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  • Cadernos da quarentena – Não maltratem a Mãe Terra

    Cadernos da quarentena – Não maltratem a Mãe Terra

    Por: Dennis de Oliveira

    Fiquei isolado aqui pelo litoral de São Paulo. A quarentena imposta pelas autoridades para combater a disseminação do coronavírus obriga a gente a mudar as formas de viver. Imagina ficar em uma cidade do litoral, verão, sol a pino e não poder ir à praia, ou tomar uma cerveja no boteco.

     

    Esta minha ida era por poucos dias, mas por conta da quarentena tive que ficar muito mais tempo. Aí bateu a preocupação: não trouxe roupa suficiente para mais que quatro dias. E como diz o ditado, a necessidade faz o ladrão. Diante da situação, foi possível sim viver com o que trouxe, só ir lavando a roupa que tinha, usando o que era possível sem qualquer vaidade consumista.

     

    E aí lembrei-me dos livros do Zygmunt Bauman que falava que vivemos em um “capitalismo de excessos”. Tivemos aumentos de produtividade imensos nos últimos 50 anos, graças ao avanço tecnológico. Mas, ao mesmo tempo, estes avanços como foram apropriados para a reprodução do capital e serviram muito mais para reduzir o número de pessoas que trabalham.

    Se produz mais com menos gente empregada.

     

    Só que aí a conta não fecha. Com menos gente empregada, a miséria aumenta e ao mesmo tempo que se produz mais mercadorias, tem menos gente que pode consumir. É aí que Bauman propõe o conceito de “consumo intensivo” ou o brasileiro Muniz Sodré fala do “turbocapitalismo”. O consumo intensivo significa o seguinte: as mesmas pessoas que têm poder de consumo hoje são instigadas para consumir ainda mais. Quem tem um celular, é incentivado a trocar por um outro mais novo a cada seis ou sete meses. Se você tem uma linha, a operadora te empurra uma outra (como se fosse necessária mais de uma linha). Numa casa com três pessoas, cada um tem um carro. A cada ano, os aparelhos eletrônicos ficam obsoletos e o conserto fica mais caro que a compra de um novo e assim por diante. E toda a tranqueirada velha para onde vai? Lixo!

     

    O mesmo Bauman disse que a cidade de Londres produz uma quantidade de lixo por ano equivalente a quatro vezes o tamanho da sua cidade.

    O automóvel, símbolo da modernidade, usa apenas 3% da energia que ele produz para carregar o seu condutor. O resto é para mover metal, plástico, engrenagens e resíduos eliminados para a atmosfera.

     

    Os avanços tecnológicos do capitalismo não são apenas trágicos. Descobertas científicas nos anos 1960 possibilitaram a cura de muitas enfermidades. Hoje a humanidade é muito mais longeva. As tecnologias de informação e comunicação – TICs permitem que esta quarentena forçada de hoje seja atenuada com a possibilidade de conversar com os amigos, familiares. Grupos de psicólogos organizaram terapias em grupo pela internet com pessoas que estão deprimidas. Tem um grupo de amigos que até fez um “churrasco virtual”, cada um na sua casa comendo uma carne e tomando uma cerveja e conversando pelo hangout. Eu mediei um debate sobre o coronavírus e a periferia para um canal da internet com cada um dos participantes nas suas casas. E ainda as informações sobre esta crise chegam de forma instantânea para a gente. Tem as fake news, mas prefiro acreditar que isto são os efeitos colaterais.

     

    Este modelo de sociedade em que cada vez mais se concentra riquezas vai criando mundos à parte. Nem todos podem usufruir de todos estes avanços. Ao mesmo tempo, uma casta de bilionários enriquece como verdadeiros parasitas, sem qualquer contribuição à sociedade: turbocapitalismo. Ganham muita grana sem produzir nada e aplicam no cassino do mercado rentista. Rende mais dinheiro e vai indo neste caminho. E vai turbinando ainda mais o seu consumismo.

    Não basta um palacete, precisa de dois, três. Não basta um carrão, tem que ter três, quatro… “Compra” ilhas, se isola do mundo, viaja de jatinhos e helicópteros.

     

    Na outra ponta, milhões de famintos desesperados vão em busca do mínimo para sobreviver. O mesmo mundo que conectou todas as localidades pela internet e mandou sondas a Marte convive com pessoas em busca de água potável. Como pensar em quarentena para aqueles cuja casa é a rua? No topo, os milionários consomem de forma turbinada e isto exige um consumo predatório dos recursos naturais para produzir os artefatos que usam. Na base, os miseráveis catam latas, papel ou o que ainda resta da natureza para sobreviver.

    E a mãe Terra vai agonizando. Os sábios dos povos originários da América já ensinavam a importância do Bem Viver. Os povos originários do Alto Xingu falavam do perspectivismo. O que é isto? Viver em equilíbrio com os sentidos da vida de todos os seres vivos. Não é preservar a natureza, mas conviver em diálogo com ela, como dizia o mestre Paulo Freire. Conforto não é opulência. Viver bem não é oprimir o outro. A mãe Terra, ou Pachamama, também é sujeito e está alertando.

    Este vírus é a lágrima da Pachamama que está dizendo: “eu não aguento mais!”

    Quem não acha que Deus é cartão de crédito entende o que estou falando. Não adianta acreditar em vida após a morte se nem a vida aqui a gente consegue dar conta.

     

     

  • Nasce Coletivo Paulo Freire, em Lisboa

    Nasce Coletivo Paulo Freire, em Lisboa

    Por Coletivo Paulo Freire especial para Jornalistas Livres

    Na noite do último dia 23 de janeiro, no núcleo de Lisboa da Associação José Afonso (AJA), foi lançado o Coletivo Paulo Freire. Este se define enquanto um movimento cívico, sem fins lucrativos, autónomo em relação aos partidos, radicalmente democrático e voltado para o progresso social. É composto por educadores brasileiros e portugueses, interdisciplinar, integrado por profissionais de diferentes áreas e artistas em diversas linguagens. Seu objetivo é desenvolver atividades de educação e cultura populares, com ações de formação, discussão e produção de um conhecimento crítico e libertador, aliando o pensamento e a atuação social, com a ciência e a arte. Além de inspirado pelo pensamento de Paulo Freire (1921-1997), procura divulgá-lo em Portugal.

    É assim uma ação de resistência contra a grande ofensiva que a extrema-direita brasileira, liderada pelo atual governo Bolsonaro, tem realizado contra o patrono da educação brasileira, pensador reconhecido internacionalmente e o terceiro autor mais citado no mundo na área de humanas. O posicionamento abertamente marxista e católico do autor de “Pedagogia do Oprimido” (1968) o tornou alvo preferencial dos fundamentalistas e, por isso, a defesa de seu pensamento é hoje um elemento na luta em defesa da democracia brasileira. A própria decisão de construir o coletivo foi tomada por alguns dos participantes da “Marcha Amorosa”, que marcou o aniversário de Paulo Freire em todo o mundo, e que em Portugal, por uma questão de segurança, foi realizada na marcha final da Festa do Avante!

    Numa sala lotada, com mais de oitenta participantes, refletindo o enorme interesse despertado por Paulo Freire e por sua obra, foi apresentada a primeira ação, já em curso, de alfabetização e reforço de leitura com os utentes do centro de dia da Comissão Unitária de Reformados, Pensionistas e Idosos (CURPI) de São João da Talha. No projeto, que adotou o nome do grande poeta popular algarvio, António Aleixo (1899-1949), se desenvolve um trabalho com o uso de poesias e um banco de memórias, com o registro de suas histórias, para desenvolver a sua autonomia e consciência.

    Primeiro encontro do Coletivo Paulo Freire, na cidade de Lisboa, em Portugal. Foto: Facebook Coletivo Andorinha

    Com a presença de várias instituições, como a Associação Mares Navegadas; a Associação para o Desenvolvimento das Mulheres Ciganas Portuguesas (AMUCIP); do projeto Literacia para a Democracia e da Associação Portuguesa para a Cultura e Educação Permanente (APCEP); da Associação Portuguesa de Recursos Hídricos; do Sindicato de Professores da Grande Lisboa (SPGL), a própria AJA, entre outras, se apresentaram outros projetos em vista, e para o qual se procuram parceiros. Entre estes está a viabilização da presença de obras de Paulo Freire nas bibliotecas públicas e universitárias portuguesas, do qual está quase ausente, apesar da longa história de movimentos, antes e depois do 25 de Abril, que se utilizaram do método de Paulo Freire para alfabetização de adultos.

    Como apontado pelos membros do coletivo, essa iniciativa, um desdobramento de um grupo de estudos sobre a obra de Paulo Freire e sua relação com a Sociomuseologia, é um exercício de coerência com a obra do marxista brasileiro que, como notado por um dos apresentadores, “sempre foi um exemplo de práxis, aliando sua teoria à prática social”. Foi isto que também ressaltou o representante do Partido Comunista Português (PCP), André Levy, na sua saudação ao Coletivo que nascia, dizendo que se “revêem também na ideia de educar não só para compreender o mundo, mas para transformá-lo”.

    Para encerrar a atividade, marcando seu caráter também cultural, ocorreu a apresentação de músicas do cancioneiro português, com o cantor e maestro João Silva, a participação da cantora brasileira, Mabel Cavalcanti, ambos acompanhados pelo excepcional tecladista, João Marques.

  • PAULO FREIRE ERA DE ESQUERDA

    PAULO FREIRE ERA DE ESQUERDA

     

    ARTIGO

    ALEXANDRE SANTOS DE MORAES, professor do Instituto de História da Universidade Federal Fluminense

     

    O governo Bolsonaro é ambicioso na escolha de seus inimigos. Arriscaria dizer que é culpa da inocência, mas não posso negar a ignorância ou a absoluta falta de opção. Prova disso foi ter escolhido Paulo Freire como adversário. Os ataques são compreensíveis e coerentes, já que o Patrono da Educação Brasileira foi o perfeito oposto de tudo aquilo que eles são ou poderão ser: inteligente, trabalhador, humanista e mundialmente prestigiado. Não menos importante, Paulo Freire foi de esquerda e sempre defendeu a democracia. Essas duas variáveis não são acidentes do destino ou feliz coincidência pra quem luta contra o autoritarismo e a ganância, mas o alicerce de toda sua genialidade. Nesse 15 de outubro, dia das Professoras e Professores, é fundamental recordá-lo como homenagem e como símbolo de luta contra o atraso.

                Ao longo de sua vida, Paulo Freire escreveu dezenas de livros e artigos. Trata-se do intelectual brasileiro mais lido e conhecido da história. Sua principal obra, a Pedagogia do Oprimido, é a terceira mais citada nas Ciências Humanas do mundo, superando clássicos como Vigiar e Punir, de Michel Foucault, e O Capital, de Karl Marx. A inteligência de Freire rendeu inúmeras homenagens e prêmios no Brasil, Europa, África e Estados Unidos: foram pelo menos 35 títulos de Doutor Honoris Causa ao longo de sua vida ou in memoriam. Foi filiado ao Partido dos Trabalhadores e atuou como Secretário de Educação de Luíza Erundina durante seu mandato na Prefeitura de São Paulo (1989-1991). Dedicou-se, sobretudo, à alfabetização, sempre atento à necessidade de ensinar a ler não só a língua, mas também o mundo. Além de refletir a respeito, Freire praticou a Educação, pois a prática é o critério da verdade. 

                A paranoia obscurantista que tenta a todo custo demonizar seu legado intelectual só pode ser explicada pelos seus próprios textos. Contra o ódio daqueles que defendem, por exemplo, o projeto Escola sem Partido, Paulo Freire responde que ensinar exige respeito à liberdade do ser do educando: “O respeito à autonomia e à dignidade de cada um é um imperativo ético e não um favor que podemos ou não conceder uns aos outros”. Contra a lógica cada vez mais perniciosa de uma educação técnica, voltada exclusivamente para a formação de mão de obra, Freire defendia uma pedagogia humanista, que ensinasse não apenas conteúdos, mas a pensar o lugar que cada um de nós ocupa no mundo: “Percebe-se, assim, a importância do papel do educador, o mérito da paz com que viva a certeza de que faz parte de sua tarefa docente não apenas ensinar os conteúdos mas também ensinar a pensar certo”.

                Contra o que chamava de “educação bancária”, que sepulta a criatividade de educandos e educadores, Paulo Freire defendia a necessidade de manter vivo nos estudantes o gosto da rebeldia, que aguça a curiosidade e estimula a capacidade de se arriscar e se aventurar.

                Outra grande lição de Paulo Freire, seguida por milhares de profissionais do magistério hoje homenageados, é que a Educação não é um processo unilateral, verticalizado, ao gosto daquilo que militares gostariam de ver em escolas militarizadas. Ensinar e aprender são anverso e reverso da mesma moeda: aprendemos enquanto ensinamos e ensinamos enquanto aprendemos. Os estudantes não são, na pedagogia de Freire, objetos passivos que devem se subordinar com disciplina aos professores e ao mundo. Mas, sobretudo, Freire sempre defendeu uma educação popular, emancipadora, que fosse capaz de libertar simultaneamente o oprimido e o opressor, capaz de recuperar a liberdade deles roubada e a humanidade que um mundo centrado na lógica da acumulação e na manutenção das desigualdades insiste em recusar. Por isso Paulo Freire foi de esquerda, como todos aqueles que prezam pela autonomia e que lutam contra as opressões.

                Vê-se com clareza a inocente ambição de Bolsonaro e seus ministros da Educação. Em breve, eles passarão. O futuro lhes reserva apenas a nota de rodapé da História. Paulo Freire, por sua vez, continuará gigante, imenso, com o prestígio intocado, e todos os ataques que sofre serão apenas mais um dado que enobrece sua já extensa biografia. O mesmo vale para nós, professores e professoras que seguimos conscientes da necessidade de educar para a liberdade e democracia, contra tudo e contra todos, sempre amparados no imperativo ético que nos fez escolher e permanecer nessa profissão cada vez mais difícil.

     

  • Escola sem pensamento

    Escola sem pensamento

    por Caio Chagas

    Quando o tambor dos estudantes secundaristas bateu na orelha de Geraldo Alckmin (Governador de São Paulo) e de Beto Richa (Governador do Paraná) durante as ocupações de escolas em resistência à PEC 241 no ano passado, aguçou-se o ovo da censura.

    O governo federal viu que não seria tão fácil entregar o que planejou no pós-golpe sem ter uma grande retaliação. No grande lobby feito na transição de Dilma Rousseff para Michel Temer ficou provado o projeto do empresariado de privatização e retirada de direitos dos trabalhadores, visando se aproximar de um modelo das ideias de Milton Friedman.

    A censura do pensamento, que o atual Ministro da Educação Mendonça Filho e os grupelhos como o MBL propõem com o “Escola sem partido” e com a medida provisória da reforma do ensino médio, coloca as próximas gerações com as cabeças voltadas para a idade média e para um controle de pensamento à la 1984, de George Orwell.

    Fortes pressões retiraram da Base Nacional Curricular termos como “identidade de gênero” e “orientação sexual”, tirando a obrigatoriedade de se discutir esses temas em sala de aula. O Supremo Tribunal Federal aprovou o ensino religioso com uma única religião e projetos como o Escola Sem Partido vem brotando em casas legislativas de diversos municípios.

    O movimento Escola Sem Partido foi criado ano de 2004 e é inspirado em uma ONG dos Estados Unidos chamada “No Indoctrination”. Seu criador, o advogado Miguel Nagib, alega que um professor de história havia comparado Che Guevara a São Francisco de Assis. Fez um relatório e passou a distribuir cópias no estacionamento da escola. Gerou muita confusão, mas nada de concreto. Hoje sua pauta acaba por engolir a maioria das discussões em redes sociais.

    O projeto ainda tem em seu decorrer trechos que separam a escolarização, que seria a formação técnica fornecida pela escola e voltada para o trabalho apenas, e a educação que são, segundo eles, os valores morais que devem ser apenas passados pelos pais. O projeto viola o Artigo 216 da Constituição Federal, onde está escrito que é papel da escola a formação cidadã e profissional para cada aluno ou aluna.

    O ideal conservador hegemônico do parlamento brasileiro criou uma caça às bruxas contra quaisquer discussões de âmbito progressista em espaços de aprendizagem como escolas, universidades e até mesmo museus.

    Exposições de arte vêm sendo boicotadas com o argumento de que estão promovendo a pedofilia e a zoofilia, professores vêm sendo fiscalizados por uma suposta doutrinação ideológica ou de gênero. Cada vez mais são impedidas discussões que questionem o moralismo cego da elite e os valores fundamentalistas da bancada da bíblia, do agronegócio e da bala.

    A escola não é um local apenas de formação técnica, ela é acima de tudo um local de construção de conhecimento, que parte de uma relação não hierarquizada entre alunos, professores e a comunidade escolar. Por que tanto ódio pelo diferente, pela diferença? Por que manter esse modelo patriarcal, de homens brancos, ricos, héteros com uma cadeia de relações hierárquicas que põe o adverso como menor, como submisso e subversivo?

    por Caio Chagas

    Paulo Freire, sociólogo e grande estudioso da área da educação, explica, em seu livro Pedagogia do Oprimido, que um modelo de educação no qual os alunos, ao terem um verdadeiro local plural de formação, deixam de ser agentes passivos de recepção de informação e se tornam agentes protagonistas de suas vidas, de seu pensamento e de sua sociedade. Paulo Freire é odiado por diversos setores da elite do país, que não aceitam um modelo inclusivo, construtivista e humanista de aprendizado. Essa mesma elite prefere, claro, um amiguinho chamado Alexandre Frota.

    O pensamento unitário sempre se mostrou perigoso e experiências totalitárias como o nazismo e o stalinismo, perseguiram e mataram milhões em busca de um modelo padronizado de pensamento. Uma sociedade sem debate, sem o conhecimento do oposto, empobrece, inviabiliza cada vez mais seu progresso.

    A destruição da humanidade do outro, do comunista, da feminista, de transexuais, de jovens negros da periferia impede cada vez mais novos pensamentos, novas formas de se viver no mundo. Excluir essas pessoas da sala de aula é matar toda a sua trajetória de luta por igualdade de direitos e pela própria vida.

    Já se percebeu que o conhecimento é a maior arma contra todo esse show de horrores do Congresso que é praticamente o mesmo, ano após ano. Para uma verdadeira transformação política, são necessárias a consciência e a participação das pessoas.

    O Brasil sendo o 5º país no ranking de feminicídio no mundo, pode se dar o luxo de não debater as questões de gênero na escola? O país onde um jovem negro morre a cada 23 minutos não pode debater questões como o racismo ou desigualdade social? O país que mais mata LGBTQIA no mundo deve simplesmente esconder de seus filhos pessoas que têm uma orientação diferente da sua?

    Nunca antes desde a redemocratização tivemos um parlamento tão retrógrado, apoiado num falso moralismo da moral e dos bons costumes, misturado com um ódio a qualquer coisa vermelha. Estamos à beira da ascensão de um modelo fascista e sem participação popular. A elite atrasada de nosso país clama por educação moral e cívica, enquanto professores se encontram na miséria lutando para sobreviver.

    A escola é o primeiro local de convivência com o diferente que muitas crianças tem. A desconstrução faz parte do processo de vivência em sociedade, é extremamente saudável que haja discussões e pontos de vista diferentes, afinal cada um de nós tem uma condição social distinta. O educador transpira os valores que o cercaram em sua vida como qualquer outro ser humano, se ele for calado, toda a sociedade se calara com ele.

  • Criticamente esperançosa

    Criticamente esperançosa

    “[…]

    A esperança faz parte da natureza humana. Seria uma contradição se, inacabado e consciente do inacabamento, primeiro, o ser humano não se inscrevesse ou não se achasse predisposto a participar de um movimento constante de busca e, segundo, se buscasse sem esperança. A desesperança é negação da esperança.

    A esperança é uma espécie de ímpeto natural possível e necessário, a desesperança é o aborto deste ímpeto. A esperança é um condimento indispensável à experiência histórica. Sem ela, não haveria História, mas puro determinismo. Só há História onde há tempo problematizado e não pré-dado. A inexorabilidade do futuro é a negação da História.

    É preciso ficar claro que a desesperança não é maneira de estar sendo natural do ser humano, mas distorção da esperança. Eu não sou primeiro um ser da desesperança a ser convertido ou não pela esperança. Eu sou, pelo contrário, um ser da esperança que, por “n” razões, se tornou desesperançado. Daí que uma das nossas brigas como seres humanos deva ser dada no sentido de diminuir as razões objetivas para a desesperança que nos imobiliza.

    Por tudo isso me parece uma enorme contradição que uma pessoa progressista, que não teme a novidade, que se sente mal com as injustiças, que se ofende com as discriminações, que se bate pela decência, que luta contra a impunidade, que recusa o fatalismo cínico e imobilizante, não seja criticamente esperançosa.

    […]”

    Trecho de “Ensinar exige alegria e esperança”, em Pedagogia da Autonomia, Paulo Freire 1996

    http://www.pensarcontemporaneo.com/ensinar-exige-alegria-e-esperanca-paulo-freire/

  • Por corpos indóceis

    Por corpos indóceis

    Isabel Marques e Fábio Brazil, do Caleidos Cia. De Dança, falam com os Jornalistas Livres sobre democracia do corpo, pedindo arte nas escolas e relacionando Freire e Foucalt com a dança.

    Jornalistas Livres – Por que arte nas escolas?

    Fábio Brazil – Primeiro, acho que devemos ter e defender arte em todos os lugares; criação, fruição e reflexão sobre arte devem estar presentes sempre. Mas é verdade que nós aqui do Caleidos fazemos sim uma defesa da arte nas escolas e não como perfumaria no contra turno, ou como tapa-buraco em horário vago, ou aula relax numa grade repleta de matérias “mais respeitáveis”. Defendemos a arte como componente curricular, área do conhecimento e integrada ao Plano Político Pedagógico da Escola. Arte precisa fazer parte da formação de qualquer cidadão e nesse sentido, deve estar em todas as escolas e em todos os níveis escolares. Muito da confusão que se faz quando se pensa em arte na escola vem da ideia de que arte seja apenas “talento, inspiração e vocação” e sendo só isso, a escola teria muito pouco a fazer tanto pelo talentoso, inspirado e vocacionado quanto pelos “reles mortais”. Esses raciocínios são frutos do mito do “artista que nasce pronto”, que só serve para afastar a arte das pessoas e da sociedade de modo geral, isso só serve para isolar o artista e obscurecer a relação das pessoas com a arte. Não se trata de negar “talento, inspiração e vocação”, mas de pensar que arte é também e até principalmente: conhecimento, estudo e profissão – como a matemática e a língua inglesa – e também é uma forma de ler o mundo – como a biologia e a física.

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    Arte na escola é dar acesso a todos os estudantes a uma área do conhecimento e a uma forma de ler o mundo, e quem sabe até de interferir no mundo por meio da criação.

    Isabel Marques – Infelizmente ainda existem muitas ideias equivocadas, preconceituosas e até mesmo ingênuas em relação ao ensino de Arte nas escolas. Em parte, isso decorre do próprio papel da arte na sociedade e de preconceitos e visões ingênuas sobre o artista. Um exemplo disso foram as manifestações favoráveis ao fechamento do Ministério da Cultura nos primeiros dias do governo (ainda interino) Temer. Tem-se a ideia de que artista não trabalha, “é vagabundo”, porque a Arte não “serve” para alimentar o sistema corporativo capitalista.

    Talvez seja justamente este o valor da arte na escola e na vida das pessoas – a possibilidade de experienciar, refletir, ler o mundo com outras lentes que não sejam as lentes da funcionalidade, do pragmatismo, dos resultados, dos lucros, do consumo impressos como valores únicos e absolutos na sociedade capitalista.

    A arte tem o potencial de proporcionar experiências de encontro, crítica, reflexão – a experiência estética – que permitem criar outras redes de conexão entre as pessoas que não são mediadas pela produção econômica.

    Jornalistas Livres – O que relaciona arte e democracia?

    Fábio Brazil – Há tantas relações entre arte e democracia que fica difícil escolher as mais importantes para elencar aqui. Podemos iniciar pensando de uma forma mais geral, arte é uma área do conhecimento e o conhecimento, para nós, é elemento estruturante da democracia. Acreditamos que a democracia seja tanto mais sólida quanto mais investimentos em educação houver; não podemos entender democracia sem que estejamos entendendo também a democratização do conhecimento em todas as áreas, e a arte tem que estar nesse pacote. Em termos mais específicos, cada linguagem artística, cada forma de arte está ligada a uma ou mais formas de construir estruturas de linguagem, ou seja, se pensarmos na dança, temos uma linguagem construída pelo corpo em movimento, mas há também o espaço sendo transformado, as relações entre os corpos dançando, a ação dramática daqueles corpos, a visualidade que provocam, a sonoridade com a qual dialogam e etc.

    Enfim, fruir e perceber uma arte é ter uma experiência múltipla de linguagem, música muda a sensação que temos do espaço, poesia reconstrói as palavras e a sensação de tempo, ter acesso à arte é ter acesso à leitura de muitas linguagens e isso é transformador na leitura que fazemos do mundo, e ao lermos o mundo com clareza, profundidade e amplitude, nossa relação com o mundo se transforma e esse é um bom lugar onde se pode plantar a democracia.

    Por último e talvez o mais óbvio: fazer, pensar, estudar arte nos coloca em contato com o outro e conosco ao mesmo tempo; ler um poema, por exemplo, é ouvir outra voz dentro de si, é falar de si por meio das palavras do outro, é encontrar-se encontrando o outro – arte é um espaço de partilha cognitiva – nesse sentido, fruir arte talvez seja viver no corpo a ideia de democracia.

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    Isabel Marques – como o Fábio já disse, a primeira conexão é uma questão de direitos – todos têm, em uma democracia, o direito à arte, à Arte na escola, como conhecimento. Em primeiro lugar, o acesso é importantíssimo (não só oportunidades de fruição e visitação, mas também políticas públicas que garantam a gratuidade de acesso a museus, espetáculo, shows etc) – e esse já é o primeiro passo para a democratização da arte; mas isso não basta, é preciso ter conhecimento para realmente desfrutar o que a arte pode oferecer, caso contrário afastaremos a população das diversas manifestações artísticas (da arte contemporânea, por exemplo) e deixando-a à mercê das mídias e do mercado – o fenômeno Romero Britto é um exemplo disso. Precisamos aprender a ler as diversas manifestações artísticas para não cair nos julgamentos simplórios, nas experiências mediadas somente pelo senso comum. Sem conhecimento não há acesso de fato à arte. Estamos vislumbrando hoje um fechamento desse processo de democratização do acesso à arte e ao conhecimento, pois volta velozmente a ideia de que arte é talento e, portanto, para poucos. Isso é um retrocesso enorme. Veja por exemplo a entrevista de Bia Dória, onde afirma que a “arte arte” é a única que vale – a arte clássica, ela quis dizer.

    Do mesmo modo, a Arte está correndo o risco de sair da Escola, conforme a MP 742 que propõe a reforma do Ensino Médio – justifica-se que a arte não é importante para a formação do “jovem trabalhador”.

    Jornalistas Livres – O que é democracia do corpo?

    Fábio Brazil – É antes de mais nada reconhecer que há um corpo, reconhecer que somos um corpo (ao contrário de possuirmos, de termos um corpo), reconhecer que corpo não é um dado definitivo, reconhecer que corpo é construção social, reconhecer que corpo é espaço de conflito e combate histórico-social, reconhecer que corpo é cruzamento de culturas, ideias, percepções, ideologias e sensações, reconhecer que corpos constroem e vivem relações e reconhecer que corpos produzem significação e reagem a elas.

    Pensar uma arte, no nosso caso a dança, que se produza no corpo e em vez de anular e sublimar tudo isso que o corpo é e pode realizar, uniformizando e doutrinando os corpos, mas pelo contrário, uma arte onde o corpo em toda a sua singularidade e sua potência possam estar em cena, todos os corpos, corpos dos bailarinos e do público dialogando e construindo relações de maneira ética e propositiva, isso, para nós, é viver no corpo a democracia.

    Isabel MarquesPensar o corpo em estado democrático é acreditar que todos os corpos têm o potencial, sobretudo, de criação. É muito comum na área de dança pensar a democracia do corpo somente como oportunidades de fazer aulas, de dançar, como, por exemplo, levar o balé clássico (dança dita das elites) para populações de baixa renda. Acreditamos que o processo de democracia do corpo vai além disso, experienciar democracia do corpo é perceber e entender que cada corpo, devido a suas construções, como disse o Fábio, é uma potência de criação singular, própria e, portanto, tem um potencial de transformação pessoal e social.

    Paulo Freire sempre dizia que a cultura consiste em criar, não em repetir. Aulas de dança com base somente na cópia, principalmente se esta cópia for silenciosa, mecânica e passiva, tem poucas chances de trabalhar rumo à democracia do corpo.

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    A democracia está, no nosso entender, conectada à singularidade, à possibilidade de convívio e diálogo entre as diferenças (diferentes corpos).

    Jornalistas Livres – O que une dança, Freire e Foucault?

    Isabel MarquesHá muitos anos estamos pesquisando esse diálogo entre a dança/arte, o pensamento de Paulo Freire e alguns princípios de Foucault. Paulo Freire nos ensina a importância da dialogicidade e da problematização no processo de conhecimento e construção da sociedade. Aliado a isso, trabalha com a noção de consciência crítica e participação transformadora no mundo em que vivemos.

    A meu ver, isso dialoga com a teoria de Foucault no que tange à educação institucionalizada de corpos dóceis, passivos, obedientes, submetidos aos micropoderes sociais.

    Acreditamos que processos de educação dialógicos, problematizadores e críticos (propostas freirianas) possam e, portanto, participantes, conscientes e propositivos.

    Jornalistas Livres – Como o Caleidos conversa com esses conceitos?

    Isabel MarquesNo trabalho do Caleidos Cia. De Dança – assim como nos cursos, pesquisas e eventos do Instituto Caleidos – há 20 anos trabalhamos com essa perspectiva da arte como conhecimento e linguagem capaz de dialogar com o mundo de forma propositiva, participativa, dialógica e crítica. Nossos trabalhos, costumamos dizer, não são para o público, mas essencialmente COM o público. Não são demonstrações de virtuoses e sim construções cênicas que convidam o público a interagir e a descobrir, cada um, suas próprias possibilidades de dançar, criando, portanto, de diálogos consigo mesmo, com os outros e com a sociedade.

    Abraçamos as propostas de problematização e diálogos corporais para que todos, indistintamente de habilidades físicas, idade, constituição corporal, conhecimento de dança, etnia, classe social, gênero possam dançar, e dançar juntos, recriando as propostas dos artistas em cena.

    Estamos há vinte anos pesquisando processos de interatividade que sejam não somente respeitosos às diferentes possibilidades corporais na cena, mas principalmente, que estimulem o potencial de criação e construção artística de cada um. Esta pesquisa sobre linguagem e interatividade com a série dos espetáculos “Coreológicas” em 1996 e tem se desdobrado em outros espetáculos como o “Tria”, de 2014 e o mais recente espetáculo, o “Coreô”, de 2016. Outros espetáculos da cia como Mapas Urbanos (2011), Ares Familiares (2009), Para o Seu Governo (2012) e Via Urbis (2016) também são interativos, propondo, além da experiência com a dança em si, reflexões sobre nossos cotidianos – Via Urbis, por exemplo, é encenado nas escadarias, propõe uma caminhada por estações da cidade (temáticas relevantes da cidade como o papel dos políticos, a violência contra as mulheres, o lixo etc), o público faz parte da Via Urbis.

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