres Gêmeas”, onde moram o casal para quem a mãe da criança trabalhava como empregada doméstica, serviço considerado não essencial durante a pandemia.
Pelas águas do Capibaribe, o Coletivo Pão e Tinta vai levar para a frente do Edifício Pier Maurício de Nassau uma faixa de 5 metros,, com a frase: “O racismo explora e mata pessoas negras de várias formas” e a hashtag #JustiçaParaMiguel. O ato será no período da tarde, por volta das 14h.
“A gente quer mandar um recado para quem mora nas Torres Gêmeas, para que elas vejam da varanda de casa, falar de racismo estrutural. É preciso que as pessoas brancas e privilegiadas também reflitam sobre como ele funciona na prática. O debate racial não é uma questão apenas dos negros. Mas de responsabilidade dos brancos e privilegiados também”, contextualizou Pedro Stilo, integrante e um dos coordenadores do Pão e Tinta.
Com 9 anos de existência, o Pão e Tinta é formado por artistas e ativistas sociais, alguns deles ex-pichadores que depois desenvolveram o grafite como arte e técnica de sobrevivência. Além de trabalhos sociais no bairro do Pina, o coletivo também realiza o Festival Internacional de Artes, realizado uma vez por ano antes da pandemia.
Se nesse momento a história da trágica morte do menino negro, Miguel Otávio Santana da Silva, de 5 anos, filho da empregada doméstica, Mirtes Renata Santana da Silva, fosse inversa em todas os seus detalhes: se ele fosse o filho branco da patroa, Sari Mariana Gaspar Corte Real, e tivesse morrido depois de despencar do 9º andar por desleixo e irresponsabilidade da empregada doméstica, certamente essa mulher negra estaria, neste exato momento, encarcerada.
Miguel Otávio Santana da Silva, 5 anos de vida, é vítima do racismo arraigado na vida cotidiana de pessoas como Sari, uma mulher que, ironicamente, possui sobrenome supremacista branco “CORTE REAL”.
Mas esse não é o pior dos detalhes. Nesse episódio trágico, a imprensa pernambucana, majoritariamente branca, portanto “limpinha”, não quis desagradar a mulher do prefeito da cidade de Tamandaré, Sérgio Hacker (PSB).
Até agora não há sequer uma menção realmente incisiva sobre a responsabilização de Sari na morte do menino.
O mesmo aconteceu com o delegado Ramón Teixeira, que acolheu o caso inicialmente. Preferiu preservar a identidade de Sari Mariana Gaspar Corte Real.
Sari não dispensou Mirtes por causa da pandemia. Sari não quis limpar sua própria merda, não quis varrer seu chão, não quis colocarsuas roupas na máquina de lavar, não quis cozinhar sua própria comida. Sari não quis levar seu cachorro para passear. Sari colocou a vida de sua empregada em risco, exposta à COVID-19. Sari matou o filho de Mirtes.
Que tipo de gente é essa?Miguel, 5 anos, queria ver a mãe, que saiu para levar o cachorro da patroa a passear. Insistiu, fez birra, como qualquer criança faria. E não se curvou ao racismo de Sari. Por isso entrou no elevador. Por isso foi ao nono andar. Sozinho, porque Sari não se importa, não se importou com o fato de ele ser um menino. Ele era filho da empregada, não era nada. E ele caiu do nono andar. Ele morreu. Quando um filho morre, a mãe é a primeira que desce à cova. Era um filho negro. Na casa da patroa branca. A mãe negra, a empregada, não percebeu isso ainda. Em meio à dor, em estado de choque, ela humildemente lamenta a “falta de paciência” da patroa assassina.
Miguel com sua mãe, Mirtes. Ao lado, Sari Corte Real, a patroa que colocou a empregada e seu filho em risco.
O FATO – O menino foi vítima de homicídio na terça-feira (2). Caiu do 9° andar da sacada de um prédio de luxo no Centro do Recife, em Pernambuco, conhecido como Torre Gêmeas. A informação inicial era de que, na hora do acidente, a empregada estaria trabalhando no 5° andar do prédio, mas hoje foi revelado que, na verdade, a empregada estava cumprindo a função de passear com os cachorros da família, enquanto a patroa cuidava de Miguel. Sari foi presa inicialmente, mas pagou uma fiança de R$ 20 mil e responde em liberdade, mesmo depois da divulgação de vídeos mostrando que Sari colocou Miguel sozinho no elevador de serviço, o único que dava acesso para a área desprotegida da qual o menino despencou para a morte. Os elevadores para pessoas como Mirtes e seu filho, na prática, ainda são diferentes no Brasil. E foi lá que a patroa o deixou.
Planta de um apartamento no prédio de luxo de Sari, marcado por corrupção e tragédia
Um corpo negro que vale 20 mil reais? Realmente vivemos um pesadelo legitimado pela racismo institucional do judiciário
Liana Cirne Lins, professora da Faculdade de Direito da UFPE, relatou em suas redes sociais que muitos têm defendido a tese de que, inclusive, houve homicídio DOLOSO, configurando dolo eventual. “Afinal, que adulto coloca uma criança de cinco anos, que está chorando pela mãe, sozinha, num elevador, e não calcula a possibilidade de um acidente?” Miguel não tinha intimidade com elevadores. Morava com os pais em uma casa pobre, num bairro humilde.
Sari sabia dos riscos e não faria o mesmo com os próprios filhos. Aliás, essa é uma pergunta que gostaríamos de fazer à patroa de Mirtes: como você acabaria com a birra de seus filhos?
Certamente Sari não os colocaria em risco. O centro desse debate é, sem dúvida, a herança de nossa cultura escravocrata e racista.
Outra declaração importantíssima de Liana Cirne é sobre o local e a data simbólica do homicídio: “O local é nas famigeradas Torres Gêmeas, esse lugar horroroso que tem essa energia do mal, do crime, da corrupção. Elas são um aborto em nossa paisagem e cenário de vários escândalos, desde que a [construtora] Moura Dubeux as ergueu, entre liminares. Nesse momento, mais do que em outros, queria que a sentença demolitória do juiz Hélio Ourém tivesse sido executada. Sobre a data: Miguel morreu no dia em que a PEC das Domésticas completou cinco anos! E é assim que se celebra o aniversário da legislação de proteção das Domésticas, o que diz muito sobre nosso país, que não superou sua herança escravagista.”
Os Jornalistas Livres se solidarizam demais, profundamente, com mais esse fato absurdo, horroroso, que tem como alimento o racismo.