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  • O MELANCÓLICO FIM DA LAVA JATO

    O MELANCÓLICO FIM DA LAVA JATO

     

    ARTIGO

    Ângela Carrato, jornalista e professora do Departamento de Comunicação Social da UFMG

    Depois de embalar o sonho das “pessoas de bem”, que vestiram verde e amarelo e foram às ruas apoiar o pretenso combate à corrupção, o fim da Operação Lava Jato está próximo e não poderia ser dos mais melancólicos.
    Tudo indica que ela será substituída pela criação da Unidade Nacional Anticorrupção (Unac) por parte do Ministério Público Federal. A Unac, se realmente prosperar, terá sede em Brasília e concentrará ações atualmente dispersas entre as unidades do Rio de Janeiro, São Paulo e Curitiba. A proposta é do próprio procurador-geral da República, Augusto Aras que, diferentemente dos seus antecessores, foi escolhido pelo presidente Bolsonaro sem levar em conta a lista tríplice elaborada pela categoria.
    A decisão de Aras é uma das consequências práticas da guerra que passou a ser travada entre bolsonaristas e lava-jatistas, após a demissão de Sérgio Moro do Ministério da Justiça. Moro, que foi conivente com parte dos abusos cometidos pelo governo enquanto esteve no poder, saiu atirando e acusando Bolsonaro de “tentar interferir politicamente na Polícia Federal”.
    Um dos principais beneficiados pela Lava Jato, Bolsonaro, que dificilmente teria sido eleito se não fosse a criminalização e o ódio ao PT que ela disseminou, viu na atitude de Moro uma forma de atingir seu governo, mas, principalmente, de se cacifar para a disputa presidencial em 2022. É importante lembrar que o apoio de Moro junto à opinião pública, no momento em que deixou o governo, era significativamente superior ao do próprio Bolsonaro.
    Os partidos de oposição, por sua vez, há muito denunciam os desmandos da Lava Jato
    e como ela, em seis anos de existência, tem cometido todo tipo de ilegalidade. Além de grampear os telefones dos advogados que defendem o ex-presidente Lula nos processo do triplex do Guarujá e do sítio de Atibaia, os advogados Cristiano Zanin e Valeska Teixeira Martins lembram que o próprio Lula foi condenado sem provas e por “atos indeterminados”.

    Vale dizer: depois de anos revirando a vida e quebrando todos os sigilos bancários, fiscal e telefônico do ex-presidente Lula, de sua família e amigos, não foi encontrado nada que pudesse incriminá-lo.
    Às denúncias dos advogados de Lula vieram se somar, em meados do ano passado, a série de vazamentos publicados pelo site The Intercept BR. Eles mostraram conversas dos procuradores que atuam na Lava Jato, em Curitiba, trazendo à tona muito do seu modus operandi. A série, que ficou conhecida como #VazaJato, mostrou, por exemplo, que Moro não atuou apenas como juiz, mas como auxiliar da própria acusação.
    Caía por terra o discurso de “juiz imparcial” sob o qual Moro sempre tentou se acobertar. Os vazamentos deixaram visível também a perigosa proximidade entre os lava-jatistas e integrantes do Supremo Tribunal Federal (STF). Quem se lembra de um exultante procurador chefe em Curitiba, Deltan Dallagnol em conversa com Moro, assegurando “In Fux we trust”? Fux, no caso, é o ministro Luiz Fux.
    As denúncias da #VazaJato correram mundo e foram destaque nos principais jornais da Europa e dos Estados Unidos, contrastando com o silêncio que sobre elas reinou na mídia brasileira. Silêncio explicado pelo fato da mídia local ter se valido das cinematográficas operações da Lava Jato para disseminar o ódio ao PT, patrocinar o golpe contra a presidente Dilma Rousseff (impeachment sem crime de responsabilidade é o que?), prender e impedir Lula de disputar as eleições de 2018, abrindo espaço para a vitória de Bolsonaro e suas políticas antipopulares, antinacionais e de submissão aos interesses dos Estados Unidos.
    Na semana passada (1/7), nova reportagem do The Intercept BR, em parceria com a agência de jornalismo investigativo Pública, mostrou algo ainda mais grave e que veio confirmar denúncias que pairavam sobre a Lava Jato: a interferência de agentes do Departamento de Justiça dos Estados Unidos e do próprio FBI, polícia e serviço de inteligência daquele país, em suas ações.
    Quem se lembra que um dos policiais que escoltou Lula, quando ele saiu da prisão para ir ao enterro do seu neto, usava adesivo que não era da Polícia Federal?

    As novas revelações do The Intercept BR/Pública mostram uma parceria “informal” entre Lava Jato e autoridades estadunidenses que, exatamente por ter se dado de maneira  informal, é ilegal. Se o compromisso da Lava Jato fosse realmente combater a corrupção e não atender aos interesses de setores dos Estados Unidos (deep State?), bastaria ter se pautado pelos canais legais. Desde 2001, com o decreto 3.810, Brasil e Estados Unidos firmaram acordo prevendo procedimento escrito e formal, intermediado por órgãos específicos de lado a lado.
    Em outras palavras, mais do que uma operação anticorrupção, como sempre tentou se mostrar, a Lava Jato começa a ter sua verdadeira face desenhada. Ela é parte do kit da “guerra híbrida” adotado pelos Estados Unidos para intervir na política e na vida de países. No caso brasileiro, as razões são muitas. Desde o início dos anos 2000, estudos apontavam que o Brasil tinha tudo para, em menos de duas décadas, se transformar em potência mundial.
    Esses estudos, claro, incomodaram a grande potência mundial e potência maior do hemisfério, mas acabaram sendo deixados de lado em função dos ataques terroristas às torres gêmeas, em 2001. Nesse meio tempo, assumiu o poder no Brasil e também na maioria dos países da América do Sul, governos populares que buscaram o desenvolvimento de suas economias e parcerias no cenário internacional.
    O Mercosul foi fortalecido, a Unasul foi criada e o Brasil esteve à frente do surgimento do BRICS e passou a integrá-lo, juntamente com Rússia, Índia, China e África do Sul.
    Como se isso não bastasse, o Brasil anunciou em 2007 a descoberta do pré-sal e em 2014, apesar da pesada campanha da mídia para derrotar o PT, Dilma Rousseff consegue se reeleger, com a agremiação dando início ao seu quarto mandato à frente da presidência da República.
    Para alguns, tudo isso não passa de “teoria da conspiração”, mas se os fatos forem observados, coincidentemente as ações da Lava Jato apontam para a desorganização e estabelecimento do caos na economia brasileira e para a criminalização de governos que possibilitaram inúmeros avanços ao país.

    Outro efeito prático da Lava Jato foi, sob o argumento de “combate à corrupção”, levar empresas brasileira como a construtora Odebrecht praticamente à falência, obrigada a demitir mais de 230 mil funcionários. Já a Petrobras, além da campanha de desmoralização a que foi submetida, teve que pagar multas milionárias para acionistas
    nos Estados Unidos.
    Em 2014, os serviços de inteligência dos Estados Unidos já tinham sido pegos com a boca na botija, espionando a então presidente Dilma e os contratos para exploração do pré-sal que estavam sendo preparados pela Petrobras. O então presidente dos Estados Unidos, Barak Obama, nunca negou as espionagens e, até onde se sabe, não pediu desculpas pela ação dos serviços de inteligência. Essa história, em detalhes, está registrada no documentário do diretor estadunidense Oliver Stone, intitulado Snowden. O documentário está disponível na Netflix.
    Vale observar ainda que operações semelhantes à Lava Jato (ou mesmo seus desdobramentos) tiveram lugar na América do Sul, redundando em desorganização da economia desses países, criminalização de governantes populares, eleição de governos neoliberais ou mesmo em golpes de Estado, sempre sob o argumento do “combate à
    corrupção”.
    Voltando a Moro e Dallagnol, nesses seis anos de Operação Lava Jato, eles passaram de figuras inexpressivas a estrelas do noticiário da mídia brasileira (TV Globo à frente). Só que agora estão às voltas para explicar o inexplicável.
    Como se aliaram a integrantes do Departamento de Justiça dos Estados Unidos e a agentes do FBI contra empresas brasileiras? Como incriminaram e condenaram, sem provas, o ex-presidente Lula? Como agiram de maneira nitidamente partidária, uma vez que as condenações recaíram quase que exclusivamente sobre o PT e aliados, deixando de fora notórios corruptos do PSDB?
    Apesar dessas questões já serem levantadas pelos advogados de Lula antes mesmo dele passar 580 dias na prisão, só agora ganharam ressonância.
    Por mais de seis anos – março de 2014 é considerado o seu começo – a Operação Lava Jato mandou e desmandou no Brasil. Além do “combate à  corrupção” ter sido transformado pela direita e pela mídia corporativa em problema número 1 do país, em nenhum dos Poderes houve quem se dispusesse a enfrentá-la.
    A presidente Dilma Rousseff, com sua postura republicana, jamais interferiu ou tentou interferir nessas ações. No Congresso Nacional, a maioria dos integrantes, mais preocupada com as eleições que aconteceriam em poucos meses, não deu atenção ao
    assunto e, pelo lado do Judiciário, tudo parecia certo.
    Só que não.
    As operações que tiveram início com a prisão, pela Polícia Federal, de um dono de posto de gasolina em Brasília (daí o nome Lava Jato) onde havia uma casa de câmbio utilizada para evadir divisas do país, rapidamente levou o Ministério Público Federal em Curitiba a criar uma equipe de procuradores para atuar no caso, sob o argumento de que já investigava um dos doleiros (Albert Youssef) envolvidos em transações com o dono do posto de gasolina.
    Numa história que ainda precisa ser devidamente esclarecida, uma investigação que deveria ter ficado em Brasília foi parar na capital do Paraná. Mais ainda: a descoberta de que Yousseff havia dado de presente uma Land Rover para um ex-diretor da Petrobras, Paulo Roberto Costa, jogou a empresa no olho do furacão.
    Num passe de mágica, os procuradores em Curitiba, chefiados por Dallagnol, começaram a buscar, de todas as formas, um elo entre a corrupção de diretores da Petrobras e o ex-presidente Lula. Nenhum outro presidente lhes pareceu suspeito. Moro, aliás, foi contra investigar Fernando Henrique Cardoso, para não “melindrar apoio importante”.
    Um mês e pouco depois, a operação já contava 30 pessoas presas e 46 indiciadas pelos crimes de formação de organização criminosa, crimes contra o sistema financeiro nacional, falsidade ideológica e lavagem de dinheiro. Nas 71 operações acontecidas desde então, mais de 100 pessoas foram presas e quase o mesmo número condenadas.
    Os processos contra os acusados, o tempo em que ficavam presos sem julgamento, as
    condições em que eram mantidos encarcerados, nada disso parecia importar para a Justiça brasileira e muito menos para a mídia. Enquanto isso, vazamentos, cujo timing
    político era nitidamente calculado, foram fundamentais para impedir, em março de 2016, que Lula se tornasse chefe da Casa Civil de Dilma, e, em 2018, contribuíram para torpedear a candidatura do petista Fernando Haddad à presidência da República.
    Ninguém, obviamente, é contra o combate à corrupção. Mas o que chama atenção é que a Lava Jato não combateu a corrupção. O que ela combateu foi o PT, a democracia, as principais empresas brasileiras e a soberania do país. Uma das primeiras medidas econômicas aprovadas pelo Congresso Nacional, depois do golpe contra Dilma e da posse do ilegítimo Michel Temer, foi um projeto do senador tucano José Serra (SP), alterando a legislação sobre o pré-sal brasileiro, a fim de beneficiar as empresas multinacionais.
    Para complicar ainda mais essa história, que em muitos aspectos se assemelha a um triller de cinema, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Teori Zavascki, morre, em janeiro de 2017, num acidente de avião. Teori era o relator da Lava Jato na Suprema Corte e estava às vésperas de retirar o sigilo de cerca de 900 depoimentos e homologar as 77 delações da Odebrecht. Ele vinha publicamente fazendo censuras à atuação do juiz Moro e da própria Lava Lato.
    Sua família nunca acreditou no resultado da perícia sobre o acidente.
    Depois da morte de Teori, opera-se uma curiosa coincidência. Todas as pessoas chave na Lava Jato, sejam seus integrantes, sejam aqueles, em instâncias superiores, que vão julgar os atos de seus integrantes, passam a ser de Curitiba ou vinculados a Curitiba: Moro, o desembargador do TRF-4, João Pedro Gebran Neto, o ministro do STJ, Félix Fischer, e o ministro que ocupa a relatoria da Lava Jato no STF após a morte de Teori, Edson Fachin.
    Fazendo um corte para os dias atuais, o destino da Lava Jato, mesmo com todas as suas ilegalidades, poderia ter sido outro se não fosse a ambição de Moro. Ao querer incluir em seu currículo além do cargo de ministro da Justiça (negociado com Bolsonaro ainda na campanha eleitoral) uma vaga no STF ou mesmo a presidência da República, entrou em rota de colisão com Bolsonaro.

    O problema para Bolsonaro é que Moro acabou se transformando em “queridinho” de parte da direita brasileira (Globo à frente) e, segundo o sociólogo português, Boaventura de Souza Santos, em candidato dos Estados Unidos à presidência do Brasil, a pessoa ideal para manter o país atrelado aos interesses do Tio Sam. Bolsonaro e Moro estão, assim, disputando num mesmo campo.
    É importante lembrar também que figuras como o ex-advogado da Odebrecht, Rodrigo Tacha Duran, que, há mais de três anos, vem tentando fazer delação premiada contra Moro, parece que finalmente conseguirá. Entre outras coisas, Duran tem dito dispor de provas da existência de vendas de sentenças por parte da “República de Curitiba” e de propina ligando essas sentenças, as delações premiadas e advogados amigos de Moro.
    Os integrantes da Lava Jato, obviamente, não estão dispostos a aceitar seu fim
    passivamente. Na última quinta-feira (2/7), numa tentativa de mostrar serviço, a Lava Jato, que andava meio sumida, reapareceu fazendo uma operação de busca e apreensão na casa do tucano José Serra. Há pelo menos dez anos que as denúncias contra Serra são conhecidas e não deixa de ser esquisito só agora a turma de Curitiba, através do braço de São Paulo, ter resolvido agir.
    A explicação mais plausível parece ser a de que a Lava Jato, a fim de tirar o foco das denúncias de que vem sendo alvo, usou essa operação como manobra diversionista. Diante da ameaça de extinção, nada melhor do que uma ação em cima de um notório
    corrupto que sempre esteve acima da lei, para tentar se mostrar imparcial.
    Outra prova de que a turma da Lava Jato está se sentindo acuada foi o adiamento do
    julgamento de Dallagnol no Conselho do Ministério Público, pelo Power Point contra Lula. Marcado para amanhã (7/7), última sessão antes das férias do meio de ano, o adiamento surpreendeu alguns conselheiros e foi interpretado como medo de derrota,
    especialmente diante das recentes revelações da #Vazajato.
    Se as previsões do ministro do STF, Gilmar Mendes, estiverem corretas, em setembro os dois processos impetrados pela defesa de Lula arguindo a suspeição de Moro para julgá-lo serão analisados. Some-se a isso que a Comissão de Direitos Humanos da ONU já tem em seu poder a documentação envolvendo o julgamento e as condenações, sem provas, de Lula.
    Pelo “conjunto da obra” e por razões diferentes, o fim da Lava Jato está próximo e aqueles que se orgulharam de ter vestido verde e amarelo e ido às ruas apoiar seus “heróis” vão começar a ter vergonha.
    Fizeram papel de bobos.

     

  • Por que Lula foi solto? Para que Lula está solto?

    Por que Lula foi solto? Para que Lula está solto?

     

    ARTIGO

     

    RODRIGO PEREZ OLIVEIRA, professor de Teoria da História na Universidade Federal da Bahia

     

     

     

    Desde 7 de abril de 2018, 580 dias preso. Cheguei a pensar que Lula morreria na cadeia. Até a primeira entrevista no cárcere, no final de abril de 2019, acreditei que jamais ouviria Lula falar outra vez.

    A coalizão de forças que investia na criminalização do Partido dos Trabalhadores parecia mais poderosa que nunca. Sérgio Moro era herói nacional. A vitória de Jair Bolsonaro nas eleições presidenciais sacramentou a aliança entre os dois principais herdeiros do antipetismo: o lavajatismo e o bolsonarismo.

    Moro e Bolsonaro no poder. Não, não era nenhum absurdo acreditar que Lula morreria na cadeia, silenciado, mudo.

    Mas, como nas crises, o mundo gira e capota, muita coisa mudou e Lula foi solto no último dia 8 de novembro, sendo beneficiado pela decisão do STF, que em nova jurisprudência proibiu a execução penal após condenação em segunda instância.

    É óbvio que a libertação de Lula, assim como foi a prisão, não é apenas uma questão técnica, jurídica. É fato político de primeira importância. Tudo que envolve Lula é fato político de primeira importância. Lula é a maior instituição política da história do Brasil.

    Por que Lula foi solto?

    Primeiro, algo tão óbvio quanto a existência do sol: não foram as ruas que libertaram Lula. Se dependesse da mobilização popular, Lula, de fato, morreria na cadeia. Temos aí um grande dilema para a esquerda brasileira: como, diante do ataque aos direitos sociais promovido pelo governo de Bolsonaro, as pessoas não estão nas ruas se organizando, se defendendo? O que falta para o Brasil seguir a via chilena de mobilização popular?

    É difícil responder. Talvez as pessoas ainda creditem a crise aos governos petistas. Talvez os brasileiros não saibam na prática o que significa a Reforma da Previdência, a Reforma Trabalhista, o fim do DPVAT, a PEC dos gastos. Talvez, tal como os chilenos, os brasileiros necessitem de 30 anos de neoliberalismo para entender que o tal “Estado mínimo” é máquina de moer gente pobre. Não há pedagogia mais eficiente do que a experiência.

    Essa é discussão pra mais de metro.

    Fato mesmo é que Lula foi solto por uma costura palaciana provocada por um realinhamento de forças. Os vazamentos dos chats privados dos operadores da Lava Jato, sem dúvida, reorientaram os rumos da crise. Não foi uma reorientação drástica, estrutural, como esperavam os mais ansiosos. Afinal, até o momento em que escrevo este texto, Moro ainda é ministro da Justiça. Bolsonaro ainda é presidente. Mas Lula está solto e isso não é pouca coisa.

    Em janeiro de 2019, Moro chegou à Esplanada dos Ministérios como superministro, como fiador do governo de Bolsonaro. O ex-juiz trazia a cabeça de Lula numa bandeja de prata e, agigantado, se apresentava como o principal vencedor das eleições.

    Rosângela, a “conje”, se animou a tal ponto que deixou escapar uma confissão: “Já estou começando hoje a campanha de 2022”. Naquele momento, Moro era o principal adversário de Bolsonaro. Talvez fosse o único.

    Em junho, o site The Intercept Brasil começou a vazar os chats privados da Lava Jato, trazendo à luz do dia toda a sorte de ilegalidades que atravessam o processo que resultou na condenação de Lula. Conspiração entre promotor e juiz, ofensa às autoridades, xingamentos aos ministros do STF. Gilmar foi chamado de brocha. Carmem Lúcia de frouxa.

    Dallagnol chegou ao ponto de pedir, informalmente, quebra de sigilo financeiro de Dias Toffoli. O Intercept vazou a notícia. Imaginem, leitor e leitora, os ministros do STF sabendo disso.

    Os vazamentos enfraqueceram institucionalmente a Lava Jato. Aqui está a principal explicação para a libertação de Lula.

    Sérgio Moro foi o principal atingido. Bolsonaro, que de bobo não tem nada, aproveitou a oportunidade para subverter a hierarquia previamente estabelecida. Agora é ele quem avaliza Moro, quem intercala declarações de apoio com manifestações de autoridade. “Todos os ministros têm ingerência minha”, disse Bolsonaro em agosto, ao mesmo tempo em que trocava, por conta própria e sem consultar o ministro da Justiça, o diretor-geral da Polícia Federal.

    Em janeiro, tal ousadia seria impensável.

    Lavajatismo e Bolsonarismo até então aliados se divorciaram e hoje disputam hegemonia na extrema direita do espectro ideológico brasileiro. O antipetismo é alimento para ambos. Dois predadores brigando na unha e no dente pela mesma caça.

    O enfraquecimento de Moro e da Lava Jato nos corredores das instituições criou ambiente político propício para que o STF revisasse o entendimento e proibisse a prisão após condenação em segunda instância. Ao que parece, o bolsonarismo não se esforçou para impedir a libertação de Lula.

    Dias Toffoli, que desde outubro de 2018 é tutelado pelos militares, deu o voto de minerva em defesa da Constituição. Se os militares não quisessem, Lula não seria libertado.

    A crise econômica já conta 12 milhões de desempregados, sem horizonte próximo de melhora. Problemas envolvendo milícias. As investigações do assassinato de Marielle Franco batendo, literalmente, na porta de Jair Bolsonaro. Numa situação dessas nada melhor do que ter o antagonista na rua para distrair os sentidos e mobilizar a tropa.

    Lula livre tem significados diferentes na extrema direita.

    Para o lavajatismo, é constrangimento, é prova da ilegalidade, da violência aos ritos jurídicos do Estado democrático de direito.

    Para o bolsonarismo, é janela de oportunidades, é possibilidade de reafirmação de sua natureza antissistêmica. Tudo que Bolsonaro precisa é continuar representando a tal “nova política”. Pra isso, é necessário colar em Lula a pecha da “velha política”, do protegido por instituições corruptas.

    Para que Lula está solto?

    Cabe a Lula e ao PT escaparem da armadilha e não dar a Bolsonaro o controle da narrativa. Lula não pode, de forma alguma, ser visto como símbolo da “velha política”. Ele precisa ser a personificação do Estado provedor de direitos sociais, do poder público que leva água potável e luz elétrica ao sertão, que garante três refeições diárias a todos os brasileiros e brasileiras.

    Lula precisa representar o direito do trabalhador às férias remuneradas, ao 13° salário, à previdência pública. Será mesmo que o “Micro Empreendedor Individual”, o MEI, completamente vulnerável às flutuações de uma economia em crise, não prefere a estabilidade de um emprego formal, com todos os direitos da finada CLT garantidos?

    Lula e o PT precisam evitar a tentação de travar uma guerra cultural com o Bolsonarismo. Nesse campo, Bolsonaro joga em casa. A disputa não deve ser feita no plano do comportamento e nem pautada pelas agendas prioritárias da esquerda partidária.

    A maior parte da população não gosta da esquerda, não tem nenhum compromisso com as agendas da esquerda.

    Até que ponto o povão se incomoda com o envolvimento de Bolsonaro com as milícias do Rio de Janeiro? Será que o grosso do eleitorado brasileiro está preocupado em saber quem matou Marielle?

    Se o objetivo for enfrentar o bolsonarismo nas urnas, essas pautas não são estratégicas. Assim como a igualdade de gênero também não é. Sei que é difícil ler isso. Também não é fácil escrever.

    O debate precisa estar centrado na materialidade da vida, em seu sentido econômico. Dinheiro no bolso, emprego, comida na mesa, consumo. Lula deve agir como indutor de memórias. O povão precisa lembrar que com Lula a vida era melhor, o prato estava mais cheio. Sobrava uma graninha pra comer pizza no shopping.

    Sim, Lula foi solto por uma costura palaciana. Isso não quer dizer que ele não tenha um trabalho importante a fazer aqui, do lado de fora, em defesa dos mais pobres, que são as principais vítimas do Bolsonarismo, ainda que não saibam disso.

    Lula livre!!! Por uma questão de justiça. Mas, politicamente, a liberdade de Lula de nada servirá se não for para recuperar o quinhão do Estado perdido com o golpe parlamentar de 2016.

    Lula está livre para liderar o retorno do projeto político popular e redistributivo ao governo. Pra isso, precisa vencer eleição. Essa é sua última missão. Talvez seja a mais difícil de todas.

     

  • Exclusivo: Glenn Greenwald receberá Moção de Aplausos na Alerj

    Exclusivo: Glenn Greenwald receberá Moção de Aplausos na Alerj

    O jornalista Glenn Greenwald, um dos fundadores do site de notícias investigativas The Intercept, receberá uma Moção de Aplausos e Congratulações da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj). A honraria do legislativo fluminense foi solicitada pela deputada estadual Renata Souza (PSOL).

    Recentemente Glenn, em conjunto com outros repórteres da agência, passou a publicar uma série de matérias intituladas “as mensagens secretas da Lava-jato”, que revelam em chats secretos a colaboração do Juiz Sérgio Moro com o promotor Deltan Dallagnol, chefe da força-tarefa da operação.

    Para Renata Souza, que também é jornalista, o reconhecimento vem pelos trabalhos prestados por Glenn para a Brasil: “Reconhecemos a importância do jornalismo independente e comprometido com a verdade que Glenn Greenwald representa. A sua atuação cumpre um papel fundamental para a imprensa mundial”, afirma a deputada do PSOL.

    A entrega da homenagem ainda não foi marcada, mas a proposição já foi publicada em Diário Oficial do Estado do Rio de Janeiro. Confira aqui 

    Nesta terça-feira (9), ao completar um mês da série de reportagens conhecida como #VazaJato, Glenn publica o primeiro áudio, de uma sequência que ainda está por vir, onde o procurador da Lava-Jato, Deltan Dellagnol, fala sobre a decisão do ministro do STF Luiz Fux de barrar entrevista de Lula à Mônica Bergamo poucos meses antes das eleições.

    Veja a reportagem completa do The Intercept Brasil clicando aqui .

    A horaria do legislativo fluminense será entregue pela Deputada Renata Souza (PSOL/RJ)

     

  • É PRECISO PARECER HONESTO

    É PRECISO PARECER HONESTO

    ARTIGO

     

    Alexandre Santos de Moraes, professor do Instituto de História da Universidade Federal Fluminense

     

     

    Suetônio e Plutarco foram famosos biógrafos da Antiguidade que escreveram sobre a vida do ainda mais famoso Caio Júlio César. Narraram seus feitos políticos, suas conquistas e sua morte, quando foi atacado por conspiradores que encetaram 23 punhaladas em seu corpo. Dentre eles estava Décimo Bruto, por quem o ditador nutria particular estima. Diz-se que suas últimas palavras, dirigindo-se a ele, foram: “Até tu, meu filho?”.

    Mas essa não foi a única traição de que César foi vítima. Anos antes, conta-se que Pompeia, sua esposa, manteve relações extra-conjugais com um sujeito chamado Públio Clódio, um de seus muitos aliados políticos. A descoberta do adultério foi bastante insólita. Celebrava-se na casa de César uma festa religiosa exclusivamente feminina. Não era permitido que homens estivessem presentes ou se aproximassem do local. Clódio, tomado pelo desejo, travestiu-se e entrou nos festejos para se encontrar com Pompeia. A princípio, ninguém percebeu, mas sua voz o denunciou. Após alguns berros diante do flagrante, as portas foram trancadas para que Clódio não saísse. Diante da descoberta, César repudiou sua esposa, ainda que alegasse desconhecer a veracidade das denúncias. Era uma estratégia para não se opor politicamente contra Clódio. Parecia uma contradição: se duvidava do adultério, por que repudiar Pompeia? César respondeu: “Julguei conveniente não estar minha esposa nem mesmo sob suspeita”. Esse episódio gerou o conhecido provérbio: “A mulher de César não basta ser honesta, deve parecer honesta”.

    No fim das contas, menos importante do que a efetiva traição de Pompeia, foram os rumores. César era um homem público e cuidava com extremo cuidado de sua imagem. Nessa época, a República romana enfrentava uma crise sem precedentes e se tornou particularmente suscetível à ascensão de homens poderosos, que conseguiam acumular mais poderes pessoais do que era costume em períodos menos turbulentos. Não era suficiente ter um grande sucesso militar: era preciso celebrar o triunfo em Roma e receber as glórias pela conquista diante do povo. Mas ainda que se pensasse em alguma “essência”, era preciso cuidar da “aparência”. E se, por ventura, a aparência se impusesse a despeito do que era essencial, às favas com a verdade. Pompeia pode ou não ter traído César, mas os rumores precisam ser considerados. A honestidade só era um valor se fosse publicamente reconhecida. Parecer era, de alguma forma, mais importante do que ser.

    Não há como saber se o ministro Sérgio Moro conhece essa história de César. Ele diz ser leitor ávido de biografias, mas se não lembra nem mesmo da última que leu, o que não inspira fé na eventual lembrança que teria de Plutarco ou Suetônio, caso tivesse passado por eles em algum momento da vida. No entanto, ainda que afogado na mais absoluta ignorância, teve a astúcia de reconhecer a bela oportunidade que as crises republicanas oferecem para a construção de poderes pessoais. Mais do que isso, contra toda a desejada discrição que o cargo de juiz exigia, moveu as pedras do tabuleiro com perícia para tornar a turbulência na República ainda maior.

    Sérgio Moro é uma espécie de parasita que toma a democracia como hospedeiro: engorda à medida que ela emagrece. Afinal, se a rotina democrática não estivesse abalada, não seria representado como Superman, não receberia aquele esdrúxulo troféu de um deputado governista e não teria seu rosto estampado na camisa de seus devotos seguidores. Como César, Moro viu na crise a oportunidade de ascensão e de ganhos pessoais, usando a magistratura em seu favor.

    Mas nesse caso, Moro está mais para Pompeia do que para César: é possível que ele tenha se esbaldado nos lençóis de Clódio, mas precisa parecer honesto. Ele percebeu também que a magistratura era o espaço mais adequado para manter a aparência de honestidade. Afinal, a partir de 2014, quando surgiu a Lava Jato, o povo brasileiro se mostrou particularmente carente de pão e ainda mais desejoso por circo.

    O Tribunal de Moro se tornou a arena em que gladiadores escravizados pelas sentenças disputavam a liberdade por meio do espetáculo das delações. Do alto, o polegar subia ou descia em função do conteúdo da delação: se fosse a favor de Lula, perdia-se os bens e a liberdade; se ajudasse a condenar o ex-presidente, liberdade e restituição do patrimônio. Foi assim com Léo Pinheiro e diversos outros que receberam do juiz os prêmios por delatarem seus desafetos. Também na imprensa, com as divulgações ilegais de escutas telefônicas, Moro logrou diversos sucessos. Muitos juízes criticaram suas ações, mas não importava ser honesto: dizia que tinha um objetivo para a ação penal e a aparência o redimia.

    A última divulgação de áudio que fez como juiz foi o da delação de Palocci, às vésperas da eleição de Jair Bolsonaro. Até hoje, há imensa dificuldade para entender essa publicidade para fora do jogo eleitoreiro. Quando confrontado, Moro evitava os holofotes e fazia uso da necessária sobriedade do cargo que ocupava, esquivando-se de explicações públicas e contando com a conivência do sistema de Justiça que, mesmo reconhecendo a desmedida, trabalhou para manter sua aparência ilibada. Vaidoso, escolheu e ainda escolhe meticulosamente onde vai se expor e, quando convocado a prestar esclarecimentos, responde apenas o que lhe convém.

    O observador atento, pouco suscetível ou sabedor dos riscos associados aos poderes pessoais, percebeu há muito tempo sua artimanha. No entanto, Moro se viu tão confortável nesse jogo de aparências que não se melindrou em assumir um cargo importantíssimo no governo que ajudou a eleger. O pudor teria ido às favas, mas ele soube jogar: quando era juiz, portava-se como político; agora, político, comporta-se como juiz. Alega que seu cargo é técnico para, mais uma vez, parecer honesto, ainda que não seja. Moro tem pavor de parecer a mulher de César.

    Porém, as denúncias do The Intercept Brasil mudaram o jogo. O feitiço virou contra o feiticeiro e a quebra do sigilo, que garantiu sua ascensão, aproxima-o cada vez mais da ruína. A lógica parasitária, no entanto, permanece, e o sistema de Justiça sabe que precisa se livrar de Moro para garantir a sobrevivência da instituição. Os dois não podem coexistir. A República Federativa do Brasil está de joelhos diante de Moro e Bolsonaro como a República romana ficou diante de César. Há indícios claros de que promotores começam a se movimentar, seja para salvar a própria pele, seja para resguardar o mínimo de credibilidade no seu ambiente trabalho. À medida que as reportagens vão sendo publicadas, Moro se aproxima da reunião fatídica em que receberá as punhaladas. Parecer honesto já não parece simples. Resta saber quem será o Bruto a quem dirigirá seu olhar derradeiro.

     

     

  • Folha não teve coragem de publicar manchete real: “Lava Jato induziu Léo Pinheiro a mudar versão duas vezes até incriminar Lula”

    Folha não teve coragem de publicar manchete real: “Lava Jato induziu Léo Pinheiro a mudar versão duas vezes até incriminar Lula”

    Yuri Silva*

    A Folha de S. Paulo publicou neste domingo, 30, em parceria com o site The Intercept Brasil, a reportagem até agora mais impactante e contundente da Vaza Jato, sem sombra de dúvida.

    O conteúdo é incisivo ao mostrar que os procuradores da operação Lava Jato induziram o empresário baiano Léo Pinheiro, da construtora OAS, a incriminar o ex-presidente Lula.

    O jornal mostra como a delação da empreiteira, até hoje não homologada, foi sendo postergada (e ameaças de prender o empresário foram sendo feitas) para forçar que ele citasse Lula como participante de esquema de corrupção, a fim de condenar o líder petista.

    Somente após fazer isso, Léo Pinheiro passou a ter a “credibilidade” entre os procuradores da força-tarefa, mostram as trocas de mensagens entre os prepostos do Ministério Público.

    A manchete do jornal da família Frias, contudo, é pura vacilação jornalística.

    Na reportagem mais relevante desde que fechou parceria com o The Intercept para analisar as conversas conjuntamente com profissionais do site, a Folha saiu nas suas primeiras páginas dominicais (tanto no jornal impresso quanto na versão digital) com a tímida manchete “Lava Jato via com descrédito empreiteiro que acusou Lula”.

    Nas páginas internas, dizia o diário paulista: “Lava Jato desconfiou de empreiteiro que acusou Lula, indicam mensagens”. Em outra versão, esta no portal digital do veículo, o enunciado para a notícia mais bombásticas do País em muitos anos diferiu levemente do anterior: “Lava Jato desconfiou de empreiteiro pivô da prisão de Lula, indicam mensagens”.

    Em nenhum momento, a Folha de S. Paulo trouxe a manchete “correta”, aquela que cabia ao conteúdo revelado, embora tenha construído lastro para isso no corpo da sua matéria.

    Possivelmente sob o argumento de um pseudo equilíbrio jornalístico, quase sempre evocado nas redações como forma de ‘passar pano’ para poderosos imbricados em denúncias comprometedoras, o jornal fugiu de publicar que a “Lava Jato induziu Léo Pinheiro a mudar versão duas vezes até incriminar Lula”.

    Trata-se de um erro difícil de justificar para quem leu a matéria completa.

    Vários trechos deixam nítido o que a manchete não publicada pela Folha diz/diria.

    Já no segundo parágrafo, sub-lead da reportagem, seus autores dizem: “Enviadas por uma fonte anônima ao The Intercept Brasil e analisadas pela Folha e pelo site, as mensagens indicam que Léo Pinheiro, ex-presidente da construtora OAS, só passou a ser considerado merecedor de crédito após mudar diversas vezes sua versão sobre o apartamento tríplex de Guarujá (SP) que a empresa afirmou ter reformado para o líder petista.”

    Poucas linhas mais à frente, os repórteres Ricardo Balthazar, Flávio Ferreira e Wálter Nunes (da Folha) e Rafael Moro Martins e Rafael Neves (do The Intercept Brasil) fazem a levantada derradeira, que termina de consolidar tanto a força noticiosa da reportagem quanto o erro cometido ao não adotar uma manchete mais precisa em relação ao que diz a reportagem.

    “Léo Pinheiro só apresentou a versão que incriminou Lula em abril de 2017, mais de um ano depois do início das negociações com a Lava Jato, quando foi interrogado pelo então juiz Sergio Moro no processo do tríplex e disse que a reforma do apartamento era parte dos acertos que fizera com o PT para garantir contratos da OAS com a Petrobras. Os diálogos examinados pela Folha e pelo Intercept ajudam a entender por que as negociações da delação da empreiteira, até hoje não concluídas, foram tão acidentadas —e sugerem que o depoimento sobre Lula e o tríplex foi decisivo para que os procuradores voltassem a conversar com Pinheiro, meses depois de rejeitar sua primeira proposta de acordo.”

    A contextualização que segue faz a reportagem ganhar em qualidade e inteligibilidade, deixado bem cristalizado para quem a leu: a Lava Jato induziu Léo Pinheiro a mudar versão duas vezes até incriminar Lula. Uma pena que a Folha tenha optado pela covardia.

     

    Nota: A defesa do ex-presidente Lula publicou nota sobre a reportagem da Folha, que pode ser lida abaixo

    [aesop_document type=”pdf” src=”https://jornalistaslivres.org/wp-content/uploads/2019/06/Nota-Leo-Pinheiro-Folha.pdf”]

     

    *Yuri Silva é jornalista, editor-chefe do portal Mídia 4P (@midia4p e www.midia4p.com), ex-correspondente do Estadão na Bahia e ex-repórter de ‘Cidade’ e ‘Política’ do jornal A Tarde

  • A “Justiça” que forja delação é a mesma “Justiça” que forja flagrante na favela

    A “Justiça” que forja delação é a mesma “Justiça” que forja flagrante na favela

    Texto do Editorial 4P (@midia4p e www.midia4p.com)

    O que as alas nacionais progressistas estão sentindo com relação às falcatruas, acordos espúrios e delações forjadas – construídas no âmbito da Lava Jato por juiz, procuradores e empresários, e reveladas neste domingo, 30, por reportagem da Folha de S. Paulo e do site de notícias The Intercept Brasil – é o mesmo que o movimento negro denuncia por décadas a fio em suas ações de combate ao racismo, apontando para o tratamento dado à população periférica e pobre do Brasil.

    A matéria mostra como os procuradores “trabalhavam” mudanças de delações para, desse modo, incriminar pessoas. O exemplo usado foi o do empresário Léo Pinheiro, da construtora OAS, que ao mudar o seu depoimento por duas vezes, foi pivô da condenação de Lula e teve sua sentença reduzida 70% (de 10 anos e 8 meses para 2 anos e 6 meses).

    O caso de Lula é emblemático para o Brasil e para o mundo. Mas, se “a lei é para todos”, como tanto tem se falado nesses últimos tempos, porque a dor dos negros injustamente encarcerados não causa comoção geral e, principalmente, dos setores progressistas nacionais?

    Ao longo dos anos, casos semelhantes vieram a público inúmeras vezes, em vídeos mostrando policiais mudando cenas de crimes, disparando a arma e colocando mas mãos do cidadão abatido, da maconha colocada na mochila para incriminar, entre outros exemplos emblemáticos.

    Mas por que os que se comovem com o caso Lula, em grande maioria, não saem às ruas, não criam fóruns de debates para se manifestar, não inundam a internet com hashtags que demonstrem a sua indignação e tão somente alguns poucos políticos denunciam tais violências?

    Certamente porque os corpos negros encarcerados são invisibilizados pela cultura do racismo, que, além de estruturar a sociedade desumaniza os corpos negros, transformando injustiças em banalidade.

    Casos como os de Amarildo, Rafael Braga e da modelo Bárbara Querino, além de serem esquecidos, não causam comoção por muito tempo, não servem de inspiração para a criação de movimentos em defesa de justiça e equidade e não são utilizados como modelos para apresentar tanto à sociedade brasileira quanto às autoridades internacionais as violações de direitos desses cidadãos, promovidas pelo Sistema de Justiça.

    É como disse, certa feita, o sociólogo Jessé Souza:

    “Essa lei social está para além da nossa consciência e comanda o cara que vai carregar o corpo desse pobre, o advogado que vai cuidar do caso, o juiz que vai dar a sentença. Está na cabeça da sociedade inteira e é o que diz que aquela pessoa é subgente, indigna do nosso respeito”.

    Até quando?, perguntamos.

    A cidadania plena para a população negra passa por esforços de todos os setores da sociedade e, quem sabe, o caso Lava Jato possa servir para uma reflexão mais profunda sobre a atuação do Sistema de Justiça, afinal a lei e a busca por uma justiça imparcial é para todos.