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  • Não é negacionismo científico. É pior!

    Não é negacionismo científico. É pior!

    É muito comum associar o bolsonarismo ao negacionismo científico. O bolsonarismo seria eticamente repulsivo, entre outras coisas, porque nega os consensos científicos, porque rejeita os fundamentos da ciência cartesiana, porque desobedece a comunidade científica. Implícita está a ideia de que a ciência sempre é humanista, é sempre virtuosa. Como se não fosse possível ser, ao mesmo tempo, perverso e seguidor dos protocolos científicos.

    Rodrigo Perez Oliveira, professor de Teoria da História na Universidade Federal da Bahia

    Essa relação imediata entre entre ciência e virtude é algo ingênua e facilmente desmentida pela própria história da ciência. A ideia de que o bolsonarismo é necessariamente negacionista também não se sustenta na crônica política, especialmente no que se refere ao enfrentamento à pandemia da covid-19.

    A forma como governo de Jair Bolsonaro está enfrentando a pandemia da covid-19 não tem nada, absolutamente nada, de negacionista, de anticientífica. Pelo contrário, é perfeitamente coerente com o pensamento científico. Está correta do ponto de vista técnico.

    Desde o primeiro dia de pandemia, as autoridades sanitárias nacionais e internacionais recomendaram: o isolamento social é o único jeito de combater a pandemia. Fecha tudo, esvazia as ruas, dá um tapa na curva pra preservar o sistema de saúde, enquanto os cientistas trabalham num medicamento ou numa vacina.

    Este é a solução científica eticamente adequada para combater a pandemia. Mas não é a única saída cientificamente possível. Como nem tudo são flores nesta vida, há também a solução científica eticamente repulsiva.

    O científico eticamente adequado é tão científico quanto o científico eticamente repulsivo. Por isso, a discussão jamais, sob hipótese alguma, pode ser apenas científica. Tem que ser também políticamente normativa, um tantinho filosófica.

    O governo de Bolsonaro escolheu a estratégia científica eticamente repulsiva. Foi coerente com sua própria essência. Não podemos negar.

    Não é incompetência. Não é negacionismo científico. É pior!

    Quando Bolsonaro boicotou as medidas de isolamento, fritou dois ministros da saúde, vetou a lei que decretava a obrigatoriedade do uso de máscaras e gastou apenas 1/3 do orçamento previsto para o combate à pandemia, estava escolhendo um método cientificamente autorizado para lidar com o problema.

    Deixa o vírus correr, infectar as pessoas, até o momento em que a populacao estiver naturalmente imunizada, custe o que custar, morra quem morrer.

    Num país de 210 milhões de habitantes, de proporções continentais, qual será o custo da estratégia? Quanto tempo leva?

    0,1% de mortos? Parece pouco, né? Em números absolutos são 210 mil pessoas. Se for 0,2%? Ainda assim será pouco? 420 mil pessoas! E vamos somando, de 0,1 em 0,1%. Até onde vai? Será que chega em mim, no meu pai, na minha mãe? A cada, 0,1%, a chance aumenta. Vale pra você também, leitor e leitora. É uma bomba relógio. Tic, tac, tic, tac.

    O governo brasileiro está disposto a pagar o preço, seja ele qual for. Estamos com quase 85 mil mortos. E contando. E o vírus circulando, e as pessoas morrendo. Em algum momento, virá a tal imunidade natural do rebanho. É o que a ciência diz.

    Os que sobreviverem ficarão imunes. Os que morreram, em sua maioria pessoas mais frágeis, não voltam mais. Óbvio! A ciência também diz isso. Sobram os mais fortes, aptos e saudáveis. Na história da ciência, a estratégia bolsonarista tem nome: eugenia, darwinismo social. Na história politica tem nome também: genocídio!

    Nomear as coisas com os nomes que elas têm é, antes de tudo, ato político desestabilizador, como percebemos na reação histérica dos generais à entrevista de Gilmar Mendes.

    Dizer que o bolsonarismo é obscurantista, negacionista, ignorante, significa ser indulgente. Não se trata de nada disso. É pior. É muito pior.

    Quando Osmar Terra participou do programa da Globo News, no começo de maio, e disse que as pessoas não deveriam ficar trancadas em casa, que tinham que ir mesmo pra rua se infectar, ele estava cientificamente correto, certinho.

    A máxima “obedeçam a ciência”, tão ventilada no início da pandemia, pode ser muito perigosa. Não é tudo que a ciência manda que a gente tem que obedecer não. Carece de ter cautela, de selecionar repertórios, caso a caso, com lupa ampliada em cada situação.

    Há no meio disso tudo apenas duas certezas, que podem ser provadas, cientificamente: 1°) Bolsonaro e seus cumplices são genocidas. 2°) A ciência não detém o monopólio da virtude.

  • Após corte de verbas nas universidades feito pelo Governo Bolsonaro, seguranças da UFBA paralisam atividades

    Após corte de verbas nas universidades feito pelo Governo Bolsonaro, seguranças da UFBA paralisam atividades

    Matéria originalmente publicada no Mídia 4P.

    Na noite desta terça-feira, 20, seguranças terceirizados da Universidade Federal da Bahia (Ufba) paralisaram suas atividades. A interrupção do serviço fez com que algumas unidades suspendessem as aulas.

    “A Ufba foi surpreendida com a suspensão dos serviços de segurança agora pela noite, inclusive na Faculdade de Direito. Estamos determinando a suspensão das aulas do último horário de hoje. Amanhã avaliaremos a situação com a reitoria”, afirmou, em nota, o diretor da Faculdade de Direito, Julio Cesar de Sá da Rocha.

     

    A paralisação do serviço da categoria ocorre após o Governo Bolsonaro ter feito cortes nos orçamentos de universidades públicas. Em nota, a Ufba informou que “o serviço de segurança foi normalizado” e que “as atividades da universidade prosseguem normalmente nesta quarta-feira e as aulas, em todos os turnos, serão ministradas”.

    “A Universidade reconhece que a grave situação orçamentária decorrente do contingenciamento de recursos e do bloqueio de 30% de seu orçamento pelo Ministério da Educação afeta os membros de sua comunidade, e pleiteia a liberação imediata de todo o seu orçamento”, ressaltou, em nota, a Ufba.

    Está prevista para esta quinta-feira, 22, uma reunião geral dos vigilantes da empresa MAP, que presta serviço à Ufba. Eles se reunirão às 8h30 no portão do campus de Ondina.

    Em boletim, o Sindicato dos Vigilantes (Sindvigilantes) informou que a empresa MAP comunicou à entidade a suspensão do contrato de trabalho de 338 vigilantes que atuam nas unidades da Ufba.

    O sindivigilantes informou, ainda, que adotará medidas cabíveis e que solicitou reunião com a Ufba. O Grupo MAP e o Sindvigilantes foram procurados pelo Mídia 4P, mas não foram localizados.

  • Salvador receberá pesquisadores de todo o continente para Simpósio sobre vigilância, gênero e raça

    Salvador receberá pesquisadores de todo o continente para Simpósio sobre vigilância, gênero e raça

    Entre os dias 26 e 28 de junho, Salvador vai receber pesquisadores de todo o continente para discutir controle, monitoramento, dados pessoais, tecnologia, assimetrias de poder, gênero, raça e uma série de outros temas que articulam debates sobre vigilância, tecnologia e sociedade. As discussões fazem parte da programação do VI Simpósio Internacional LAVITS, que acontece na Universidade Federal da Bahia (UFBA).

    O objetivo do evento é promover uma agenda propositiva e crítica sobre os temas, estimulando um espaço interdisciplinar de reflexões. Para isso, os três dias de Simpósio abrigam intervenções artísticas, oficinas, sessões livres e trabalhos individuais. Entre os pesquisadores internacionais que virão ao evento, estão David Lyon, que é professor de sociologia na Universidade de Queens, no Canadá, e dirige o Centro de Estudos de Vigilância (SSC) da instituição, que é referência para a área, e Simone Browne, que é pesquisadora e educadora da Universidade do Texas, em Austin, nos Estados Unidos, e estuda a negritude como alvo das práticas de monitoramento. Browne é autora do livro Dark Matters: On the Surveillance of Blackness, no qual insere os estudos afro-americanos no centro dos estudos de vigilância.

    Lançado em 2015, o livro investiga as raízes das atuais práticas de vigilância nos Estados Unidos, relacionadas, segundo Browne, à escravidão e à era Jim Crow, cujas leis de segregação racial vigoraram no sul daquele país até 1965. A autora demonstra como as tecnologias e práticas de vigilância contemporâneas têm influência da longa história de formação racial e dos métodos de policiamento da vida negra na escravidão, como, por exemplo, as marcas permanentes nos corpos, os avisos de escravos fugitivos e as leis de lanterna. A obra recebeu o Lora Romero First Book Prize (2015) da American Studies Association, o Donald McGannon Award (2015) de Social and Ethical Relevance in Communications Technology Research e o Best Book Prize (2016) da Surveillance Studies Network.

    Em suas pesquisas, Browne expõe uma lacuna de um olhar centrado nas questões raciais dentro dos estudos sobre vigilância. A VI edição do Simpósio Internacional LAVITS tem, justamente, o desejo de impulsionar os debates sobre a intersecção entre vigilância, gênero e raça. Para a Rede, apesar da evidência desta imbricação, o campo ainda não lhe dedicou a devida atenção.

    Ainda que a crescente presença de processos de vigilância nos espaços urbanos, informacionais e sociais seja um fenômeno global, suas inscrições locais comportam singularidades que merecem ser pesquisadas e debatidas. Na América Latina e no Brasil em particular, as tecnologias e práticas de vigilância e controle são historicamente atreladas a estruturas coloniais, estatais e econômicas de produção de desigualdades, segregação ou mesmo extermínio de populações específicas, especialmente, indígena e negra. Ao mesmo tempo, são historicamente conhecidas as diversas formas de controle e vigilância sobre o corpo e a vida das mulheres.

    A Rede LAVITS

    A Rede Latino-Americana de Estudos sobre Vigilância, Tecnologia e Sociedade (LAVITS) foi fundada em 2009, contando com membros de ao menos 14 instituições de quatro países latino-americanos (Brasil, Argentina, México e Chile) e um país europeu (Bélgica). Com histórico de realização de simpósios internacionais em diferentes países latino-americanos (como México, Argentina, Chile e Brasil), a LAVITS retorna ao Brasil em 2019, para a cidade de Salvador (Bahia), apropriadamente situada para as discussões sobre assimetrias e (in)visibilidades.

     

    SERVIÇO

    O QUE: VI Simpósio Internacional LAVITS – Assimetrias e (In)visibilidades: Vigilância, Gênero e Raça

    QUANDO: 26, 27 e 28 de junho de 2019

    ONDE: Universidade Federal da Bahia (UFBA)

    OUTRAS INFORMAÇÕES: Mais informações sobre o evento estão disponíveis no site oficial do evento – www.lavits.ihac.ufba.br/

    CONTATO: lavits2019@ufba.br

    lavits.org@riseup.net

  • Abaixo-assinado propõe nome de estilista negra para diretoria da Vogue Brasil

    Abaixo-assinado propõe nome de estilista negra para diretoria da Vogue Brasil

    Baiana, Carol Barreto teve seu nome defendido por instituição para ocupar posto deixado por Donata Meirelles, socialite flagrada em festa de aniversário racista

    Yuri Silva

    O Coletivo de Entidades Negras (CEN), instituição nacional do movimento negro brasileiro, com capilaridade em 17 Estados do País e em três nações latinas, além de representação nos Estados Unidos, está viralizando na internet um abaixo-assinado online para emplacar o nome da estilista negra baiana Carol Barreto (festejada por suas coleções ativistas, inspiradas na cultura afro-brasileira) no cargo de diretora da Vogue Brasil. Para assinar, é preciso clicar aqui.

    A função ficou vaga após a socialite e esposa do publicitário Nizan Guanaes, Donata Meirelles, pedir demissão da publicação. Donata deixou a revista após um caso de racismo envolvendo a festa do seu aniversário de 50 anos, realizada em Salvador semana passada.

    Na ocasião, sentada em uma cadeira de ‘sinhá’, a agora ex-diretora da Vogue brasileira foi fotografada cerca de mulheres negras vestidas de ‘escravas mucamas’. O caso ganhou repercussão internacional, o que tornou insustentável a permanência dela no cargo.

    Agora, ativistas negros defendem que uma mulher negra deve ocupar a direção da revista de moda, conhecida por seu conteúdo racista e eurocentrado. “Donata feriu a imagem dos privilegiados quando posou de sinhá e ostentou as negras que lhes serviam. Ultrapassou o limite do ‘aceitável’”, diz o texto da petição, criada na plataforma Avaaz.

    No documento, o CEN propõe “tomar as riquezas da Casa Grande”. Carol Barreto, o nome defendido pela entidade, é Designer de Moda Autoral, Colunista da Revista RAÇA e Professora do Departamento de Estudos de Gênero e Feminismo da Universidade Federal da Bahia.

    Oriunda de Santo Amaro da Purificação – BA, trabalha com a relação entre Moda e Ativismo Político, construindo um trabalho de visibilidade internacional nas passarelas de Dakar, Paris, Luanda, e em galerias de arte em Chicago, Toronto, Nova York, Cidade do México, Williamsburg, Rio de Janeiro e Salvador.

    “A Vogue Brasil, ao obrigar a saída de Donata Meirelles da cadeira de diretora de estilo, pode agora fazer com que aquelas que são herdeiras da ancestralidade negra do Brasil retomem seus assentos”, diz o texto da instituição do movimento negro.

    “Essa cadeira pertence às negras e negros que construíram e constroem as riquezas do Brasil e que, em virtude do racismo, não participam dos dividendos”, afirmam.

    Caroline Barreto de Lima – conhecida no mundo da moda como Carol Barreto após trabalhos icônicos envolvendo a temática racial – também é membro do Colegiado do Bacharelado em Estudos de Gênero e Diversidade da Universidade Federal da Bahia (UFBA), atrelada ao do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher (NEIM), órgão suplementar da UFBA.

    Doutora pelo Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade – PosCultura, também na UFBA (2015), mestre em Desenho, Cultura e Interatividade pela UEFS (2008) e Especialista em Desenho pela UEFS (2007), possui graduação em Licenciatura em Letras com Inglês pela UEFS (2004).

    É integrante da linha de pesquisa Gênero, Cultura e Arte do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher (NEIM/UFBA), tem experiência na área dos estudos de Gênero, Sexualidade, Relações étnico/raciais e Moda, atuando principalmente nos seguintes temas: aparência, cultura, gênero e suas interseccionalidades.

    Desenvolve, ainda, trabalhos relacionados aos processos de redesenho na moda, averiguando as relações entre a linguagem, moda, o vestuário e a construção dos caracteres do gênero e das identidades sexuais. É colaboradora no programa de pós-graduação em Desenho, Cultura e Interatividade da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS) e graduada em Design de Moda da Unime.

  • Maio de 2001, o fim do ‘Carlismo’ na Bahia

    Maio de 2001, o fim do ‘Carlismo’ na Bahia

    Por Everaldo de Jesus*
    Há 17 anos, três grandes manifestações contra Antônio Carlos Magalhães, o ACM, ocorridas em maio entraram para a história da Bahia. Marcaram a primeira cisão no encouraçado poder do ex-governador e ex-senador baiano. Ele estava mergulhado em um escândalo, após ser flagrado por evidências de ter violado o painel de votação do Senado, em uma votação que deveria ser secreta. Um processo havia sido aberto na Comissão de Ética por quebra de decoro parlamentar e poderia resultar na sua cassação.
    Convocada pelos movimentos estudantis, a primeira manifestação ocorreu em 10 de maio de 2001. Uma passeata com cerca de 3 mil participantes, iniciada no centro de Salvador, tinha como destino o bairro da Graça, onde os estudantes pretendiam fazer uma “lavagem” das escadarias do Edifício Stella Mares, residência de ACM. A Polícia Militar reprimiu violentamente a passeata e impediu que ela chegasse ao destino.
    O segundo ato, ainda maior, estimado em 9 mil manifestantes, aconteceu em 16 de maio de 2001. Desta vez o local escolhido foi o Vale do Canela, e a concentração das manifestações acontecereu na Faculdade de Direito da UFBA, local que os organizadores consideravam inviolável pela polícia baiana, por ser um espaço federal. Não foi o que ocorreu: a PM invadiu a faculdade e dispersou a manifestação com mais violência. Utilizaram gás lacrimogênio e balas de borracha e deixaram um saldo de 25 estudantes feridos.
    As imagens da selvageria da polícia ‘carlista’ invadiram o noticiário nacional e provocaram uma terceira passeata ainda maior, com pelo menos 17 mil pessoas, no dia seguinte. Os estudantes dessa vez contaram com a solidariedade de outras organizações e partidos políticos, além dos professores da UFBA e do próprio reitor, Heonir Rocha.
    A manifestação ocorreu pacificamente. Iniciada em frente à reitoria da UFBA, a passeata percorreu as ruas do centro da capital baiana com faixas que denunciavam a violência do dia anterior, escrachavam o senador direitista e pediam sua cassação. Prenunciaram o início do fim do ‘Carlismo’.
    Alguns dias depois, em 30 de maio de 2001, o senador Antônio Carlos Magalhães ocupou a tribuna do Senado. Em um discurso rápido, criticou os rumos de um governo que ajudou a sustentar e denunciou perseguição dos seus pares. E renunciou ao cargo de senador, para evitar ser cassado e perder seus direitos políticos.
    (*) Jornalista e mestrando em História pela Universidade do Estado da Bahia – UNEB
  • A Globo e sua fábrica de narrativas

    A Globo e sua fábrica de narrativas

    Artigo de Rodrigo Perez Oliveira, professor de Teoria da História da UFBA, com ilustração de Al Margen

    Venho utilizando o termo “fábrica de narrativas” para tratar da atuação da grande imprensa na crise brasileira contemporânea. Talvez este seja um dos aspectos mais importantes da crise: nunca antes na história do Brasil a imprensa foi player tão relevante no jogo político.

    Isso não significa poder absoluto de manipulação. As pessoas não são gado. O público não é rebanho que simplesmente segue a toada da narrativa midiática. É certo que a imprensa hegemônica tenta pautar a opinião pública, conduzir a crise, mas sua eficiência é limitada. É essa tensão entre tentativas e limites o tema deste ensaio.

    Acho mesmo que a imagem da “fábrica” nos ajuda a compreender a atuação dos conglomerados midiáticos na conjuntura da crise. Uma fábrica precisa ser gerenciada, organizada a partir de um centro administrativo comprometido com a realização de um determinado projeto.

    O projeto da grande imprensa brasileira está claro, desde o início da crise: legitimar na opinião pública a agenda desenvolvimentista neoliberal, marcada pelo desmonte do Estado e pela entrega da tutela do desenvolvimento nacional ao controle das forças do mercado.

    Quando falo em “grande imprensa brasileira” estou me referindo, naturalmente, à Rede Globo. Há outros veículos, com suas especificidades. Mas no geral é a Rede Globo quem dá o tom, quem gerencia a fábrica de narrativas.

    Não quero dizer que a Rede Globo, em si, tenha compromisso moral com o neoliberalismo. A Globo não tem moral própria, não tem projeto próprio. A Globo tem clientes.

    Hoje, no Brasil e no mundo, não existe cliente mais valioso que o neoliberalismo, representado pelos grupos que pretendem varrer o Estado de Bem-Estar Social do mapa ocidental.

    Pois sim, leitor e leitora: a crise não é só brasileira.

    O Brasil até pode ser o principal laboratório da ofensiva neoliberal contra o Estado, mas a crise tá longe de ser uma exclusividade nossa.

    O investimento da Rede Globo na defesa da agenda neoliberal é tão intenso que está modificando uma antiga prática da empresa. Antes, o núcleo do entretenimento era relativamente independente do núcleo do jornalismo. As agendas eram diferentes.

    As novelas da Globo, por exemplo, contribuíram bastante para a ampliação dos direitos civis no Brasil, especialmente no que se refere aos direitos de mulheres, de pretos e pretas e da comunidade LGBT. Ou seja, se o departamento de jornalismo da emissora é historicamente conservador e alinhado com as agendas econômicas e políticas do grande capital, o departamento de entretenimento sempre foi relativamente progressista.

    Não que exista propriamente uma contradição entre os interesses políticos e econômicos do grande capital e os valores progressistas ligados ao plano do comportamento e comprometidos com o princípio da “liberdade do corpo”. Cada vez mais, o capitalismo busca a leveza e o distensionamento das relações sociais, o que sugere a superação de opressões que restringem mercados e atrapalham os negócios, como é o caso do machismo, da homofobia e do racismo. Mas não é desse capitalismo leve que quero falar, não aqui, não agora.

    Quero mostrar como o núcleo do jornalismo vem, cada vez mais, utilizando o núcleo do entretenimento para defender as reformas neoliberais que estão desmontando o Estado brasileiro.

    Acontece que o projeto defendido pela fábrica de narrativas tem um grande adversário: o imaginário da população brasileira, que é atravessado pela ideia de que cabe ao Estado prover direitos sociais e tutelar o desenvolvimento nacional.

    Temos, então, a seguinte situação: de um lado está o projeto neoliberal, que apesar de ter tomado de assalto o Poder Executivo e partes consideráveis do Poder Legislativo e do Sistema de Justiça, não conta com o apoio da maioria da população. Do outro lado, o imaginário popular, que depositando suas expectativas de direitos sociais no Estado, resiste à ofensiva neoliberal.

    O Partido dos Trabalhadores ainda é predileto dos brasileiros. Se for candidato, Lula será eleito, talvez no primeiro turno. Chamo isso de resistência.

    A defesa da Rede Globo das reformas neoliberais propostas pelo governo de Michel Temer é um bom termômetro para medirmos a real capacidade da mídia hegemônica em pautar a opinião pública. Muitas vezes, essa capacidade é superestimada.

    Até aqui, foram três as principais reformas: A PEC 241, (também conhecida como a “PEC dos gastos”), a Reforma Trabalhista e a Reforma da Previdência.

    Nos três casos, a Rede Globo mobilizou toda a sua estrutura, incluindo o núcleo do entretenimento, para manipular a opinião pública e garantir apoio popular à agenda reformista. Os programas da grade matutina mostram claramente esse esforço.

    Por partes, um passo de cada vez:

    • A PEC 241

    Entre agosto e dezembro de 2016, nos dias e meses seguintes ao golpe parlamentar que derrubou Dilma Rousseff, o governo de Michel Temer vivia o apogeu de sua vitalidade política. Temer não foi eleito pela opinião pública. Temer foi eleito pelo Congresso Nacional. Por isso, seu governo nasce marcado pela combinação entre a rejeição popular e o apoio parlamentar. Michel Temer entendeu perfeitamente que o Congresso era tudo que tinha.

    A PEC dos gastos foi a primeira grande agenda política de Michel Temer e representa uma mudança nos fundamentos conceituais do Estado brasileiro. Trata-se da restrição do poder de investimento do Estado, ou seja, o Estado deixa de ser soberano para planejar políticas públicas e cumprir seu papel civilizatório. Com a aprovação da PEC, a ação do Estado passa a estar subordinada ao crescimento econômico, ao mercado.

    Na prática, a PEC criminaliza os movimentos anticíclicos do Estado. Ou em outras palavras: em momentos de recessão, de crise, o Estado não tem mais instrumentos legais para contrariar a crise, para fomentar desenvolvimento. O poder, portanto, está no mercado e não no Estado.

    A PEC 241 significa uma ofensiva contra o principal fundamento do imaginário político do Brasil moderno, que desde os anos 1930 define o Estado como o centro de planejamento do desenvolvimento nacional. Até aqui, esse imaginário não tinha sido contrariado, nem pelos militares, nem pelos tucanos.

    Nem os militares, nem os governos de Fernando Henrique Cardoso, chegaram tão longe quanto Michel Temer.

    Uma mudança desse tamanho precisa cortejar a opinião pública. Não que o apoio popular seja imprescindível para a aprovação do projeto, já que a PEC foi aprovada no Congresso e sancionada pelo Palácio do Planalto sem nenhum tipo de consulta.

    Mas todos sabemos que não existe golpe que dure pra sempre. Em algum momento, teremos eleições no Brasil e a manutenção da obra do golpe depende do apoio popular. Não se faz política apenas no palácio. Em algum momento, as ruas serão chamadas, serão ouvidas.

    Nas semanas que envolveram a tramitação da PEC 241, o programa de “Bem Estar” apresentou uma série de matérias que tematizaram a “saúde financeira das famílias”. A mensagem era clara: se uma família não pode gastar mais do que ganha, o Estado também não pode.

    A narrativa midiática implodiu as diferenças que distinguem a família do Estado. A família, núcleo social privado sem nenhum compromisso com o bem comum, se tornou equivalente ao Estado, organização institucional responsável pela manutenção do marco civilizatório.

    É como se ao limitar a capacidade de investimento do Estado, o golpe neoliberal estivesse agindo como um pai zeloso que cuida das finanças da família.

     

    • A Reforma Trabalhista

    A reforma trabalhista também violentou outro fundamento do imaginário político brasileiro: a vinculação entre cidadania e o trabalho formal.

    Durante décadas, o trabalhador formal, com carteira assinada, foi definido como o modelo ideal de cidadão. Esse princípio alimentou práticas de violência contra grupos que por estarem excluídos do trabalho formal eram tratados como “vadios” pelas forças policiais do Estado.

    Teve perseguição ao samba, às religiões de matriz africana. Perseguição aos pobres em geral. Mas a ideia do trabalho formal como exercício de cidadania se consolidou no imaginário político brasileiro.

    A reforma trabalhista, ao “flexibilizar” as leis trabalhistas, atacou o trabalho formal, violentou a cidadania, tal como ela é pensada no Brasil há mais de 70 anos. Temos aqui assunto muito sério e o golpe neoliberal sabe disso. A fábrica de narrativas sabe disso.

    A Reforma Trabalhista tramitou entre maio e julho de 2017. Nesse período, o programa “Encontro com Fátima Bernardes” investiu no culto ao empreendedorismo, trazendo à cena, prioritariamente, empreendedoras mulheres, periféricas e negras. A fábrica sabe o que faz.

    A direção da fábrica sabe que o empoderamento de mulheres, negras e periféricas é uma agenda social relevante. O empreendedorismo dessas mulheres foi tratado como uma estratégia de empoderamento, de libertação.

    Libertação de quem? De qual algoz?

    O patrão, personificando o trabalho formal, foi pintado como o algoz.

    “Quando trabalhava de carteira assinada, eu não tinha tempo nem pra levar minha filha ao médico”, disse a empreendedora em reportagem exibida no horário nobre da programação matutina da principal emissora de TV do Brasil.

    O trabalho formal, nesse sentido, deixa de ser representado como fundamento da cidadania para se tornar uma experiência de opressão.

    E a libertação? Se daria pela rebelião dos trabalhadores? Pela divisão dos lucros? Por relações de trabalho mais humanas?

    É claro que não!

    A libertação é individual, no melhor estilo liberal, e se dá pela abolição do trabalho formal.

    Cada um que seja livre para resolver seus problemas. Livre para levar a filha ao médico na hora que bem entender. Livre para ficar sem assistência social em situação de doença. Livre para não receber 13° salário. Livre para ser demitido sem nenhum tipo de garantia;

    Liberdade é uma palavrinha safada e perigosa. Inspira cuidados.

    • A Reforma da Previdência

    É aqui que podemos observar claramente os limites da manipulação. A Reforma da Previdência é a menina dos olhos do golpe neoliberal. É a única reforma que não foi aprovada.

    Por que?

    Porque a opinião pública está resistindo, não está se deixando manipular. Aposentadoria, INSS, é coisa sagrada para os brasileiros e brasileiras. No ano de eleição, nenhum deputado quis colocar sua assinatura em projeto tão polêmico.

    De fato, a Reforma da Previdência subiu no telhado, foi derrotada. Mas não dá pra dizer que faltou empenho da fábrica de narrativas. A Rede Globo tentou, em todos os lugares, em todos os programas da sua grade, convencer os brasileiras e brasileiras de que é bom trabalhar na terceira idade.

    O Programa da Ana Maria Braga, o programa da Fátima Bernardes, o “Bem Estar”, todos eles passaram os últimos meses de 2017 e os primeiros meses de 2018 defendendo a Reforma da Previdência. Eram velhos e velhas por toda parte. Atrizes e atores idosos cozinhando com a Ana Maria Braga, fazendo exercícios físicos no “Bem Estar”, contando para a Fátima Bernardes como suas vidas sexuais são ativas.

    Não basta o esforço do núcleo de jornalismo. Para passar a Reforma da Previdência não dá pra contar apenas com a Miriam Leitão. Só o economês não é suficiente. Carece de usar toda a estrutura da fábrica.

    A fábrica tentou fazer sua parte.

    A fábrica tentou convencer os brasileiros e brasileiros que acordam às 6 de manhã, que enfrentam duas horas de transporte público, que trabalham até às 17 e voltam pra casa, depois de mais duas horas sacolejando nos trens, ônibus e metrôs, que na velhice eles serão tão saudáveis e ativos como Lima Duarte, Fernanda Montenegro e Natália Grimberg.

    O povo não é burro. De burro, o povo não tem nada.

    Os esforços foram intensos. A fábrica trabalhou bastante. Mas não teve êxito. Todas as pesquisas mostravam que a opinião pública não apoiava a reforma da previdência. Aí, o governo golpista tentou uma saída honrosa, inventando uma intervenção federal na segurança pública do Rio de Janeiro.

    Enfim, o que quis dizer neste ensaio é algo relativamente simples, que pode ser facilmente observador por qualquer um com olhar mais atento para a realidade da crise: a grande imprensa brasileira, a fábrica de narrativa do golpe neoliberal, tenta manipular a opinião pública.

    Tenta, mas não consegue, ou pelo menos não consegue como gostaria. Mas a fábrica é insistente e continua tentando em cada um dos seus produtos, até mesmo naqueles programas bonitinhos, aparentemente despretensiosos e inocentes. Não existe inocência na fábrica.

    A fábrica apostou todas as suas fichas no golpe. Não dá pra voltar atrás.

    Os motores da fábrica estão girando até mesmo quando uma petista, mulher, negra e periférica é laureada campeã de reality show. Pra ser eficiente, a manipulação precisa estar camuflada. A fábrica precisa ser vista como uma empresa de comunicação democrática e aberta a todas as opiniões políticas.

    Tão achando que é paranoia, né? Tão achando que é viagem? Que é teoria da conspiração?

    Ah leitor, ah leitora.. não sejam ingênuos.

    Não existe golpe de Estado sem conspiração. E para que aconteça uma conspiração, para que aconteça um golpe, basta apenas que pessoas muito poderosas estejam dispostas a conspirar.