Jornalistas Livres

Tag: opinião

  • Dúvidas nossas de cada dia

    Dúvidas nossas de cada dia

    Por Fabianna Pepeu

    Ainda em março — salvo engano —, pisando em ovos porque era o início disso tudo aqui no Brasil e eu não sou epidemiologista nem nada, sugeri uma relação entre os casos de infarto agudo, morte súbita e Covid. Não tenho bola de cristal e não sou tão baixinha (sou?) quanto a Madame Mim, mas observei o aumento do número de mortes por problemas cardiológicos no país em paralelo ao grande volume de infectados pelo novo coronavírus com sintomas, até então, considerados típicos: dor na garganta, febre, falta de ar, cansaço, falta de olfato e também ausência de paladar.

    Depois, li alguns estudos feitos aqui e em outros países que indicavam realmente problemas cardiológicos e óbitos dialogando com a infecção pelo novo coronavírus.* Médicos e pesquisadores também levaram em consideração que a pandemia adiou a ida aos consultórios médicos, interrompeu tratamentos de saúde diversos e aumentou o estresse — fatores importantes na investigação sobre o aumento do número de casos de morte por questões cardiológicas no mundo todo.

    Aqui no Brasil, em junho, dados da associação de cartórios em parceria com a Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC)** mostraram um aumento de 31% em mortes por doenças cardiovasculares. Dados levantados no período de 16 de março a 31 de maio em comparação com o mesmo período do ano passado. Nesse intervalo, os óbitos por doenças como morte súbita, parada cardiorrespiratória e infarto agudo do miocárdio (choque cardiogênico) foram de 14.938 em 2019 para 19.573 em 2020.

    Por que estou falando nisso agora? Porque fiquei pensando de novo nessas coisas todas em função da grande perda que representa a recente morte de Zuza Homem de Mello para os familiares, amigos e para a cultura brasileira.

    O infarto agudo do miocárdio também nos levou o cantor e compositor Moraes Moreira e, ainda, o escritor Rubem Fonseca, o narrador esportivo Carlos Eduardo Sica Cortez (40 anos, saudável) e o maestro Henri Roberto Leite. Já o mal súbito, que é outro problema cardiológico, levou, no interior de Pernambuco, a sobrinha de um amigo querido que faz jornalismo cultural.

    Essas pessoas teriam ido embora também por conta do novo coronavírus? Que estados e municípios têm condições de fazer uma investigação (pente fino) nos óbitos não relacionados em um primeiro momento à Covid? Nas notícias sobre esses poucos exemplos que aqui elenco não constam a marca da doença, mas não é possível garantir que não exista também uma relação direta com o novo coronavírus.

    Será que essas mortes chegaram a ser investigadas para o novo coronavírus, repetindo, considerando que boa parte dessas pessoas já era de uma certa idade, etc e tal, e que infartos acontecem e pronto? No caso do comunicador e da adolescente, sendo jovens, diante do susto da morte, algum familiar teve condições de pensar nisso?

    Covid e fadiga

    Tem sido cada vez mais frequente a evidência acerca das sequelas, em alguns casos bem severas, deixadas pela Covid. Um exemplo é a Síndrome da Fadiga Crônica (SFC). Depois da fase aguda, a Síndrome de Stevens-Jonhson (alergia extrema a medicamento), também causa a Síndrome da Fadiga Aguda e eu, uma de suas vítimas, asseguro que se trata de uma condição muito limitante e complicada.

    Há quem confunda cansaço contínuo — ou que vai e vem, sem motivo aparente —, falta de concentração e sono que não revigora com depressão.

    Infelizmente, pouca gente tem a sorte (que outro termo usar?) de ter um diagnóstico rápido e preciso acerca do mal que lhe acomete. Poucos médicos e outros profissionais de saúde — por formação equivocada, preguiça, pressa para faturar mais ou até condições precárias de trabalho — fazem uma boa anamnese, observando com compaixão quem está adoecido e buscando uma visão holística do paciente. E ter um diagnóstico preciso é meio caminho andado para sair do adoecimento ou até seguir em direção à cura (pra quem, felizmente, tem essa perspectiva).

    HIV & Covid.

    Do mesmo modo como aconteceu nos anos 1980, por exemplo, quando o HIV — sigla em inglês para vírus da imunodeficiência humana, que ataca as estruturas de defesa do organismo, deixando-o mais vulnerável às chamadas doenças oportunistas, como pneumonias e tuberculoses — causou um rebuliço grande nas coisas do mundo, só bem adiante é que saberemos um tanto de coisas importantes sobre esse diacho do novo coronavírus, que daí já será até mais velho. Ufa!

    Haverá mesmo uma vacina que nos protegerá completamente da Covid, ou apenas remédios para o tratamento quando formos contaminados? O que deixamos de fazer para nos proteger e que excessos teremos cometido nesses meses todos?

    Há muitas questões em aberto que apenas o tempo — esse grande escultor — e muita pesquisa e estudo poderão nos responder.

    No caso dos portadores de HIV, houve um momento no qual eles eram evitados pelo restante da população. Houve uma estigmatização cujo pano de fundo era uma questão bem moralista. Foi difícil para muitas pessoas. Hoje, há tratamento, o preconceito diminuiu e essas pessoas podem, por exemplo, dar e receber beijos sem risco e seguir vida normal. Existem meios de evitar a contaminação.

    No caso do novo coronavírus, haverá um momento de novo no qual poderemos, finalmente, voltar a beijar estranhos — pero no tanto — nas ruas, avenidas e pracinhas das cidades?

    * The New York Times: https://www.nytimes.com/2020/03/27/health/coronavirus-cardiac-heart-attacks.html

    **Sociedade Brasileira de Reumatologia: https://www.reumatologia.org.br/clipping/pacientes-que-contrairam-covid-19-podem-desenvolver-fadiga-cronica/

  • Debater ensino híbrido em tempo de isolamento social: o que pode estar nas entrelinhas?

    Debater ensino híbrido em tempo de isolamento social: o que pode estar nas entrelinhas?

    Por Daniel Filho

    O ensino híbrido, ou blended learning, consiste em professoras e professores como moderadores de um processo de aprendizagem cujo principal estímulo é a interação interpessoal e formação da autonomia para que estudantes encontrem e conduzam seu próprio método de pesquisa, tanto de forma presencial quanto virtual, essa mescla justifica o termo inglês “blend” que significa mistura.

    Uma necessária etapa de evolução do ensino, mas o resgate desse tema em tempo de isolamento social oriunda da pandemia pode encobrir intenções e riscos?

    Com o necessário isolamento social as aulas remotas foram postas no colo da comunidade escolar numa realidade onde uma grande parcela de docentes e discentes não tem pleno acesso a notebooks e internet. O primeiro de muitos “hibridismos” impostos.

    Esse artigo não visa criticar o conceito que, por sinal, é necessário a uma educação de qualidade, mas provocar a reflexão: temos unidades de ensino com estrutura física e tecnológica para o século XXI? O quanto retomar esse debate pode se converter em perda de direitos, logo, retrocesso, em vez de evolução no processo de ensino-aprendizagem?

    PROFISSIONAIS HÍBRIDOS

    Soa inerente ao profissional da educação essa condição híbrida. Da sua formação aos anos de exercício da profissão vê a necessidade de mesclar teoria, prática, tendências, conceitos… Políticas públicas e determinações de governos, muitas vezes são jogadas abruptamente, com pouca ou nenhuma discussão de base, na vida do profissional e, aos mesmos, o “tapinha nas costas” com o dizer: “Você é capaz, professora/professor!”

    Mas se trata de capacidade ou desrespeito? Mudanças que visam melhoria do ensino público ou assédio e precarização do trabalho? Em Pernambuco podemos ilustrar com alguns exemplos de como se dão essas rupturas e suas rápidas readaptações à realidade das comunidades escolares.

    AVALIAÇÃO

    Em Pernambuco a avaliação escolar deixou de ser feita por nota (0 a 10) para ser conceito (DC = Desempenho construído, DEC = Desempenho em Construção, DNC = Desempenho Não Construído) e, pouco depois voltar a ser nota. Isso falando das avaliações internas, mas surgiram ainda as avaliações externas, SAEPE, SAEB, são as principais. Bonificações para unidades de ensino que atinjam metas foram implantadas e o conflito se instala: educação para construção de aprendizagem e autonomia ou para competição?

    Há formações acerca do tema avaliação, mas, na prática, ainda estamos longe de um modelo avaliativo diagnóstico e inclusivo.

    ACOMPANHAMENTO INDIVIDUALIZADO

    O diário escolar que registra a vida escolar de estudantes já foi impresso, quase sempre entregue com atraso forçando professoras e professores a ter trabalho duplo (anotar em caderno para, depois, reescrever quando os diários chegavam). Depois foi modificado para o Sistema de Informações da Educação de Pernambuco (SIEPE). Informatizado, visou a melhoria, mas não veio junto com acesso à internet de qualidade e notebooks, tablets, aos profissionais da educação (administrativos e pedagógicos) ou mesmo formação continuada para explicar o sistema. Muitos profissionais tiveram que pagar para trabalhar, fazer cota para ter internet de qualidade e, assim, conseguir abastecer o sistema. Muitos têm trabalho duplo, pois quando o acesso é ruim na sala, precisa anotar para, somente então, incluir no sistema. Nas escolas que não têm o acesso, profissionais levam seu trabalho para casa.

    ESCOLA INTEGRAL

    O tema sempre foi muito debatido e Pernambuco se destaca pela ampliação do modelo. Um período estendido dentro da escola é visto como garantia de direito e prometia uma melhor condição trabalhista ao profissional que poderia ter melhoria salarial considerável, em caso de dois vínculos ter as duas matrículas em um mesmo local de trabalho, além de um tempo maior dentro da escola para planejamento, formação e avaliação o que, em tese, deveria impedir uma terceira jornada em casa.

    Na prática a gratificação está congelada a um teto, perdendo seu poder de valorização que teve no início, não poderá ser levada para a aposentadoria, no entanto sempre teve descontos previdenciários e, por todos problemas citados referentes à avaliação e sistema de informações, o terceiro turno em casa se tornou inevitável.

    Muitas professoras e professores, ainda, não conseguiram manter suas matrículas no mesmo local de trabalho e a jornada de trabalho é exaustiva.

    Estruturalmente muitas escolas não viram mudança para uma adequação a uma jornada diária de nove horas. Quadras poliesportivas sem cobertura (quando a escola tem quadra), refeitório e espaços de aprendizagem inadequados, banheiros com problemas, salas sem climatização… Um modelo de educação que deveria ser referência e desejada para todas e todos continua a enfrentar desafios e desigualdades gritantes.

    Profissionais da educação e estudantes se veem, mais uma vez, a “mesclar” promessa, tese e realidade.

    PANDEMIA E AULAS REMOTAS

    Com a pandemia, isolamento social, a cobrança aumentou e o conceito de educação híbrida voltou à tona. Não há nenhuma condição de retorno às aulas sem vacina por todos os problemas estruturais já citados. Para garantir aulas remotas a uma pequena parcela de estudantes, professoras e professores se desdobram para adaptar conteúdo, prática e condições de trabalho. Não chegando a todas e todos, fica a disputa da validação ou não das aulas remotas como dias letivos.

    Não sendo validada, professoras e professores, mais uma vez, acumularão trabalho. Sendo validada, estudantes que não tiveram acesso serão prejudicados e abre caminho para uma educação à distância ser normalizada para o pós pandemia o que torna tendenciosa a retomada do conceito “educação híbrida”.

    Retirada de direitos, precarização ainda mais aprofundada do trabalho docente, imposição do ensino domiciliar, conhecido também pelo termo em inglês “homeschooling”, evasão escolar, são algumas das muitas chagas que podem estar travestidas de modernização da educação e que aprofundariam ainda mais as já gritantes desigualdades sociais em nosso país.

    Reflexão posta fica a discussão acerca do que é ser híbrido quando o tema é educação pública de qualidade. Quando gestoras e gestores dos recursos e políticas públicas educacionais poderão adotar uma prática híbrida de respeito, valorização, democracia e acesso à tecnologia para profissionais, escolas e estudantes?

    VITÓRIA DA EDUCAÇÃO COM QUEM FAZ EDUCAÇÃO

    Com a promulgação da emenda constitucional que torna o FUNDEB (Fundo de Desenvolvimento da Educação Básica) permanente, com ampliação gradual do repasse de dinheiro da União para o fundo (dos atuais 10% a 23% até 2026), a manutenção da educação pública ganha novo fôlego.

    Garantir que esses recursos se convertam em valorização profissional, modernização das estruturas das unidades escolares e pleno acesso a uma educação pública de qualidade se faz ouvindo quem vive e faz a educação desse país.

    Daniel Filho é Mestre em psicanálise aplicada à educação, escritor, professor e coordenador de Biblioteca da rede estadual de ensino em Petrolândia, sertão de Pernambuco e Coordenador regional afastado do Sintepe (Sindicato dos trabalhadores em educação de Pernambuco).

  • NOTAS SOBRE A PANDEMIA VISTA ENQUANTO CALAMIDADE PÚBLICA – UM DEBATE NECESSÁRIO PARA O SERVIÇO SOCIAL

    NOTAS SOBRE A PANDEMIA VISTA ENQUANTO CALAMIDADE PÚBLICA – UM DEBATE NECESSÁRIO PARA O SERVIÇO SOCIAL

     

    Por Adriana Soares Dutra¹ e Leonardo Koury Martins²,
    especial para os Jornalistas Livres 

     

    No dia 20 de março, o Senado aprovou o Decreto nº 6/2020 que reconhece a ocorrência do estado de calamidade pública em função da pandemia do novo coronavírus (COVID-19). Enquanto conceito, calamidade pública significa catástrofe, desgraça pública, flagelo. A construção da palavra através do Latim é calamitate, porém o conceito, de acordo Política Nacional de Proteção e Defesa Civil (Lei nº. 12.608/12),  vai além.

    É por este conceito necessário considerar as situações que trazem ao Estado de Calamidade Pública uma situação anormal, provocada por desastres (ou não), causando danos e prejuízos à coletividade, que impliquem o comprometimento substancial da capacidade de resposta do poder público do ente atingido.

    Desde que foi detectado o primeiro caso da doença, em dezembro de 2019 (Wuhan – China), o COVID-19 tem instado desafios incalculáveis à sociedade mundial. Por se tratar de algo que afeta todas as esferas da vida social, a pandemia provocada pelo COVID-19 ou Coronavírus precisa ter nos governos e demais entes estatais, como o Parlamento e o Judiciário, o suporte necessário para uma grande ação conjunta que leve em consideração que em situações como a vivida na atualidade não há espaço para atitudes fragmentadas ou parciais. A articulação conjunta é o que garante uma ação precisa, especialmente no tempo presente.

    Todavia, o que assistimos, especialmente no Brasil, ainda se aproxima mais de uma disputa vaidosa entre os governantes do que propriamente de um esforço de unidade frente à complexidade da situação. Boa parte das recomendações de proteção contra a proliferação do vírus se mantém distantes da realidade experimentada por grande parte das classes trabalhadoras, na medida em que não são acompanhadas de medidas econômicas substanciais. 

    Em tempos em que a  uberização torna-se a tônica do mundo do trabalho, atribuindo aos trabalhadores de forma cada vez mais intensa e perversa a responsabilidade pela própria reprodução, permanecer em casa não é uma opção para muitos. Seja porque esta decisão está nas mãos de terceiros, seja porque não podem se afastar um dia sequer de suas ocupações, por mais precárias que sejam, sem faltar o que comer no dia seguinte, uma parcela significativa dos trabalhadores não dispõe de condições mínimas para sua proteção. Nesse sentido, por mais conveniente que seja acreditarmos que as doenças infecciosas são democráticas,  a pandemia do coronavirus também é marcada pela classe, gênero e raça, como afirmou recentemente o geógrafo britânico David Harvey. 

    Neste contexto, o debate sobre o papel do Estado para a garantia da vida torna-se primordial. Sem políticas públicas não há condições concretas de proteção. Mas o discurso atrapalhado do presidente do país, Jair Bolsonaro, parece composto por um misto de negação e irresponsabilidade e, diante de uma incapacidade de apresentação de medidas econômicas concretas para os trabalhadores, até mesmo a quarentena, ainda que tomada de forma individualizada, já começa a sofrer forte pressão e ameaça ser suspensa a qualquer momento.

    O que não deve ser compreendido como uma novidade nem ser recebido com surpresa.

    O lucro a serviço dos ricos, princípio básico da economia capitalista, impede um esforço mais concentrado sobre a importância do isolamento social em todo o mundo. Para o Sistema Capitalista e em grande parte das ações de governo no mundo, a Economia está acima das vidas humanas.

    Porém é neste momento que devemos refletir, quando o Sistema Capitalista estava pensando ou agindo diferente? A defesa da propriedade encontra-se explícita desde a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, promulgada em 1789 no contexto da Revolução Francesa, e segue sendo a principal bandeira dos governos neoliberais da atualidade.  Desta forma, não se trata de uma análise superficial, mas para que este texto tenha sua estrutura pensada a partir da Calamidade Pública, considerando a Pandemia como fator preponderante e o papel do Estado como primordial para este momento, devemos organizar o pensamento a partir do modo de produção vigente e da crise na qual se encontra, sendo a questão ambiental parte integrante deste arranjo global e a articulação integrada do Poder Público para tais enfrentamentos e a importância da articulação integrada do Poder Público para tais enfrentamentos. 

    O neoliberalismo não é capaz de garantir ações eficazes no enfrentamento da Pandemia, o Estado mínimo não consegue trazer respostas coletivas além do protecionismo econômico para o próprio capital. 

    É seguro afirmar que o processo de constante expansão e de consumismo sem limites necessário à sobrevivência do capital sustenta-se na intensificação da exploração das trabalhadoras e trabalhadores, na extração desordenada da matéria prima, na produção agrária extensiva, fazendo com que a relação força de trabalho e matéria prima a cada dia se sucumbam à produção de mercadorias.

    Para além da dilaceração da vida dos sujeitos em um nível mais imediato, tanto objetiva quanto subjetivamente, outras consequências enormes e graves se agudizam dia após dia. O efeito disso é o Lixo, este que não sairá do planeta e em seu rastro o aquecimento solar, a Camada de Ozônio, El Niño e La Niña, a mineração, seus rejeitos e todo o crime ambiental que os acompanha. O Planeta se encontra desgastado com a aceleração do capital sobre todas as formas de vida existentes.

    Se é tempo de pensar no isolamento social como necessário para reduzir o número de pessoas infectadas e mortas pelo COVID-19, vale a reflexão do porque é tão difícil parar.  

    Esta realidade ultrapassa muito a calamidade pública gerada pelo vírus. Nos remete à lógica de produção e reprodução da vida no sistema capitalista e a necessidade urgente de repensarmos o caminho que está sendo trilhado nesta sociabilidade. O lucro não pode se encontrar acima da vida humana, determinando as condições em que vivemos. Seja pela pressão do ato de não parar, mas também de que forma  parar, é necessário pensar de qual forma viver. Como se encontram os autônomos, desempregados, pessoas em situação de rua? Qual o diálogo sobre o acesso à alimentação enquanto um direito, o tamanho de nossas casas e as relações sociais enfraquecidas no cotidiano estão sendo estabelecidos?

    Como parte do conjunto de trabalhadores, assistentes sociais não se encontram imunes à essa realidade. As frágeis condições de trabalho, incluindo vínculos precários, falta de autonomia e escassez de recursos têm sido alvo de preocupação e debate dentro da categoria nas últimas décadas. Ao mesmo tempo, reconhecer a importância do trabalho do Serviço Social para a garantia de direitos é primordial, em especial em tempos de acirramento das expressões da questão social.

    Mais do que nunca, é momento de defesa intransigente de um Estado de direito, de políticas públicas universais, de um sistema de saúde, de educação, do trabalho e também dos direitos de não ir ou vir, em tempos de pandemia. 

    Ao mundo, o que este período nos faz refletir: o Estado mínimo não tem condições de garantir a cidadania pela sua frágil mediação entre os interesses da população e a economia capitalista. A inoperância do Estado Neoliberal é proposital, frente às intempéries, pandemias e as grandes questões ambientais. Prova de que este modelo precisa ser derrotado nos países que aplicam tal organização política.

    Ao Brasil, mais do que antes, renasce a urgência de lutar não apenas pela defesa da Saúde Pública mas contra os desmontes cotidianos nas políticas sociais. A Constituição Federal não pode ter no seu marco legal, emendas como a EC95 que retira por 20 anos os gastos públicos para os direitos sociais. 

    Esta dualidade desfaz o que se descreve quanto os artigos 6º e 7º da Constituição que garantem a toda população diversos direitos já instituídos, mas profundamente afetados na atualidade. O que se traz como garantidas para a coletividade não podem ser mercantilizado. A vida não é um negócio a ser equilibrado como balança do que é perda aceitável como sugerem os analistas do atual governo federal.

    O reconhecimento da identidade de classe, o compromisso com àqueles que se encontram em processos de vulnerabilização e a valorização da vida devem orientar a defesa da paralisação da classe trabalhadora, assim como a garantia, por parte do Estado, de condições para que ela ocorra. Trata-se de elementos que podem contribuir para o resgate da unidade nas lutas sociais, frente um Brasil que se desdobra no Golpe contra seu próprio povo. 

    ¹Adriana Soares Dutra
    Assistente Social e professora da Universidade Federal Fluminense. Autora do livro Gestão de Desastres e Serviço Social

    ²Leonardo Koury Martins
    Assistente Social, professor do Curso de Serviço Social do Centro Universitário Unihorizontes e da coordenação da Comissão de Direitos Humanos do Conselho Regional de Serviço Social – CRESS-MG

     

     

  • “Ele nos chamou para briga. O que ele ganha com isso?”

    “Ele nos chamou para briga. O que ele ganha com isso?”

    Por Luis Araújo, professor da Universidade de Brasília, Doutor em Políticas Públicas.

     

    Não sou dono da verdade, já tem muitas pessoas cumprindo essa tarefa ingrata. Mas peço um minuto de reflexão.

    Na noite de ontem (24 de março), depois de um mês do primeiro caso de coronavirus e com o crescimento acelerado de casos, o presidente Bolsonaro fez um discurso inacreditável, absurdo e revoltante. Diante de tal absurdo, a reação dos setores progressistas foi anunciar o seu fim, diagnosticando que o mesmo enlouqueceu e que tirá-lo da presidência imediatamente é a demanda a ser assumida. Será?

    Bolsonaro é louco? Não há nenhum dado cientifico sério que confirme isso. Ele é um idiota? Se o fosse não teria conseguido ganhar as eleições, derrotando a direta tradicional e uma forte unidade da esquerda no segundo turno. Bem, se não é um caso médico e ele agiu ontem de caso pensado, qual o seu interesse de provocar tamanha revolta?

    Não sou um bom jogador, nem de futebol e muito menos de xadrez, mas dizem que o melhor cenário numa guerra ou num jogo, sendo a batalha inevitável, é poder escolher o local e o momento que mais lhe favorece. É isso que ele está tentando fazer. Vejamos os elementos que estamos deixando escapar.

    A pandemia é real, vai matar centenas, talvez milhares, de brasileiros, vai superlotar o já saturado sistema de urgência do país. E, para além das consequências sanitárias, já está paralisando a economia, o que nos jogará numa recessão violenta, com desemprego, queda de renda de 40 milhões que vivem da informalidade, fechamento de empresas e tudo que disso é derivado. Isso ainda está no início, mas quando chegar no ápice, a culpa será distribuída em quem tinha responsabilidade de conduzir o país: Bolsonaro. Ele sabe disso, sabe que os ânimos da população diante de seu governo vão mudar, fazendo derreter a base social que até agora mantém no seu entorno e, fazendo isso, ele perderá a utilidade para as elites, podendo facilmente ser descartado.

    O que Bolsonaro fez ontem foi potencializar o campo de batalha que lhe é favorável, a narrativa de que há uma trama da esquerda, de governadores e da mídia, tentando destruir a economia, exagerando os efeitos da pandemia, para derrubá-lo. Trabalha com a desinformação, com o medo, com os mesmos mecanismos que o levaram a presidência. Sua intenção é antecipar a polarização, provocando ódio nos setores progressistas (#bolsonarogenocida) e tentando coesionar sua base em sua defesa.

    O que ele fez ontem foi tentar antecipar a batalha do impeachment para o momento que mais lhe favorece, no cenário real que vivemos: antes que a maioria da população comece a sentir os efeitos econômicos da recessão, facilitando a sua narrativa de que é uma trama sórdida para lhe tirar do poder, justamente na hora que estava tentando proteger os empregos das pessoas.

    É uma aposta perigosa? Sim, por que se as medidas de mitigação não forem suficientes para deter o vírus, um crescimento do número de mortes cairá na sua cabeça. Mas é a mesma aposta que Trump está fazendo, por que os dois sabem que as pessoas votaram neles em momento de desespero e esperavam que a vida melhorasse.

    Assim como no xadrez, aceitar a oferta de uma peça aparentemente gratuita e equivocada, pode simplesmente comprometer peças importantes do nosso time, prejudicando nossa estratégia.

    Antecipar um processo de impeachment, no meio da pandemia, sem possibilidade de mobilizações sociais presenciais, sem ter derretido bastante a base social bolsonarista (leiam as três pesquisas disponíveis para ver que isso está em processo, mas ainda longe de caracterizar um real isolamento), é deixar que ele escolha o local e o momento da batalha. Um erro que pode nos custar a perda do jogo.

    A hora, nesse momento, é de carimbar a irresponsabilidade de Bolsonaro, de propor medidas que dialoguem com o drama de milhões de brasileiros que não alcançamos pelas nossas redes sociais, nos quais a nossa indignação ainda não chega e que ainda o discurso de polarização esquerda X mito é ainda forte. A pandemia e a recessão, bem trabalhadas, podem desfazer as barreiras que nos impedem de fazer esse diálogo.

    E os panelaços? Sim, presenciamos uma radicalização dos setores que não concordam com o governo e o avaliam de forma negativa ou regular. É um sintoma de que estamos reconquistando terreno. E é justamente esse diagnóstico que faz Bolsonaro antecipar a batalha, antes que perca mais posições e não tenha narrativa que se sustente diante do caos econômico.

    A economia derreteu Collor, manteve Lula no cargo em 2006 e isolou Dilma de sua base social em 2016. E é o que será capaz de derreter de 30 a 35% de apoio que Bolsonaro ainda tem.

    A vontade de interditar esse presidente, um irresponsável que coloca em risco milhões de brasileiros é muito forte. Comungo muito dessa revolta. Mas, sem racionalidade e uma estratégia que entenda que o adversário não é louco ou imbecil e que sabe jogar, não seremos vitoriosos.

    Assim, considero que a palavra de ordem “Fora Bolsonaro” e uma narrativa que mostre sua irresponsabilidade, articulada com uma plataforma de exigências de medidas que salve a vida dos brasileiros e proteja seus empregos e renda, são mais eficientes do que deixar que ele escolha a hora e o lugar da batalha. Iremos travar essa batalha, não em 2022, mas este ano ainda, mas ele precisa sangrar mais, precisa perder legitimidade junto a milhões de brasileiros que serão vitimados por sua inconsequência.

    Quem é Luiz Araújo:

    Professor, doutor em políticas públicas em educação pela USP. Secretário de educação de Belém (1997-2002). Presidente do INEP (2003-2004). Assessor de financiamento educacional da UNDIME Nacional (2004-2006). Assessor do senador José Nery -PSOL/Pa (2007-2009). Consultor na área educacional. Consultor Educacional da UNDIME Nacional (2010/2011). Assessor da Senadora Marinor Brito – PSOL-PA (2011). Assessor da Liderança do PSOL no Senado Federal (2012-2013). Atualmente é Professor da Faculdade de Educação da UNB.
  • A eleição de deputadas negras em Portugal e as cicatrizes coloniais

    A eleição de deputadas negras em Portugal e as cicatrizes coloniais

    Opinião por Caeli da Silva Gobbato*

    O país socialista que víamos como uma espécie de respiro da Europa, em relação ao crescimento da extrema direita, está sofrendo uma tensão entre as três deputadas negras que foram eleitas – sendo uma delas “cabeça de lista” do partido Livre, Joacine Katar Moreira – e o primeiro representante da extrema direita a ser eleito em Portugal (não reproduzo aqui o seu nome porque já vimos como a publicidade e exploração midiática pode contribuir para a volta e consolidação de ideias fascistas).

    Joacine está sofrendo ataques de ódio. Após tantos e tantas terem menosprezado suas convicções e sua capacidade, ao mencionarem como fator preponderante a sua gagueira, ela agora está sendo acusada de não priorizar o país que a naturalizou, Portugal, onde vive desde os 8 anos de idade, pelo fato de não ter se oposto a erguer uma bandeira da Guiné-Bissau, seu país de nascimento (o que fez também com a de Portugal e a da União Europeia). Este foi o ponto de partida tomado como base para uma petição que objetiva o impedimento de sua tomada de posse.

    Assistimos incrédulos a estas manifestações e um tanto confusos, afinal não estávamos num “oásis de acolhimento”? “terra pacífica e generosa”, este nosso “país irmão”?

    Apesar de Portugal ter sido o inventor do chamado tráfico negreiro e responsável pela morte, tortura e escravização de seres humanos por quase quatro séculos (oficialmente vetado da atividade no final do século XIX), sempre escolheu apostar no marketing da benevolência dando o nome de Descobrimentos às Invasões, que deram início ao perverso processo de anulação e proibição de toda a cultura que não fosse branca europeia, chamado colonização. E assim prosseguiu difundindo a ideia de países irmãos e camuflando o seu racismo e xenofobia aos brasileiros, africanos, ciganos e portugueses com estas origens.

    Como o Brasil, que custa a reconhecer seu racismo, por aqui negam que a causa de tanta rejeição seja a cor e origem de Joacine. Os motivos são tão frágeis que fica nos rondando a pergunta: Por que, então, afinal, tanto ataque à primeira deputada negra a encabeçar uma chapa?

    Esta pergunta me fez refletir sobre os pilares desta reação e me vem à cabeça dois vídeos bastante representativos do pensamento colonial português, um vídeo antigo de um dos maiores humoristas portugueses, Ricardo Araújo Pereira, e um bem recente, uma reportagem especial da Sic tv.

    No primeiro vídeo, de Ricardo Araújo Pereira (que acredito e espero não ter chance de ser reproduzido por ele nos tempos atuais), o humorista reforça esteriótipos negativos como referir um bairro de maioria pobre e negra como bairro de bandidos e pessoas perigosas e o faz utilizando o recurso da black face, que nasce justamente com este fim, de ridicularizar e incutir periculosidade nos negros com o fim de entreter uma plateia de brancos.

    O segundo, já distante do ambiente do riso, podemos ver uma reportagem de uma grande rede de televisão portuguesa tratando de um tema extremamente grave, que foi a tragédia ambiental sofrida este ano por Moçambique (também sua ex-colônia) e, enquanto o faz, tem o cuidado de preservar e alimentar também esteriótipos racistas. Em poucas palavras, as escolhas da reportagem traçam uma narrativa clara de manutenção da nostalgia colonial, onde os corpos nus das mulheres negras preparam o nascimento dos bebês feitos por uma parteira portuguesa. A repórter pergunta (e muitas vezes responde pelos entrevistados) sobre os detalhes da miséria em que viviam antes da tragédia, ressalta as diferenças marcando o alto nível de natalidade mesmo em situação de calamidade, não fala com médicos ou autoridades locais, com exceção do responsável por gerir as doações feitas por países europeus, a quem questiona o destino das ajudas. E, com grande apelo imagético, mostra mulheres brancas a colocarem tijolos na construção de casas subsidiadas por elas, representando a emissora (com a ressalva de que o material para os tijolos é recolhido no local e a obra feita pelos próprios moradores como forma de incluir a comunidade). Ainda há uma parte onde um padre católico reza uma missa nos escombros de uma igreja.

    Como é que continuamos corroborando sem questionamento com essas narrativas que revelam um país cujo racismo estrutural reforça os feitos heróicos da época áurea nacional sem sequer pensar em fazer um museu da escravatura? É motivo de graça falarmos de um bairro cuja maioria das pessoas, por um processo histórico iniciado por Portugal, tem em comum serem negras e pobres, trabalhadores como nas nossas favelas, é engraçado dizer que são todos bandidos? Não se percebe que é essa a mesma premissa que permite atos de violência nestes locais sem comoção social? Não é perceptível o porquê de tanto ódio à Joacine?

    * Caeli da Silva Gobbato nasceu no inverno carioca de 1985, foi atriz, é produtora cultural com ênfase na escrita de projetos e também jornalista. Cursou Estudos Comparatistas na Universidade de Lisboa e estuda o pós-colonialismo.

  • Precisamos falar sobre democratização da mídia

    Precisamos falar sobre democratização da mídia

    Se você mora na cidade de São Paulo e, ontem, por volta das 17h ou 18h, circulou pelas regiões atendidas pela av. 23 de Maio, você com certeza enfrentou um trânsito fora do comum, mesmo para os padrões congestionadíssimos da grande Metrópole. Muito provavelmente, você não sabe por que ficou parado um tempão a mais no trânsito. Já abrimos o spoiler: o que congestionou mais ainda a cidade foi a greve dos servidores municipais. “Como?” Olha aí… você nem sabia que os servidores estavam em greve.

    Mas o que isso tem com mídia? Bom, se você não é servidor ou muito próximo de um, mesmo que seja atendido quase diariamente por eles, direta ou indiretamente, você está sem saber da greve porque o movimento dos funcionários públicos municipais tem sido apagado de toda a grande mídia. Desde o dia 4 de fevereiro, várias categorias (professores municipais, servidores da saúde, serviço funerário, etc. pararam o trabalho. Trata-se de um protesto contra a Reforma da Previdência que o prefeito Bruno Covas quer impor goela abaixo dos funcionários.

    Agora responda: quantas vezes isso apareceu em algum grande jornal impresso, ou no jornal matinal e noturno que você vê, ou no rádio que te informa sobre o trânsito?

    Ontem, alguns milhares de servidores saíram da Prefeitura e passaram mais de duas horas em caminhada, saindo da Praça do Patriarca, passando pela 23 de Maio e terminando na av. Paulista. As multidões em movimento mereceriam pelo menos alguns takes de um Globocop. Quem sabe você tenha ouvido algum rápido comentário, meio atrapalho e balbuciado, mas nada que passasse de parcos segundos. Sem imagens, com certeza.

    Como pode isso? Existe um conceito que pode nos ajudar a entender. Trata-se da “Agenda Setting”, ou “agendamento”, que é o estabelecimento de uma agenda temática e discursiva comum entre diferentes veículos da imprensa.

    Opa! Opa! Pera lá… Isso só pode ser teoria desses esquerdistas conspiracionistas, dirá o leitor desconfiado. Como podem os vários veículos, que competem entre si, montarem um cartel editorial e, em conjunto, evitar ou trabalhar uma mesma pauta?” É uma pergunta muito justa… Vamos enfrentá-la.

    As grandes empresas de jornalismo, que hoje são conglomerados, são poucas. As marcas, os nomes que usam, podem até dar a impressão de que não é tão reduzido assim, mas olhem o exemplo: só as Organizações Globo detêm algumas emissoras de rádio, com nomes diferentes, mas pertencentes à mesma empresa. As Organizações Globo têm TVs, têm jornais, têm revistas, têm internet, financiam filmes e peças de teatro. Todos esses “negócios” obedecendo ao mesmo grupo de acionistas. Há, no Brasil, poucos grupos de acionistas que controlam a mídia toda… A Editora Abril, Folha de S.Paulo, Estadão, TV do Bispo Edir Macedo, de Silvio Santos, a Band e o grupo RBS, para ficar nos mais importantes. Poucas empresas para um país de dimensões continentais, como é o Brasil.

    Um dos maiores estudiosos de mídia, Francisco Fonseca, aponta em seu clássico “O Consenso Forjado: A grande Imprensa e a Formação da agenda ultraliberal no Brasil” que as empresas de mídia são, antes de tudo, empresas.

    “Impressiona a ausência de vozes discordantes nos jornais, seja nas coberturas seja sobretudo nos argumentos que a opinião editorial esgrima (quanto a esta, representa a síntese de um periódico, pois orienta e influencia toda a cobertura jornalística e poderia, no mínimo, discutir os diversos argumentos disponíveis). Tudo se passa como se a grande imprensa estivesse invariavelmente do ‘lado certo’, da ‘verdade’.”

    A discussão entorno da Reforma da Previdência, como temos visto, tem uma única narrativa veiculada em todos os grandes jornais brasileiros: ela é emergencial! Se não for feita imediatamente, o País vai à falência! A Reforma da Previdência é o caminho da Modernidade! E por aí vai.

    Tudo mentira. Como grandes empresas que são as empresas de comunicação, em geral devedoras da previdência, essa reforma lhes interessa. Isso explica, por exemplo, o silêncio sepulcral sobre a greve dos servidores, que luta contra a reforma da previdência municipal.

    Esse é um exemplo de como a concentração midiática gera, como tem sido o caso desta greve, casos de censura velada. O silêncio, por parte da imprensa é uma forma de auto-censura, para que não seja discutida a pauta colocada em vias públicas, pelos grevistas. O papel social da comunicação é o de trazer e aprofundar as discussões sobre assuntos que explodem na epiderme social. E como pode um silêncio desse, quando milhares de pessoas param uma das principais avenidas da cidade? É a defesa do próprio interesse desses grandes conglomerados de mídia.

    Mas podemos entrar em vários aspectos de como esse cartel midiático molda o debate público.

    Um dos casos mais batidos, e não menos importante: o jovem e o traficante. Quantas manchetes já não vimos falando sobre um indivíduo que foi preso na posse de alguma quantidade de droga. Se é um jovem negro e pobre, a manchete grita “Traficante”. Mas, se o implicado for um jovem branco, morador de um bairro rico, o texto o designará apenas como “Usuário”.

    São alguns exemplos. Mas, chegamos aos finalmentes, o que isso tem com democratização da mídia? Esse esses vícios jornalísticos se constituíram em um ambiente de concentração entre veículos; poucos são os que tem alcance nacional. A internet nos trouxe algum alento. Surgiram essas que são as mídias independentes… “Opa! Essas mídias independentes são panfletárias, têm pouca credibilidade, são todas militantes!”, dirá um leitor apaixonado pela velha mídia.

    Sobre a acusação de militante: as mídias independentes não vacilam ao se assumir como defensoras de um lado da disputa narrativa. O problema é esse verniz da imparcialidade que a grande mídia tenta lançar sobre si, quando seu papel como militante político é total. Suas escolhas e o próprio jornalismo que temos hoje no país são construídos de acordo com uma fórmula padrão que visa a esconder a natureza política da comunicação e do próprio jornalismo. Essas escolhas de pautas, histórias, entrevistados, vocábulos têm um fundo político. Mas envernizado.

    Nos resta, menos do que mudar esse jornalismo padrão (que tem sua importância) fortalecer as mídias independentes. Que o melhor ganhe. O jornalismo abertamente politizado ou o dissimulado.