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Tag: povos indígenas

  • Considerações finais da boca do sertão

    Considerações finais da boca do sertão

    Expansão da fronteira agrícola do centro-sudoeste paulista na segunda metade do século XIX: presença e atuação indígena em terras almejadas pela apropriação privada, “um empecilho de dura transposição”

    DOSSIÊ: HISTÓRIA DA COLONIZAÇÃO EM TERRAS PAULISTAS: DINÂMICAS E TRANSFORMAÇÕES (SÉCULOS XVI A XX)

    por Soraia Sales Dornelles

    brassadeiras do Alto Xing

    Tal qual no passado oitocentista, os problemas relativos ao avanço de fronteiras econômicas movimentam as pautas cotidianas e trazem à tona os conflitos que envolvem as populações indígenas. Na Amazônia de hoje, o avanço agropecuário cumpre um papel semelhante ao que representou outrora a cafeicultura no oeste paulista. O interesse sobre as terras ocupadas por populações indígenas não parece ter um limite! Do mesmo modo que os povos da floresta denunciam procedimentos ilegais, violentos, contra grandes e pequenos invasores, os povos indígenas paulistas o fizeram anteriormente. Sua atuação deixou lastro em inúmeros documentos: na imprensa, na polícia, naqueles produzidos pelas instituições estatais, nos relatos de observadores contemporâneos. É preciso reconhecer que o movimento que silenciou esse imprescindível elemento social nas narrativas sobre o passado imperial foi historiográfico .

    Eliseu Visconti - 1889
    desenho de Eliseu Visconti – 1889

    O Estado brasileiro tem uma longa e conflituosa história em relação às terras ocupadas por povos nativos. O processo de regulamentação fundiária projetado durante o período imperial postulou que as terras “desocupadas” poderiam ser adquiridas por compra privada. Assim, o processo de apropriação dos territórios do interior envolviam, inicialmente, desalojamento de diferentes grupos indígenas e, posteriormente, garantias que as reivindicações e lutas desses povos contra esse sistema seriam eliminadas, tanto física como historicamente. Para os indígenas, a insegurança reinava tanto em termos de reivindicações de propriedade e sua capacidade de moldar as relações de trabalho impostas pelos esquemas de modernização, como o Regulamento das Missões de 1845, que privilegiava fundos estatais e atuação de diretores para os aldeamentos indígenas. Enquanto isso, o Estado fez pouco esforço para regularizar as terras, anteriormente sob ocupação indígena, e depois sob colonização estrangeira por meio da expansão agrária.

    Funcionários do governo, como os diretores de aldeamentos e diretores provinciais, foram fundamentais para promover os interesses privados frente aos indígenas. Estado e iniciativa privada construíram e subverteram direitos territoriais indígenas, em um duplo movimento que se mostrou essencial à construção de estruturas de privilégios e padrões de posse de terra. Observamos a persistência de práticas de origens remotas como as reveladas pelo uso do termo “bandeiras” pelo Diretor Geral paulista e do posseiro Felicíssimo Antonio Pereira. A presença indígena nas terras que se desejava conquistar e sua insistência em não as abandonar, conforme as normas estabelecidas pelo Regulamento das Missões, fez emergir uma série de discussões e práticas sobre a necessidade de usar a violência para solucionar o problema.

    Crânio

    Os indígenas, por sua vez, mostravam-se cada vez mais indolentes, ferozes ou audazes nas vozes de muitas das testemunhas apresentadas aqui, que repetiram que eles buscaram se relacionar “por precisarem” dos objetos que necessitavam. Contudo, nada mais imprudente do que negar que as populações indígenas não tenham lutado pela propriedade dos territórios. Muitas vezes, tomaram a iniciativa de formar aldeamentos, mostrando-nos seus entendimentos da política imperial e, certamente, dos perigos que enfrentavam pela ação ilegal de posseiros. As constantes chacinas experimentadas no interior foram motivo para que muitos indígenas participassem do sistema de aldeamentos. Outros, contudo, empreenderam também o uso da violência perante aqueles que avançavam para o interior.

    https://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0101-90742020000100206&script=sci_arttext

    imagens e edição por helio carlos mello

    imagem em detalhe de capa, por Dagmar Targa, luto e enterro de Don Pedro Casaldáliga

  • Antropoceno, construir e destruir, a doença

    Antropoceno, construir e destruir, a doença

    Tudo flutua, indigenista. Trafega, navega a arca entre conversas com pensadores indígenas. Há algo líquido no momento atual. Sem sair de casa, encontro tantos, todos numa rede, como a chuva, uma neblina entre os não índios se dissipa. Conversam livres na Terra redonda, numa mídia índia que nos toca profundamente.

    antropoceno

    Antropoceno.

    Maracá, emergência indígena, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil. Até o carcará, em barranca de areia na curva de rio, questiona, para onde foram as andorinhas?

    Entre redes e na rede, finca-se facão, flexiona-se o arco, a flecha leve.

    Não invadem, ocupam.

    antropoceno
    Sônia Guajajara, liderança indígena, aos olhos e ouvidos de Zé Celso Martinez Corrêa, em 2016, no Oficina.

    Há culpados, punem os mais fracos. Metem fogo, degradam, punem pelo sistema, suas economias. Resistir é verbo duro. Resisto, no presente, por resistirem eles, no infinitivo, tudo questão de pães e conjugação, um equilibrar-se.

    antropoceno
    Direção por Mari Corrêa, roteiro por Paulo Junqueira, produção por Instituto Catitu e Instituto Socioambiental.

    Texto e fotografias por helio carlos mello.

  • Aritana, o suspiro dos mitos

    Aritana, o suspiro dos mitos

    Nesses dias, em cadência de lutos, tantos relataram sua dor, lamento e pranto pela morte de seus afetos e profundo respeito, gratidão, afinidades.

    Há palavras que ficam na mente, nomes, homens pelo ritmo do andar e gestos de acolhimento. 

    Aritana foi uma dessas palavras na cabeça de minha juventude, um sucesso em novelas e literatura, na forma de atores bonitos que revelavam sua saga em prosa. No mundo real, o personagem lembrava a postura de um líder e suas educações, a fineza no trato.

    Conheci pessoalmente o cacique Aritana Yawalapiti, em Cuiabá,no centro da América do Sul, no Mato Grosso. Anos depois, em Canarana, em uma reunião tensa de consulta pública aos povos da terra indígena do Xingu, para a construção da Pequena Central Hidrelétrica, de Paranatinga, com a presença do então governador, Blairo Maggi, conheci sua força no salão paroquial da matriz católica local, onde centenas de homens indígenas e seus coloridos cocares, bordunas de guerra em punho, peles pintadas de urucum e jenipapo, observavam as demandas dos brancos.

     Após longos diálogos e múltiplas conversas em línguas, Aritana e outros caciques se entenderam nas divergências da obra necessária para o potente agronegócio, que se expandiu intensamente. O governador saiu meio apressado da reunião, escoltado por sua guarda, pois os indígenas batiam os pés no chão, em coro, entoavam música semelhante aos trovões que precedem a tempestade.

    Ao longo dos anos, muitas vezes encontrei o cacique, em reuniões e cuidados com a saúde dos povos indígenas, pauta frequente em meu cotidiano. Sempre generoso e cortês, o enigmático cacique fazia perguntas sobre os amigos, mandava abraços e nos dava bons conselhos.

    Hoje, o que resulta é a PCH, em puro concreto interrompendo o fluxo natural do Rio Culuene, e o choro dos índios e seus Kwarip que inundam as planícies e campos do Xingu. Aritana faleceu, partiu o cacique.  Entre outros, soma-se a canoa da peste que perpassa as áreas indígenas da nação.

    É severo o momento e os povos indígenas se pronunciam novamente ao mundo, sua juventude e seus líderes, parlamentares até, protestam, afirmam seus direitos constitucionais, escrevem livros, dançam seu sagrado em todas as tvs do planeta, não calam.

    Aritana, como Raoni, Davi Yanomami, Ailton Krenak e Álvaro Tukano, entre tantos outros inomináveis pensadores indígenas, representava a fina flor das reivindicações e afirmação dos direitos indígenas, os povos tradicionais que, milhares de anos antes da primeira missa, aqui se afirmaram, povoamento e populações.

    Dos entraves que nos cercam, como nação ou povo brasileiro, denota-se a doença do indivíduo e  cunham-se as diferentes visões de mundo, entre indivíduo e comunidade. Para Pindorama, antigo império imaginário, era o coletivo. Na terra brasilis firmaram-se o indivíduo, as corporações, as madeireiras, os garimpos, as vastidões da soja e da boiada.

    Cacique Aritana partiu. A última vez que estive com ele foi na celebração em grande ritual de Kwaryp, o ritual dos mortos, onde nos dependíamos entre cuidados com a vida e suas memórias.

    Hoje tudo se torna um adeus. Siga em paz.

    texto e imagens por helio carlos mello©

  • O Eclipse do Sol

    O Eclipse do Sol

    É certo que o Sol se encontrava com sangue e para isso era necessário tomar certas providências.

    Nhãu” (Temepĩyãu nãu), anaconda-men. Drawing by Takara Wauja (1980). Acrylic on paper, 70 x 50 cm. Museum of Archaeology and Ethnology of the University of São Paulo, Vera Penteado Coelho Ethnographic Collection (WD80-303).

    Fico pensando num texto antigo,  Um Eclipse do Sol, de Vera Penteado Coelho, https://www.persee.fr/doc/jsa_0037-9174_1983_num_69_1_2229 , onde o  sangue do Sol afetava muita gente que necessitava proteção adequada para não ser contaminada.

    Pajé Itsautako Waurá, em cuidados com a saúde.

    Entre abusos de autoridade, minha cabeça sai do lugar, enquanto mais de mil morrem na peste, dia a dia. País doido o meu, poderes insanos, lambe saco, beija pés, no dito popular. Desde 1987 carrega advertências, vejo nas manchetes, um desembargador da república, desmascarado, de Santos.

    Queimam a Amazônia, o Pantanal, o Cerrado, a serviço do agro outros negócios,  ao ponto de negarem provimentos necessários à saúde dos povos indígenas e outras minorias.

    País pobre esse, sem milagres meu ou seu, na mente e perfídia dos homens e seus poderes. Nem ouso pronunciar nomes, palavras assim não devem sair da boca, alimentar insanidades de demônios.

    Sigmund Freud, médico neurologista e psiquiatra criador da psicanálise

    Talvez seja a psicopatologia de uma vida cotidiana, nem sei se Freud explicaria, mas vivemos  tempos de tirar o fôlego, um véu, o desvelar, viés, um país enigmático.

  • Das aves, borboletas e os que andam nas margens

    Das aves, borboletas e os que andam nas margens

    Dos que voam, de quem anda.


    Das aves, borboletas e os que andam nas margens
    Na margem da lagoa Ipawu, o banho, a pesca.

    Há linhas distintas entre os seres, se cruzam, se enlaçam, separam, distinguem. Sei que as ví, há. Existir é verbo pleno, um plano.

    Das borboletas, do latim papilio, os lepidópteros, sei que nem tantas voarão quando o inverno passar. É assim mesmo, aprendi, quando há tristeza menos cores voam, menos sonharão entre a água e a terra no ciclo seguinte.

    Mas borboleta não cessa ou desiste, existe apenas, pupa, voa e conclui.

    Ipawu
    Ipawu
    Ipawu

    O poeta Manoel de Barros,  imaginou certa feita o mundo visto de uma borboleta, 

    …seria, com certeza,

    um mundo livre aos poemas.

    Daquele ponto de vista:

    Vi que as árvores são mais competentes em auroras do que os homens.

    Vi que as tardes são mais aproveitadas pelas garças do que pelos homens.

    Vi que as águas têm mais qualidade para a paz do que os homens.

    Vi que as andorinhas sabem mais das chuvas do que os cientistas.

    Das aves, borboletas e os que andam nas margens
    Pajé Takapé Wauja, aspira, conecta-se.

    Bem, nem sei o que virá de normal entre nossas anormalidades, fico com o primeiro tema do Mistério do Mundo, de Fernando Pessoa, quero fugir ao mistério

    Para onde fugirei? Ele é a vida e a morte

    Ó Dor, aonde me irei?

    Exercício das forças de segurança, diante dos indígenas e do Congresso, numa manhã de abril, durante o Acampamento Terra Livre.

    imagens por helio carlos mello©

  • O racismo de Bolsonaro contra populações indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais

    O racismo de Bolsonaro contra populações indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais

    Por: Alana Manchiner

    O projeto de lei, PL 1142/20, percorreu um longo caminho para chegar às mãos do presidente da república, Jair Bolsonaro, após câmara e senado aprovarem o Plano Emergencial para Enfrentamento à Covid-19 para as comunidades indígenas, comunidades quilombolas, povos e comunidades tradicionais para o enfrentamento à Covid-19. Na quarta-feira, 8, o presidente sancionou a lei, todavia com vetos a pontos importantes no tocante a execução das ações. 

    Em resumo o que foi vetado no PL deveria compor minimamente o plano, como acesso a água potável, materiais de higiene e desinfecção, leitos de UTI, aquisição de ventiladores pulmonares, material de informação sobre a doença, ponto de internet nas comunidades para solicitação do auxilio emergencial. Além de orçamento adicional e previsão de repasse de recursos a Estados e municípios para implementação do plano, o que impactaria diretamente nas populações mais afetadas pelo novo coronavírus.

     

    Na política de segurança alimentar e nutricional, o presidente veta a distribuição de alimentos, o que impacta diretamente as comunidades, segundo a liderança indígena, Zezinho Kaxarari, “ Nós recebemos cestas básica da FUNAI está com 3 meses, pra família grande não dá pra comer uma semana, a comunidade está precisando, estão sem trabalhar porque estão isolados”. 

    Os maiores prejudicados nos vetos são as comunidades quilombolas, pescadores artesanais e demais povos e comunidades tradicionais, Bolsonaro veta integralmente o artigo que trata da implementação de plano emergencial, bem como recursos para essas comunidades. 

    Esse retrato revela parte de um processo de omissão do governo federal mediante as desigualdades enfrentadas por essas populações, além do genocídio enfrentado desde a invasão colonizadora, hoje, enfrentam a displicência em relação ao impacto de uma pandemia com números alarmantes de óbitos, sobretudo em relação as comunidades mais vulneráveis. Essas comunidades estão na mira de Bolsonaro desde 2018, quando em reunião com representantes do agronegócio garantiu que, “Se eu assumir como presidente da República, não haverá um centímetro a mais para demarcação”.

    Foto: Leonardo Milano

    Nessa segunda-feira, 13, o Brasil alcança a marca de 72.100 mortes por coronavírus de acordo com o Ministério da Saúde, na região Norte do país, a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB) informa que 102 povos indígenas da Amazônia foram atingidos, até o dia 10, chegaram ao número de 9.936 indígenas contaminados e 411 óbitos registrados em 71 povos indígenas da região. De acordo com Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), no domingo (12), registraram 13.801 casos confirmados de covid-19 e 491 óbitos em todo o território brasileiro. O painel geral de dados do Ministério da Saúde não possui detalhamento por cor ou raça, o que pode ser fator de subnotificações entre populações indígenas, como art.19 do PL iria prever não fosse o veto. 

    Os vetos demonstram a falta de ação humanitária de um Estado que nega os direitos mínimos a suas populações originarias, podemos perder saberes milenares pela inercia de um projeto que não prevê politicas de zelo pelas comunidades tradicionais, esse é o retrato do racismo de Bolsonaro.

    Alana Manchineri, jovem comunicadora da COIAB/MATPHA