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  • QUEM DARÁ O GOLPE NO BRASIL?

    QUEM DARÁ O GOLPE NO BRASIL?

    ARTIGO

    Rodrigo Perez Oliveira, professor de Teoria da História na Universidade Federal da Bahia

     

    Em 1962, no calor de uma grave crise institucional, Wanderley Guilherme dos Santos publicou o livro “Quem dará o golpe no Brasil?”. Texto de intervenção, rápido, atravessado por marcas de oralidade. O jovem cientista político, na época filiado ao Partido Comunista, verbalizou aquele ambiente de incerteza, deixando para nós o testemunho de uma geração que via o futuro se fechar diante de seus olhos.

    Wanderley Guilherme dos Santos não está mais entre nós. Morreu recentemente, deixando um vazio impreenchível na inteligência nacional. Sua pergunta é mais atual que nunca. Novamente, estamos vivendo situação de crise institucional. Outra vez, a possibilidade da ruptura está no horizonte. Mais uma vez, o futuro está sendo bloqueado.

    Quem dará o golpe no Brasil?

    Há mais de um projeto golpista.

    Nas últimas semanas, os generais palacianos foram com frequência às paginas da imprensa. Augusto Heleno e Eduardo Ramos ameaçaram explicitamente o país com golpe militar. Mourão defende o governo. Generais da reserva escrevem manifesto apoiando Bolsonaro.

    Militares da ativa ocupam o governo em centenas de cargos de segundo e terceiro escalões. Resta pouca dúvida de que os militares se tornaram os mais poderosos aliados do bolsonarismo.

    Mas esse casamento é recente. Nunca é demais lembrar que Mourão foi a última opção para a vaga de vice-presidente na chapa que venceu as eleições presidenciais de 2018. Bolsonaro tentou o centrão, tentou Janaína, tentou o sujeito que se diz príncipe. Tentou Magno Malta. Ninguém quis apostar. Ninguém levou fé em Bolsonaro. Magno Malta achou mais seguro tentar a reeleição para o Senado pelo Espírito Santo. Perdeu. Foi escanteado no governo. Se arrependimento matasse, o cabra já estaria morto e enterrado. Deve chorar em posição fetal todos os dias pela manhã.

    Ao longo do primeiro ano de governo, o núcleo ideológico foi hegemônico nas disputas internas e constantemente ofenderam e humilharam os generais. Chegaram mesmo a derrubar Santos Cruz, que comandava a pasta da Secretaria de Governo.

    Bolsonaro passou 2019 inteiro tentando tirar das Forças Armadas o controle sobre a comercialização de armas de fogo. O objetivo era claro: construir uma base armada miliciana que fosse capaz de sustentar um regime de força contra as instituições estabelecidas, incluindo aí as próprias Forças Armadas.

    O projeto golpista orgânico do bolsonarismo, portanto, é miliciano, é paramilitar. Ecoando a crítica da modernidade desenvolvida por Olavo de Carvalho na década de 1990, desde o primeiro dia de seu governo, Bolsonaro vem tentando armar suas milícias, construir sua tropa pessoal, encontrando nas PMs estaduais campo fértil para proselitismo ideológico. Isso fica muito claro na dinâmica dos protestos de rua que vêm acontecendo sempre aos domingos.

    As PMs são tchuchuca com os bolsominions e tigrão com os antifas.

    Mas nem tudo na vida acontece como o planejado. A ruptura com o PSL, a escalada crescente de reação por parte das instituições da República e o derretimento do apoio popular levaram o Bolsonaro a mudar a rota, não sem conflitos com o núcleo ideológico. O evento que marcou essa mudança de rumo foi a nomeação de Braga Netto para o comando do Ministério da Casa Civil, em fevereiro desse ano.

    Chegou-se a ventilar que Braga Netto seria o “presidente operacional” do Brasil, o que faria de Bolsonaro uma marionete manipulada pelos generais. Isso nunca aconteceu. Bolsonaro sempre foi o chefe do governo, e passou a fazer uso retórico da imagem das Forças Armadas, como quem diz “Não mexam comigo porque eles são meus amigos”.

    A crise com Sérgio Moro selou de vez a aproximação de Bolsonaro com os generais palacianos. Ao denunciar Bolsonaro, Moro colocou todos os ministros, incluindo os generais, no campo da prevaricação. Agora, mais do que nunca, Bolsonaro e os generais estão do mesmo lado, juntos contra o STF.

    Juntos irão até o fim. Se o fim vai ser a ruptura institucional, a derrocada, o sucesso eleitoral em 2022 é história ainda a ser escrita. Fato mesmo é que o governo se tornou um bunker onde Bolsonaro e seus generais resistem ao cerco institucional liderado por Celso de Melo, Rodrigo Maia e Alexandre de Moraes.

    As Forças Armadas não têm um projeto para o país. Foram reduzidas à constrangedora posição de guarda pretoriana de um governo formado por bandidos de baixo-clero. Com os generais montando guarda na porta do bunker, Bolsonaro tenta ganhar tempo para organizar suas milícias, mirando o golpe dos seus sonhos.

    Os generais da reserva, comandantes sem tropa, leões sem dentes, ameaçam a nação com um golpe porque estão até o pescoço atolados no esgoto bolsonarista.

    O bolsonarismo raiz vai construindo suas redes milicianas, apostando na sua agenda ideológica: transformar o Brasil num paraíso yankee tropical, com o Estado mínimo e a casa grande, com patriarcas armados, senhores da vida e da morte dentro de seus domínios, sem nenhum constrangimento institucional.

    Golpe miliciano e golpe militar-pretoriano. Dois projetos distintos. Bolsonaro está com um pé em cada barco.

    Em 1962, Wanderley Guilherme cravou: o golpe aconteceria, mas “por razões históricas” não seria um golpe militar, já que as Forças Armadas “jamais se projetaram como uma casta à frente da sociedade”. Na opinião do professor, seria um golpe civil liderado pelas elites entreguistas comandadas por Carlos Lacerda. No máximo, os militares escoltariam os golpistas civis, que seriam as mesmas elites que o PCB acreditava serem aliadas táticas no processo de modernização do Brasil.

    Como sabemos, Wanderley Guilherme errou na previsão. Acontece nas melhoras famílias.

    Hoje, parece claro que Bolsonaro tem duas cartas na manga, está investindo em dois projetos golpistas. Se vai dar certo não tem como saber. Golpe de Estado é operação complexa. A parte mais difícil de todo golpe de Estado é sempre o dia seguinte.

    Porém, a julgar pela radicalização dos conflitos entre o presidente e os outros poderes da República, acho improvável que não haja tentativa de golpe. Virou questão de sobrevivência para o bolsonarismo.

    Será golpe miliciano? Será golpe militar-pretoriano? A combinação entre ambos? Só o tempo dirá. É prudente evitar as previsões. Quase nunca a gente resiste à tentação.

     

     

  • LULA SABE O QUE FAZ

    LULA SABE O QUE FAZ

    ARTIGO

    Rodrigo Perez Oliveira, professor de Teoria da História na Universidade Federal da Bahia

    Foto de Ricardo Stuckert

    Depois de alguns meses discreto, caladão, o ex-presidente Lula voltou a ser destaque na crônica política. Primeiro, por uma canelada retórica. Depois, por um lance político genial.

    A canelada retórica nem pede muito papel e tinta. No dia 20 de maio, em entrevista à revista Carta Capital, Lula disse que se há algum aspecto positivo na pandemia é a reabilitação do Estado como instância de planejamento de efetivação de políticas públicas. A fala de Lula foi pouco cuidadosa, se prestando facilmente às manipulações que desonestamente tentaram fazer parecer que o ex-presidente festejava os efeitos da pandemia. A mídia hegemônica explorou o factoide para reforçar a narrativa de que Bolsonaro e Lula são opostos simétricos entre si. A avalanche de ódio foi assustadora e confirma aquilo que já tinha ficado claro nas eleições de 2016 e 2018: o anti-petismo é a potência política mais poderosa no Brasil dos nossos tempos.

    No dia 30 de maio, veio a público um “Manifesto em Defesa da Democracia” que repudia os constantes e progressivos ataques do governo de Jair Bolsonaro aos outros poderes da República. O texto foi assinado por um amplo leque de lideranças, indo da “direita democrática” à esquerda socialista, passando, inclusive, por ex-aliados de Bolsonaro. Lula se recusou a assinar.

    A recusa de Lula agitou o debate político nacional. Como sempre acontece, o ex-presidente foi defendido por sua base orgânica e atacado por todo o resto, acusado de hegemonista por uns, de irresponsável e traidor por outros. Alguns chegaram a dizer que o trauma da prisão arbitrária, das mortes da companheira de vida, do irmão e do neto impedem Lula de cerrar fileiras com aqueles que colaboraram para a perseguição jurídica e midiática que resultou em sua prisão. Houve até quem achasse que a idade estava comprometendo sua lucidez. Poucos entenderam por que Lula não quis assinar o manifesto.

    Um homem comum jamais se juntaria a seus algozes de véspera, aos algozes de sua companheira, de seu neto, de seus filhos. Lula não é homem comum. Lula é uma instituição. Não, definitivamente, não foi o trauma, não foi o ressentimento que impediram Lula de assinar o manifesto. Também não foi a senilidade. Lula está no melhor de sua forma política.

    Lula não assinou porque entendeu perfeitamente o que está acontecendo e o papel que desempenhará a partir de agora.

    Lula sabe que o anti-petismo levou o PT a uma posição paradoxal: piso alto e teto baixo. O PT conta com pelo menos 25% de apoio popular leal. Parte pra qualquer eleição desse ponto, o que não é pouca coisa. Mas a coalização lava-jatista pôs em marcha a mais violenta máquina de destruição de reputações que já vimos funcionando aqui no Brasil e fez o teto do petismo despencar.

    No segundo turno das eleições presidenciais de 2018, Fernando Haddad teve 45% dos votos. Muita gente, muita gente mesmo, votou no PT com o nariz tampado, fazendo ânsia de vômito. Metade do capital eleitoral de Haddad em 2018 se deve ao veto a Bolsonaro. Essas pessoas só votam no PT de novo se estiverem diante de outro apocalipse. Farão tudo para não passar por isso outra vez.

    A militância petista esbraveja, xinga, quando alguém diz verdade tão óbvia. Lula conhece perfeitamente essa verdade tão óbvia. Lula é perito na arte da política. A militância, seja ela qual for, quase sempre se comporta como torcida de arquibancada.

    Lula sabe perfeitamente que o PT não conseguirá liderar um projeto nacional no médio prazo. Sabe que a reabilitação virá com o tempo, muito tempo, e que ele mesmo não verá sua reputação ser reparada.

    O Lula que subiu o rampa do Palácio do Planalto em janeiro de 2003 era bem diferente do Lula que apareceu como liderança sindical lá no ABC Paulista, no final da década de 1970. Não era mais o sindicalista maltrapilho, de barba desgrenhada, grevista, que desagradava ricos e pobres. Pois sim, leitor e leitora, pobre não gosta de greve, não gosta de instabilidade. O povão não votava no jovem Lula.

    Lula aprendeu, se reinventou. Deixou de ser militante para se tornar estadista. Escreveu uma carta de conciliação destinada ao povo brasileiro. Prometeu respeitar contratos e propriedade. Não foi uma carta só para os ricos. Não apenas os ricos gostam da propriedade e estabilidade. Os pobres gostam também. Propriedade pouca é ainda mais valiosa.

    O pobre revolucionário é um delírio que só existe na cabeça de uma esquerda bacharelesca que torce a realidade para fazer caber no próprio desejo. Pobre é conservador, e tá certíssimo. Já vive no fio da navalha. Se o mundo chacoalha demais as coisas podem piorar. Pobre sabe que as coisas sempre podem piorar.
    Lula acenou, então, para pobres e ricos. Montou uma grande coalizão onde pobres e ricos ganharam, cada um dentro de seus horizontes de expectativas. Lula colocou Meirelles na presidência do Banco Central para afagar o mercado financeiro. Fez aliança com o PMDB para conseguir governar em paz. Não incomodou os ricos, mas fez o possível para melhorar a vida dos mais pobres, como bem definiu Marcelo Odebrecht. Poucos definiram tão bem o Lula estadista.

    Lula fez aliança com a Globo, nunca mexeu nos direitos de transmissão. Teve até filme em sua homenagem, com Glória Pires interpretando Dona Eurídice.

    Lula se tornou estadista quando conseguiu furar a bolha do petismo raiz, se tornou amado por brasileiros que não são filiados a partido político, que não militam em movimento social. Gente que só quer viver da melhor forma possível.

    A destruição do sistema político não permite mais que Lula performe o conciliador. Há uma parcela considerável da população que não quer ouvir falar no nome de Lula, que não quer vê-lo nem banhado de ouro com salpicos de nutella.

    Ao ouvir isso, ao ler isso, o militante petista xinga, esbraveja. Lula sabe perfeitamente que é verdade. O militante é torcedor. Lula é perito na arte da política.

    Qual o papel que a história reservou para o último Lula? O do ancião que morrerá no ostracismo? Não, de forma alguma. Lula é uma instituição.

    Sobrou para Lula a radicalização à esquerda e a fidelização de sua base social orgânica. Sobrou para Lula ser dono de 25% do Brasil, 1/4 do latifúndio. Não dá pra vencer eleição, mas não é pouca coisa não. É o bastante para continuar elegendo a maior bancada do Congresso nacional. É o bastante pra eleger uma boa meia dúzia de governadores de Estado. Dezenas de prefeitos. Centenas de vereadores. É mais que o suficiente para continuar sendo protagonista relevante no xadrez da política nacional.

    Lula leu perfeitamente o cenário. Entendeu que não dá mais para ser conciliador, que não dá para ser estadista. Voltou, então, às origens, menos por convicção ideológica e mais por estratégia de sobrevivência. Por isso, não assinou o manifesto.

    Por que tentar conciliar com quem não quer conciliar? Melhor mesmo é arregimentar a tropa.

    Assim, em um governo de centro-esquerda comandado por outra liderança, o PT será aliado indispensável, vai governar junto. Em um governo de direita, liderará a oposição. De todo modo, o PT vence a vitória possível. Lula é inteligente o suficiente para saber que na política só se ganha vitória possíveis. Lula é perito na arte da política. A política é a arte do possível.

    Lula sabe o que faz. A gente é que demora um pouco para entender.

     

  • O PLATÔ DA CURVA BOLSONARISTA

    O PLATÔ DA CURVA BOLSONARISTA

    ARTIGO

    Rodrigo Perez Oliveira, professor de Teoria da História na Universidade Federal da Bahia (UFBA)

     

    Os infectologistas nunca estiveram tão na moda. Vinte e quatro horas por dia. É só ligar a TV e tropeçamos em um infectologista transbordando termos técnicos, falando em curva de transmissão para cá, curva de óbitos para lá. Curvas, curvas e mais curvas. Tomo esse vocabulário emprestado para analisar o atual momento do bolsonarismo.

    O bolsonarismo fez suas vítimas fatais, e são bem mais numerosas do que os 30 mil já levados pela covid-19. Parte da população brasileira morreu para o convívio democrático. Essa gente não volta mais à razão. Eles precisam ser isolados. Durante algum tempo, essa parcela correspondia a 30% da sociedade. Os famosos 30%, resilientes, leais ao bolsonarismo. Porém, a última pesquisa realizada pelo instituto Datafolha (publicada em 29 de maio) mostra algo novo.

    1°) A faixa cinza dos que avaliam o governo como “regular” vai se estreitando e o coro da rejeição vai engrossando. Os indecisos estão migrando para o campo do antibolsonarismo. Essa é tendência sólida.

    2°) A aprovação do governo ficou em níveis já conhecidos, ali na casa dos 30%. Mas não são os mesmos 30% de antes. Desses 30%, 11% são formados por novos apoiadores, que avaliam positivamente o governo por causa da primeira parcela do auxílio emergencial liberado para amparar as famílias em meio à epidemia. Isso sugere que a crise com Sérgio Moro e a aproximação com o centrão derreteram parte da base orgânica do bolsonarismo, perda que por enquanto está sendo compensada pelo refluxo dos amparados. Mas esses novos apoiadores não são militantes. São pessoas desesperadas. Apoio desesperado é sempre volátil. O bolsonarismo raiz está em algo próximo a 20%.

    Os dois movimentos detectados pela pesquisa sugerem que a epidemia bolsonarista entrou na “fase platô”. A curva está achatada. Não há mais espaço de crescimento. Daqui para frente, no que se refere a apoio popular, Bolsonaro só perde, no máximo preserva o que tem. Não haverá uma segunda onda de contaminação. Isso talvez explique os gritos, os palavrões. É o rugido do animal acuado, com medo, desesperado. De manhã, Bolsonaro ameaça o país de golpe. De tarde, recebe os deputados do centrão para negociar cargos e verbas. Se há condições objetivas para o golpe, por que se enlamear junto ao centrão, sacrificando a narrativa da “nova política”?

    Talvez hoje não existam condições objetivas para o golpe. Talvez hoje os generais palacianos não sejam capazes de arrastar a tropa para uma aventura golpista. Mas não há dúvidas de que estão tentando. Não há dúvidas de que vivemos uma atmosfera de golpe. Neste exato momento, há pessoas tentando viabilizar a implantação de um regime de força, reunindo quadros das forças armadas, das PMs e grupos paramilitares.

    Bolsonaro sobrevoa o STF de braços dados com o ministro da Defesa. Augusto Heleno ameaça a República. Mourão diz para deixar o “homem governar”. Cada vez mais a solução de um governo moderado, austero, técnico, comandado por Hamilton Mourão fica menos provável. Já não é tão fácil abandonar Bolsonaro. Os militares com cargos no governo estão atolados até o pescoço na lama do bolsonarismo. São cúmplices de crimes que vão da lavagem de dinheiro à formação de grupos de extermínio. No mínimo são prevaricadores. No mínimo.

    O Ministério da Saúde está ocupado por militares, a maioria sem qualificação técnica para enfrentar a maior crise sanitária da história do país. No dia em que escrevo este texto, o Brasil registrou mais de 1.200 mortos pela covid-19. Há quem diga que entraremos agosto na casa dos 200 mil mortos. O Exército brasileiro carregará sobre os ombros essa tragédia. Não há mais como desvincular o Exército do bolsonarismo. Até pouco tempo isso era possível. Hoje, não mais.

    No último domingo, 31 de maio, a Avenida Paulista se tornou arena de uma batalha campal. Pela primeira vez, grupos antifas ocuparam as ruas para confrontar a malta fascista, que até aqui fazia o que bem entendia, sem ser incomodada. Esses grupos são formados por membros de torcidas organizadas, homens com know-how de conflito de rua. Não são militantes de esquerda good vibes não. Não é a galerinha da bicicleta de bambu, do sarau de poesia. É uma moçada de periferia, boa de porrada.

    Enquanto isso, começa a tomar corpo na sociedade civil o movimento dos 70%, que busca organizar a rejeição ao bolsonarismo em uma pauta comum mínima de defesa da democracia. A iniciativa é vista com desconfiança pelo Partido dos Trabalhadores. Lula se recusou a assinar o manifesto. Haddad se insubordinou e assinou.

    É viável uma frente ampla sem o PT, que ainda é muito forte entre as esquerdas brasileiras? O anti-petismo se tornou força tão interditante a ponto de a própria frente ampla caminhar melhor sem o PT?

    Perguntas ainda sem respostas.

    Fato fato mesmo é que a curva do bolsonarismo está achatada, o que não é exatamente uma boa notícia. O bolsonarismo é diferente do corona vírus. É mais letal. É muito mais perigoso.

    Isolado, rejeitado pela ampla maioria e limitado a 1/5 da população, sem nada a perder. Nesse cenário, o Bolsonarismo transforma a presidência da República num bunker de sobrevivência ocupado por bandidos armados e apavorados. O golpe, então, deixar de ser um desejo, um horizonte de possibilidade constantemente evocado, para se tornar questão de vida ou morte.

    Mesmo que seja derrotada, uma tentativa de golpe sempre ceifa vidas, instaura um trauma na memória nacional e desmoraliza o país no mundo inteiro, afastando investidores.

    A curva achatou, mas o vírus do bolsonarismo continuará matando o brasil por muito tempo.

     

  • A DOUTRINA BOLSONARISTA

    A DOUTRINA BOLSONARISTA

    ARTIGO

    Rodrigo Perez Oliveira, professor de Teoria da História na Universidade Federal da Bahia (UFBA)

    22 de maio de 2020. Por ordem de Celso de Mello, ministro do Supremo Tribunal Federal, partes do vídeo da reunião de governo realizada em 22 de abril foram divulgados. Todos assistimos. Sérgio Moro afirma que há no vídeo provas de que o presidente Jair Bolsonaro tentou interferir politicamente na Polícia Federal.

    Quero aqui examinar o vídeo, buscando entender como os valores fundamentais do bolsonarismo atravessam as manifestações de Bolsonaro e de seus ministros. O vídeo é o documento mais completo que temos para tentar entender a doutrina bolsonarista.

    Fica evidente que o bolsonarismo se considera um projeto político revolucionário. Não é cortina de fumaça. Não é simples retórica usada para esconder os interesses do capitalismo internacional. É genuíno. É sincero. Bolsonaro e seus seguidores estão mesmo convencidos de que estão promovendo uma revolução. O revolucionário é o tipo social mais perigoso que existe. Na ética revolucionária vale tudo para acelerar o processo histórico rumo à utopia. O revolucionário não tem limites.

    Qual é a utopia bolsonarista?

    Diferente das utopias modernas, a utopia bolsonarista não aponta para um futuro inédito, para o novo a ser construído. Trata-se de uma utopia reacionária, com o objetivo de reconstruir o mundo perfeito que já teria existido no passado. Na temporalidade bolsonarista, o passado é a matriz da utopia. O futuro é a regeneração. O presente é a decadência a ser superada pela ação revolucionária.

    Seria equivocado dizer que a utopia bolsonarista é conservadora. Conservadores, hoje, são aqueles que tentam salvar as instituições democráticas da revolução bolsonarista.

    Qual é o passado que serve como objeto de desejo para a utopia reacionária bolsonarista?

    Não é a ditadura militar instituída no Brasil em 1964. E aqui temos aspecto muito importante para a compreensão do bolsonarismo. O deputado Jair Bolsonaro ficou quase 30 anos no parlamento elogiando a ditadura. O objeto da nostalgia do deputado era a ditadura militar. A nostalgia do presidente Bolsonaro é outra. Em algum momento aconteceu o encontro do deputado Bolsonaro com a crítica da modernidade desenvolvida por Olavo de Carvalho ao longo da década de 1990. Esse encontro, que ainda precisamos descobrir como aconteceu, quando aconteceu, é o berço do bolsonarismo como projeto revolucionário.

    O presidente Jair Bolsonaro idealiza um mundo pré-moderno, anterior à invenção do Estado, onde os patriarcas pegam em armas, se organizam em milícias para proteger sua propriedade e sua família, para dominar sua propriedade e sua família. Esse é o núcleo duro do projeto bolsonarista, manifestado não apenas nas falas do presidente na tal reunião, mas nas diversas tentativas do governo em flexibilizar as regras de controle do comércio de armas de fogo, quase sempre à revelia das Forças Armadas, que legalmente têm autoridade técnica sobre a matéria.

    Na doutrina bolsonarista, o cidadão de bem, homem, proprietário, deve ser livre para matar, se entender que é necessário para defender seus interesses. O regime de força que o bolsonarismo tenta implantar no Brasil não tem o objetivo de reeditar a ditadura militar. O objetivo é transformar o país num continente feudal, onde cada lote de terra é guardado pelo patriarca armado, senhor da vida e da morte de todos aqueles que vivem sob sua tutela/proteção. Essa é a liberdade que Weintraub e Bolsonaro querem defender, dizem estar dispostos a tudo para defender.

    Na utopia bolsonarista, os filhos devem ser criados à imagem e semelhança dos pais, sem nenhuma interferência externa à casa. A educação pública seria, então, ato de tirania, a tentativa do Estado em corromper os filhos do patriarca. Por isso, tudo que Weintraub fez desde que assumiu o Ministério da Educação foi tentar desmoralizar a educação pública. Desmoralizar os professores, as universidades, o ENEM. Não é incompetência administrativa. É projeto. É ideologia. É a doutrina bolsonarista.

    E Paulo Guedes? O chicago boy tão incensado pela imprensa liberal, definido como a reserva técnica dentro do governo do capitão aloprado. Lembro de Eliana Catanhede dizendo que Bolsonaro havia feito um “golaço” ao convidar Guedes para comandar a fazenda. Ah, essa “direita democrática” brasileira. Ou são cínicos ou são burros. Talvez as duas coisas.

    Guedes é tão militante como Weintraub. Sua adesão ao bolsonarismo também é ideológica. A utopia reacionária bolsonarista cai como uma luva no neoliberalismo religioso de Paulo Guedes. “Nunca briguei com Guedes”, disse Bolsonaro. Por que brigaria? Eles foram feitos um para o outro.

    Guedes não é um infiltrado do mercado que tenta disciplinar Bolsonaro. Guedes não é a concessão feita por Bolsonaro para agradar o mercado e se sustentar no governo. Guedes é escolha ideológica, é prova de que o capitalismo especulativo não tem nenhum compromisso com a civilização.

    “Tem que privatizar a porra toda!”, disse Guedes. Somente na utopia bolsonarista, o fanatismo de Guedes é viável. Somente em um mundo dominado pela casa, o Estado pode ser mínimo, quase inexistente, como professa a religião de Paulo Guedes. O Estado é mínimo porque a casa é grande. Definitivamente, Paulo Guedes é militante bolsonarista.

    O bolsonarismo também evoca certo conceito de democracia e de representação política, mas numa chave muito diferente daquela que caracteriza o experimento democrático liberal-burguês. Na democracia liberal, o Estado é dividido em três poderes, que estabelecem entre si relação de controle recíproco, naquilo que costuma ser chamado de “sistema de freios e contrapesos”. Na democracia liberal, a participação política do cidadão é indireta. Periodicamente, o sujeito vai às urnas escolher seus representantes, para quem delega sua soberania.

    O bolsonarismo altera o conceito de democracia e redimensiona a ideia de representação política, se aproximando muito da lógica fascista. Para o bolsonarismo, toda e qualquer mediação é corrupta em si. Nesse sentido, Legislativo e Judiciário nada mais fariam do que se locupletar do dinheiro público e criar dificuldades para o poder Executivo, único legítimo, o único verdadeiramente capaz de representar o cidadão.

    O bolsonarismo não tolera negociar com os outros poderes, não aceita nenhum tipo de interferência. A representação política bolsonarista se dá pela projeção direta, sem mediação, de soberania no chefe, o único considerado verdadeiramente honesto. Existiria entre o chefe e o cidadão um vínculo afetivo, de confiança, de cumplicidade. O chefe representaria o cidadão porque também é homem honrado, pai de família em luta contra a corrupção sistêmica. O fascista é sempre um homem comum.

    A representação liberal é pragmática, é movida pelo interesse do cidadão em delegar sua responsabilidade cívica a outro, garantindo, assim, o ócio necessário para se dedicar a seus assuntos privados. A democracia liberal é desmobilizadora. Já a representação fascista é afetiva, emocional, depende de constante agitação. O fascismo é mobilizador.

    A democracia bolsonarista significa uma sociedade organizada em clãs, cada qual protegido por um patriarca armado, homem de bem, representado diretamente pelo chefe maior, entendido como um deles.

    O bolsonarismo opera com conceitos que são constitutivos da tradição política ocidental, como liberdade, democracia e representação política. Conceitos que são elásticos o suficiente para permitirem a leitura fascista. O fascismo não é fruto estranho no terreno da tradição política ocidental. É possibilidade política aberta por essa tradição. De alguma forma, o fascismo é parte daquilo que somos, que todos nós somos. Por isso, ora ou outra o ovo da serpente dá cria. Por isso, é necessário estar sempre vigilante. Quando menos esperamos, o fascismo brota do chão, sem aviso prévio. Simplesmente chega, de mansinho, enquanto tudo estava normal, enquanto as instituições “estão funcionando”. Funcionam até o exato momento em que não funcionam mais.

    Não sei se o vídeo da fatídica reunião comprova as acusações de Sérgio Moro. O processo legal, que Moro nunca respeitou quando era juiz, dirá. Fato mesmo é que o vídeo é o tratado de definição da doutrina bolsonarista. É o texto que Olavo de Carvalho não escreveu.

     

  • UMA BREVE HISTÓRIA DA CRISE, UMA BREVE HISTÓRIA DA CRÍTICA

    UMA BREVE HISTÓRIA DA CRISE, UMA BREVE HISTÓRIA DA CRÍTICA

    ARTIGO

    Rodrigo Perez Oliveira, professor de Teoria da História na Universidade Federal da Bahia 

     

    Início da madrugada de 21 de outubro de 2014. 00h14 para ser exato. O tribunal Superior Eleitoral divulgava os resultados oficiais das eleições presidenciais e estaduais. Aparentemente, tudo estava normal, segundo a dinâmica do jogo político da “Nova República”. PT e PSDB continuaram polarizando a disputa pelo Planalto. PMDB e DEM continuaram fortes nos Executivos estaduais e no poder Legislativo. Mas se olharmos os números com mais cuidado, perceberemos que o normal já não era tão normal assim. Algo no jogo começava a mudar. Ou melhor, o jogo começava a terminar.

    Chama atenção o fenômeno Marina Silva, terceira colocada na corrida presidencial, com mais de 22 milhões de votos. O importante aqui nem é a quantidade de votos, pois desde 2010 Marina já era player importante na disputa. O que impressiona mesmo foi a dinâmica da campanha eleitoral, a narrativa mobilizada.

    Com pouco tempo de TV, a equipe de Marina Silva direcionou todas suas energias para o Facebook, que na época era a rede social mais popular entre os brasileiros. Segundo a consultoria E. Life, Marina se tornou a candidata com melhor desempenho no Facebook no final de agosto, quando a campanha se tornava mais aguda. Marina tinha 1,43 milhão de seguidores, enquanto Aécio Neves tinha 1,20 milhão e Dilma Rousseff tinha 937 mil. Certamente, o desempenho de Marina Silva foi impulsionado pela comoção gerada pela morte trágica de Eduardo Campos. Os números mostram também a relevância que as mídias digitais começavam a ter na disputa eleitoral.

    Em 20 de agosto de 2014, Marina Silva assumiu formalmente a cabeça da chapa. Na solenidade organizada pelo PSB, Marina disse que “era o momento de ter ousadia de sair do roteiro da política tradicional para recriar, com novos elementos e novos métodos o caminho de nossa luta pela justiça social“. É clara a transformação no discurso em relação à campanha de 2010, quando Marina tinha o meio ambiente como mote, protagonizando aquilo que ficou conhecido como “Onda verde”.

    Em 2014, Marina era a candidata da renovação, a representante da “nova política”. Naquela altura, a Operação Lava Jato já estampava diariamente o noticiário nacional. Marina Silva foi a primeira a se apropriar do potencial eleitoral da crítica anti-sistêmica. Por muito pouco, não chegou ao segundo turno. Se tivesse chegado, fatalmente seria eleita, pois é difícil imaginar os eleitores de Aécio Neves migrando para Dilma Rousseff.

    Com pouco tempo de TV, em campanha feita basicamente na internet e falando em “nova política”, Marina Silva transformou a crítica anti-sistêmica em capital eleitoral, antecipando em diversos aspectos o que Bolsonaro faria quatro anos mais tarde.

    E por falar em Bolsonaro…

    Em 30 de outubro de 2014, assim que a eleição acabou, Jair Bolsonaro concedeu entrevista ao jornal “Estado de São Paulo”. Bolsonaro acabava de ser reeleito deputado federal, o mais votado pelo Rio de Janeiro, com 464.572 votos. Em 2010, tinha conseguido 120.646 votos. Em quatro anos, o eleitorado de Bolsonaro cresceu 385%!

    Entre 2010 e 2014 está 2013, o marco inicial da crise democrática brasileira, o berço da crítica.

    Bolsonaro entendeu perfeitamente o que estava acontecendo e na entrevista lançou sua pré-candidatura às eleições presidenciais de 2018. O deputado estava convencido de que poderia ser eleito presidente da República. Apenas ele acreditava. Disse que a votação expressiva de Aécio Neves no segundo turno apontava para uma insatisfação que em pouco tempo o PSDB não conseguiria mais canalizar.

    2014-2018. Foram quatro anos de pré-campanha, utilizando dinheiro do gabinete para viajar pelo Brasil. Bolsonaro seguiu a trilha aberta por Marina Silva, se apresentou como o “novo”, como o crítico ao sistema. Como mostrou o historiador Daniel Pinha, foi nesse período que o deputado de baixo clero deu origem ao mito.

    Enquanto isso, a Lava Jato, ressonada pela mídia hegemônica, fixava no imaginário nacional a ideia de que o sistema político estava podre, tomado em suas entranhas pela corrupção. Bolsonaro assumiu o controle da critica anti-sistêmica. Marina Silva, que optou pela via da discrição, ficou chupando dedo. Talvez Marina não tenha entendido o que estava sendo disputado. Bolsonaro entendeu. Entendeu perfeitamente.

    O que havia sido um sopro em 2014 se tornou um ciclone nas eleições municipais de 2016. A crítica ao sistema, definitivamente, se tornava realidade política incontornável. O PT perdeu 60% das prefeituras. Mas se enganou quem achou que se tratava, apenas, de anti-petismo. As eleições presidenciais de 2018 mostraram que a rejeição não era apenas ao PT, mas, sim, a todos os partidos identificados com a tal “velha política”.

    As eleições de 2018 foram atravessadas de cabo a rabo por uma energia política disruptiva. O PSDB, que até então era hegemônico à direita do espectro político, foi destroçado. O PMDB perdeu o Rio de Janeiro. O DEM ficou limitado a alguns nichos oligárquicos.  Marina Silva virou pó. O nanico PSL, impulsionado pelo bolsonarismo, se tornou o partido com a segunda maior bancada na Câmara dos Deputados. Os desconhecidos Witzel e Zema venceram no Rio de Janeiro e em Minas Gerais. O sistema partidário da “Nova República” foi destruído.

    O processo de destruição não começou em 2018. Já estava em curso desde 2013, se manifestando nas eleições de 2014. A partir de então, e cada vez mais, a crise brasileira seria pautada pela potência crítica. Bolsonaro deixou de ser o deputado de baixo clero para se tornar o presidente carismático porque conseguiu se apropriar da crítica.

    A questão que se coloca agora é até quando Bolsonaro será o dono da crítica.

    Ao longo desses 17 meses de governo, Bolsonaro resistiu em ser presidente normal. Investiu sempre no caos, no horizonte da ruptura. Bolsonaro se apega à critica com unhas e dentes.

    Mas quanto mais tempo se é governo, mais difícil fica fugir da pecha de gestor do sistema, mais difícil fica performar a crítica. Fica ainda mais difícil quando Bolsonaro começa sentar à mesa de negociação com o famigerado “Centrão”. Waldemar da Costa Netto, Arthur Lyra, Roberto Jefferson são presenças constantes no Palácio do Planalto.

    É difícil performar a crítica com a Polícia Federal na cola da família presidencial. As denúncias de Paulo Marinho parecem ser nitroglicerina pura. Não consigo imaginar que Bolsonaro continuará por muito mais tempo no controle da crítica. Não consigo imaginar como ele se sustentaria a partir do momento em que perca o controle sobre a crítica.

    Sem dono a crítica não ficará. Quem será o próximo? Tem muita gente nessa disputa. De Dória a Ciro Gomes, passando por Amoedo, Luciano Huck, Wilson Witzel e Sérgio Moro. Sem contar ainda os próprios militares, que cada vez mais ocupam o governo e já mostraram não ter muito apreço por Jair Bolsonaro.

    Fato é que o próximo crítico precisará bater em Bolsonaro e em Lula com a mesma força. Precisará investir energia narrativa na criação de uma simetria entre Lula e Bolsonaro, como se eles fossem exatos opostos um do outro. Sem essa simetria, a crítica perde o sentido.

    Não dá pra saber como será o futuro da crítica e é sempre prudente não se deixar levar pelo quase irresistível desejo de fazer previsões. Certeza mesmo é que enquanto houver crise, haverá crítica. A história da crise é a história da crítica.

     

  • A MIOPIA DO MORALISTA SANITÁRIO

    A MIOPIA DO MORALISTA SANITÁRIO

    ARTIGO

     

    RODRIGO PEREZ OLIVEIRA, professor de Teoria da História na Universidade Federal da Bahia

     

    11 de março de 2020: a Organização Mundial da Saúde utilizou, pela primeira vez, o conceito “pandemia” para se referir à Covid-19. O conceito sempre vem depois da experiência. Como realidade efetiva, a pandemia já existia sabe lá Deus desde quando. A conceituação da doença como pandemia é, antes de tudo, um gesto político que envolve muita coisa para além das bancadas laboratoriais.

    Os especialistas são unânimes: ainda não há remédio, ainda não há vacina, apesar dos esforços da comunidade científica. Somente o isolamento social é capaz de retardar a evolução do contágio, garantindo tempo necessário para o preparo dos sistemas de saúde. Ressonou pelo mundo, então, as mesmas palavras de ordem: “Stay at home” ou “Fique em casa”, no belíssimo idioma de Machado de Assis e Guimarães Rosa.

    Os cientistas estão corretos, corretíssimos. Pronto! A parte científica dessa reflexão acaba aqui. Agora, começa a parte política. Pois sim, essa discussão não é apenas científica. Não existe discussão “apenas cientifica”. Toda discussão, em alguma medida, é política também.

    No momento em que escrevo este texto, o Brasil está assistindo a evolução assustadora na sua curva de contaminação e mortes. Alguns já dizem que em pouco tempo seremos o epicentro mundial da pandemia. Segundo dados da tecnologia de geolocalização, nosso índice médio de isolamento social é de 47%, bem distante dos 70% considerados ideais.

    Por que mais da metade da população brasileira não está respeitando o isolamento social?

    Os moralistas sanitários têm resposta na ponta de língua. Os moralistas sempre têm resposta na ponta da língua. O tempo do moralismo é o tempo rápido. O moralista é impaciente, é ansioso.

    Para o moralista sanitário, os que não obedecem as regras de isolamento social são ignorantes, irresponsáveis, “sem empatia”. O moralista goza com os adjetivos.

    O moralista sanitário privatiza a responsabilidade, e ao trazer dilemas estruturais para o plano do comportamento individual, acaba despolitizando uma questão que é essencialmente política.

    O governo federal entregou apenas 11% dos leitos prometidos.

    Quando a Covid-19 chegou ao Brasil, encontrou o país devastado por uma grave crise democrática, com serviços públicos sendo precarizados e direitos trabalhistas sendo cassados.

    Antes da Covid 19, veio a PEC dos Gastos, veio a Reforma Trabalhista, veio a Reforma da Previdência.

    Segundo o IBGE, mais da metade da força produtiva brasileira, aproximadamente 38 milhões de pessoas, trabalham na informalidade, sem nenhuma seguridade social.

    Pensem aí na idade das cavernas, naquele sujeito que precisa sair pra caçar todos os dias. Se não sai, não come. Esse é o trabalhador informal. O auxílio emergencial de 600 reais não resolve o problema. É pouco e o governo federal, pela combinação da má vontade política com a incompetência administrativa, não consegue fazer o dinheiro chegar aos que mais precisam. A covid 19 mata. A fome mata primeiro.

    Segundo o PNAD, 105 milhões de brasileiros não têm acesso ao saneamento básico e 21 milhões não têm água potável em casa pra beber, tomar banho e lavar as mãos.

    A Covid-19, e um montão de outras doenças, é transmitida também pelo esgoto.

    Mais de 11 milhões de brasileiros moram em favelas, em moradias pequenas, insalubres, com iluminação e ventilação insuficientes, onde se amontoam seis, sete, oito pessoas.

    Para o moralista sanitário nada disso importa. A explosão da curva da morte é culpa dos indivíduos, daqueles que não obedecem o isolamento social. O moralista resolve todos os problemas no plano do comportamento individual. O moralista é viciado no comportamento individual. É a sua cocaína.

    A ciência diz que o Brasil precisa de 70% de isolamento social para evitar o colapso do sistema de saúde.

    Mas para a maioria dos brasileiros, o colapso do sistema de saúde é a normalidade. Também é normal a enchente em janeiro, o desabamento de encosta, a violência do tráfico de drogas, a violência policial. Para a maioria dos brasileiros, a Covid-19 é um problema entre outros tantos.

    No Brasil, os pobres sempre são grupo de risco.

    Não estou romantizando os pobres, nem sugerindo que furar o isolamento social é ato de resistência. “Resistência” é daquelas palavras desgastadas a tal ponto de se tornarem um tanto irritantes, quase sem sentido. Se tudo é resistência, nada é resistência.

    Para os mais pobres, o isolamento social, simplesmente, não é possível, independente do que diz a ciência. A ciência também diz que eles precisam comer bem, ter o esgoto tratado, ter água potável na torneira. E aí?

    Sim, nos bairros de periferia, as pessoas estão vivendo como se nada tivesse acontecendo, como se tudo estivesse normal. Sentam no boteco pra beber cerveja, jogam futebol no campinho, trocam ideia no portão. Não digo que estão certos. Nem digo que estão errados. É que essa não é uma discussão moral. Não é apenas uma discussão científica. É uma discussão também política.

    Pra essa gente, a normalidade é estar em constante risco de vida.

    Antes de trazer novos problemas, a Covid-19 escancarou os mesmos problemas de sempre. Não subestimo a gravidade da pandemia. Só estou dizendo que o Brasil tem uma dívida histórica com a civilização. Por que a Covid-19 aqui não seria devastadora? Qual seria o milagre?

    “É só ficar em casa”, insiste o leitor moralista. O moralista sanitário, como toda moralista, é míope, é tão perigoso quanto o maldito vírus. Se afastem. Se protejam. Se cuidem. Se puderem, fiquem em casa.