O pixo sempre existiu, existe e existirá!

Foto: Sato do Brasil

O maldito da vez é o pixo.

De acordo com os legislados que representam a cidade, o problema é o pixador. Ok. Não é educação precarizada, não é saúde ineficaz, não é a segurança problemática, não é moradia insuficiente, não é transporte decente, não é o combate à violência. O problema é o pixo. Conseguiram. Criaram um inimigo único, causa dos males do mundo.

Uma farsa rocambolesca da Assembleia Legislativa. Enquanto o prefeito João Dória vende a cidade como na xepa de uma feira de domingo para os bilionários de Dubai, aprova-se esse PL simplesmente ridículo, desimportante e inconsequente. O PL 56/2005 cria um novo símbolo da gestão do Dória e do PSDB. A gestão do dedo-durismo. A cultura do X-9. Ação que até a bandidagem despreza, de tão vil e vergonhosa. O Disque-Pichação: cidadão fotografa o “delito” e manda para os orgãos competentes. Exige uma multa de no mínimo R$ 5.000,00 com a possibilidade de ser trocada por trabalhos comunitários. É, P2, pede pra voltar, que tão precisando de você.

Trata-se de uma prova cabal de que quem comanda a nossa cidade não tem a mínima ideia do que acontece nela. Nunca compartilharam a cidade. Nunca pertenceram à cidade. Nunca conviveram com o outro.

Foto: Sato do Brasil

O pixo não é um problema. O pixo é um resultado. A equação é algo assim. A marginalização das bordas, o genocídio da população jovem negra e pobre, o descaso das autoridades com os problemas básicos nos bairros mais distantes, o paredão cultural erguido pela elite classista paulistana, a divisão institucional da cidade entre centro expandido e periferia, tudo isso criou uma exigente vontade de ser ouvido. As palavras se transformaram em gritos e berros, já que a simples conversa não funcionou. E esse berro que não encontrou plataforma nas antenas de tv nem de radio, foi para os muros da cidade.

Isso não é exclusividade de SP. Os guetos negros de Nova York, Bronx, Harlem, Brooklyn também expuseram sua voz pelos muros e pelos vagões de metrô. Numa época em que a segregação racial continuava forte, dentro de um projeto urbanístico de gentrificação, quando os embates causavam rachaduras na sociedade americana, o pixo e o grafite foram as vozes que gritavam pela igualdade de direitos, saindo dos guetos e atingindo os bairros mais ricos de Nova York.

O pixo também se situa na explosão da contracultura no maio de 68, em Paris. Os universitários franceses usaram o pixo como principal linguagem para demostrar sua indignação contra o establishment. O símbolo das barricadas em Paris sempre esteve ligado, lado a lado, com os pixos libertários e revolucionários.

Liberdade e revolução.

Em maior e menor grau, esses 3 exemplos constituem o mesmo núcleo-base. A indignação, a revolta contra os desmandos do poder, a necessidade de escuta, tudo isso é, e sempre será, provocador. À primeira vista, sempre existe o preconceito. O desconhecimento, a ultrapassagem dos limites do que é aceito nos salões médios da classe media, a inovação e o desprezo pelos valores vigentes sempre provocarão preconceito. A sociedade só permite o que lhe é ensinado dentro das grades disciplinares de seus compêndios normativos. Nada além disso. Passou da linha divisória, manda a polícia e sarrafo neles.

Sempre foi assim. Com o grafite aconteceu a mesma coisa. No fim da década de 70 e começo da década de 80, o grafite era considerado crime e o artista poderia ser preso por vandalismo. Era considerado um ultraje pelos setores mais moralistas da sociedade. Os grafiteiros eram chamados de bandidos, vagabundos e loucos. Perseguidos pela polícia, pela mídia da época e pelos senhores dos bons costumes. Passados 30 anos, o que vemos? Esses artistas são convidados frequentemente pelos salões da arte mundial, movimentando um mercado de milhares de milhões de dinheirinhos. E muito mais importante, o reconhecimento da cidade. Os grafiteiros são os queridinhos da hora, defendidos por todos os meios progressistas até as hordas reacionárias. O grafite furou a bolha. Ter um grafo de um artista reconhecido virou trofeu social.

Numa cidade que considera os pixadores cidadãos invisíveis, eles demarcam a sua presença no território, despencam lá pro alto da cidade, nos lugares mais impossíveis de se chegar, nos arranha-céus abandonados, em prédios que desfiam o horizonte, nos cruzamentos que a cidade constrói, no cimento frio e decididamente feio que infesta a arquitetura caótica dessa metropole contemporânea, para conseguir alcançar seus próprios trofeus.

Se em Nova York eram os vagões de metrô que passavam por todos os bairros da Grande Maçã mostrando suas assinaturas, aqui, numa SP marcada pela ditadura dos automóveis e suas autobahns, é da janela desses tanques de guerra diários que você reconhece cada tag, cada escritura, cada desenho rupestre urbano, nas pontes, paredes e overdrives da cidade. Se na Paris de 68, as palavras de ordem eram pela igualdade de direitos, pelo amor, pela revolução cultural, aqui o que vale é o reconhecimento da família, do elo condutor de sua existência. E antes de mais nada, lá no estrangeiro, onde cada detrator do pixo quer passar suas férias de verão, o pixo paulistano já faz parte das rodas das galerias mais influentes de arte. Como arte tipográfica, é considerada uma das mais importantes e criativas do mundo. Esse é um dos pontos. Se você quer discutir o pixo pelas frentes da arte, é a mais representativa da arte contemporânea. É uma expressão potentíssima pois é contestadora em sua essência, perturbadora, anárquica e democrática. O pixo não distingue classe social. Está em todos os lugares. O pixo questiona os limites da propriedade privada, e além da reflexão, provoca a transformação da cidade, e te convida a fazer parte desta transformação. É uma arte política acima de tudo.

Um aparte.

Querem agora desvencilhar o grafite do pixo. Isso, sim, é criminoso. É crime desdenhar da história. Em São Paulo, o grafite e o pixo têm a mesma origem, a mesma pedra fundamental. Quando o pixo trazia pensamentos e ideias, desde o “Hendrix Mandrake Mandrix”, do artista Walter da Silveira, e os primeiros stencils de Alex Vallauri. Querem criar uma guerra entre grafiteiros e pixadores. Muitos grafiteiros já foram pixadores, isso é certo. Mas sim, existe uma rusga entre grafiteiros e pixadores desde que o mercado da arte se apoderou do grafite como peça de valor. Isso não quer dizer que são inimigos. É um embate entre quem está na rua, não tem nada a ver com as instituições e órgãos oficiais. É a verdade de quem faz do espaço público seu lugar de aprendizado. A verdade de quem convive. A verdade de quem vive a rua. Além disso, existem trabalhos que estão no limite entre grafite e pixo. São trabalhos que transitam entre essas duas linguagens. Porque pixo e grafite, também são linguagem. E isso não se apaga, nem criminalizando.

Falando em história,

só pra contextualizar, nos tempos de Pompeia, na Itália, a cidade destruida pelo Vesúvio, o pixo era usado nas paredes para se comunicar, desde declarações amorosas, questões filosóficas e reivindicações políticas. A Roma Antiga também, como é sabido, também era toda pixada. Nessa época, não existia distinção entre grafite ou pixo. Tudo era “graffiti”, desenhos ou escrituras feitos com carvão, grafite (substância química que compões o lapis) ou pedaços de telha. E eram permitidos por lei. Direito garantido de liberdade de expressão, o poder de autodeterminação herdado da Grécia antiga, que dava suma importância à liberdade de cada um, o direito à filosofia e à democracia. Olha só! Isso significa? Significa. Significa que o pixo sempre existiu, existe e sempre existirá!

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Jornalistas Livres

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