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  • OS BACHARÉIS DA RESISTÊNCIA

    OS BACHARÉIS DA RESISTÊNCIA

     

    Artigo de Rodrigo Perez Oliveira, professor de Teoria da História da Universidade Federal da Bahia, com ilustração de Duke

     

    O ano de 2005 é chave para a compreensão da crise brasileira contemporânea. Foi aí, no chamado “mensalão”, que se desenhou pela primeira vez aquela que, na minha percepção, é a característica mais importante da crise: o ativismo político dos profissionais da lei.

    Desde 2005 que juízes, desembargadores, ministros dos tribunais superiores e procuradores são personagens recorrentes na crônica política. Depois de 2014, a Operação Lava Jato se tornou palco para a fama desses profissionais. Mais do que nunca, o Brasil é a República dos Bacharéis.

    Os marqueteiros da Operação Lava Jato afirmam que pela primeira vez na história do Brasil os empresários milionários sentiram na pele o peso da lei. É uma meia verdade. Se é meia verdade, por consequência lógica, é meia mentira também.

    Os empresários presos atuavam no ramo da construção civil e de obras de infraestrutura. Os agentes econômicos envolvidos com atividades financeiras e especulativas não foram incomodados. Somente os mais ingênuos são capazes de acreditar que Marcelo Odebrecht ou Léo Pinheiro são mais corruptos que os executivos do Itaú ou do Santander, que também financiavam campanhas eleitorais, que também estabeleciam relações nada republicanas com a classe política.

    Por que uns foram presos, enquanto os outros estão aí, lucrando bilhões todos os anos?

    A seletividade da Operação Lava Jato é óbvia e salta aos olhos de qualquer um que queira enxergar a realidade. A narrativa do combate à corrupção está sendo utilizada como pretexto para o desmanche do Estado e dos investimentos públicos em infraestrutura, o que favorece os interesses ligados ao capital financeiro nacional e internacional. A comunidade jurídica brasileira colaborou com esse projeto, ajudou a desmontar parques industriais, levando empresas nacionais à falência, sempre com o pretexto do “combate à corrupção”.

    Como bem disse Eugênio Aragão, ex-ministro da Justiça, a Justiça brasileira “prometeu acabar com os cupins, mas acabou ateando fogo à casa”.

    Porém, seria um erro dizer que a comunidade jurídica é um bloco homogêneo, que todos os seus integrantes se movem na mesma direção. Alguns momentos na cronologia da crise mostram que o cenário não é tão simples, que há bacharéis dispostos a confrontar a hegemonia daqueles que entregaram seus serviços aos interesses do capital financeiro internacional.

    Destaco aqui três nomes: Rodrigo Janot, Rogério Favreto e Marco Aurélio de Mello.

    Em algum momento da crise, os três contrariaram interesses hegemônicos. Meu objetivo aqui é relembrar esses episódios e sugerir que a resistência democrática não pode abrir mão da institucionalidade. Ir às ruas e disputar o imaginário das pessoas não significa deixar de operar por dentro das instituições burguesas, explorando suas contradições. Uma coisa não exclui a outra. Uma coisa complementa a outra.

     

    Rodrigo Janot

    Rodrigo Janot foi empossado pela presidenta Dilma Rousseff como procurador geral da República em 2013, sendo reconduzido ao cargo, também por Dilma, em 2015. Janot foi personagem protagonista em alguns dos momentos mais agudos da crise brasileira, no período que compreendeu a derrubada de Dilma Rousseff e a ascensão de Michel Temer.

    Sinceramente, não sou capaz de definir a identidade ideológica de Rodrigo Janot, de dizer se ele é de esquerda ou de direita. Talvez ele não pense a realidade nesses termos. Antes de se tornar procurador geral da República, Janot tinha atuação engajada na defesa dos direitos da população carcerária. No segundo turno das eleições presidenciais de 2018, Janot se manifestou a favor da candidatura de Fernando Haddad.

    26 de agosto de 2015. Sabatina de recondução de Janot à chefia da Procuradoria Geral da República. Senado Federal. A crise institucional se aprofundava e começava a se desenhar no horizonte o golpe parlamentar que meses depois derrubaria Dilma Rousseff.

    A oposição, liderada por senadores do PSDB e do DEM, colocou Janot contra a parede. Ana Amélia, Aécio Neves, Aloísio Nunes, Antonio Anastasia exigiam que a PGR denunciasse a presidenta Dilma Rousseff. Foram quase 12 horas de uma sabatina tensa e atravessada pelo partidarismo político. Por inúmeras vezes, Janot disse que não havia indícios suficientes para fundamentar uma denúncia contra a presidenta da República.

    Janot não denunciou Dilma enquanto ela estava no exercício do mandato.

    Já com Temer, o comportamento de Rodrigo Janot foi completamente diferente. Foram duas denúncias, em pleno exercício do mandato. A primeira denúncia foi apresentada em junho de 2017. A segunda veio três meses depois, em setembro.

    Michel Temer precisou acionar suas bases na Câmara dos Deputados para barrar as duas denúncias. Precisou liberar verbas para os deputados aliados. Precisou gastar capital político. Acabou lhe faltando fôlego político para aprovar a Reforma da Previdência, que era a grande agenda do seu governo. Capital político tem limite, igual a peça de queijo: diminui um pouco a cada fatia retirada.

    Se Temer não conseguiu aprovar a Reforma da Previdência, parte da derrota pode ser explicada pelas flechas disparadas por Rodrigo Janot, que acabou colaborando para defender os direitos previdenciários dos trabalhadores brasileiros do ataque do capital especulativo.

    Qual era o seu objetivo? Comprometimento com uma agenda social-democrata? Um republicanismo genuíno que parte do princípio de que não pode existir seletividade na aplicação da lei? As duas coisas juntas?

    Não dá pra saber. Fato mesmo é que ao desestabilizar Michel Temer, Janot contrariou os interesses do rentismo.

     

    Rogério Favreto

    Quem acompanha a trama da crise brasileira lembra bem do dia 8 de julho de 2018. Era manhã de domingo e o país foi sacudido pela notícia que dividiu a sociedade, deixando metade da população em estado de graça e a outra metade babando de ódio.

    “Lula vai ser solto!”. Assim, estampado em letras garrafais em todos os veículos da imprensa.

    Rogério Favreto, desembargador do Tribunal da 4° Região em diálogo direto com lideranças petistas, autorizou um habeas corpus de urgência, determinando a soltura imediata de Lula.

    Todos os envolvidos sabiam que Lula não seria solto. Lula nem fez as malas. O objetivo ali era tático: levar as instituições burguesas a extrapolar os limites da própria legalidade.

    Sérgio Moro despachou estando de férias e negou o habeas corpus, o que ele não poderia fazer. Moro contrariou a ordem de um superior, subvertendo a hierarquia do Poder Judiciário.

    Thompson Flores, presidente do Tribunal da 4° Região, cassou a decisão de Favreto, o que somente poderia ser feito pelo colegiado dos desembargadores.

    Em um ato de resistência, Rogério Favreto deixou claro para o mundo que Lula é um preso político que a todo momento inspira atos de exceção.

     

    Marco Aurélio Mello

    Marco Aurélio Mello, tendo mais coragem que juízo, vem sendo a voz da resistência no Supremo Tribunal Federal. Eu poderia dar vários exemplos de ações de Marco Aurélio em defesa da Constituição, da legalidade democrática e da soberania nacional. Fico apenas com dois.

    1°) Em 19 de dezembro de 2018, na véspera do recesso do Judiciário, Marco Aurélio soltou um bomba: em decisão autocrática determinou que a Constituição fosse respeitada, ordenando a libertação de todos os presos condenados em segunda instância, o que beneficiaria o presidente Lula.

    É que a Constituição é clara. Só pode prender depois do trânsito em julgado. Se está errado ou não é outra discussão. Constituição não se questiona, a não ser para fazer outra Constituição.

    Liminar pra cá, liminar pra lá. Procuradores da Lava Jato convocando entrevista coletiva para dizer como STF deveria agir. Mais uma vez a sociedade dividida. Novamente, Lula nem fez as malas, pois experimentado que é, sabia muito bem que não seria solto.

    Dias Toffoli, presidente do STF, derrubou a decisão de Marco Aurélio, contrariando o regimento interno da Casa, que diz que somente a plenária do colegiado é legítima para anular ato autocrático de um ministro.

    Se Lula não estivesse preso, o regimento seria respeitado. Lula não é um preso comum.

    2°) Na última semana, vimos outro embate entre Marco Aurélio e Dias Toffoli. Dessa vez, o motivo foi a venda dos ativos da Petrobras. Marco Aurélio, outra vez em decisão autocrática, proibiu a venda, num ato de defesa da soberania nacional. Dias Toffoli autorizou a venda, se alinhando aos interesses privados e internacionais.

    Apresentei três exemplos, de três profissionais da lei que em algum momento da crise contrariaram os interesses que hoje ditam os rumos da política brasileira. Não existiu nenhuma articulação entre eles. Os exemplos mostram apenas que as instituições burguesas não são homogêneas, que existem contradições que devem ser exploradas.

    A resistência democrática, portanto, precisa se equilibrar sobre dois pés. Um nas ruas, agitando e apresentando soluções para o nosso povo, que já vai começar a sentir na pele as consequências de um governo ultraliberal, autoritário e entreguista. O outro pé deve estar bem fincado nos corredores palacianos, onde se desenrolam as tramas institucionais.

    Precisamos, sim, de líderes populares, de líderes que saibam falar ao coração do povo, que entendam as angústias da nossa gente. Precisamos também de articuladores, de conhecedores da lei e dos regimentos, de lideranças versadas no jogo jogado nos bastidores. Resistência democrática é trabalho de equipe.

     

  • NOVAS PRÁTICAS DE RESISTÊNCIA PARA NOVOS TIPOS DE GOLPE

    NOVAS PRÁTICAS DE RESISTÊNCIA PARA NOVOS TIPOS DE GOLPE

    Rodrigo Perez Oliveira, professor de Teoria da História da UFBA, com ilustração de Stocker

    À direita dizem que não está acontecendo um golpe no Brasil. Afinal, os canhões não estão nas ruas e não tem milico governando. Se não tem milico governando e canhão na rua, os da direita dizem que não é golpe. Pra ter golpe mesmo só com canhões na rua e milico governando. Não pode ser diferente.

    À esquerda, por uma lógica inversa, também existe o mesmo fetiche com as baionetas. Os companheiros e companheiras estão sempre à espera da chegada dos canhões. Basta um general de pijamas e sem tropas vomitar meia dúzia de tweets que o pânico se espalha. Afinal, se é golpe, e os da esquerda dizem que é golpe, tem que ter canhão na rua e milico governando. Não pode ser diferente.

    Uns e outros erram porque não percebem que os tempos mudaram e os golpes mudaram junto. Mudaram também as formas de resistência. É exatamente disso que quero falar neste ensaio. Novos tipos de golpe exigem novas práticas de resistência. Trato aqui especificamente da resistência que vem sendo organizada pelo Partido dos Trabalhadores.

    Antes, alguns esclarecimentos:

    “Guerra Híbrida” / “Lawfare”

    É impossível entender o que está acontecendo no Brasil sem compreender o que essas palavras significam.

    “Guerra híbrida” é um termo usado para definir estratégias de ataque que não se limitam à esfera militar. Na “guerra híbrida” não ouvimos bombas estourando e metralhadoras produzindo o som da morte. Não há vísceras e membros espalhados no chão. A “guerra híbrida” acontece em silêncio e com tom de legalidade. A “guerra híbrida” é tão discreta que nem parece guerra. Mas é guerra sim. É muita guerra.

    A “guerra híbrida” envolve ciberataques, difusão de fakenews, espionagem, desestabilização de governos.

    Até hoje ainda existe quem acredita que o Lulinha é dono da Friboi. Os donos da Friboi já foram presos, já ficou evidente que o Lulinha nunca teve nenhuma relação com a empresa. Mesmo assim, não é difícil ouvir na rua alguém dizendo “Lulinha era zelador de zoológico e agora é dono da Friboi!”. A “guerra híbrida” também deixa cicatrizes.

    Na “guerra híbrida” chefes de Estado são espionados. Foi isso que a CIA fez com Dilma entre 2013 e 2015. Deve ter feito mais, provavelmente fez mais. Deve tá fazendo isso agora com centenas de pessoas ao redor do mundo.

    Sabiam não, leitor e leitora? Tão achando que é teoria da conspiração? Não é não. É verdade verdadeira. A CIA espionou a Dilma entre 2013 e 2015, exatamente quando a crise brasileira se tornava mais aguda. Teve maior repercussão na época. Deu até no “Fantástico”. Só googlar aí que vocês acham.

    É tática da “Guerra Híbrida” utilizar a lei para perseguir adversários políticos. É isso que chamamos de lawfare. O caso do triplex do Guarujá é o exemplo mais acabado de lawfare. Daqui uns tempos vai ser tutorial de lawfare.

    Resumindo, relembrado:

    A família Lula da Silva comprou uma quota imobiliária num condomínio. Essa quota foi declarada no Imposto de Renda de Lula e de dona Marisa. Até aqui não existe triplex. É uma quota imobiliária, apartamento na planta, desses que a gente paga as prestações.

    Aí, Leo Pinheiro, um “campeão nacional” (termo usado para designar os maiores empresários do país), sabendo que Lula é um ativo político importante, chegou à meia voz e disse:

    – Que apartamento chinfrim, presidente. O senhor merece mais. Vamos dar um plus nesse negócio!

    Leo Pinheiro, no lugar da tal quota imobiliária, ofereceu um triplex para Lula no mesmo condomínio. Ele queria que Lula pagasse um apartamento normal e recebesse um triplex, com elevador privativo, cozinha planejada, banheira de hidromassagem e um monte de outros luxos que eu nem sei que existem.

    Lula visitou o apartamento, foi fotografado. O zelador do prédio disse que a obra estava sendo supervisionada pessoalmente por Marisa Letícia. Essas são as provas mobilizadas por Sérgio Moro: a fotografia e o testemunho do zelador.

    Lula aceitaria o regalo? Daria algo em troca? A relação de Lula com os “campeões nacionais” se tornou abusiva e imoral? Lula poderia ter sido mais cuidadoso?

    Temos aí conversa pra mais de metro e cada um pode acreditar no que quiser. Fato, fato mesmo é que a família Lula da Silva não ficou com o triplex, nunca morou no triplex. O triplex nunca foi de Lula. Além disso, Sérgio Moro não conseguiu mostrar em quais atos de ofício, Lula, na posição de presidente da República, beneficiou a OAS para fazer por merecer os mimos.

    Hoje, Lula está preso, condenado a 12 anos em regime fechado.

    Por outro lado, existe um e-mail onde Fernando Henrique Cardoso pede dinheiro a Marcelo Odebrecht, outro “campeão nacional”. Entendam: FHC pediu, textualmente, dinheiro. Tipo, “Ei você aí, me dá um dinheiro aí”.

    O Ministério Público e a Polícia Federal não tocaram em Fernando Henrique Cardoso, não relaram nenhum dedinho nele.

    É assim que a lawfare está funcionando no Brasil: a ampliação seletiva do conceito de “corrupção” visando a criminalização de determinadas lideranças políticas.

    É evidente que estamos vivendo em uma situação de golpe, um outro tipo de golpe, é claro. Sem canhões na rua, sem milico no governo, mas nem por isso menos golpe. Não precisa ter canhão na rua e milico governando para ser golpe.

    Como é possível reagir a esse novo tipo de golpe?

    Luta armada? Fugir da polícia? Milhões de pessoas nas ruas protestando?

    No dia da prisão de Lula, muitos companheiros e companheiras, tomados pela emoção, prometiam resistência direta. Outros diziam que Lula deveria fugir para uma embaixada. Todos estavam equivocados.

    Politicamente é melhor ser mártir do que ser fugitivo. É melhor estar preso do que estar foragido. É mais seguro também. Duvido que alguém tenha coragem de matar Lula numa prisão brasileira. Agora, em qualquer outro lugar do mundo….

    Milhões de pessoas nas ruas protestando seria algo maravilhoso de ver. Mas essa não é a nossa realidade. Não vivemos, no Brasil e no mundo, tempos de mobilização. As agendas coletivas não afetam mais as pessoas. As pessoas olham umas para as outras e enxergam mais diferenças que semelhanças.

    O que fazer, então, diante de um cenário tão complexo? Como reagir a esse novo tipo de golpe?

    Estou convencido de que a direção do Partido dos Trabalhadores encontrou a estratégia adequada: insistir nos trâmites institucionais.

    Trata-se de uma crença ingênua na legalidade?

    Não, de forma alguma. O objetivo é esgotar as instituições, levando-as ao seu limite, obrigando-as a adotar medidas de exceção. O Partido dos Trabalhadores obriga os golpistas a deixarem no chão as suas pegadas. Destaco três momentos em que a estratégia ficou muito clara.

    1) O processo de impeachment da presidenta Dilma

    Desde a admissão do pedido de impeachment na Câmara dos Deputados já estava claro que Dilma seria afastada. Mesmo assim, o Partido dos Trabalhadores foi até o fim, esgotando os mecanismos institucionais. Isso não foi feito para permitir que José Eduardo Cardozo desse seus showzinhos de eloquência. O objetivo era fazer com que os deputados, em rede nacional, encenassem aquele espetáculo grotesco que vimos em 17 de abril de 2016. O objetivo era forçar os senadores a dizerem com clareza que não estavam a favor do impedimento por causa das pedaladas fiscais, mas, sim, pelo “conjunto da obra”.

    Apenas no parlamentarismo é possível derrubar um governo ruim. No presidencialismo, somente crime de responsabilidade derruba governo. O impeachment de Dilma é um golpe parlamentarista contra uma República presidencialista.

    Tá tudo gravado, registrado em nota taquigráfica. O golpe de 2016 talvez seja o evento mais documentado da história política brasileira. É fácil, fácil contar essa história.

    2) A ofensiva de Rogério Favreto

    Ainda está fresco na memória de todos nós o dia 8 de julho de 2018, um domingo, quando Rogério Favreto, desembargador do TRF-4, ligado ao Partido dos Trabalhadores, autorizou um habeas corpus em benefício de Lula.

    Nenhuma ilegalidade aqui. O desembargador de plantão é soberano e sua decisão somente pode ser anulada pelos outros juízes. Nesse dia, as forças do golpe agiram à revelia da lei e, informalmente, ordenaram que a PF descumprisse a ordem de soltura. Qualquer outro preso seria solto, nem que fosse para prende outra vez no dia seguinte, quando o habeas corpus fosse derrubado.

    O que vale para todos não vale para Lula. No dia 8 de julho de 2018, o Partidos dos Trabalhadores obrigou os golpistas a saírem daquela tradicional preguicinha de domingo para mostrar ao mundo que Lula é um preso político que a todo momento inspira atos de exceção.

    3) A representação na ONU

    A notícia de que a ONU havia feito uma recomendação pela garantia dos direitos políticos de Lula caiu como uma bomba em 15 de agosto de 2018, provocando reações apaixonadas por todos os lados.

    Na letra fria da lei, a recomendação não altera em nada a situação do presidente Lula. Porém, a manifestação da ONU, provocada pelo PT, irá obrigar as forças do golpe a descumprirem tratados internacionais que o Brasil, no exercício de sua soberania, assinou.

    Isso pode se desdobrar em sanções comerciais, em constrangimento diplomático, além de desgastar a imagem de algumas lideranças do Judiciário brasileiro, especialmente de Luís Roberto Barroso, que é o relator do caso Lula no TSE. Barroso é aquele típico bacharel tropical colonizado: adora pagar de civilizado no centro do mundo, como quem diz “Vejam como sou limpinho”.

    Se fosse outro preso, o golpe não sacrificaria o pouco de credibilidade internacional que ainda lhe resta. Lula vale o esforço. Com Lula, tudo é diferente. É que Lula não é um preso comum, é um preso político.

    De burro, nosso povo não tem nada. As pessoas viram isso tudo, estão vendo o que está acontecendo e essa percepção se traduz em manifestação eleitoral.

    Tá tendo golpe, tá tendo muito golpe. Mas tá tendo resistência também. Uma resistência possível e adequada aos novos tempos. Não é a resistência dos nossos sonhos. Todos sonhamos com resistência direta e épica. Nossos sonhos estão ultrapassados.

    Ao que parece, a resistência está dando resultado, um resultado possível: Dilma lidera com folga para o Senado em Minas Gerais. Lula, no calabouço de Curitiba, sem fazer campanha, cresce a cada pesquisa. Tudo indica que Haddad herdará uma quantidade suficiente de votos para chegar pelo menos ao segundo turno. A situação não está fácil também para os golpistas.

    Penso que há motivo para termos algum otimismo, nem que seja para preservar a saúde mental. Além disso, como já disse Frei Beto, mais vale deixar o pessimismo para dias melhores.

  • Sérgio Moro prevaricou, afirma notícia-crime

    Sérgio Moro prevaricou, afirma notícia-crime

    O juiz Sérgio Moro “orientou o delegado da Polícia Federal a não cumprir a ordem” expedida pelo Desembargador Rogério Favreto. Ele, dessa forma, “interferiu indevidamente nas atribuições do Tribunal Regional Federal e do Superior Tribunal de Justiça, quando estava em gozo de férias”.”Moro não detinha jurisdição e nem competência para obstar os efeitos da decisão do Desembargador”.

    Ao impedir que o Habeas Corpus fosse cumprido, o juiz Sérgio Moro “incidiu no comportamento típico do artigo 319 do Código Penal (prevaricação)”. O crime de prevaricação, descrito nesse artigo, é praticado por funcionário público ao “retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício, ou praticá-lo contra disposição expressa de lei, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal”. A pena prevista é de detenção, de três meses a um ano, e multa.

    Essas são as justificativas da notícia-crime que membros do coletivo Advogadas e Advogados Pela Legalidade Democrática entregaram ao Ministério Público Federal da 4a Região. A notícia-crime é um procedimento que qualquer cidadão pode adotar de levar à autoridade o conhecimento de um ato criminoso.

    O texto da notícia-crime destaca ainda que o ato praticado pelo juiz é incompatível com o decoro da magistratura e que deixou transparecer seu sentimento pessoal contrário ao ex-presidente.

    Por entenderem que estão presentes todos os requisitos que demonstram a infração à lei cometida por Moro, os advogados requerem que o Ministério Público abra uma “investigação sobre o comportamento do noticiado para o fim de instaurar a respectiva ação penal pública”.

    Veja abaixo o vídeo da entrevista do advogado Jorge Garcia e do deputado Wadih Damous na Procuradoria.

    (Via https://www.facebook.comadvogadospelalegalidadedemocatica)

    Nota

    1 Veja aqui a íntegra da Notícia-crime encaminha ao Procurador-chefe do MPF 4a. Região.

    [aesop_document type=”pdf” src=”https://jornalistaslivres.org/wp-content/uploads/2018/07/Notícia-Crime-contra-Sérgio-Moro-final-JG.pdf”]

     

     

  • A barbaridade de uma justiça dominical no caso Lula

    A barbaridade de uma justiça dominical no caso Lula

    Por André Lamas Leite, professor da Faculdade de Direito da Universidade do Porto 

     

    Tá dando vergonha da injustiça brasileira e até no Velho Continente já se fala de que não se respeita mais a Constituição. Já descreve  o arbítrio de se negar a liberdade a Lula como ” uma das páginas mais tristes da justiça brasileira”.

    A barbárie contra Lula é a que se comete diariamente contra  os mais pobres e como alertamos sem uma  verdadeira justiça  a democracia vai perecer. Por isso, cada vez mais se fala em desobediência civil pacífica como a única saída para os tempos sombrios que vivemos. Agora repetindo quase 50 anos atrás vamos ter greve de fome pela soltura de um preso político.

    É tempo de desobedecer a injustiça….

    Do Público

    Domingo ( 8/7), escreveu-se uma das mais tristes páginas da Justiça brasileira. A alucinante sucessão de despachos judiciais impõe um breve resumo do sucedido: o juiz que estava de escala no TRF-4 (Tribunal Regional Federal – 4.ª Região), Rogério Favreto, recebeu um pedido de habeas corpus impetrado por três deputados do Partido dos Trabalhadores (PT), mais tarde reafirmado por novos requerimentos. Entendendo ser sua a competência para decidir, concedeu provimento a esta petição extraordinária, de vetusta antiguidade, nascida no Direito inglês, e que visa restituir à liberdade quem se encontre ilegalmente detido ou preso. Note-se que se não trata de qualquer tomada de posição quanto à justeza ou não da condenação de qualquer recluso, mas simplesmente uma medida que visa restituir a legalidade em situações extremas em que está em causa a violação do direito fundamental individual da liberdade de locomoção.

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    No rigor dos princípios, este juiz tinha toda a competência para tomar a decisão, pois o habeas corpus tem, em qualquer ordenamento jurídico, carácter de processo urgente. Donde, não é verdade que o juiz de turno tivesse ou não a liberdade de decidir. Estava vinculado à decisão. Outra coisa diferente é saber se havia motivo juridicamente fundado para o fazer. A Constituição Federal do Brasil, de 1988, garante, como em qualquer Estado de Direito, que o início de cumprimento de qualquer pena só pode ocorrer após o respectivo trânsito, ou seja, quando o decidido não mais seja impugnável por via de recurso ordinário. Ora, sabe-se que Lula da Silva tem ainda pendente um recurso para um tribunal superior, pelo que tenho por materialmente inconstitucional a anterior decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que havia denegado idêntico pedido pouco tempo antes de o ex-Presidente ter ingressado no estabelecimento prisional. A justificação para que tal tenha ocorrido prende-se com um entendimento jurisprudencial no sentido de que, tendo havido duas decisões confirmatórias de tribunais superiores após uma decisão em 1.ª instância, o cumprimento da sanção penal pode iniciar-se. Sabe-se ainda que a ministra relatora dessa decisão, Cármen Lúcia, não patrocina tal entendimento, mas achou por bem seguir a posição maioritária no STF.

    Donde, compulsado o art. 5.º, inciso LXVIII, da Constituição, que garante o direito à liberdade, bem como o inciso LVII, onde se lê que «ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória», dúvidas se me não oferecem que Lula está em cumprimento inconstitucional e ilegal de pena de prisão, pelo que só deveria ter recolhido ao estabelecimento em que se encontra após o esgotamento de todas as vias recursórias. Assim, não tenho dúvidas que ao “juiz plantonista” assiste toda a razão jurídica. Mas, no Brasil, como em outros Estados, cada vez mais se não consegue deslindar onde acaba a política e começa a Justiça, dado que este magistrado tem conhecidas ligações ao PT e não foi ingênuo o momento exacto, poucas horas depois de o mesmo iniciar o seu turno, a um domingo, que o pedido de habeas corpus foi deduzido. Não tem qualquer competência o juiz Sérgio Moro para tentar “revogar” o despacho de um juiz de um tribunal hierarquicamente superior, no que é uma violação frontal do princípio da independência da judicatura e que deve ser sancionado pelo respectivo órgão disciplinar dos magistrados judiciais brasileiros. Se isto já parece tirado de um filme de terror jurídico, mais ainda o é o apelo à manifestação do Povo nas ruas, arvorando-se Moro num super-herói sem mandato, extravasando por completo as suas competências.

    O juiz titular do processo, no TRF-4, João Pedro Gebran Neto, podia, como fez, revogar a decisão do juiz de turno, o que, em bom rigor, só deveria acontecer quando terminasse o “plantão” do colega. Todavia, compreende-se que, sob pena de existir uma libertação e uma nova detenção, com ainda maior desprestígio para a Justiça brasileira, o mesmo tenha revogado a decisão. Tudo isto se evitaria se se tivesse respeitado a Constituição, a qual não admite outra leitura que não seja a de que Lula se encontra numa espécie de “cumprimento antecipado de pena”, o que nos faz rasgar todos os manuais de Direito Constitucional, Penal e Processual Penal. Em bom rigor, por isso, entendo que a decisão do juiz de turno é juridicamente correcta, o que já não sucede com a decisão agora vigente do desembargador titular do processo, que reafirmou a posição, quanto a mim errada, do STF.

    As ilações políticas são inevitáveis e não adianta dizer que estamos a assistir ao normal funcionamento do Direito. Os princípios basilares do rule of law estão a ser vulnerados, seja Lula ou outro brasileiro qualquer, por um indefensável entendimento do STF. Quando a Justiça se não dá ao respeito e não salvaguarda o reduto das suas competências por via de argumentações solidamente sustentadas no Direito – e apenas nele –, é natural existirem extrapolações de politização dessa mesma Justiça.

    Um país que não respeita a sua lei fundamental descaracteriza-se e abre crises gravíssimas de desfechos imprevisíveis. Uma última nota: não se me afigura possível, atento o disposto na chamada “Lei da Ficha Limpa”, que Lula da Silva possa candidatar-se às eleições presidenciais sem que exista, antes do termo da apresentação das candidaturas, uma decisão final absolutória. Essa é a sua única hipótese, juridicamente falando, de enfrentar o julgamento do voto popular. Tudo o mais são efabulações e jogadas políticas de um Estado polarizado entre os “petistas” e os “anti-petistas”. E Bolsonaro, um político que, digamo-lo com todas as letras, patrocina ideais fascistas, é o único a assistir de camarote e a bater palmas ante o atarantamento da Justiça brasileira. Lula e Dilma terão muitos defeitos, mas um político de extrema-direita, negacionista do Holocausto, com tomadas de posição xenófobas, racistas, machistas e contra os direitos das minorias, só pode conduzir o Brasil a algo parecido a uma ditadura militar, ainda que disfarçada, de tão má memória desse e destes lados do Atlântico

    André Lamas Leite, professor da Faculdade de Direito da Universidade do Porto

  • CRÔNICA DE UM DOMINGO DE CRISE

    CRÔNICA DE UM DOMINGO DE CRISE

    Artigo de Rodrigo Perez Oliveira, professor de Teoria da História da UFBA, com ilustração de Mariano

     

    No último domingo, 8, vimos acontecer um evento que simboliza com perfeição a crise brasileira contemporânea.

    Tratou-se de um evento síntese.

    Relembrando pra quem não está tão atento à crônica política cotidiana, se é que alguém nesse país conseguiu ficar indiferente ao domingo de crise. Ainda não era nem meio-dia quando explodiu na imprensa a notícia de que Rogério Favreto, desembargador do Tribunal da 4° Região, havia aceitado o habeas corpus apresentado por deputados petistas em favor do presidente Lula.

    As manchetes eram bombásticas: “Lula será solto ainda hoje”.

    Os militantes se agitaram nos dois lados do conflito que divide a sociedade brasileira.

    Os anti-lulistas babaram de ódio, xingaram o desembargador Favreto, acusando-o de ser um petista infiltrado no tribunal da 4° região, que até aqui vem sendo território de suplício para o presidente Lula.

    Por sua vez, os lulistas vibraram, como se um habeas corpus emitido por um desembargador, em regime de plantão, já fosse a própria vitória nas eleições que, ao que tudo indica, acontecerão em outubro.

    Meu esforço neste ensaio é tentar pensar o domingo de crise fora de qualquer histeria, explorando o seu “sentido profundo”.

    Chamo de “sentido profundo” a relação do evento com algo maior que ele, com o processo no qual está inserido. Todos os principais aspectos que caracterizam a crise brasileira contemporânea podem ser percebidos neste evento síntese.

    1 – O completo colapso do Sistema de Justiça.

    Temos certa tendência de fetichizar o Sistema de Justiça, como se as leis fossem produzidas e operadas num espaço de austeridade, tendo como critério apenas o “interesse público”.

    É claro que não é assim. Desde sempre, existe uma relação íntima entre os interesses políticos e a criação e a interpretação das leis.

    Não é lei quem condiciona o poder. É o poder quem condiciona a lei. Até aqui nenhuma novidade. Sempre foi assim. Sempre será assim, em qualquer lugar do mundo onde existam seres humanos vivendo em sociedade.

    Porém, a crise brasileira está levando a politização do Sistema de Justiça para além dos limites tolerados pelo marco civilizatório, pelo Estado de direito.

    Primeiro, o caso do Triplex do Guarujá (localizado em São Paulo), sem nenhum vínculo direto com as investigações da Operação Lava Jato, foi capturado por Sérgio Moro, cuja jurisdição se restringe a Curitiba.

    Sérgio Moro não seria o juiz natural do caso. A escolha não foi nada aleatória.

    Que Sérgio Moro tem vínculos claros com o PSDB é algo óbvio para qualquer observador minimamente honesto. É óbvio porque jamais houve interesse das duas partes em esconder esses vínculos.

    Bastar uma simples consulta no Google que o leitor e a leitora tropeçam com inúmeras fotografias que mostram Sérgio Moro confraternizando com lideranças tucanas, em um comportamento inadequado para um juiz.

    Políticos confraternizam entre si, negociam, se deixam fotografar juntos. Um juiz não pode fazer isso, pois o juiz não é político, não pode ser político.

    Alexandre de Moraes foi filiado ao PSDB, foi ministro de Temer e hoje tem cadeira na Suprema Corte. Nunca é demais lembrar que Moraes assumiu o cargo depois da morte de Teori Zavascki, uma morte que jamais foi plenamente esclarecida e que parece ter sido esquecida.

    Para não dizerem que estou sendo exageradamente parcial, também podemos lembrar de Dias Toffoli, que tem sua trajetória vinculada ao Partido dos Trabalhadores. Toda a esperança petista de que o caso do presidente Lula tenha alguma solução legal está baseada na ascensão de Toffoli à presidência do STF, o que acontecerá em setembro.

    A ação de Rogério Favreto em acatar o habeas corpus faz parte desse jogo. É óbvio que o desembargador estava em contato com as lideranças petistas e que a cronologia das ações foi cuidadosamente calculada: domingo, recesso do Judiciário, férias de Sérgio Moro.

    Mas como as instituições estão derretidas, Moro, de férias, talvez vestindo cueca samba canção e usando chinelos de dedo, assinou um documento oficial dizendo que não cumpriria a ordem de soltura. Não cabia a ele cumprir ou não, já que uma vez promulgada a sentença, o juiz de primeira instância perde qualquer controle sobre o processo.

    Além disso, num Estado de direito com instituições minimamente saudáveis, não existe a possibilidade de descumprimento de ordem judicial.

    Se o desembargador era incompetente para a matéria, se a decisão foi equivocada, o habeas corpus deveria ser questionado em sessão colegiada, seja no próprio TRF4 ou nas instâncias superiores. Decisão da Justiça pode ser questionada e depois anulada. Jamais pode ser desobedecida.

    E a Polícia Federal, como fica? Deve obedecer a quem? Ao desembargador ou ao juiz de primeira instância?

    E se um grupo de policiais, por questões ideológicas, quiser obedecer ao juiz de primeira instância e outro grupo, pelos mesmos motivos, escolher o desembargador?

    Entendem, leitor e leitora, onde isso pode chegar?

    2 – A disputa pelo Estado

    Em muitos aspectos, a crise brasileira é a crise mundial. Talvez o Brasil seja o laboratório dessa crise, o principal palco de sua manifestação. Mas crise, de forma alguma, é uma jabuticaba. Não é privilégio nosso. Não mesmo.

    Guardadas as devidas particularidades que variam de país para país, a crise internacional pode ser explicada pelo acirramento das disputas pelo Estado. A conciliação que viabilizou o experimento do Estado de Bem-Estar Social não se sustenta mais e a consequência lógica do fim da conciliação é a radicalização dos conflitos.

    Os que falam em “Estado mínimo” querem se apropriar do Estado, fazer com que o Estado atenda aos seus próprios interesses. Não existe “Estado mínimo” em sociedades complexas. O que existe é a disputa pelo Estado. Cada grupo sempre quer Estado máximo para si e, como o cobertor é curto, isso significa impor Estado mínimo aos outros.

    Por outro lado, os grupos sociais que conquistaram direitos no experimento do Estado de Bem-Estar Social, naturalmente querem manter essas conquistas, protegê-las da ofensiva neoliberal em curso, repito, no Brasil e no mundo.

    No Brasil, com todos os seus defeitos, o Partido dos Trabalhadores, sob a liderança de Lula, representa aquilo que de mais próximo tivemos de uma experiência de Bem-Estar Social. Por isso, Lula não foi solto. Por isso, uma decisão judicial foi descumprida.

    Há muito tempo, Lula deixou de ser um homem e se tornou uma instituição, um símbolo que representa a função social e provedora do Estado. É natural que Lula tenha se transformado no principal alvo do golpe neoliberal em curso no Brasil. Sem a destruição de Lula, o projeto do golpe não se consolida.

    3 – A derrota nas instituições X vitória no imaginário popular

    No final do dia aconteceu o que já era previsto por todos, até mesmo pelos parlamentares que tentaram o habeas corpus: as autoridades que antes tinham bancado a prisão de Lula (Carmen Lúcia, Raquel Dodge, Thompson Flores) sufocaram a rebelião de Favreto e mantiveram a decisão inicial.

    Uma derrota para o PT? Depende da perspectiva.

    A crise institucional é tão grave, abriu-se um fosso tão grande entre as instituições e a opinião pública, que as derrotas institucionais, geralmente, significam vitórias no imaginário popular.

    Dilma foi deposta por um golpe parlamentar. Temer assumiu a Presidência da República. A população rejeita Michel Temer como nunca antes rejeitou um presidente na história desse país. Todas as lideranças que se aproximaram de Temer viram seu capital eleitoral desidratar.

    Rodrigo Maia, Henrique Meirelles, Geraldo Alckmin. Pelo que sugerem as pesquisas, todos teriam um desempenho vergonhoso se as eleições fossem hoje. Nada no horizonte sugere que esse cenário irá mudar em três meses.

    E Lula?

    Lula lidera com folga e o PT continua sendo o partido político mais popular entre os eleitores.

    Os golpistas venceram na disputa institucional, sem dúvida: tomaram o poder de assalto e reorientaram os fundamentos conceituais do Estado brasileiro com a Emenda Constitucional 95 (decretada pela famigerada “PEC dos Gastos”), que entregou a agenda desenvolvimentista do poder público ao controle do mercado. Nem os militares, nem os governos tucanos, ousaram ir tão longe.

    Mas na opinião pública, no imaginário popular, os golpistas perdem, e perdem de goleada.

    Foi exatamente essa percepção que orientou a ação dos parlamentares petistas que apresentaram o pedido de habeas corpus no plantão do desembargador Favreto.

    Na real, como comentei há pouco, todos eles sabiam que o golpe não deixaria Lula ser solto. O próprio Lula sabia disso. Ele nem deve ter feito as malas.

    Mas mesmo assim, a ação foi importante. Talvez tenha sido o lance mais astuto da Partido dos Trabalhadores nessa conjuntura de crise.

    Moro, colocando os pés pelas mãos, mordeu a isca lançada pelas lideranças petistas. Ao assinar documento oficial, em férias, interferindo em um processo que não mais lhe dizia respeito, Moro escancarou o que já era óbvio: Lula não é um preso comum. É um preso político que a todo momento inspira atos de exceção.

    O Sistema de Justiça foi exposto nas suas entranhas corrompidas: um juiz petista mandou soltar e um juiz tucano mandou deixar preso.

    A militância petista, quase acostumada com a prisão de Lula, foi reanimada. Lula passou o dia sob os holofotes da mídia, encenando publicamente um episódio de martírio.

    Foi um ato de guerrilha, rápido, pequeno, com saldo positivo para as trincheiras petistas.

    Isso tudo em um domingo. Não era segunda-feira, não era quinta-feira. Era um domingo, um domingo de ressaca, de luto por mais uma eliminação em Copa do Mundo. Tinha tudo pra ser um domingo preguiçoso, lento, como costumam ser os domingos.

    Não foi. Foi um domingo de crise.

     

  • Algumas lições da farsa do 8 de julho

    Algumas lições da farsa do 8 de julho

    Artigo de Eduardo Nunes Campos, advogado e jornalista em Belo Horizonte, especialmente para Jornalistas Livres

     

    Muitos de nós ainda têm grandes ilusões em relação à “justiça” brasileira, não entendendo que ela, hegemonicamente, é promotora do Estado de Exceção que se instalou no país.

    Muitos de nós não compreendem, de fato, o papel determinante das mobilizações de massa para reverter o quadro sombrio que vivemos. Fazem profissão de fé das manifestações, mas não se sujeitam a deixar o conforto de suas casas para ir às ruas.

    O rei está, mais que nunca, totalmente nu. Por mais tendenciosos e abjetos que sejam os noticiários da grande mídia, sistema Globo à frente, não é possível, a esta altura, esconder que a justiça foi atropelada pela política (como se isto não fosse uma constante entre ambas) e que suas decisões obedecem não ao Direito, mas às conveniências das elites, sejam nacionais, sejam estrangeiras.

    O sistema judicial brasileiro chegou ao fundo do poço. Sua desmoralização não tem precedentes. Pior: tudo graças à sua “cabeça”, ou à falta dela. O STF é hoje uma corte patética, como demonstra, inequivocamente, a nota oficial de sua presidente.

    A justiça nunca foi e nunca será igual para todos, em um regime social de desigualdades. A balança sempre penderá para um lado, o dos poderosos.

    Se a situação das forças progressistas é muito adversa, a das elites que comandam o poder também não é fácil. Ainda que estejam cumprindo seus objetivos, liquidando a soberania nacional e os direitos sociais, a instabilidade política tem se mostrado um custo alto pra elas. O desespero tomou conta de alguns de seus segmentos. Um notório jurista reacionário chegou a afirmar no domingo que o desembargador que mandou soltar Lula, valendo-se de uma prerrogativa a ele assegurada pelo ordenamento jurídico, é um “guerrilheiro e terrorista”.

    As urnas, que parecem ser o único objetivo que impulsiona hoje as forças vivas da nação, não resolverão, por si só, este quadro caótico. Também entre nós prevalece uma grande ilusão em relação ao seu papel e aos seus limites, ainda que não possamos, em nenhuma hipótese, desprezá-las ou subestimá-las.

    Se temos o dever de denunciar à nação o processo de desmonte a que ela está sendo submetida e os interesses econômicos que o determinam, temos a obrigação de refletir sobre os erros que cometemos e de fazer autocrítica sincera deles, para contribuir com sua reconstrução. A educação política de nossa gente é a única garantia de que as mudanças pelas quais lutamos, não apenas hoje, mas historicamente, serão consolidadas e abrirão caminho para um mundo verdadeiramente novo. Nosso campo, genericamente considerado, pode até vencer as eleições. Podemos até viabilizar uma reforma política minimamente progressista. Podemos até estancar o processo regressivo em curso, embora nada disto seja fácil. Isto valerá muito pouco, contudo, se não crescermos, juntos, enquanto nação, se não elevarmos o patamar de nossa consciência política, o que exige de nós o abandono de nossa mística religiosa e de nossa visão de cima, como se fôssemos a elite dos de baixo.

    Um gol a nosso favor!

    A despeito de alguns de nós, ainda iludidos com a “justiça” brasileira, termos ficado decepcionados com o desfecho do domingo, marcamos um gol, sem dúvida alguma.

    Em primeiro lugar, o país parou, depois da Seleção sair da Copa, para acompanhar a evolução dos acontecimentos, na expectativa da soltura ou não de Lula. Independentemente das torcidas a favor e contra, não há como contestar o desespero que tomou conta do Judiciário golpista, na tentativa de impedir a soltura. Moro, em particular, caiu na arapuca. De férias, escancarou de vez sua atuação política e sua perseguição a Lula. Imiscuiu-se em matéria em que é totalmente incompetente. Desacatou ordem de instância superior e articulou para que fosse descumprida. Abriu uma brecha enorme, não apenas para ser punido, quanto para ser considerado suspeito no processo do sítio de Atibaia, em que também já definiu, por antecipação, a culpa de Lula.

    O TRF4, de certa forma, foi pelo mesmo caminho. Por que, pelo menos, não esperou o fim do plantão, para rever a decisão de seu desembargador? Seria o caminho natural, não apenas porque previsto no ordenamento jurídico, como também aos olhos da população atenta. Por que tanta pressa, tanto desespero? Claro, para impedir que Lula tivesse, em algumas horas de liberdade, a possibilidade de potencializar a resistência aos abusos que tem sofrido e impedi-lo de fazer gravações a serem aproveitadas na campanha eleitoral, já que impedi-lo de participar da campanha, como candidato e não só, é o objetivo principal de sua prisão.

    O Judiciário se desmoralizou de vez. Com ele, sua presidente golpista e, paradoxalmente, acéfala. Chegou ao fundo do poço, evidenciando sua total incompetência para garantir a aplicação da lei e mediar, no que tange à sua competência, os conflitos no interior da sociedade. Esse desnudamento pesa a favor das forças democráticas. já que ele é um dos protagonistas do golpe.

    Por mais que a grande mídia queira fazer prevalecer a ideia de que a “jogada do PT” deu errado, sabe, perfeitamente, que isso não aconteceu. Foi, na verdade, uma jogada de mestre. Duvido que seus articuladores tivessem confiança na soltura de Lula. isto nem importa. A estratégia foi tão bem trabalhada que deixou de fora a equipe da defesa de Lula, preservada para continuar seu trabalho junto aos órgãos superiores, em especial o STJ e o STF, sem o desgaste inevitável que teria tido se tivesse participado abertamente da trama.

    De quebra, mais dois dividendos: os acontecimentos deste 8 de julho estimulam a ampliação das mobilizações, ainda muito fracas, e aumentam o desgaste da perseguição a Lula no cenário internacional.

    De todo modo, pra avaliar o resultado, basta ver a cara dos “jornalistas” da Globonews e o desespero da emissora em tentar legitimar suas posições, a partir da fala de juristas ligados ao golpe. Falam por si só!

    Síntese jurídica da batalha de 8 de julho
    1. O desembargador Rogério Favreto, que cumpria plantão judiciário no TRF4, em sistema de rodízio, concede habeas corpus em favor de Lula, impetrado por três deputados do PT.

    2. Sérgio Moro, de férias em Portugal, acionado pela Polícia Federal, resolve entrar na história, dizendo que se recusava a acatar a ordem. Faz contato com Thompson Flores, presidente do TRF4, e pede a ele que resolva a parada.

    3. A Polícia Federal obedece a ordem de Sérgio Moro, e não a do desembargador, e mantém Lula preso.

    4. O desembargador Gebran Neto, arguindo ser o relator do processo de Lula no TRF4, dá uma contraordem à Polícia Federal, determinando a manutenção da prisão de Lula e chamando pra si a responsabilidade de conduzir o tema, fora do plantão. Diz que Favreto foi induzido a erro.

    4. Favreto reafirma sua decisão, sustentando a legitimidade dela e refutando a tese de que foi induzido a erro.

    5. Carmen Lúcia, presidente do STF, emite uma patética nota oficial, sem dizer, rigorosamente, nada. O mesmo faz a OAB nacional.

    6. A Procuradoria da República pede que Flores, enquanto presidente do TRF4, resolva o conflito, emitindo sua opinião, de que a prisão em segunda instância não poderia ser desafiada por um desembargador de plantão.

    7. Flores, enquanto presidente do tribunal, decide por um ‘ponto final’ no conflito, devolvendo a questão para Gebran, negando competência a Favreto.

    Quem agiu em conformidade com o Direito e quem o confrontou:

    1. Favreto, como juiz de plantão, tinha não apenas o direito, mas o dever de apreciar o pedido a ele submetido. Habeas corpus visa a proteção da liberdade, sendo, por definição, sempre urgente.

    2. Moro, Gebran, Flores, a Procuradoria e, claro, a grande mídia, argumentaram que a matéria não poderia ter sido apreciada, por já ter sido decidida pelas instâncias superiores. A Procuradoria põe acento na jurisprudência do STF relativa à prisão em segunda instância. Todos afirmam que Favreto estava passando por cima de decisões de instâncias hierarquicamente superiores.

    3. De fato, o juiz de plantão, mesmo em se tratando de habeas corpus, não poderia analisá-lo, se se tratasse de matéria já apreciada em outro plantão ou já decidida em instâncias superiores, sem fato jurídico novo embasando o pedido.

    4. Favreto sustentou que o fato novo era a pré-candidatura de Lula à presidência da República e seu direito de fazer campanha, como qualquer outro candidato, já que, ainda que se reconheça a legitimidade da prisão em segunda instância – que Lula e sua defesa contestam – , seus direitos políticos encontram-se integralmente preservados, já que não houve trânsito em julgado da sentença condenatória. Gebran, Flores e a grande mídia batem na tecla, insistentemente, que a candidatura é fato público, há muito conhecida, não apenas por todo o Judiciário, mas pela população brasileira. Falácia! Não se trata aqui de fato político novo, mas de fato jurídico. A matéria ainda não havia sido apreciada por qualquer órgão julgador, de qualquer instância. Está à espera de julgamento no STF. Assim, havia no pedido, efetivamente, um fato jurídico novo, e é ele que sustenta a competência de Favreto para julgar o habeas corpus. Matéria nova, sim, sem qualquer relação com a prisão em segunda instância.

    5. Flores afirmou, em sua decisão, que sequer havia advogado de Lula entre os impetrantes do habeas corpus e que, mesmo isso não sendo exigência legal, em se tratando do caso concreto, deveria merecer cautela. Balela! Ainda que a afirmação fosse verdadeira, por que cautela, já que o habeas corpus é instrumento para proteção do direito do réu? Além disto, faltou com a verdade. O deputado Wadih Damous (PT-RJ) foi incorporado à equipe de defesa de Lula, fato que, além de estar nos autos, é de domínio público.

    5. Moro jamais poderia ter se insubordinado em relação à ordem de soltura de Favreto. Ainda que, por absurdo, pudesse despachar, mesmo de férias – há uma antiga decisão do ministro Marco Aurélio Mello admitindo a hipótese, em casos excepcionais -, não tem, hoje, qualquer relação com o acompanhamento do processo, que está na segunda instância e nas mãos de uma juíza da Vara de Execuções Penais de Curitiba. Imiscuiu-se, ele sim, em área em que é absolutamente incompetente, acusação que fez a Favreto, para impedir o andamento do alvará de soltura. Ademais, é inadmissível, em um Estado de Direito um juiz de primeira instância rebelar-se contra decisão de um de segunda instância, em relação a matéria de competência do grau de jurisdição acima dele.

    6. A Polícia Federal cometeu, igualmente, insubordinação. Primeiro, contatou Moro no exterior, não tendo ele qualquer jurisdição sobre o caso; segundo, recusou-se a acatar a ordem de Favreto, e fez corpo mole até receber a contraordem de Flores.

    7. Flores, igualmente, não tinha competência para revogar a ordem de Favreto, mesmo sendo presidente do Tribunal. Só quem poderia fazê-lo era órgão colegiado, depois que terminasse o plantão de Favreto. Certamente, o faria, com legitimidade para tal. Flores não aguardou o trâmite regular do processo, contudo, apenas e tão somente para impedir a soltura de Lula, ainda que por poucas horas, que ele, com certeza, aproveitaria para gravar uma série de inserções para a campanha eleitoral.

    8. A Procuradoria Geral da República, ao invés de levar a questão ao STJ ou ao Supremo, preferiu fazer conluio com a Procuradoria Regional, para que o caso fosse parar, ainda que ilegitimamente, nas mãos de Flores. Seu argumento, já contestado, não tinha qualquer relação com o fundamento do pedido de habeas corpus, mas com a legalidade da prisão em segunda instância.

    9. A Associação dos Juízes Federais (Ajufe), entidade corporativa e reacionária, apoiando as manobras jurídicas de Moro e do TRF4, e a grande mídia, sustentam que Favreto sequer é juiz concursado, e que foi nomeado por Dilma Roussef para o cargo. Pouco importa se é juiz concursado. É desembargador colocado no cargo, legítima e legalmente, por seus méritos. Foi eleito para lista tríplice da OAB do Rio Grande do Sul e nomeado por Dilma em respeito à sua eleição, o que lhe confere, aliás, muito mais legitimidade que um juiz simplesmente concursado. A Ajufe e a grande mídia se esqueceram, propositalmente, de prestar esta informação. A OAB sequer lembrou isto em sua patética nota, que se recusa a entrar no mérito das manobras urdidas e a defender a legitimidade e a legalidade da decisão do desembargador.

    10. A campanha sórdida feita pela grande mídia contra Favreto, classificando-o como petista histórico e desqualificando sua decisão, como se fosse meramente partidária, não ancorada no Direito, se esqueceu também de lembrar que os ministros do STF foram, todos, indicados por presidentes da República, e que o nomeado mais recente, Alexandre de Morais, era tucano militante, de carteirinha, além de ser ministro do governo usurpador.

    11. Carmen Lúcia, como afirmou o jurista conservador Walter Maierovitch, perdeu boa oportunidade de ficar calada, já que não disse nada em sua nota, tentando, como sempre, dar uma de magistrada isenta, enquanto é uma das patrocinadoras maiores da falência de nosso sistema jurisdicional.

    12. A gangue do Ministério Público, agora, leva Favreto ao CNJ, na tentativa de obscurecer, mais que sua atuação absurda no caso, a desobediência de seus comparsas, Moro, Gebran e Flores. É a marcha do golpe, que só pode ser detida pela presença massiva do povo nas ruas, já que o STF, ao invés de contê-lo, foi e continua sendo um de seus protagonistas.

    13. Os Juristas Pela Democracia, por sua vez, pedem a prisão de Moro e do delegado da Polícia Federal, que desobedeceram a ordem de Favreto.

    A conferir os próximos capítulos, em particular a postura do STF e de seus integrantes, individualmente.