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  • Coronel Ustra pode ser condenado esta semana por tortura e assassinato

    Coronel Ustra pode ser condenado esta semana por tortura e assassinato

    O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) marcou para a próxima quarta-feira, 17 de outubro, a audiência de julgamento da apelação da defesa do coronel reformado do Exército Carlos Alberto Brilhante Ustra pela tortura e assassinato do jornalista Luiz Eduardo da Rocha Merlino, em julho de 1971. O coronel foi condenado em primeira instância mas recorreu.

    O crime ocorreu nas dependências do DOI-Codi (Destacamento de Operações de Informação – Centro de Operações de Defesa Interna), centro de tortura comandado por Ustra entre outubro de 1969 e dezembro de 1973.

    Em 2008, em outro processo, Ustra foi declarado torturador pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, em ação movida pela família Teles. Em 2012, a Justiça negou o recurso do coronel reformado e manteve a decisão. Ustra morreu em 2015.

    O Coronel do Exército Carlos Alberto Brilhante Ustra, o mesmo que continua sendo homenageado pelo candidato Jair Bolsonaro, quando foi major do Exército e comandante do DOI-Codi, entre setembro de 1970 a janeiro de 1974, usava os codinomes de “Dr. Tibiriçá” ou “Dr. Silva” para suas ações criminosas.

    A Comissão Nacional da Verdade registrou pelo menos 502 casos de tortura e mais de 40 assassinatos ocorridos no DOI-Codi sob o comando do Ustra, incluindo a tortura sofrida Dilma Roussef entre outros. A Comissão disponibilizou um canal no Youtube em que é possível assistir uma série de depoimentos, inclusive a do torturador (clique para acessar)

    A luta das famílias

    A ação judicial movida por estas duas famílias (Teles e Merlino), tem um sentido especial de justiça e reparação moral e política, e é uma iniciativa pioneira e inusitada no Brasil, o único país da América Latina que não tem nenhum torturador da época da ditadura militar condenado. 

    Luiz Eduardo da Rocha Merlino, foi sequestrado em sua casa em Santos, em 15 de Junho de 1971, e torturado por 24 horas seguidas e abandonado numa solitária. Morreu em decorrência da omissão e dos graves ferimentos que sofreu por tortura. Conheça mais sobre a história de Merlino e a luta por justiça no site coletivomerlino.org .

    Assista à vídeo-biografia, onde Celso Frateschi relata em primeira pessoa como foi a morte de Merlino. Acesso o link do relatório final produzido pela Comissão da Verdade do Estado de São Paulo da Verdade Rubens Paiva.

     

     

    A série de vídeo-biografias tem uma playlist específica,

    Tortura e Assassinato

    Trechos da matéria de Tatiana Merlino e André Caramante disponível no site.

    Caixão lacrado

     A notícia da morte de Merlino chegou à família por meio de um telefonema ao seu cunhado, Adalberto Dias de Almeida, que era delegado da Polícia Civil. Adalberto e tios de Merlino foram ao IML (Instituto Médico Legal) de São Paulo onde foram informados de que lá não havia nenhum morto com esse nome. Usando da sua condição de delegado, Adalberto foi em busca do corpo do cunhado. Abrindo uma por uma as portas das geladeiras, localizou o corpo de Luiz Eduardo com marcas evidentes de tortura e sem identificação. O corpo foi entregue à família num caixão lacrado.

    A versão que foi dada à família foi a de que Merlino teria se suicidado ao jogar-se embaixo de um caminhão na BR-116, na altura de Jacupiranga, quando estava sendo transportado para Porto Alegre para a identificação de militantes. Tal versão consta do laudo necroscópico assinado por Abeylard Orsini e Isaac Abramovitch. O veículo que o teria atropelado nunca foi identificado e tampouco foi realizada uma ocorrência no local do fato.

    40 anos de luta por verdade e justiça

    A família de Merlino luta há 40 anos por justiça, ainda em 1979, a mãe do jornalista, Iracema da Rocha Merlino, já falecida, moveu uma ação declaratória na área cível, mas foi rejeitada, sob a alegação de prescrição.

    Em 2008, a família moveu uma nova ação declaratória na área cível, que não pretendia nenhuma indenização pecuniária, apenas o reconhecimento moral de que ele foi morto em decorrência das terríveis torturas que sofreu nas dependências do DOI-CODI de São Paulo, mas o processo foi extinto na primeira instância, não chegando sequer a ser julgado em seu mérito.

    Através de seus advogados Fábio Konder Comparato, Claudineu de Melo e Aníbal Castro de Souza, os familiares de Merlino recorreram ao Superior Tribunal de Justiça, mas o relator do caso não considerou o recurso e arquivou o processo em março de 2010.

    Em 2010, os advogados dos familiares de Merlino entraram com uma nova ação, ainda na área cível, desta vez por danos morais, contra o coronel Ustra. Também neste caso os advogados do coronel encaminharam ao Tribunal de Justiça de São Paulo um recurso (“agravo de instrumento”), tentando bloquear o seguimento do processo. Porém não obtiveram sucesso. E finalmente, em 27 de julho de 2011 a juíza Claudia de Lima Menge ouviu as seis testemunhas arroladas pelos familiares de Merlino.

    O coronel Ustra havia indicado como suas testemunhas de defesa algumas pessoas que deveriam depor por carta precatória em seus estados, pois nenhuma residia em São Paulo,  algumas delas declinaram da convocação, como o senador José Sarney, por exemplo. Por fim uma única testemunha falou em sua defesa, depondo em Brasília: o general Paulo Chagas declarou não ter notícia de nenhum ato de tortura praticado pelo coronel Ustra e também que o Exército brasileiro nunca tinha dado nenhuma ordem escrita para torturar presos. A juíza proferiu a sentença de condenação na primeira instância, para que o coronel Brilhante Ustra  pagasse uma indenização à família de Merlino.

     

    Com trechos do relatório da Comissão da Verdade do Estado e São Paulo Rubens Paiva , do site Memórias da Ditadura e do site www.coletivomerlino.org

  • “Bolsonaro desejou minha morte sob tortura”

    “Bolsonaro desejou minha morte sob tortura”

    “Não se trata de política. É algo mais sério. É questão de caráter.
    No ano de 2011, eu fui convidado para falar numa reunião da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara Federal.
    Durante minha fala, eu contei que um dos envolvidos em torturas na cidade de Foz do Iguaçu, o então tenente Espedito Ostroviski, disse, por ocasião de minha prisão, que a minha mulher não teria a filha que estava esperando. Que eles “dariam um jeito” assim que ela fosse presa.
    No momento em que eu contava esse fato ocorrido em 1969, o deputado Jair Bolsonaro, apontando o dedo pra mim, disse aos gritos que eu não poderia ter sobrevivido à tortura. Que deveriam ter me matado. E acrescentou, “só matando para que os comunistas não tenham filhos, pois a ideologia passa pelo sangue”.
    Então, se dependesse desse monstro, eu não teria minhas filhas, nem meu filho, netos e netas.
    Portanto, não quero estar no mesmo espaço que as pessoas que apoiam esse psicopata. Não quero que os apoiadores de Bolsonaro entrem em minha casa, nem que telefonem.
    Oxalá, que nem passem pela minha rua.
    É uma questão de caráter. Não compactuo com pessoas que apoiam alguém que desejou minha morte e que minhas filhas, filho, netas e netos não viessem à vida.”
    Aluizio Ferreira Palmar.

  • “Democracia” sem povo tem nome: DITADURA

    “Democracia” sem povo tem nome: DITADURA

    Em 2006, antes de ele mesmo ser alvo de escuta telefônica enquanto confabulava com a irmã mais inteligente do Aécio e passar a criticar as ilegalidades da Lava Jato, um ex-blogueiro da Veja disse que o problema da democracia era o povo e que as “elites” iriam salvar o Brasil do povo e do Lula. De fato, 10 anos depois, as elites tiraram ilegalmente a Dilma do poder (pode chamar de GOLPE) e deixaram no lugar o presidente com a menor popularidade da história.

    Sem apoio popular, ele assumiu diversas vezes, na maior cara de pau, que iria fazer as reformas impopulares porque, afinal, não era o povo que o mantinha no cargo, e sim o Congresso, e portanto não tinha que respeitar suas (nossas) vontades. Agora temos mais um “democrata”, o militar que deveria estar de pijamas e candidato a vice do Coiso, dizendo que o povo é incompetente pra decidir seu futuro. Que não é capaz de escolher quem vai redigir as leis às quais devemos todos nos submeter. Para ele, é preciso fazer uma nova Constituição em substituição à “Cidadã”, de 1988, mas não é necessário haver eleição de delegados constituintes. O próprio presidente indicaria os “notáveis” a cargo de fazer as leis.

    Bom, temos um recado ao candidato. Existe um regime no qual o povo não decide seus destinos. Ele se chama DITADURA!

    Em tempos recentes tivemos um presidente/militar que dizia preferir o cheiro dos cavalos ao cheiro do povo. Foi ele quem montou uma anistia que, com a ajuda de parte do atual Supremo Tribunal Federal (com “tudo”), mantém até hoje assassinos e torturadores fora do alcance da justiça. Um desses torturadores, aliás, é o “herói” do tal candidato e de seu vice, que na semana passada disse na cara de dois jornalistas torturados durante o regime militar (que incrivelmente não esboçaram qualquer contestação) que “heróis matam”.

    É ISSO que vocês querem no governo? (Se tiverem estômago pra ler os posts citados, acessem https://www.terra.com.br/noticias/brasil/politica/uma-constituicao-nao-precisa-ser-feita-por-eleitos-pelo-povo-diz-mourao,d8036562bb9c006fdab66dfa30e07e973g9eyw6q.html e https://veja.abril.com.br/blog/reinaldo/e-lula-de-novo-com-a-culpa-do-povo/)

  • “Choram marias e clarices no solo do Brasil”

    “Choram marias e clarices no solo do Brasil”

    Ivo Herzog, filho de Clarice e Vladimir, o jornalista torturado até a morte pela ditadura civil-militar no Brasil em 1975, escreve nota sobre a condenação do país pela Corte Interamericana de Direitos Humanos.

    #ParaQueNãoSeEsqueça

    #ParaQueNuncaMaisAconteça

    Na última quarta-feira, 4 de julho, a Corte Interamericana de Direitos Humanos condenou o Brasil pela não investigação e falta de julgamento e punição aos responsáveis pela tortura e assassinato em 24 de outubro de 1975 do então diretor de jornalismo da TV Cultura, Vladimir Herzog. O tribunal internacional também considerou o Estado culpado pela violação ao direito à verdade e à integridade pessoal, em prejuízo dos familiares de Herzog (veja matéria do El País a respeito aqui). A versão oficial sobre a morte segue sendo a farsa, comprovada pela foto abaixo, de um suicídio (para um relato histórico do fato, acesse aqui o blog Zona Curva, de onde tiramos algumas das fotos publicadas nessa matéria). O assassinato revoltou a sociedade civil, levando milhares de pessoas a acompanharem o ato ecumênico em sua memória celebrado pelo rabino Henry Sobel (que garantiu o sepultamento do corpo dentro do cemitério israelita, o que seria proibido se ele tivesse se suicidado) e o cardeal de São Paulo Dom Paulo Evaristo Arns, entre outras autoridades.

    A foto oficial de Herzog morto. É impossível se matar por enforcamento tendo os joelhos dobrados.

    Leia a seguir a nota de Ivo Herzog:

    “Choram marias e clarices no solo do Brasil”

    “Há 43 anos atrás eu perdi meu pai. Assassinato violentamente. Uma pessoa de paz, que gostava de pescar, fotografar a família, de astronomia. Eu tinha 9 anos, meu irmão 7 e minha mãe 34. Ele morreu por desejar que todos tivessem o direito à livre manifestação em um Estado democrático.
    Pude conhecer-lo pouco. Ficaram 43 anos de luta para que provássemos que ele foi barbaramente torturado e assassinado. Ficou a luta, capitaneada por Clarice Herzog, pela Verdade e pela Justiça.
    Não encontramos esta resposta no país que meu pai adotou como pátria. Tivemos que buscar nas Cortes Internacionais.
    Finalmente, hoje, saiu a sentença tão aguardada. Resultado de um processo doloroso que consumiu nossa família.
    O Brasil TEM que investigar os crimes da Ditadura. O Brasil precisa ter, como política de Estado, a Verdade e a Justiça, se queremos ter um país melhor, menos violento, justo.
    Agradeço ao empenho da CEJIL neste processo.
    Termino agradecendo uma lutadora implacável: minha mãe que dedicou TODA sua vida para que a verdade sobre a morte do pai de seus filhos viesse a tona. E que a justiça fosse feita.
    Obrigado mãe.”

    O título utilizado para a nota é um verso da canção O Bêbado e a Equilibrista, de Aldir Blanc e João Bosco, que ficou super conhecida na voz de Elis Regina (veja aqui) e que além de citar a esposa de Herzog, ainda fala do exílio do sociólogo Herbert José de Souza, o Betinho, criador do Fome Zero e irmão do cartunista Henfil.

    A fotógrafa Elvira Alegre, do jornal EX- registra o desespero de Audálio Dantas, presidente do Sindicato de Jornalistas do Estado de São Paulo, no velório de Vladimir Herzog. A foto só foi publicada anos mais tarde e não integrou a matéria do EX-
    Lembrar esses fatos e exigir a restituição da verdade e da memória histórica do período da ditadura é fundamental para evitar novos períodos ditatoriais que nos ameaçam HOJE. Um exemplo claro é um candidato militarista que em entrevista no dia seguinte à condenação do Estado Brasileiro pelo caso Herzog novamente negou que houve uma ditadura e reafirmou que “suicídio acontece, pessoal pratica suicídio” (se tiver estômago para assistir, o trecho sobre Herzog está a partir do minuto 28. A íntegra da entrevista aqui).
  • Organizações da sociedade civil e órgãos públicos apresentam Projeto para criação de Comitê para Prevenção e Enfrentamento à Tortura em São Paulo

    Organizações da sociedade civil e órgãos públicos apresentam Projeto para criação de Comitê para Prevenção e Enfrentamento à Tortura em São Paulo

    Justificativa – Projeto de Lei que institui o Comitê Estadual de Prevenção e Enfrentamento a Tortura no Estado de São Paulo e Mecanismo de Prevenção e Enfrentamento à Tortura no Estado de São Paulo.

    As organizações da sociedade civil e órgãos públicos subscritores desta manifestação vêm à presença de V.Sa. apresentar justificativa para a apresentação do Projeto de Lei em anexo que trata da criação do Comitê Estadual de Prevenção e Enfrentamento a Tortura no Estado de São Paulo e Mecanismo de Prevenção e Enfrentamento à Tortura no Estado de São Paulo.

     

     

    1. Panorama geral das pessoas privadas de liberdade no Brasil

     

    O último estudo publicado sobre a situação do sistema prisional brasileiro – INFOPEN 2016 – mostra que, atualmente, o Brasil conta com uma população prisional de mais de 726 mil pessoas. Se analisarmos as vagas disponíveis no sistema, vemos que o déficit, por outro lado, é de mais de 358 mil vagas – o que leva a uma taxa de ocupação de 197%.

     

    A superlotação, por si mesma,  já configura tratamento cruel, desumano ou degradante, em alguns casos constituindo tortura. Em inúmeros locais de privação de liberdade ao redor do país, não há espaço para presos dormirem, não há instalações sanitárias apropriadas e a alimentação fornecida não tem a qualidade mínima necessária. Além disso, a submissão das pessoas privadas de liberdade à tortura física e psicológica perpetrada por parte de agentes de Estado é extremamente preocupante. Relatório da Pastoral Carcerária de 2016 , que analisa 105 casos de tortura e maus tratos em estabelecimentos prisionais, demonstra como eles são perpetuados de diferentes formas e, muitas vezes, conjugando diversos tipos de violência:

     

    “[…] é comum que os casos de tortura articulem múltiplas formas de violência. Pessoas espancadas são também ofendidas e ameaçadas, e depois isoladas em celas disciplinares insalubres, privadas de atendimento médico ou assistência material básica. Presos que questionam as condições de encarceramento são achacados e espancados, e a privação de serviços básicos é instrumentalizada para agravar o sofrimento infligido.”

     

    A prática da tortura (generalizada) no Brasil, porém, não é recente. Desde visita realizada em 2000 pelo Relator Especial contra Tortura da ONU tal constatação é reiterada nos documentos e afirmações realizadas pelos órgãos de prevenção e combate à tortura da Organização. Em 2000, o então Relator Especial sobre Tortura Nigel Rodley afirmou que: “O período do regime militar de 1964 a 1985, caracterizado pela tortura, desaparecimentos forçados e execuções extra-judiciais, ainda paira sobre o presente regime democrático.”  No mesmo ano, o governo brasileiro narrou ao Relator Especial, em sua visita feita ao Brasil, que “a persistência dessa situação [de tortura] significa que os policiais estão ainda utilizando a tortura para obter informação e forçar a confissão, como forma de extorsão ou punição. (…) Deve ser observado que retaliações contra presos envolvendo tortura, espancamentos, privação e humilhação são comuns.

     

    Em 2008, o governo brasileiro mantém a afirmação em relatório enviado ao Conselho de Direitos Humanos da ONU, na Revisão Periódica Universal: “Ainda é observado, no Brasil, acusações frequentes de abuso de poder, tortura e uso excessivo da força cometidos, principalmente, por policiais e agentes penitenciários”. Ainda, em coletiva de imprensa após a visita ao Brasil realizada em 2015, o então Relator Especial sobre Tortura da ONU, Juan Mendez, declarou que “A tortura e os maus-tratos por parte da polícia e dos agentes penitenciários segue sendo um fato alarmante e de ocorrência regular, principalmente contra pessoas que pertencem a minorias raciais, sexuais, de gênero e outros grupos minoritários”.

     

    A tortura é ainda utilizada como método de investigação policial, estando incorporada à cultura das forças policiais. Pesquisa conduzida por Conectas Direitos Humanos, Núcleo de Estudos da Violência da USP (NEV/USP), Pastoral Carcerária, IBCCrim e ACAT Brasil revela que em 66% dos casos envolvendo agentes públicos como autores da tortura, a acusação era de que a teriam utilizado como forma de obter confissão ou informação. A pesquisa também concluiu que a falta de provas é o fundamento mais utilizado pelo judiciário para absolver os agentes públicos acusados da prática do crime de tortura.

     

    O descrédito à palavra da vítima é um dos elementos comuns, especialmente quando se trata de pessoa presa ou suspeita de ter cometido um crime.

     

    Na apuração de casos de tortura a resposta estatal é frequentemente a mesma: a omissão. O relatório acima citado, produzido pela Pastoral Carcerária, mostra que em apenas 31% dos casos analisados as vítimas de tortura foram ouvidas por Defensores Públicos, Promotores ou Juízes e em apenas 30% dos casos realizou-se oitiva de alguma testemunha, “sendo que em 79 casos (75% do total) foram identificadas possíveis testemunhas-chave que deixaram de ser ouvidas”. Com isso, em somente  22% dos casos foi instaurado inquérito policial, e em apenas 3% deles foi proposta ação civil pública para enfrentar os problemas estruturais identificados.

     

    No mesmo sentido, recente estudo publicado pela Conectas, que analisa a atuação das instituições que compõem o sistema de justiça criminal em audiências de custódia diante de casos de tortura contra custodiados, mostra que, dos 393 casos analisados, em apenas um deles o juiz determinou a abertura de Inquérito Policial para investigação do ocorrido.

     

    Importante mencionar também os casos relatados de tortura e maus tratos no sistema socioeducativo, como no caso da Unidade Cedro da Fundação Casa, parte do Complexo Socioeducativo Raposo Tavares, na cidade e Estado de São Paulo, que está sob análise da Comissão Interamericana de Direitos Humanos. O caso trata de violações e agressões cometidas por agentes socioeducativos contra os adolescentes internados na unidade.

     

    Por fim vale ressaltar, ainda, as inúmeras denúncias de tortura e de maus tratos, presentes no dossiê elaborado pelo Conselho Regional de Psicologia de São Paulo, após diversas inspeções em Comunidades Terapêuticas e Hospitais Psiquiátricos, demonstrando que um sistema de prevenção e enfrentamento a tortura é afeto a diversos espaços de privação de liberdade e não apenas o sistema prisional.

    Os dados e observações acima trazidos reforçam como a prática da tortura e tratamentos cruéis, desumanos e degradantes  é pouco enfrentada no sistema prisional brasileiro, nas carceragens, no sistema socioeducativo, nas instituições manicomiais, entre outros locais de privação de liberdade, e como a resposta estatal é falha – quando existente.

     

    1. Sobre o Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura

     

    É neste contexto que se insere a importância da implementação dos Mecanismos Estaduais de Prevenção à Tortura nos estados brasileiros.

     

    Em 2013, o Estado brasileiro criou o Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura através de lei federal nº 12.847/2013. Fruto de intensa mobilização da sociedade civil para a sua criação e construção, foi baseado na Constituição Federal brasileira, que garante em seu incisos III e XLIII do Art. 5º que ninguém será submetido a tortura, nem a tratamento cruel ou degradante; bem como nos compromissos internacionais assumidos pelo Brasil sobre o tema, em especial com a ratificação da Convenção Contra Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes (Decreto nº 40/1991) e seu Protocolo Facultativo (Decreto nº 6.085/2007).

     

    O sistema também é fundado na aplicação do Programa Nacional de Direitos Humanos – PNDH – 3, Objetivo estratégico III, o qual também determinava a consolidação de política nacional visando à erradicação da tortura e de outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes.

     

    A escolha por um modelo de sistema de abrangência nacional para dar cumprimento às obrigações contidas no  Protocolo Facultativo da Convenção da ONU contra a Tortura (daqui em diante, OPCAT) se deu em razão de diversos fatores: (i) a grande dimensão territorial do Estado brasileiro e o alto número de locais de privação de liberdade espalhados pelo país; (ii) a enorme população carcerária, estimada na época em mais de 620 mil presas e presos no sistema prisional (esse número não inclui aqueles privados de liberdade em outros espaços tais como unidades de internação de adolescentes em conflito com a lei, hospitais psiquiátricos, residências terapêuticas, abrigos, asilos e outras unidades de privação de liberdade); (iii) o entendimento de que um único mecanismo nacional centralizado para atender toda a realidade dos espaços de privação de liberdade no Brasil não seria suficiente.

     

    Desta forma,  concluiu-se que para se alcançar uma política de prevenção à tortura eficaz, tal como preconizada pelo OPCAT, ensejaria a adoção de mecanismos estaduais voltados a atuar nas múltiplas regiões do país e descentralizando a prevenção da tortura para todo o território nacional.

     

    Neste sentido, a Lei Federal 12.847/2013 prevê que cada ente federado crie seu próprio mecanismo de prevenção, com as mesmas atribuições previstas no OPCAT, para atuar no seu território, e que tais estruturas estaduais poderão integrar o Sistema Nacional de Prevenção à Tortura.

     

    Com relação aos outros modelos do mundo, o sistema brasileiro possui certas particularidades. No Brasil o sistema se divide em duas estruturas: O Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (CNPCT),  órgão consultivo de composição mista entre governo federal e sociedade civil voltado para a elaboração de políticas públicas, programas e práticas para a erradicação da tortura no país, bem como para receber e encaminhar denúncias de violações ocorridas dentro dos espaços de privação de liberdade, e o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT), organismo composto por peritos concursados voltado para fiscalizar os locais de privação de liberdade – locais públicos ou privados, dos quais as pessoas não possam sair de modo independente de sua vontade, abrangendo locais de internação de longa permanência, centros de detenção, estabelecimentos penais, hospitais psiquiátricos, casas de custódia, instituições socioeducativas para adolescentes em conflito com a lei e centros de detenção disciplinar em âmbito militar, dentre outros – elaborando relatórios de visita, criando recomendações para o enfrentamento da tortura nesses espaços e documentando violações observadas.

     

    Importante salientar que uma das principais características do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT) é sua função preventiva. Diante todas as dificuldades da apuração da tortura e maus tratos em ambientes de privação de liberdade, a presença dos peritos do mecanismo de MNPCT pode ter impacto inibidor na prática de violações ocultadas nas instituições privativas de liberdade. Além desse aspecto o MNPCT trabalhar com o sistema de recomendações às instituições visitadas, buscando o diálogo para o enfrentamento dos problemas detectados nas visita de inspeção.

     

    Atualmente, dez estados já aprovaram leis para criação de seus Comitês e Mecanismos de prevenção à tortura (são eles Alagoas, Amapá, Espírito Santo, Maranhão, Minas Gerais, Paraíba, Pernambuco, Rio de Janeiro, Rondônia, Sergipe). Destes,  dois possuem um Mecanismo de fato em funcionamento (Rio de Janeiro e Pernambuco), e outros dois se encontram neste momento encerrando as etapas finais do processo de seleção dos peritos dos mecanismos estaduais e começarão a realizar visitas de monitoramento nos próximos meses (Rondônia e Maranhão).

    O Subcomitê para a Prevenção da Tortura da ONU (daqui em diante, SPT) no relatório enviado ao Estado brasileiro após sua visita ao país em 2015, registrou sua preocupação neste sentido, lamentando “a falta de vontade política em criar mecanismos preventivos locais, que também está ligada à ausência de garantia de recursos financeiros adequados para os mecanismos preventivos.” Relembrando que as disposições do OPCAT devem ser cumpridas pelos entes federados, emitiu a seguinte recomendação ao Brasil:

     

    “95. (…) o SPT chama a atenção do Estado Parte para o fato de que, de acordo com o artigo 29 do OPCAT, as disposições do Protocolo Facultativo deverão ser estendidas a todas as partes de Estados federais sem qualquer limitação ou exceção. Assim, o Subcomitê recomenda que as autoridades tomem todas as medidas adequadas para garantir o estabelecimento e funcionamento efetivo de mecanismos preventivos em todos os estados do país.” (grifo nosso)

     

    1. Considerações quanto à ausência de mecanismo estadual em São Paulo

     

    Vale ressaltar o alarmante caso do Estado de São Paulo, que persiste na ausência de política pública voltada para a criação de um órgão na administração capaz de monitorar, prevenir e enfrentar a tortura em seus espaços de privação de liberdade, sendo que possui mais de 240 mil adultos presos em seu sistema prisional, aproximadamente 9.300 adolescentes internados em instituições privativas de liberdade, além de grande contingente de pacientes em instituições psiquiátricas e idosos em instituições com privação ou restrição à liberdade.

     

    Desde 2013, diferentes iniciativas em diversas frentes foram empreendidas pela sociedade civil organizada para dialogar com o Executivo e Legislativo estadual de São Paulo sem que se tenha alcançado um resultado concreto.

     

    Em 2016, a mobilização voltou a se intensificar através de um coletivo de entidades da sociedade civil e do poder público que retomou o diálogo com o Executivo estadual para pleitear a necessidade de um mecanismo de prevenção no estado. O coletivo se reuniu com autoridades públicas para pleitear que o estado integre o  Sistema Nacional de Prevenção à Tortura e abordar as preocupações quanto ao projeto de lei em tramitação, o qual não cumpre com os parâmetros do Protocolo Facultativo. Porém, São Paulo continua sem contar com legislação instituindo seu comitê e mecanismo de prevenção à tortura em consonância com o OPCAT.

     

    Esta situação se torna ainda mais grave se considerarmos a crescente atuação de grupos militarizados nos presídios e unidades da Fundação Casa, que que atuam não só em situações de rebeliões e revoltas, como em revistas de rotina. Na prática, a atuação desses grupos é sempre seguida de inúmeros relatos de violações e exercida sem mecanismos de controle externo, ou mesmo legislação específica que delimitem essa atuação.

     

    1. Conclusão.

     

    Considerando o acima exposto, as organizações solicitantes requerem que o Projeto de Lei em referência seja apresentado e, ao final, aprovado pela ilustre Assembléia Legislativa do estado de São Paulo, na sua integralidade.

     

    São Paulo, 7 de junho de 2018

     

    Assinam o presente documento:

     

    1. AÇÃO DOS CRISTÃOS PELA ABOLIÇÃO DA TORTURA – ACAT
    2. ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE DEFESA DA MULHER DA INFÂNCIA E DA
      JUVENTUDE
      ASBRAD
    3. ASSOCIAÇÃO PARA A PREVENÇÃO DA TORTURA – APT
    4. CENTRO DE DIREITOS HUMANOS DE SAPOPEMBA
      – CDHS
    5. CONECTAS DIREITOS HUMANOS
    6. FRENTE ESTADUAL ANTIMANICOMIAL DE SÃO PAULO
    7. INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS – IBCCRIM
    8. INSTITUTO DE DEFESA DO DIREITO DE DEFESA – IDDD
    9. INSTITUTO TERRA, TRABALHO E CIDADANIA  – ITTC
    10. NÚCLEO ESPECIALIZADO DE CIDADANIA E DIREITOS HUMANOS DA DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO – NCDH
    11. NÚCLEO ESPECIALIZADO DE SITUAÇÃO CARCERÁRIA DA DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO – NESC
    12. NÚCLEO ESPECIALIZADO DOS DIREITOS DA PESSOA IDOSA E DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA DA DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO – NEDIPED
    13. OUVIDORIA GERAL DA DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO
    14. PASTORAL CARCERÁRIA DE SÃO PAULO

     

     

    NESTA TERÇA-FEIRA vai acontecer o “Seminário PREVENÇÃO E COMBATE À TORTURA NA ATUALIDADE”

    Data: 26/06/2018, das 8h30 às 21h
    Local: Auditório Rui Barbosa – 2º andar da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo – Largo São Francisco
    Inscrições: https://goo.gl/ySAfKU

  • Geisel e Figueiredo operaram pessoalmente na execução de inimigos do regime

    Geisel e Figueiredo operaram pessoalmente na execução de inimigos do regime

    O texto a seguir foi publicado nas redes sociais por Matias Spektor, professor da Fundação Getúlio Vargas:

    Este é o documento secreto mais perturbador que já li em vinte anos de pesquisa.

    É um relato da CIA sobre reunião de março de 1974 entre o General Ernesto Geisel, presidente da República recém-empossado, e três assessores: o general que estava deixando o comando do Centro de Informações do Exército (CIE), o general que viria a sucedê-lo no comando e o General João Figueiredo, indicado por Geisel para o Serviço Nacional de Inteligência (SNI).

    O grupo informa a Geisel da execução sumária de 104 pessoas no CIE durante o governo Médici, e pede autorização para continuar a política de assassinatos no novo governo. Geisel explicita sua relutância e pede tempo para pensar. No dia seguinte, Geisel dá luz verde a Figueiredo para seguir com a política, mas impõe duas condições. Primeiro, “apenas subversivos perigosos” deveriam ser executados. Segundo, o CIE não mataria a esmo: o Palácio do Planalto, na figura de Figueiredo, teria de aprovar cada decisão, caso a caso.

    De tudo o que já vi, é a evidência mais direta do envolvimento da cúpula do regime (Médici, Geisel e Figueiredo) com a política de assassinatos. Colegas que sabem mais do que eu sobre o tema, é isso? E a pergunta que fica: quem era o informante da CIA?

    O relato da CIA foi endereçado a Henry Kissinger, então secretário de Estado. Kissinger montou uma política intensa de aproximação diplomática com Geisel.

    A transcrição online do documento está no link abaixo, mas o original está depositado em Central Intelligence Agency, Office of the Director of Central Intelligence, Job 80M01048A: Subject Files, Box 1, Folder 29: B–10: Brazil. Secret; [handling restriction not declassified].

    Você pode lê-lo aqui em inglês.

    Costuma-se dizer que Geisel foi uma espécie de “ditador esclarecido”, que conteve a “tigrada linha dura”, começou a “abertura política” e amenizou os rigores do regime militar brasileiro. Mas a descoberta do documento de 1974 desmonta essa  narrativa sobre Geisel, construída principalmente pelo jornalista Elio Gaspari, ao longo de seus livros “A Ditadura Envergonhada”, “A Ditadura Escancarada”, “A Ditadura Derrotada”, “A Ditadura Encurralada”, “A Ditadura Acabada”…

    A descoberta do documento de 1974 prova que Geisel não conteve a tigrada. Ele mesmo era o tigre, que comandou a execução sumária dos principais inimigos do regime.

     

    Segue a tradução do memorando da CIA a Kisinger sobre a execução sumária de presos no governo Geisel:

    “Relações Exteriores dos Estados Unidos, 1969–1976, Volume E – 11, Parte 2, Documentos sobre a América do Sul, 1973–1976

    1. Memorando do Diretor de Inteligência Central Colby ao Secretário de Estado Kissinger

    Washington, 11 de abril de 1974.

    Assunto

    Decisão do Presidente do Brasil, Ernesto Geisel, de continuar a execução sumária de subversivos perigosos sob certas condições

    1. [1 parágrafo (7 linhas) não desclassificado]

    2. Em 30 de março de 1974, o presidente brasileiro Ernesto Geisel reuniu-se com o general Milton Tavares de Souza (chamado General Milton) e com o general Confúcio Danton de Paula Avelino, respectivamente o chefe do Centro de Inteligência do Exército (CIE) que estava deixando o cargo e aquele que estava assumindo. Também esteve presente o general João Baptista Figueiredo, chefe do Serviço Nacional de Inteligência (SNI).

    3. O General Milton, quem mais falou, delineou o trabalho do CIE contra o alvo subversivo interno durante a administração do ex-presidente Emilio Garrastazu Médici. Ele enfatizou que o Brasil não pode ignorar a ameaça subversiva e terrorista, e disse que métodos extra-legais devem continuar a ser empregados contra subversivos perigosos. A este respeito, o General Milton disse que cerca de 104 pessoas nesta categoria foram sumariamente executadas pela CIE durante o último ano, aproximadamente. Figueiredo apoiou essa política e insistiu em sua continuidade.

    4. O Presidente, que comentou sobre os aspectos sérios e potencialmente prejudiciais desta política, disse que queria refletir sobre o assunto durante o fim de semana antes de chegar a qualquer decisão sobre sua continuidade. Em 1º de abril, o presidente Geisel disse ao general Figueiredo que a política deveria continuar, mas que muito cuidado deveria ser tomado para assegurar que apenas subversivos perigosos fossem executados. O presidente e o general Figueiredo concordaram que quando o CIE prender uma pessoa que possa se enquadrar nessa categoria, o chefe do CIE consultará o general Figueiredo, cuja aprovação deve ser dada antes que a pessoa seja executada. O Presidente e o General Figueiredo também concordaram que o CIE deve dedicar quase todo o seu esforço à subversão interna, e que o esforço geral do CIE será coordenado pelo General Figueiredo.

    5. [1 parágrafo (12½ linhas) não desclassificado]

    6. Uma cópia deste memorando será disponibilizada ao Secretário de Estado Adjunto para Assuntos Interamericanos. [1½ linhas não desclassificadas] Nenhuma distribuição adicional está sendo feita.

    W. E. Colby”