Jornalistas Livres

Tag: oms

  • Quilombos no Brasil já têm mais casos de Covid-19 do que a população de Cuba

    Quilombos no Brasil já têm mais casos de Covid-19 do que a população de Cuba

    O novo coronavírus avança nos territórios quilombolas no Brasil, atingindo um número total de casos confirmados que supera as estatísticas de países inteiros. Segundo o boletim epidemiológico divulgado pela Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras e Rurais Quilombolas (Conaq) nessa quarta (29), foram confirmados 3.798 casos de Covid-19 nas comunidades remanescentes de quilombos.

    Márcia Maria Cruz – Reproduzido do

    DE OLHO NOS RURALISTAS

    O número é 48,6% maior do que o total de casos registrados em Cuba, país que, entre os séculos 17 e 19, passou por um processo similar de formação de quilombos, conhecidos ali como palenques. De acordo com dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), até 29 de julho o país caribenho havia registrado 2.555 casos para uma população de 11,47 milhões de habitantes.

    Não existem no Brasil dados oficiais sobre a população quilombola. A categoria seria incluída pela primeira vez no Censo 2020, adiado por conta da pandemia. Segundo estimativa da Fundação Cultural Palmares, as 3.212 comunidades certificadas até 2019 possuem 1,2 milhão de habitantes.

    Estado com maior número de comunidades remanescentes de quilombos identificadas, o Pará também responde pela maioria dos casos de Covid-19, com 40,5%, seguido por Rio de Janeiro (22,2%), Maranhão (16,8%) e Amapá (8,9%).

    O número total de casos nos quilombos brasileiros supera também o total de registros de Covid-19 da população inteira de países como Nicarágua, Líbia e Congo. E começa a se aproximar do total de casos do Paraguai.

    O país caribenho mantém na página do Ministerio de Salud Pública (MSP) um boletim diário detalhando os casos de coronavírus no país, incluindo o perfil médico de cada um dos infectados. Sem novos óbitos há duas semanas, Cuba teve 87 mortos por Covid-19. Segundo o registro governamental, não houve óbitos de quilombolas cubanos.

    Os descendentes dos africanos escravizados que se rebelaram para formar os palenques são chamados em Cuba de cimarrones. O termo é oriundo do espanhol cima, ou cimeira, uma referência às regiões montanhosas onde esses quilombos eram construídos.

    Conforme narra Gabino La Rosa Corzo no livro “Los palenques del oriente de Cuba: resistencia e acoso“, as comunidades cimarronas se concentravam em grande parte na porção oriental da ilha, principal região de produção de cana-de-açúcar e para onde a maioria dos africanos eram levados. Ainda hoje, as províncias orientais de Santiago de Cuba e Guantánamo detêm a maior porcentagem de negros entre a população geral fora da capital: 14,2% e 12,8%, respectivamente. Muitos deles, descendentes de cimarrones.

    Assim como o Brasil, Cuba foi um dos últimos países do continente a abolir a escravidão. Em 1880, o rei espanhol Afonso XII promulgou a Lei do Patronato, que proibia a compra e venda de escravos na colônia, mas permitia aos donos de escravos manter a mão-de-obra sob um regime de patronato que, na prática, pouco diferia da escravidão. A abolição total só viria em 1886, dois anos antes do Brasil.

    Cuba guarda ainda outra semelhança com nosso país. A população negra cubana convive com índices de pobreza elevados e é alvo constante da violência policial. Em 27 de junho, o assassinato do jovem Hansel Ernesto Hernández Galiano por agentes da Polícia Nacional despertou uma onda de protestos em Havana, levando à prisão de ativistas.

    De acordo com o boletim da Conaq, o número de mortes registradas nos territórios quilombolas do Brasil chegou a 138, cinco a mais que no último levantamento, de 13 de julho. A maior parte delas ocorreu na região Norte (44,2%), seguida do Sudeste (29,0%) Nordeste (23,9%) e Centro-Oeste (2,9%). O Pará ocupa o primeiro lugar também em número de mortos, 40. O Rio de Janeiro é o segundo estado com mais mortes (37), seguido do Amapá (19), Maranhão (12) e Pernambuco (9).

    Descaso

    “O aumento no números de casos nas comunidades quilombolas demonstra o descaso do poder público”, afirma Sandra Maria da Silva Andrade, diretora da Federação Quilombola do Estado de Minas Gerais e integrante da coordenação executiva da Conaq.

    — Já não tínhamos assistência de saúde adequada antes da pandemia. Neste momento de expansão da doença, precisávamos de um olhar específico, um atendimento da população quilombola. Fomos descartados pelo governo!

    Além da invasão dos territórios por grandes empreendimentos, o atraso no repasse do auxílio emergencial aos quilombolas faz as pessoas das comunidades terem de ir até a área urbana, ficando assim mais expostas ao contágio.

    Líder da comunidade Carrapato da Tabatinga, em Bom Despacho (MG), Sandra alerta para a subnotificação. Com 2.226 habitantes, seu quilombo é um dos que ainda não recebeu testes.

    “Temos casos de Covid-19, mas as autoridades não notificam”, diz ela. “Não estamos sendo contabilizados. As pessoas estão morrendo e os governos não fazem a notificação. Colocam qualquer coisa como causa da morte, mas não falam que é a Covid-19. A gente sabe que é. Mas eles não têm feito o teste nas pessoas”.

    Foto principal (Governo de São Paulo): Testagem no quilombo Peropava, em Registro, interior paulista

  • A história do encontro de um presidente fake e um vírus real

    A história do encontro de um presidente fake e um vírus real

    ARTIGO  

    Mateus Pereira, Mayra Marques e Valdei Araujo*

     

     

    Cento e cinquenta dias se passaram, após um início recheado de perguntas: Como a pandemia afeta o destino das democracias liberais? Como as direitas, em especial, a extrema-direita e a Alt Right, estão lidando com a revalorização da ciência e da curadoria jornalística? Quem herdará as estruturas de vigilância que estão se constituindo? Quem será mais capaz de combater a pandemia: as ditaduras ou as democracias? Por que demoramos tanto a aceitar que seríamos atingidos pela pandemia? O que o governo Bolsonaro ganha e perde com a pandemia?

    Foram essas as perguntas que ocuparam o nosso tempo e as nossas preocupações quando decidimos publicar nossas sensações e reflexões sobre a pandemia. O que começou como um diário tomou a forma mais aberta e plural de um almanaque, cuja materialização se realiza a partir dos acontecimentos. Outras questões e análises foram sendo incorporadas ao texto, já que a pandemia, somada à performance de Bolsonaro e do bolsonarismo, estabeleceu um jogo dinâmico, para nós, brasileiros, entre previsibilidade e imprevisibilidade, que nos fez tomar direções, muitas vezes distintas das previstas nos primeiros esboços do livro.

    O leitor também perceberá que, na nossa escrita, algumas vezes podemos passar a sensação de que está acontecendo tudo-ao-mesmo-tempo-agora, e talvez possa se sentir desnorteado com o fluxo de informações que nem sempre têm relação entre si. No entanto, como mostraremos, sentir-se sufocado pelas cascatas de informações parece ser uma experiência própria do nosso tempo epidêmico, bem como de sua infodemia.

    Pois bem, a nossa tentativa foi uma escrita, de forma bastante livre, do registro dos eventos a que assistimos e ou vivenciamos, tendo como referência  as perguntas que nos nortearam. Foram com esses elementos que pensamos em fazer uma espécie de diário dos 150 dias da pandemia, desde que a China informou à Organização Mundial de Saúde (OMS) sobre o novo vírus, no dia 31 de dezembro de 2019. Ao longo desse tempo, acabamos por alternar e misturar três gêneros de escrita: o diário, a cronologia e a crônica, que reunidos formam o Almanaque. O nosso laboratório-base foi, o tempo todo, o grupo de WhatsApp chamado “Atualismo”, com o qual, desde 2015, produzimos reflexões e debates.   

    Boa parte do que escrevemos foi publicado, em primeira mão, e em português, pelo site Jornalistas Livres, e, em inglês, pelo site Brazil Solidarity Initiative. Inicialmente, a nossa escrita foi impulsionada pela ideia de que um esforço de parada reflexiva é, em nosso tempo, necessário para evitar sermos devorados pelas atualizações constantes, fragmentárias e cada vez mais imprecisas e disputadas. A nova direita e a extrema-direita global têm se utilizado da agitação das notícias, provocadas pelo fluxo de atualizações, e pelas chamadas fake news, para reforçar o seu poder. Como acreditamos que o caminho progressista precisa seguir em outra direção, o nosso trabalho tem, assim, a intenção de nos levar a um engajamento que busque outras alternativas ao que nos apresentam as direitas mundiais.

    A escolha pela forma de almanaque foi reforçada pelo clima apocalíptico que temos vivido. Além do noticiário diário, dos canais de streaming, dos filmes sobre epidemias, como Outbreak (Wolfgang Petersen, 1995), etc, reforçam essa sensação de uma contagem progressiva em direção ao inevitável. No fim de março, nos perguntávamos quando chegaria entre nós o pico da epidemia e quão severas seriam as suas consequências, que haviam se agravado pela imagem da segunda onda representada pelo colapso econômico. No filme de 1995, a origem do surto está em alguma república de bananas; em nossa história real ele se origina em uma cidade de 11 milhões de habitantes, na segunda maior economia do mundo.

    A principal história que acabamos por contar no livro foi a de como o vírus SARS-CoV-2 e a doença a ele associada, a COVID-19, infiltrou-se em nossas vidas. Ao mesmo tempo, o livro apresenta o paradoxo de um presidente fake, ou seja, que não reconhece e trabalha para destruir o sistema democrático no qual foi eleito – ser desafiado pela realidade incontornável de um vírus e a doença que ele provoca.

    Nosso objetivo foi apresentar uma modesta e fragmentária compreensão cronológica, entrecruzando subjetividade e objetividade, dessa triste e catastrófica experiência histórica que estamos vivendo. Procuramos pensar para além da agitação atualista, a fim de analisar as possibilidades do nosso futuro próximo, durante e após essa emergência. Mas, também, refletimos sobre o nosso presente imediato, sobre a catástrofe vivida, em especial, no Brasil, já que aqui o poder simbólico e real do vírus foi potencializado pela presença do presidente Bolsonaro.

    A esse tempo agitado e confuso em que a informação nos entretém sem nos orientar, chamamos de “atualismo”. A capacidade de agitar, sem orientar ou desvelar, desse fluxo de notícias tem sido bem explorado pelas direitas globais. A explosão de notícias em fluxo contínuo, em que o valor de verdade parece ser confundido com o valor de novidade ou atualização da informação recebida, impede a cidadania de tomar consciência de seus reais interesses e formar um senso compartilhado de realidade que permita a ação política emancipadora. Essa estrutura, impede, muitas vezes, que o passado, mesmo o mais recente, seja trazido à reflexão. Por isso, políticos atualistas como Trump, Boris Johnson e Bolsonaro, em geral, não admitem erros, mas, simplesmente atualizam suas narrativas e afirmações quando as anteriores se tornam insustentáveis. Muitas vezes, os seus discursos mudam em função da conveniência da atualidade, sem a mínima necessidade de se prestar conta da negação da realidade do dia anterior. Fato que contribui para a dispersão e distração que se fantasiam com as roupas do jornalismo. Esses líderes se assemelham a apresentadores de shows de variedades, só que, nesse caso, os shows apresentados são perversos e sombrios. São shows de horrores.

    O passado e o futuro são mobilizados, muitas vezes, nesses discursos e práticas, como dispositivos para a agitação política. Mas isso não significa que não existam projetos de passado e futuro nos movimentos políticos atualistas, representados tão bem por esses líderes. O caos é apenas uma cortina de fumaça, assentada numa complicada realidade do passado histórico, muitas vezes idealizado. Uma de suas consequências é a mobilização política em prol de presentes-passados, passados-presentes e presentes-futuros autoritários, na maioria das vezes, incitada pela negação, pela nostalgia e pelo ressentimento. E, talvez, o principal projeto de futuro desses movimentos seja a destruição ou, pelo menos, o enfraquecimento das bases da Democracia e do Estado Liberal.

    Por tudo isso, o almanaque, uma das formas mais tradicionais de organização do passado, volta a ter uma função crítica importante. Nesse exercício de história imediata, os primeiros 150 dias da pandemia estão organizados por quinzena, acompanhando um dos tempos que organiza o ritmo da crise, já que o vírus pode levar até duas semanas para se manifestar. Na segunda parte do livro, apresentamos nossa leitura reflexiva, mais verticalizada e em forma de crônica, de alguns fatos que ocorreram durante o encontro do presidente fake com o vírus real. E, na terceira parte, abrimos e destacamos alguns dos assuntos mais recorrentes do período, que podem ser lidos de forma isolada ou podem ser entendidos como aprofundamento informativo, como hiperlinks, de temas tratados nas duas primeiras partes.

    Ao navegar por esse almanaque, acreditamos que você, leitor ou leitora, poderá reviver e pensar sobre os momentos em que a pandemia, causada pelo coronavírus, deixava a sua condição latente para se tornar o evento reorganizador de nossas vidas em sua articulação com a crise das democracias liberais.

    Queremos entender como dois grandes países, no caso, o Brasil e os Estados Unidos, divergiram da OMS e, mesmo assim, os seus líderes continuaram no poder de forma mais ou menos estável. Se não estáveis, apoiados por pelo menos um terço de sua população. Como entender esse escândalo?

    Ao final dessa jornada, vemos a evolução catastrófica da pandemia no Brasil e nos EUA, com a perspectiva crescente do número de mortos e consequências sociais devastadoras para os grupos minorizados. Quem acompanhar nossa narrativa poderá perceber como o governo brasileiro se alinhou com alguns outros poucos países em que a política pública divergiu programaticamente daquilo traçado pela OMS. Ainda assim, a popularidade de Jair Bolsonaro não foi, até agora, substancialmente atingida. Ficamos com a sensação de que estamos contando a história de como o regime de verdade, que sustentava as democracias ocidentais, foi severamente comprometido nesses países.

    A nossa hipótese é a de que, em certas dimensões da temporalidade atualista em que vivemos, a verdade que mais importa é aquela que nos chega na forma de notícia, de news. A maior parte das pessoas formam opinião orientadas por um ambiente de notícias em fluxo contínuo, consumido como entretenimento, embaladas pela crença de que quanto mais recente e atual é a notícia, mais relevante se torna para nossas vidas. Controlar a produção incessante das news – pouco importa se verdadeiras ou simuladas (fakes) – tornou-se a mais importante fonte de poder político, até mais relevante do que partidos e outros sujeitos políticos tradicionais. Esse universo paralelo, da simulação da notícia como arma política, com seus agentes e estruturas, é o fato mais relevante para compreendermos a história da COVID-19. Ele é o hospedeiro em que o bolsonarismo, e também o trumpismo, parasita em simbiose. Mas, como se verá, os níveis de insanidade do bolsonarismo e de Bolsonaro parecem ser insuperáveis.

    Ao longo desse período, escrever foi para nós uma forma de lidar com a pandemia e com a crise política e econômica. Um ato de resistência e de conhecimento. Procuramos, assim, trabalhar com as dimensões positivas do atualismo, que em nosso livro, Atualismo 1.0, só estavam anunciadas. A atualização, em sentido próprio, se apresenta aqui como uma possibilidade de lidar de forma ativa e não reativa frente os acontecimentos e as notícias que vêm à tona. Portanto, ao invés de só repercutir, alargar e repetir incessantemente, fazendo reverberar ainda mais a agitação, propomos deslocar os eventos e as notícias com a força do passado e do futuro. Dessa maneira, esperamos que esse gesto contribua, a seu modo, para a construção de um outro tempo.

    (*) Mateus Pereira e Valdei Araujo são professores de História na Universidade Federal de Ouro Preto em Mariana. São autores do livro Atualismo 1.0: como a ideia de atualização mudou o século XXI e organizadores de Do Fake ao Fato: (des)atualizando Bolsonaro, com Bruna Klem, e Mayra Marques é doutoranda em História na mesma instituição.

  • Pandemia: Cumprimentar com o cotovelo é o fim! Viva o Namastê!

    Pandemia: Cumprimentar com o cotovelo é o fim! Viva o Namastê!

    O cara que inventou que o tocar de cotovelos seria o cumprimento “sanitariamente correto” diante do surgimento de novos vírus ameaçadores, esse cara é um gênio do mal. No futuro, se houver futuro, o toque de cotovelos será a lembrança grotesca de como certos cuidados para evitar o contágio pela Covid-19 nos transformaram em cobaias assustadas em um profundo experimento de manipulação social. Assustadas, paranoicas e o pior: ridículas.

    Dá para combater a pandemia sem essa dose dispensável de extravagância.

    Nos 200.000 anos de história da Humanidade, sociedades formaram-se, deformaram-se e se destruíram, sendo substituídas por outras, ou adaptando-se de modo a garantir melhores chances de sobrevivência. Demonstrar amizade, para nossos ancestrais, era condição necessária para o trabalho colaborativo (voluntário ou não), que permitisse vencer os desafios impostos pela natureza e, dentro dela, por espécies concorrentes pelos recursos alimentares do território.

    Por isso a Humanidade desenvolveu um imenso arsenal de gestos de saudação, cumprimento, amor, respeito e afeto. Nós beijamos, nos abraçamos, nos tocamos, sorrimos, damos as mãos. Os indígenas que habitam regiões em torno do Círculo Polar Ártico, comumente chamados de esquimós, cheiram bochechas, nariz e testa de amigos e familiares. São formas de cumprimentos agora desaconselhadas, fazer o quê?

    Mas há muitas outras. Sem contato físico. Japoneses, chineses e coreanos reclinam o tronco em direção à pessoa que está sendo cumprimentada. Na Índia e no Sudeste Asiático, o cumprimento é feito com as mãos unidas e polegares juntos ao peito, enquanto se inclina o rosto para baixo e se diz alguma variante local do sânscrito “Namastê”, que significa “Eu me curvo diante de ti”. Os Masai fazem a dança das boas-vindas chamada “Adamu”, como cumprimento. No mundo árabe, o cumprimento tradicional é feito com a mão direita tocando o coração, depois a testa e por último fazendo um meneio no ar para cima da cabeça. Os gestos são acompanhados das palavras “Salaam Aleikum”, que significa “Que a paz esteja convosco”.

    Cumprimentar-se é tão importante sinal dentro de uma cultura que até os humanoides do planeta Vulcano, a Confederação de Surak, dispõem de um gesto próprio, que consiste em levantar a palma da mão para a frente com o polegar estendido, enquanto os quatro dedos se separam no meio, ficando dois dedos juntos de cada lado: “Vida longa e próspera”.

    Tantas alternativas lindas, inspiradoras, gestualmente harmoniosas, e o espírito de porco que habita entre nós inventou de que o correto seria nos cumprimentarmos com o grosseiro tocar de cotovelos.

    É bom lembrar que o cumprimento, que em inglês leva o nome de “Elbow Bump” (batida de cotovelo), não é novo e já foi adotado oficialmente pela Organização Mundial da Saúde (OMS) durante outras epidemias virais, como a gripe aviária em 2006, a gripe suína (2009), a influenza (2012-2013) e o Ebola na África (2014).

    A expressão “elbow bump” foi considerada a Palavra do Ano em 2009, pelo New Oxford American Dictionary, dicionário de Inglês Americano compilado por editores americanos da Oxford University Press. Tem, portanto, apenas 11 anos a inclusão do gesto nos dicionários de língua inglesa. Entre lusófonos, ainda não há nem sequer a palavra ou expressão para designar o cumprimento de cotovelos.

    Precisamos derrubar essa péssima idéia antes que seja tarde!

    O Mercado Livre troca logomarca de mãos dadas por toque de cotovelos
    Mercado Livre troca logo por toque de cotovelos

    Vamos lá: os cotovelos compõem, com os joelhos, as mais feias partes do corpo humano. Dobradiças ortopédicas, nem pra fetiche servem. A criança quando nasce, ainda toda amassada, dela se diz que tem cara de joelho, ou de cotovelo. É essa feiúra que se oferece ao outro, que se cumprimenta.

    Os cotovelos, com seu total de 8 centímetros quadrados de pele, são a parte menos sensível de toda a epiderme humana, que pode cobrir um total entre 1,5 e 2 metros quadrados de corpo. Pode-se beliscar o cotovelo, não dói ou dói pouquíssimo, porque tem pouco enervamento. É esse vazio de sensibilidade que toca em outro vazio.

    Por fim, cotovelo é arma. Cotovelada pode até matar. Assim, dar e receber o cotovelo à guisa de cumprimento amigável é como cruzar porretes, terçar armas –sinaliza tudo, menos cordialidade. Além do que, trata-se de um gesto feio, a meio caminho de “dar uma banana” para alguém. Entre mulheres, então, é pavoroso.

    Isso dito, eu sinceramente quero saber como será a fotografia deste momento que estamos vivendo, na posteridade.

    Nas décadas de 1960/70, quem quisesse ser legal tinha de sair de casa e trocar micróbios nas festas mais loucas, com o pessoal mais cabeça, com os meninos e meninas mais lindos, no amor livre, no rock, na tropicália, nos festivais, no saco de dormir, nas praias desertas. Trindade, Trotsky e Leminski.

    Em 2020, quem quer ser cool prega o isolamento, fica em casa, trabalha em dobro no home office, está trancado e passa boa parte do tempo deprimido. Ou anda paranoico na rua, de máscara (sem sorrisos e sem beleza), com álcool gel nos bolsos, transtorno obsessivo-compulsivo transmutado em “precaução”. Como corolário dessa miséria, agora diz “Oi” com o cotovelo.

    Tem algo muito errado nessa definição de “legal”.

    Haja ansiolítico.

    Pela volta urgente do Namastê!

     

  • Destemperado, ministro de Bolsonaro ataca a OMS e chanceler da Venezuela defende

    Destemperado, ministro de Bolsonaro ataca a OMS e chanceler da Venezuela defende

     

    Por Jorge Arreaza Monserrat, chanceler da República Bolivariana da Venezuela

    Este tempo de pandemia nos ensinou que as pessoas e governantes de distintos países são capazes de tudo: do melhor e do pior. Por um lado, não existe dúvida do compromisso e da compreensão da imensa maioria da população mundial que assumiu a preservação da humanidade como principal prioridade, tomando profundas medidas de resguardo e distanciamento social. Por outro, observamos o capricho dogmático e irreflexivo daqueles que somente se preocupam com a “saúde do mercado”, colocando em perigo o bem estar de cada ser humano que habita a Terra.

    Temos escutado vozes de cada canto do planeta que indicam algo que sempre foi óbvio: o mercado não tem mecanismos nem argumentos para fazer frente aos problemas que afetam princípios básicos da humanidade, como saúde, alimentação, educação e moradia. No meio desta luta contra o rastro de mortes que deixa a Covid-19, o capitalismo não tem capacidade de resposta para oferecer aos povos segurança e atenção, nem mesmo garantias à vida. Numerosas análises, com argumentos válidos, sinalizam a imperiosa necessidade de repensar o mundo e a vida em sociedade.

    O dogmatismo neoliberal, muito longe de deter-se para refletir diante da evidência que surge com as terríveis estatísticas e cada história de vida ao redor desta enfermidade, reage intempestivamente contra as vozes da consciência humana. Com pensamentos anacrônicos e bipolares, buscam reavivar um debate macartista e maniqueísta, deixando de lado a possibilidade racional para buscar soluções.

    O pensador esloveno Slavoj Zizek é um intelectual destes tempos, que está muito distante de postulados doutrinários ortodoxos e em sua obra costuma gerar diálogos com a cultura e as dinâmicas políticas de sua própria época. Podemos coincidir ou discordar de suas análises e das críticas que faz a diversos processos anti-capitalistas. No entanto, temos que reconhecer seus aportes ao debate e à reflexão necessária.

    Recentemente Zizek publicou um ensaio sobre a situação mundial atual chamado “Pandemia! O Covid-19 sacode o mundo”, em que discorre sobre a dinâmica mundial, o desenvolvimento do vírus, a abordagem tomada pelos diversos estados, as repercussões sobre a sociedade e o próprio indivíduo.

    Zizek combina pensamento filosófico clássico e contemporâneo, recorre ao imaginário popular, utiliza fontes informativas e lança mão de metáforas cinematográficas para propor o que finalmente será o mundo posterior ao coronavírus: um mundo muito mais solidário, onde cada estado terá a fortaleza para poder atacar a ameaça de acordo com suas próprias estratégias, mas onde também a solidariedade entre os povos e países se possa converter em um princípio fundamental para atingir a salvação da espécie e do planeta.

     

    Panfleto oportunista

    Mas chegamos à leitura de Zizek por via indireta. Na realidade chegamos à fonte, depois de toparmos com um panfleto destemperado e oportunista, cheio de lugares comuns, próprio de outro tempo histórico e outras latitudes, cuja autoria assume o ortodoxo chanceler do governo de Jair Bolsonaro, Ernesto Araújo.

    Esse polêmico ministro é um dos grandes defensores da tese de que o mercado deve ser responsável por reduzir o impacto da pandemia em seu país e no mundo. Paradoxalmente, o Brasil se converteu no centro da expansão exponencial da doença em Nossa América. A escrita elementar de Araújo, apesar de suas pretensões acadêmicas, carece de rigor analítico e metodológico. Ele intitulou seu artigo assim: “Chegou o Comunavírus”, em clara referência àquela reminiscência propagandista monroista-macartista dos anos sessenta e setenta, época em que o medo foi instilado, alegando que “o vírus da guerrilha e do comunismo” havia chegado à América Latina.

    Ao longo do texto, esse ministro muito pouco respeitado no próprio Itamaraty usa frases descontextualizadas e desvirtua o significado real do ensaio original de Zizek. Araújo faz um esboço maniqueísta e manipulador do sistema fracassado que ele defende, expressando um claro desdém pela humanidade e, o que é mais grave diante de sua investidura, pelo sistema multilateral e pelos mecanismos acordados pelos países do mundo para abordar conjuntamente as ameaças e problemas globais. Vejamos alguns elementos apresentados neste artigo.

    O argumento central de Araújo é que, de acordo com Zizek, a globalização é uma estratégia subsequente ao socialismo para tentar impor um sistema totalitário que busca o desaparecimento do estado. Em sua declaração, ele aponta:

    “Zizek revela aquilo que os marxistas há trinta anos escondem: o globalismo substitui o socialismo como estágio preparatório ao comunismo. A pandemia do coronavírus representa, para ele, uma imensa oportunidade de construir uma ordem mundial sem nações e sem liberdade.”

    Agora, verifica-se que, segundo Araújo, a globalização é uma estratégia comunista, como também o desaparecimento da força do Estado como estrutura fundamental para a organização nacional.

    Para esse cavalheiro, a globalização não está regida por um aparato econômico-financeiro que determina o desenvolvimento das dinâmicas internas e externas dos estados nacionais. Segundo Araújo, a globalização e a cartelização das informações que categoriza e acusa, que julgam e difamam governos e povos inteiros, é uma estratégia preparatória para o comunismo. Para este distinto diplomata, a ameaça à liberdade dos estados se baseia em uma ideia globalista comunista.

    Mas esse argumento apenas prepara o ataque mais perigoso que sustenta seu “Cavalo de Tróia” da ideologia neoliberal, mesmo que se torne cada vez mais evidente no contexto de um mundo cada vez mais multipolar. Ele tenta construir um senso comum (Gramsci) que aponta para a necessidade de desregular todos os andaimes institucionais, não apenas dentro das nações (princípio neoliberal por excelência), mas também para instituições multilaterais internacionais que permitem a coexistência e a cooperação saudável entre as nações. Por esse motivo, apela ao livro do pensador esloveno para desenvolver sua verdadeira agenda e seu objetivo preciso: o desprestígio da Organização Mundial da Saúde (OMS).

    Justo no momento em que o mundo mais precisa de mecanismos multilaterais que possam coordenar os esforços de todos os atores internacionais, com base no rigor técnico e especializado necessários, o insólito artigo de Araújo ressalta novamente:

    “Não escapa a Zizek, naturalmente, o valor que tem a OMS neste momento para a causa da desnacionalização, um dos pressupostos do comunismo. Transferir poderes nacionais à OMS, sob o pretexto (jamais comprovado!) de que um organismo internacional centralizado é mais eficiente para lidar com os problemas do que os países agindo individualmente, é apenas o primeiro passo na construção da solidariedade comunista planetária.”

    Leia para acreditar! Na mesma linha, com enorme cinismo, o chanceler aponta suas baterias contra a UNESCO, chamando-a de um grande instrumento para a ideologização de um novo mundo comunista, que apenas habita as mentes perturbadas do autor e de seus correligionários.

    Mas ele nunca fala da ação de controle e sujeição sistemática, da ditadura de outras organizações como o Fundo Monetário Internacional, que, por exemplo, negou o apoio solicitado pelo Estado venezuelano para confrontar a COVID-19 por razões exclusivamente ideológicas. Justamente quando Donald Trump suspende as contribuições à OMS – um compromisso inevitável dos Estados membros – e se dedica a atacá-la e desacreditá-la, Araújo alega que a OMS serviria de ponta de lança para o estabelecimento do comunismo planetário.

    Em contrapartida, o chanceler irmão da Federação Russa, Sergey Lavrov, alertava há alguns dias sobre a politização indevida em torno da OMS em tempos de pandemia, apontando também que poderia tratar-se de reações defensivas que tiveram origem na negligência de alguns países antes da pandemia:

    “Não queremos que essa aspiração de unir forças [contra a pandemia] seja politizada, vejo sinais de tal politização nos ataques à OMS. (…) Esses ataques, na minha opinião, refletem o desejo de justificar certas ações que se mostraram atrasadas, insuficientes demais ”.

    Corresponde, portanto, por mero rigor e apego ao conhecimento e à verdade, revisar as reflexões de Zizek para que um organismo como a OMS tenha maior capacidade executiva, em tempos excepcionais como o em que vivemos. Vamos ver o contexto em que o filósofo fala:

    “Anos atrás, Fredric Jameson chamou a atenção para o potencial utópico em filmes sobre uma catástrofe cósmica (um asteróide que ameaça a vida na Terra ou um vírus que mata a humanidade). Essa ameaça global levaria à solidariedade global, nossas pequenas diferenças se tornariam insignificantes, todos trabalharíamos juntos para encontrar uma solução, e aqui estamos hoje na vida real. Não se trata de desfrutar sadicamente do sofrimento generalizado, na medida em que ajude nossa causa; pelo contrário, é uma questão de refletir sobre um triste fato de que precisamos de uma catástrofe que nos torne capazes de repensar as características básicas da sociedade em que vivemos. O primeiro modelo incerto dessa coordenação global é a Organização Mundial da Saúde, de quem não recebemos o barulho burocrático usual, mas avisos precisos proclamados sem pânico. Essas organizações deveriam receber mais poder executivo. Bernie Sanders é o centro da zombaria dos céticos por sua defesa da saúde universal nos Estados Unidos – a lição da epidemia de coronavírus não seria a necessidade de começar a criar algum tipo de rede global de saúde? (…) E não se trata apenas de ameaças virais, mas há outras catástrofes surgindo no horizonte ou que já estão acontecendo: secas, ondas de calor, tempestades enormes, etc. Em todos esses casos, a resposta não é de pânico, mas de um trabalho árduo e urgente para estabelecer algum tipo de coordenação global eficiente.”

    Vemos que, nas abordagens do autor, não há argumento que mine a soberania dos países. Trata-se de buscar a maior eficácia global em problemas que são obviamente globais. Hoje em dia, ninguém pode se sentir a salvo da pandemia dentro de suas fronteiras se seus vizinhos levam uma nova bomba-relógio viral à sua porta.

    Sem ir longe demais, a Venezuela, sob a liderança do presidente Nicolás Maduro, conseguiu ter um controle bem-sucedido da doença. No entanto, não podemos descansar tranquilamente, enquanto em países como Colômbia e Brasil o crescimento de contágios ameaça a saúde de nosso povo. É por isso que o governo bolivariano tentou de todos os modos coordenar políticas e ações conjuntas com seus vizinhos. Esforços que tiveram pouco e relativo sucesso, já que os governos de Jair Bolsonaro e Iván Duque não apenas agiram erraticamente diante do coronavírus, mas também são arrogantes e reticentes ao estabelecer comunicações e estratégias com as autoridades venezuelanas.

    Mais uma vez, o motivo, como o do Fundo Monetário, é estritamente político e geopolítico: seu chefe do Norte os repreende se estabelecerem uma boa coordenação com a Venezuela para proteger seus povos.

    Há muitos elementos que Araújo retira parcial e convenientemente do extenso texto de Zizek. Entre outras coisas, o pensador esloveno faz uma longa análise de novas formas de trabalho no sistema econômico contemporâneo. Para isso, estabelece um diálogo com algumas propostas do filósofo sul-coreano Byung-Chul Han.

    Na complexidade da proposta de Zizek, as novas categorias e classes de trabalhadores são estabelecidas em um mundo menos simples do que o que existia durante a revolução industrial, que é quando as categorias do marxismo clássico foram produzidas. Mas Araújo apenas pega os conceitos e palavras que o interessam para chegar a uma conclusão simples, mas tendenciosa, no final de seu artigo:

    “A pretexto da pandemia, o novo comunismo trata de construir um mundo sem nações, sem liberdade, sem espírito, dirigido por uma agência central de “solidariedade” encarregada de vigiar e punir. Um estado de exceção global permanente, transformando o mundo num grande campo de concentração.”

    Em outras palavras, para Araújo, Zizek propõe estabelecer um comunismo fascista que destruirá o estado-nação e transformará o mundo em um enorme campo de concentração no mais puro estilo nazista. Mas vamos à fonte original e contrastemos com a racionalidade. Zizek diz:

    “Não é uma visão de um futuro brilhante, mas de um ‘comunismo de desastre’ como um antídoto para o capitalismo de desastre. O Estado não deve apenas assumir um papel muito mais ativo, organizando a produção de itens urgentemente necessários, como máscaras, equipamentos de teste e respiradores, seqüestrando hotéis e outros resorts, garantindo a sobrevivência mínima de todos os recém-desempregados, e assim sucessivamente, fazendo tudo isso abandonando os mecanismos de mercado. (…) E, no extremo oposto da escala, algum tipo de cooperação internacional eficaz terá que ser organizada para produzir e compartilhar recursos. Se os estados simplesmente se isolarem, as guerras começarão. Refiro-me a esse tipo de evento quando falo em “comunismo” e não vejo outra alternativa senão a de uma nova barbárie “.

    Está longe dos sinais totalitários que Araújo inventa. Zizek chega a essa conclusão depois de apontar que mesmo dois dos líderes mais recalcitrantes do neoliberalismo mundial, Donald Trump e Boris Johnson, passaram por decisões que partem dos postulados doutrinários do controle de mercado: o Presidente dos Estados Unidos anunciou a possibilidade de intervir e assumir o controle de empresas privadas para garantir o bem nacional; além de considerar a entrega de uma bolsa de mil dólares a cada família em seu país.

    Por seu turno, o primeiro-ministro britânico – em 24 de março deste ano – estabeleceu a nacionalização temporária das ferrovias. Assim, o filósofo ressalta que: “Não é uma visão comunista utópica, é um comunismo imposto pelas necessidades da mera sobrevivência”.

    O texto de Slavoj Zizek coloca em perspectiva muitos elementos de reflexão indispensáveis na sociedade complexa dessa época, na qual, sem dúvida, muitos desafios são coletivos, globais. Mas também nos aponta para uma possibilidade latente e necessária.

    É fundamental que a liderança mundial possa aproveitar esse momento para fortalecer os princípios do multilateralismo, a coordenação em benefício de todos. Essa é a moral que caracteriza o texto do filósofo esloveno. O estado nacional deve ser central no novo esquema que surge após a pandemia, como central também deve ser a cooperação multilateral diante de problemas e desafios comuns.

    Nesse sentido, é essencial cessar as perseguições político-ideológicas contra os povos, cessar os bloqueios financeiros e as medidas coercitivas que afetam severamente a capacidade de lidar com mais eficiência com esse vírus mortal ou qualquer outro desafio social. Como Zizek aponta no começo de seu livro: “Estamos todos no mesmo barco”. Não há possibilidade de sobreviver à pandemia se não resgatarmos os princípios fundamentais do ser humano: o reconhecimento do outro e a solidariedade.

    Com humildade, mas com consciência e moralidade, sugerimos ao nosso homólogo brasileiro, com pretextos de um intelectual neoliberal, que apoie suas teses com um método confiável e que preferencialmente se baseie em autores que reforcem seu pensamento supremacista. Esses tipos de supostas análises críticas não podem ser validados, com base em declarações falsas, meias verdades, mentiras e leituras parciais ou tendenciosas.

    Devido às características de seu artigo e suas conclusões, é muito provável que ele tenha lido (de maneira conveniente ou preguiçosa) alguns dos títulos e subtítulos do texto de Zizek. Vamos ao debate de ideias, sem medo, sem meias tintas, mas com bases confiáveis e rigor profissional. Este é o momento da verdade e das definições.

    Atacar a OMS agora é uma aberração total. Pelo contrário, milhões de nós reconhecem o esforço sincero de seus cientistas e trabalhadores. Não exageramos na Venezuela ao somarmo-nos às vozes que propõem nomear a OMS e seu diretor, Dr. Tedros Adhanom, como merecedores do Prêmio Nobel da Paz em 2020. Seria merecido o reconhecimento por sua dedicação e coragem em confiar nas decisões coletivas, troca de experiências, coordenação científica e política em circunstâncias tão complexas. Em síntese, por apostar na verdadeira vacina para todos os males do sistema: a solidariedade.

    Voltemos a lembrar o coro desse belo tema de reivindicação e esperança de nosso pai cantor Ali Primera: “Ajudem-na, ajudem-na, que seja humana a humanidade”.

     

    (Tradução: Juliana Medeiros)

  • Covid-19, 100 dias que mudarão o mundo?

    Covid-19, 100 dias que mudarão o mundo?

     

     

    Mateus Pereira e Valdei Araujo, professores da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) em Mariana

     

    Cem dias e seis questões: Como a pandemia afeta o destino das democracias liberais? Como as novas direitas estão lidando com a revalorização da ciência e da curadoria jornalística? Quem herdará os estruturas de vigilância que estão se constituindo? Quem será mais capaz de combater a pandemia: as ditaduras ou as democracias? Por que demoramos tanto a aceitar que seríamos atingidos pela pandemia? O que o governo Bolsonaro ganha e perde com a pandemia?

    Para pensar de forma livre sobre essas questões construímos uma espécie de diário dos 100 dias, desde que a China informou à Organização Mundial de Saúde (OMS) sobre o novo vírus, no dia 31 de dezembro. Desde então, os eventos se agitam de tal forma que sem esse esforço de parada reflexiva somos apenas levados pelas atualizações. A nova direita global tem usado essa agitação das notícias para reforçar seu poder, o caminho progressista precisa ser outro.

    A forma diário se inspira também no clima apocalíptico que temos vivido. Nos canais de streaming, filmes sobre epidemias, como Outbreak (1995), reforçam essa sensação de uma contagem progressiva em direção ao inevitável. Quando chegará entre nós o pico da epidemia? Quão severas serão suas consequências, agora agravadas pela imagem da segunda onda representada pelo colapso econômico. No filme de 1995, a origem do surto está em alguma república de bananas, em nossa história real ele se origina em uma cidade de 11 milhões de habitantes na segunda maior economia do mundo.

    O que faremos adiante é escrever a história de como o Covid-19 foi se infiltrando em nossas vidas. Nosso objetivo, assim, é apresentar uma modesta e fragmentária compreensão cronológica dessa triste e catastrófica experiência histórica que estamos vivendo. Queremos pensar para além da agitação atualista as possibilidades do nosso futuro próximo, durante e após essa emergência. O “atualismo” tão bem explorado pelas direitas globais, é uma das consequências da explosão de notícias em fluxo contínuo, onde o valor de verdade parece ser confundido com o valor de novidade ou atualização da informação recebida. Essa estrutura impede que o passado, mesmo o mais recente, seja trazido à reflexão. Por isso, políticos atualistas como Trump, Boris Johnson e Bolsonaro nunca admitem erros, eles apenas atualizam suas narrativas e afirmações quando as anteriores se tornam insustentáveis. Os seus discursos mudaram em função da atualidade, sem a mínima necessidade de se prestar conta da negação da realidade do dia anterior. Por isso o diário, a forma mais básica de organização do passado, volta a ter uma função crítica importante.

    Ao navegar por esse diário, acreditamos que você, leitor ou leitora, poderá reviver e pensar sobre os momentos em que a pandemia deixava a sua condição latente para se tornar o evento reorganizador de nossas vidas.

    1o dia – O algoritmo de Inteligência Artificial (IA) da empresa canadense BlueDot faz uma série sobre uma possível pandemia. Era 31 de dezembro de 2019 e a China acabava de alertar a OMS para casos de uma pneumonia incomum em Wuhan, cidade de 11 milhões de habitantes. Enquanto isso, em nosso grupo no Whatsapp discutíamos um dos assuntos que iria atormentar os governantes logo no início da epidemia no Brasil: o aumento do número de trabalhadores informais. A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios mostrava o alto índice de desemprego e o aumento da informalidade do mercado de trabalho, que na época girava em torno de 40%. Não sem razão, é justamente para esse público que as principais disputas, propostas e ações políticas se dirigiriam adiante.

    8o dia – Em 7 de janeiro 2020 o vírus foi identificado e batizado de SARS-CoV-2 e a doença por ele provocada de Covid-19, sigla para a expressão inglesa Doença do Vírus Corona de 2019. Neste momento os autores deste texto continuavam envolvidos em um projeto cuja temática tem nos absorvido há algum tempo: o bolsonarismo. A identificação do novo vírus como causador de uma Síndrome Respiratória Aguda Grave imediatamente trouxe à memória os eventos da SARS de 2002-2003, que teve um alcance limitado e foi rapidamente contida. Embora inevitável, entender a Covid-19 como uma SARS 2.0 seria um grande erro. 

    12o dia – Em 11 de janeiro, dois dias depois da divulgação do primeiro óbito causado pelo novo vírus, o que nos mobilizava era a pesquisa que mostrava o rosto negro e feminino dos evangélicos brasileiros. Perguntávamos sobre os discursos e práticas que os setores progressistas poderiam construir para essa parte fundamental do eleitorado hoje, em especial como afastar certos eleitores da zona de encantamento da chamada pauta de costumes da direita, que capturou valores e sentimentos dessas pessoas. Ou, ainda, como dar um significado emancipador a uma determinada parte desses valores.

    14o dia – Em 13 de janeiro foi registrado, na Tailândia, o primeiro caso de contágio do vírus fora da China.

    17o dia – O Ministério da Saúde do Japão relatava seu primeiro caso no dia 16 de janeiro. As duas vítimas eram pessoas que haviam visitado Wuhan. Como se vê, na primeira quinzena de janeiro, o SARS-CoV-2 ainda não era uma preocupação que estava em nosso radar. Talvez porque parte do “Ocidente” ainda operava sob as referências do Corona 1.0. Ao que parece, havia a ilusão de que a epidemia ficaria, praticamente, restrita à Ásia e de que o vírus “desapareceria”.

    21o dia – Em 20 de janeiro, a China registrava a terceira morte e mais de 200 infecções. Alguns desses casos foram identificados fora da província de Hubei onde se localiza Wuhan. Nesse dia, analisávamos os dados de uma pesquisa que mostrava que Bolsonaro era o político com mais interações nas redes sociais e no Youtube. Em 2019, ele havia postado 5.708 vezes e havia tido 731,4 milhões de reações, comentários e compartilhamentos. A média de “interações” de uma postagem dele era de 128 mil. O que mostra que, naquele momento suas ações seguiam a lógica das redes.

    22o dia – Na segunda quinzena de janeiro, porém, ia ficando claro para o mundo que o vírus não ia estacionar na Ásia, como foi a experiência com a versão anterior, SARS-Corona 1.0. Logo no início da quinzena os Estados Unidos, o Nepal, assim como França, Austrália, Malásia, Cingapura, Coreia do Sul, Vietnã e Taiwan apresentavam os seus primeiros casos. Uma reportagem da revista Exame do dia 21 destacava que já havia mais de 7 mil pessoas infectadas e a doença ultrapassava as fronteiras chinesas. A rapidez de transmissão era relativizada pelo fato das taxas de mortalidade serem mais baixas do que a de outros vírus, até mesmo do Corona 1.0.

    24o dia – A essa altura o número de mortos na China só aumentava e, em 23 de janeiro, Wuhan é colocada em quarentena efetiva, com a suspensão dos transportes aéreos e ferroviários. Além de Wuhan, Xiantao e Chibi, outras duas cidades da província de Hubei, também entraram em quarentena efetiva. No dia seguinte iniciava o feriado (de 24 a 30 de janeiro que comemora o Ano Novo chinês). Milhões de pessoas saíram em viagem para dentro e fora do país. Ao mesmo tempo, Pequim cancelava as festividades na tentativa de conter a propagação do vírus.

    Àquela altura, as notícias publicadas na China indicavam 25 mortes e 600 infectados. Para a OMS, o surto ainda não constituía uma emergência pública de preocupação internacional, pois não havia evidências de que o vírus se espalharia fora da China. Por outro lado, era a primeira vez que percebíamos os riscos crescentes de uma pandemia global a partir da reportagem intitulada “Por que o Coronavírus desperta o temor de uma pandemia”, publicada no Nexo Jornal. A notícia se valia ainda da comparação histórica entre a SARS de 2002-2003 e a de 2019. Nessa mesma reportagem, há a indicação de uma possível vítima da Covid-19 em Belo Horizonte.

    31o dia No dia 30 de janeiro, a OMS declarou o novo coronavírus uma emergência global, pois o número de mortos na China saltou para 170, com 7.711 casos relatados em todo o país. Índia e Filipinas confirmavam, também, seus primeiros casos. Nossas preocupações, nesse momento, eram com o crescimento do prestígio de Damares, ministra dos Direitos Humanos, entre os mais pobres e, ao mesmo tempo, acompanhávamos com entusiasmo o crescimento do “Movimento das Sardinhas”, na Itália.

    Nesse dia, eram publicadas várias reportagens sobre a Inteligência Artificial (IA) que havia antecipado a possibilidade da pandemia. Por meio do acesso às passagens aéreas, a IA canadense, BlueDot, conseguiu “prever”, com muita certeza, a disseminação do vírus fora da China. A esse respeito, o fundador e CEO da BlueDot, afirmou: ”Sabemos que não se pode confiar nos governos para fornecer informações em tempo hábil. Podemos captar notícias de possíveis surtos, pequenos murmúrios, fóruns ou blogs com indicações de algum tipo de evento incomum acontecendo”. Basicamente, a IA cria alertas a partir de notícias, em 65 idiomas, dados de companhias aéreas e notícias de surtos de doenças em animais. A empresa foi fundada em 2014 e o seu fundador, com capital inicial de US$ 9,4 milhões, era especialista em doenças infecciosas em Toronto, tendo trabalhado, inclusive, durante a epidemia de SARS-COVID 1.0 em 2003, que também atingiu o Canadá infectando 375 pessoas em Toronto, matando 44. Para o “dono” da IA, a solução para as pandemias é a antecipação proporcionada pelas Inteligências Artificiais.

    32o dia – Em 31/1/2020, o correspondente canadense do The New York Times perguntava: “SARS foi mortal no Canadá. O país está preparado para o Coronavírus?” Para ele, o sistema de saúde de Toronto ficou caótico e confuso durante o surto de SARS, há 17 anos. Ele afirmava que as mudanças, motivadas por aquela crise, provavelmente seriam testadas novamente. Assim, ao final de janeiro, em muitos smartphones se podia jogar o Plague Inc e também acompanhar em tempo real o número de casos e vítimas do Sars-Covid 2.0 confirmados no mundo. Um site elaborado pela Johns Hopkins monitorava a propagação da doença.

    Ainda pairava a ilusão de que a Sars-Covid 2.0 fosse permanecer confinada na Ásia. Além disso, apostava-se que a taxa de letalidade da Sars-Covid 2.0 seria menor do que o Sars-Covid 1.0. Mas, uma reportagem do site da Revista Piauí, também publicada no último dia de janeiro, alertava: “A menor letalidade do vírus é uma boa notícia para quem estiver infectado, mas não necessariamente é algo positivo do ponto de vista da saúde pública.” A mesma reportagem sinalizava para um dos principais riscos trazidos pelo vírus: “Há uma variável silenciosa que pode dificultar a estratégia de contenção do novo coronavírus, baseada em quarentena e isolamento: a capacidade de transmissão da doença por pessoas que, embora infectadas, não apresentam sintomas”. E essa era uma das grandes diferenças da versão 2.0 para a 1.0 da doença. Ao mesmo tempo, a reportagem relativizava a preocupação com a epidemia, pois se dizia que no Brasil era mais provável contrair sarampo. Ao longo de fevereiro muito se falou que era mais fácil pegar dengue do que o novo vírus.

    35o dia – Em 3 de fevereiro era provável que até as autoridades chinesas acreditassem na capacidade de contenção da epidemia. A porta-voz do Ministério das Relações Exteriores da China acusava os EUA de gerar e espalhar pânico em relação ao novo coronavírus.

    41o dia Em 9 de fevereiro, um dia depois da entrega do segundo hospital para atender pacientes infectados pelo vírus, construído em tempo recorde pelo governo chinês, a possibilidade do SARS-COVID 2.0 ser menos letal começava a desmoronar. O número de mortos na China chegava a 811 e superava o total global da epidemia da SARS de 2002-2003.

    53o dia Em 20 de fevereiro, 87% dos novos casos estavam na China, com mais de 2 mil mortes e 74 mil infectados. Mas, os dados das autoridades mostravam que, ainda assim, o número de contágios estava diminuindo. O vírus tinha se espalhado e surtos iniciavam-se em alguns países, como Coreia do Sul, Irã e Itália. Nesse dia, a Coreia do Sul anunciou sua primeira morte. 

    54o dia – O Governo italiano anunciava o início da quarentena de 50 mil pessoas. Era 21 de fevereiro e a Itália registrava o seu primeiro óbito. No dia seguinte todos os principais jornais italianos estampavam manchetes alarmantes: “O vírus na Itália: um morto no Vêneto” (Corriere Della Sera); “Virus, o Norte com medo” (la Repubblica); “Vírus na Itália, quarentena para 50 mil” (24 Ore); “Coronavírus, primeiro morto na Itália” (La Stampa); “Avança o vírus, Norte em quarentena” (Il Messaggero); “Itália infectada” (il Giornale); “Para tudo” (Il Manifesto). Para muitos italianos essas manchetes não passavam de um alarmismo exagerado e de um exagero desnecessário.

    58o dia – No dia 26 de fevereiro, a Folha de São Paulo publicava uma entrevista com o epidemiologista Wanderson Oliveira cujo título era: “Secretário do Ministério da Saúde alerta para ‘infodemia’ sobre coronavírus”. O epidemiologista, responsável pelo coronavírus no Brasil pelo Ministério da Saúde, afirmava que estávamos vivendo uma “infodemia”. Para os representantes estaduais, com ele reunidos, as informações eram perecíveis porque “não dá tempo para o sistema se adaptar às novas evidências, pois logo em seguida surgem outras”. Do ponto de vista das notícias, e da própria dinâmica da pandemia, as lógicas atualistas parecem se aprofundar. Segundo Oliveira, os dados escorrem pelas mãos, pois estamos vivendo uma epidemia em tempo real.

                Infodemia é uma das palavras do momento. A partir de seu uso por Oliveira verificamos que havia uma reportagem do The New York Times, de 7 de fevereiro de 2020 dizendo que a OMS estava trabalhando com as redes sociais (Facebook, Twitter etc) e o Google para combater a disseminação de fake news sobre a doença. A reportagem citava o uso da palavra para lidar com a situação. Até então, só há na Wikipedia verbetes sobre a palavra em catalão e finlandês. A página em catalão afirma que o termo “é utilizado OMS para referenciar-se à sobrecarga de informação falsa, à desinformação que gera alarde generalizado e às teorias conspiratórias. O fenômeno está relacionado com as fake news e com a ausência de checagem das informações antes do compartilhamento.” Na Wikipédia lusófona, a página que trata da questão se chama: “Desinformação na pandemia de Covid-19”. A página finlandesa afirma que a palavra foi usada no jornal The Washington Post no contexto da epidemia de SARS, em 2003. O acrônimo significaria uma enorme quantidade de informações certas ou erradas, mas que, muitas vezes, pouco agregam valor informativo.

    59o dia – Em 27 de fevereiro o prefeito de Milão compartilhou o vídeo “Milão não para”, desafiando a política de quarentena. No mesmo dia a Itália registrava 14 mortes pelo Covid-19 e 528 casos confirmados. Mais ou menos um mês depois, a cidade já tinha mais de 4 mil mortes por covid-19 e o prefeito pedia desculpas. Enquanto isso, no Brasil, ao longo de fevereiro, discutia-se se a esquerda teria morrido e se o PT estava obsoleto. O ex-presidente Lula se encontrava com o Papa, Bolsonaro liderava as pesquisas para a eleição de 2022 e cresciam as especulações sobre a possível candidatura de Luciano Huck. Além disso, os planos golpistas de Bolsonaro estariam em curso. No cenário internacional, o destaque político eram as especulações em torno do sucesso de Bernie Sanders nas primárias democratas na corrida presidencial dos EUA. Havia casos de contágio pelo vírus na maioria dos países do mundo.

    66o dia – Em 5 de março, a Europa já contabilizava 41% dos novos casos.

    67o dia – A imprensa noticia a chegada da comitiva brasileira no sábado, 7 de março, ao estado da Flórida, em visita oficial que incluía um encontro com o presidente Trump. Na primeira página da Folha o destaque é a crise na Bolsa, e a pandemia no Brasil ocupa ainda um lugar modesto, com um pequeno box lateral que informava serem 13 casos no Brasil. No noticiário político predomina o ato contra o STF e o Congresso convocado por grupos bolsonaristas.

    68o dia – Um dos virologistas responsáveis pelo descobrimento do Zica Vírus relativizava o impacto da pandemia no Brasil e destacava, em 8 de março, que o SARS-Covid 2.0 não ia conseguir sobreviver no calor.

    72o dia –Em 11 de março, a principal manchete da Folha é sobre o risco do colapso do sistema de saúde no Brasil. Neste mesmo dia a OMS declarava a existência de uma pandemia global de Covid-19. Desde então a pandemia seria matéria para todas as principais manchetes da Folha até o momento em que escrevemos este texto.

    75o dia – Em 14 de março, com o risco eminente do alastramento da epidemia, a imprensa brasileira destaca que os especialistas recomendam: o Brasil deve parar.

    77o dia – 16 de março, segunda-feira. No dia anterior Mateus voltava de sua viagem de estudos de seis meses em Bolonha, na Itália, estávamos ansiosos para nos reencontrar. O Brasil tem 15 casos de Sars-Covid-19. A imprensa cobre o ato contra o STF e o Congresso Nacional, realizado no domingo, com a presença de Bolsonaro, apesar dos riscos de contaminação. Desde o dia 11 de março repercute as contaminações de membros da comitiva da viagem do presidente aos Estados Unidos, tendo o primeiro caso sido confirmado já no dia 12. Até agora Bolsonaro não divulgou os exames que confirmariam que ele mesmo não teria sido contaminado. Ou teria o presidente se contaminado, mas se curado com o tratamento da hidroxicloroquina, por entre tantos fakes, como saber? Nesse dia, disse a respeito da pandemia, em sua peculiar linguagem fragmentada: “Foi surpreendente o que aconteceu na rua até com esse superdimensionamento. Que vai ter problema vai ter, quem é idoso, [quem] está com problema, [quem tem] alguma deficiência, mas não é tudo isso que dizem. Até a China já praticamente está acabando.”

    78o dia – 17 de março. A Europa responde por 74% dos novos casos. À noite, no Brasil, pode-se ouvir o primeiro “panelaço” contra o governo de Jair Bolsonaro. Ficava pronto o livro organizado por nós (e por Bruna Stutz): “Do Fake ao fato: desatualizando Bolsonaro”. Ainda acreditávamos que faríamos lançamentos presenciais. Era uma só uma ilusão. 

    79o dia – 18 de março. Os jornais noticiam a primeira morte pelo vírus em São Paulo. O presidente do Senado e dois ministros de Bolsonaro testaram positivo para a Covid-19. Reportagem do site Outras Palavras perguntava: “Coronavírus impulsionará impeachment?”. Uma brasileira, diretora-assistente da OMS,  afirma que os brasileiros estavam minimizando o risco do coronavírus. Médico que tratou o primeiro paciente morto no Brasil faz apelo para que pessoas fiquem em casa. O site Intercept noticia que a empresa Riachuelo mantinha funcionários em escritório mesmo com casos de coronavírus confirmados. De noite, mais panelaços contra o governo. Eles são vistos pelos autores com esperança. Reportagem do ConJur afirma que corte de jornada e salários proposto pelo governo divide advogados.

    80o dia – 19 de março. Nas esquerdas aumenta a preocupação com as periferias e os mais vulneráveis durante a epidemia. A Embaixada da China no Brasil responde o deputado federal Eduardo Bolsonaro (sem partido) e filho do presidente, que acusou, no dia anterior, o país asiático de omitir informações sobre a pandemia: “As suas palavras são extremamente irresponsáveis e nos soam familiares. Não deixam de ser uma imitação dos seus queridos amigos. Ao voltar de Miami, contraiu, infelizmente, vírus mental, que está infectando a amizades entre os nossos povos”. Economistas apontavam para o risco de depressão e do aumento da pobreza em função da pandemia. Alguns argumentos diziam que o Brasil estava a cerca de dez dias atrás da Itália no ritmo da epidemia.

    83o dia – 22 de março.  No dia anterior marcamos um churrasco para nos encontrarmos, isto depois de muito debate, Valdei tem histórico de asma e não sabe ainda se está no grupo risco. Na manhã deste domingo Mateus acorda com tosse, fadiga e febre: churrasco e reencontro adiados sem data. De noite, após ter áudio de conversa em Whastsup vazada em que chamava de histéricas as preocupações com a epidemia, o empresário Roberto Justus sofre com protestos no Twitter e em outras redes sociais. Alinha-se com outros empresários bolsonaristas que argumentavam na mesma direção, como os donos da Madero, Havan e Riachuelo.

    84o dia – 23 de março, segunda-feira. Boris Johnson reconhece a gravidade da crise no Reino Unido e muda o discurso e as ações que vinha adotando. Em 3 de março, em entrevista, se gabava de continuar a apertar as mãos da vítimas da Covid-19.

    85o dia – 24 de março. Ao mesmo tempo que Bolsonaro recua na medida provisória sobre o corte de salários, o Banco Central libera mais de 1 trilhão de reais para os bancos. Reportagens denunciam que o empresário, dono da Madeiro, afirma que a economia não pode parar em função de 5 ou 7 mil mortes. Renda Familiar de Emergência era anunciada na Argentina. Bolsonaro fez um pronunciamento que difere em substância de seus dois anteriores, nos dias 6 e 12 de março. No fatídico discurso de 24 de março, o presidente minimiza a doença, criticando as medidas de isolamento. Apesar de breves elogios ao ministro da Saúde, faz apelos para que as pessoas voltem à normalidade, contrariando o próprio ministro. Critica o que ele denominou de histeria da imprensa, argumentando que o caso da Itália só seguiu os rumos que conhecemos, pelo elevado número de idosos do país, além do seu clima frio, e que, portanto, não poderia servir de exemplo ao Brasil. Questiona o fechamento de escolas e sugere que apenas pessoas do grupo de risco deviam se confinar. Critica duramente os governadores de estados, os quais acusa de estarem levando a economia ao colapso. Nomeia os efeitos do Coronavírus de “gripezinha”, se vangloria de seu histórico de atleta e ainda especula sobre o tratamento com a hidroxicloroquina. Mais panelaços durante o pronunciamento. E muitas reações imediatas, inclusive do presidente do Senado, que pede liderança séria para lidar com a crise. O premiê do Japão pede o adiamento dos jogos olímpicos de Tóquio por um ano. Médica e enfermeira do SUS de Ouro Preto faz visita domiciliar a Mateus para avaliar se o caso era suspeito de Covid-19. OMS vê potencial para que os EUA se tornem o novo epicentro da crise.

    86o dia – 25 de março. Outra enfermeira da cidade de Ouro Preto recolhe três amostras, nas narinas e na garganta de Mateus. O exame é enviado para a Fundação Ezequiel Dias em Belo Horizonte, Minas Gerais. Neste dia, 25 de março, a febre cede.

    87o dia – Em 26 de março, o sociólogo português Boaventura de Souza Santos afirma que a ultra-direita fracassa no combate ao vírus. Ao mesmo tempo, pesquisa do instituto Gallup indica que a provação de Trump subia para o maior nível do seu mandato. Mais de 1.000 mortos nos EUA pelo coronavírus. A epidemia avança na Espanha, com mais de 4.000 mortos e 56 mil casos confirmados. Na América Latina, medidas rígidas são adotadas pela maiorias dos governos. Para Trump a Covid-19 ainda é como uma gripe e os casos nos EUA estavam caindo.

    88o dia – 27 de março. Bolsonaro lança campanha publicitária com o slogan #OBrasilNãoPodeParar e o site Intercep mostra que há certa adesão social a esse discurso. A OMS afirma que a evolução da pandemia na África é gravíssima. Nos chegam relatos de que em condomínios de luxo em bairros nobres de Vitória ( ES) os cuidados com o vírus são minuciosos, com funcionários, não dispensados, higienizando três vezes ao dia os espaços comuns. Na tarde dessa sexta-feira, alguns moradores desses prédios devem ter se juntado à carreata que no final da tarde pedia a reabertura do comércio em Vitória e Vila Velha, #OBrasilNãoPodeParar. O papa Francisco produz uma das imagens mais icônicas ao caminhar pela Praça de São Pedro vazia, levava consigo um crucifixo que a tradição diz ter salvado a cidade de Roma da peste negra em 1522.

    89o dia – 28 de março. A manchete de um jornal português sintetiza a preocupação do país com o alastramento do vírus: “Covid-19 em Portugal. A caminho do desconhecido e a tentar atrasar o passo”. Uma manchete, uma síntese, uma constatação: a de que vivemos um momento em que atrasar o passo pode ser mais prudente do que a chegada rápida a um certo futuro. Mas quem decide como e quanto atrasar? Quem paga a conta? Questões da boa e velha política.

    90o dia – 29 de março. A manchete da Folha afirma que moradores passam fome nas favelas e começam a sair às ruas. Trump agora refere-se “a gripe” como pandemia e prolonga o isolamento nos EUA. Ele se diz preocupado: “Eu só via essas coisas em países distantes, nunca no nosso”. Enquanto isso, Bolsonaro passeava pelas ruas do Distrito Federal estimulando as pessoas a irem às ruas. Em decisão inédita, as postagens com os vídeos do presidente foram removidos de sua conta pelo Twitter no mesmo dia. Nesse momento, as declarações de Bolsonaro passam a se distanciar um pouco das de Trump, embora o repertório comum seja vasto. Continua a se contrapor à maioria dos prefeitos e governadores do país, bem como ao seu ministro da Saúde, que reforçava as políticas de isolamento.

    91o dia – 30 de março, segunda-feira. O Parlamento Húngaro, sob justificativa de combater o coronavírus, dá poderes quase ilimitados ao primeiro-ministro Viktor Orbán, dentre eles, a possibilidade de censura.

     92o dia – 31 de março. Os ministros da Justiça e Economia se opõem a Bolsonaro e apoiam o ministro da Saúde. O isolamento social é respeitado por 60% das pessoas no Brasil, mostra software. Quinze estados brasileiros usam a tecnologia que mapeia comportamento individual através de sinais de dispositivo de rede sem fio. O site O antagonista resume o novo pronunciamento do presidente da seguinte forma: “Jair Murphy Bolsonaro. Se algo pode dar errado, é porque vai dar errado”. Vice-presidente exalta Ditadura Militar (1964-1985) no dia do aniversário do golpe de Estado de 31 de março de 1964. Os autores passam o dia envolvidos com a campanha #DitaduraNuncaMais. Mateus continua com febre e tosse. Ainda sem resultado do exame.

    93o dia – 01 de abril. Às 7h45 a Prefeitura de Mariana confirma a primeira morte pelo covid-19 na cidade, um homem de 44 anos, sem comorbidades e com provável contaminação local. Não sem alguma ironia, a Folha noticia que no pronunciamento do dia anterior o presidente teria mudado o tom buscando a conciliação. Dia da mentira? Ele e seu grupo político continuam a guerra de desinformação contra o seu próprio ministério da Saúde. O país já registra 42 mortes. Bolsonaro compartilha vídeo falso a fim de sugerir que o isolamento social pode gerar uma crise de desabastecimento. Depois que a farsa foi denunciada ele pede desculpas, gesto raríssimo que talvez demonstre o quanto se sente isolado. Como muitos estudiosos diziam: a luta é contra a pandemia e a infodemia, ao mesmo tempo. As notícias falsas e o vírus competem para ver quem viraliza mais, isto é, quem sofre mais mutações atualizantes.

    94o dia – 2 de abril. As notícias sobre subnotificação ganham as manchetes. Governo anuncia redução e suspensão de salários durante a pandemia. O jornal El País afirma que o Brasil tem sido preterido por fornecedores para obter material médico contra o coronavírus. Usar ou não usar as máscaras? Eis a questão?

    95o dia – 3 de abril. Os casos globais chegam a 1 milhão. No Brasil, Bolsonaro continua em rota de colisão com o seu ministro da Saúde. Equador entra em colapso sanitário. O país tem a oitava população do continente, mas já registrava o segundo maior número de mortes. Covid-19 acaba com 10 milhões de empregos nos EUA. Profissionais da saúde no Brasil denunciam a precarização das condições de trabalho em tempos de pandemia. O bolsonarismo dissemina diversas narrativas eficazes, em especial, entre a população evangélica. O ministro da Saúde, Mandetta, é o principal alvo das milícias digitais: Quantos são robôs? Quem financia? Qual o papel da leniência de Facebook, Twitter e Google com essas práticas? É divulgada uma pesquisa feita com dados do Twitter do dia 15 de março, quando a #BolsonaroDay subiu, apontando que 55% das postagem nessa hashtag haviam sido feitas por robôs. O Judiciário e o Legislativo assistem a tudo impassíveis: bilontras ou bestializados?

    96o dia –  4 de abril. Todas as chamadas da primeira página da Folha são dedicadas à pandemia, sem exceção. Chega em nosso Zap, enviado por uma amiga do Rio Grande do Norte, um áudio convocando para o jejum e oração do domingo que começava pedindo a “proibição e criminalização do socialismo, comunismo e marxismo cultura dentro do Brasil”. A atriz (?) continuava sua fala – com um sotaque nordestino genérico – pedindo a destruição do Foro de São Paulo, que estaria por trás da grande conspiração para quebrar o Brasil, e explicava: “A China comprou a Itália, com isso, no fim do ano a Itália ficou cheia de jovens chineses que cuspiam e tossiam em tudo para espalhar o vírus”. Continua: “A Itália tem 30% de velhos e é fria, por isso houve aquela matança generalizada. O vírus só gosta de frio, segundo, a cloroquina está sendo muito eficaz na cura da Covid-19, os governos estaduais de esquerda estão usando a quarentena para quebrar o Brasil, com o país parado, com demissões em massa, o povo vai ficar sem dinheiro e com fome, a Europa pode fazer quarentena por ter lastro da moeda em Ouro, a do Brasil não, esse é o plano dos comunistas para tomar o poder no Brasil, estão soltando presos. Tudo isso para levar ao impeachment de Bolsonaro, mas se ele cair, o Mourão não vai poder assumir, porque houve uma PEC37 em 2019 que vetaria, haveria nova eleição e Ciro Gomes – que está sendo financiado pelo governo Chinês, pois o país asiático quer comprar todas a empresas brasileiras a preço de banana. A assim, o Brasil se torna socialista”. Um certo desespero de professor: como se combate esse tipo de narrativa? Podemos descobrir a cura para a pandemia, mas a infodemia será o novo normal?

    97o dia – 5 de abril. Bolsonaro e apoiadores fazem jejum religioso contra o novo coronavírus – e o plano comunista para dominar o Brasil. Olavo de Carvalho, guru do presidente, defende em seu perfil no Facebook a demissão de Mandetta usando um desrespeitoso trocadilho: “Fora, ministro Punhetta”. O ministro seria o “exemplo típico  do que acontece quando um governo escolhe seus altos funcionários por puros ‘critérios técnicos’, sem levar em conta a sua fidelidade ideológica”. O guro do governo ainda afirma que “tudo o que os comunistas mais desejam é que o adversário tente vencê-los fugindo da briga ideológica”.

    98o dia – 6 de abril, segunda-feira. A imprensa internacional anuncia o agravamento da situação de saúde de Boris Johnson, premier britânico da nova direita global que, inicialmente, fez coro com os que minimizam os efeitos da pandemia. O pensador indígena brasileiro, Ailton Krenak, afirma que “voltar ao normal seria como se converter ao negacionismo e aceitar que a Terra é plana. Que devemos seguir nos devorando”. O ministro Mandetta quase cai ao longo do dia. Um amigo envia um e-mail no fim da noite: “Estamos sendo atualizados no papel de transmissores passivos de vírus, sem alma e sem coração”. Em função da pressão de Bolsonaro, o Ministério da Saúde adotará na próxima semana a arriscada estratégia do distanciamento social ampliado, isto é, reduzir o isolamento em cidades e estados com 50% da capacidade de saúde vaga. Fato que, segundo o próprio Ministério, aumentará o número de infectados. Finalmente, a OMS divulga um documento sobre o uso das máscaras, que tinham ido do inferno ao céu, durante a pandemia. No mesmo dia, uma reportagem afirmava: “Mortes por coronavírus se concentram em poucas cidades no mundo: Nova York tem 29% dos mortos pela Covid-19 nos EUA e se tornou o epicentro da doença. São Paulo reúne 40% dos óbitos do Brasil”. São Paulo estará a caminho de ser um epicentro global?

    99o dia – 7 de abril. Estimativas apontam para o fato de que a pandemia iria elevar em até 22 mil as pessoas em condições de extrema pobreza na América Latina. Na África, os casos confirmados passam de 10 mil. A maioria dos 54 países já havia tido um caso. A África do Sul, o país mais atingido, já tinha 1.700 doentes. Brasil tem 114 mortes por coronavírus em 24h, a maior cifra em um dia. O total de mortes chega a 667. O Datafolha divulga pesquisa mostrando que 28% dos brasileiros não fazem isolamento, uma porcentagem parecida com o apoio quase incondicional do presidente: as narrativas do zap estariam funcionando? Ao mesmo tempo, a Folha afirma que o remédio defendido pelo governo pode não ser a salvação esperada por muitos bolsonaristas: “Taxa de mortes com cloroquina equivale à de quem não usa, diz estudo preliminar da Fiocruz”. O Whatsapp limita o envio de mensagens para combater a infodemia: todos se perguntam se o limite vale também para os robôs e empresas de impulsionamento? Morre de covid-19 o pastor norte-americano Landon Spradlin, que ficou famoso por chamar a pandemia de histeria. Nova York tem mais mortes por covid-19 do que no 11 de setembro. Os EUA lideram o número de casos no mundo, sendo que registraram o maior número de mortes por coronavírus em um único dia, com mais de 1.800 mortes. No Twitter, Trump ataca a OMS e a China. O site O antagonista registra que por razões econômicas o presidente da Turquia, “Erdogan, rejeita o isolamento, e o vírus avança na Turquia”. “Erdogan tem resistido aos apelos dos médicos e da oposição para que ordene às pessoas a permanência em casa – ele insiste que ‘as rodas da economia precisam continuar girando’”. No Twitter, Bolsonaro envia votos de recuperação a Boris Johnson. A CEF libera aplicativo para pedidos do apoio de 600 reais aprovado pelo Congresso.

    100o dia – Dia 8 de abril, agora. A cidade que foi o epicentro original, Wuhan, recebe de presente sua “liberdade”. Depois de 11 semanas, 76 dias, o bloqueio da cidade chega ao fim. Há receios, no entanto, de ondas de recontaminação na China. The Guardian: “Cidade chinesa de Wuhan reabre quando Boris Johnson passa a segunda noite em terapia intensiva”. Casos globais atingem 1,4 milhão de pessoas. O teste feito por Mateus ainda não está pronto, mas a recuperação é visível. Valdei segue em isolamento em Padre Viegas, distrito de Mariana, cidade em que as mineradoras não pararam suas atividades. A cada dia ônibus repletos de trabalhadores circulam entre as minas e os bairros e distritos. Quem pode imaginar como serão os próximos 100 dias? O Globo noticia que o pacote de 600 reais de ajuda exclui 21 milhöes de trabalhadores necessitados.

    Deixemos para a próxima coluna, para não nos alongar mais, a pausa reflexiva para pensarmos nas respostas às muitas perguntas que esses 100 dias deixam em aberto. Até breve! Fiquem em casa!

     

     

     

     

  • Advogada luta para preservar presos do coronavírus

    Advogada luta para preservar presos do coronavírus

    Uma vez que a crise do novo coronavírus (COVID-19) já se instalou no estado de São Paulo, paralisando cidades e diminuindo circulação de pessoas, é só uma questão de tempo até que o vírus se dissemine dentro do sistema prisional paulista, o maior e mais lotado do país. O medo é que, uma vez dentro das unidades, o vírus cause um genocídio, dadas as condições precárias das unidades prisionais. Para mitigar os possíveis danos a advogada Maira Pinheiro, que faz parte da Rede Feminista de Juristas, tem buscado pedidos de prisão domiciliar para seus clientes como forma de preservar todos os envolvidos com o sistema carcerário.

    A advogada Maira Pinheiro (Foto: Arquivo Pessoal)

    Os principais órgãos de saúde, desde a Secretaria Estadual de Saúde, passando pelo Mistério de Saúde e a própria Organização Mundial da Saúde (O.M.S) tem entre as recomendações básicas de prevenção contra a disseminação do vírus passos simples como

    • Lave as mãos com água e sabão ou use álcool em gel
    • Cubra o nariz e boca ao espirrar ou tossir
    • Evite aglomerações se estiver doente
    • Mantenha os ambientes bem ventilados
    • Não compartilhe objetos pessoais

    (Fonte: Ministério da Saúde)

    A OMS, em um relatório realizado por seu escritório europeu sobre o coronavírus, destacou na sessão sobre Direitos Humanos que “devem existir planos de contínuos para garantir a segurança e proteção inerentemente associado a prisões e outros locais de detenção. É de suma importância trabalhar em parceria entre agências públicas de saúde, serviços de saúde e centros de detenção, reunindo serviços comunitários e serviços de prisão / detenção. A estrutura de direitos humanos fornece princípios orientadores na determinação da resposta ao surto de COVID-19. Os direitos de todas as pessoas afetadas devem ser respeitados e todas as medidas de saúde pública devem ser realizadas sem discriminação de qualquer tipo. As pessoas em prisões e outros locais de detenção provavelmente não apenas Sendo mais vulneráveis ​​à infecção pelo COVID-19, eles também são especialmente vulneráveis ​​a violações dos direitos humanos”.

    Mas o sistema prisional brasileiro, que segundo dados do Conselho Nacional de Justiça de julho do ano passado contava  com 812.564 presos, tem poucas condições de levar a situação de forma a evitar uma explosão de casos. Segundo levantamento da Folha de S. Paulo realizado em 2019 o estado de São Paulo já alcançou  235.775 presos, contados os diferentes tipos de regime. São comuns os relatos de falta de suprimentos básicos como água e itens de higiene dentro das unidade, o que impossibilita as recomendações para evitar contágio.

    Por conta desse cenário Maira, que atua principalmente na área penal, elaborou uma pesquisa para montar as defesas de seus clientes, nas quais apresenta argumentos pela soltura, frente à pandemia.

    No modelo de Habeas Corpus (HC) que montou, os principais pontos que apresenta concentram argumentos médicos e legais sobre as circunstâncias que o coronavírus impõem sobre o sistema carcerário. De início o argumento básico é “diante da conjuntura de pandemia, o paciente necessita a adequação da medida de segregação a ele imposta à conjuntura de pandemia atualmente em curso”.

    Para sustentar a necessidade de adequação da pena ela apresenta outros fatores

    Um estudo sobre os confinados do navio Princess Diamond, publicado no Journal of Travel Medicine, que recomenda a não permanência do confinamento, mas sim evacuação deste espaço, uma vez que a “possibilidade de contágio durante o período de incubação, geralmente assintomático, que pode levar ao subdimensionamento do surto”

    Um conjunto de determinações em prisões estadunidenses que seguiu pelo caminho do desencarceramento, como:

    • – “condado de Douglas, no estado de Nebraska, determinou a soltura de presos acusados de infrações de menor ofensivo”
    • – “Cleveland, estado de Ohio, as medidas se iniciaram por ato do juiz corregedor dos presídios do condado de Cuyahoga escolheu a cadeia local para iniciar medidas desencarceradoras, realizando audiências aos sábados para agilizar a libertação de presos provisórios” 
    • – “condado de Alameda, a defensoria requisitou a proteção de mais de 300 presos de grupos de risco, por meio de indultos e liberdades provisórias”
    • – “San Francisco, na Califórnia, a defensoria pública iniciou elaboração de diversos pedidos de liberdade para todos os presos provisórios que estão no grupo de risco em caso de infecção pelo Covid-19. O Ministério Público local orientou os promotores a não se oporem a pedidos de liberdade provisória em casos de infrações de menor ofensivo ou crimes de drogas”

    Decretos realizados pela Itália e Irã, dois dois países mais afetados no mundo pelo coronavírus, que na Itália “determinou o encaminhamento para prisão domiciliar de presos com 18 meses ou menos de pena a cumprir e que não sejam reincidentes, não tenham praticado crimes com violência ou tenham associação com o crime organizado” e no Irã “o judiciário determinou a liberação temporária de 70.000”

    A Portaria conjunta nº 19/pr-tjmg/2020  do presidente do Tribunal de Justiça , Governador, Corregedor-Geral de Justiça e Secretário de Estado de Justiça e Segurança do estado de Minas Gerais  que recomenda para “todos os presos condenados em regime aberto e semiaberto”, “presos em virtude de não pagamento de pensão alimentícia” e “indivíduos privados de liberdade que se enquadram no perfil do grupo de risco” prisão domiciliar. A mesma portaria recomenda “a revisão de todas as prisões cautelares no âmbito do Estado de Minas Gerais, a fim de verificar a possibilidade excepcional de aplicação de medida alternativa à prisão”. 

    Até agora, com pedidos específicos realizados com esse modelo, a advogada conseguiu que dois de seus clientes tivessem sua liberdade provisória concedida. Para Maira a questão é “a massificação funciona para prender, sem muito critério, através de decisões generalistas, mas você não consegue obter a liberdade de maneira massificada. Se produz encarceramento de maneira massificada, mas a liberdade é a conta gotas”.

    Pedidos Semelhantes 

    Os pedidos de HC elaborados por Maira não foram uma novidade. No último dia 20 a Defensoria Pública da União, através da Defensoria Regional de Direitos Humanos em São Paulo, e a Defensoria Pública do Estado de São Paulo, por meio do Núcleo Especializado de Situação Carcerária e de seu Núcleo Especializado de Promoção e Defesa dos Direitos das Mulheres, impetraram um pedido de  habeas corpus coletivo, repressivo e preventivo” para todas as “pessoas presas ou que vierem a ser presas e estejam  nos grupos de risco da pandemia de coronavírus, aqueles em regime semiaberto e os condenados ou acusados por crimes sem violência ou grave ameaça”, no estado de São Paulo, por conta do novo coronavírus.

    Na maioria dos casos foi pedido para que, de forma liminar, os presos “sejam colocadas em liberdade provisória ou, ao menos, em prisão domiciliar”. Em alguns casos foram sugeridas encaminhamento para serviços ambulatórios.

    Eles consideram, no pedido, que caso não sejam adotadas essas medidas é possível que “as unidades prisionais serão palco de um genocídio sem precedente e epicentro da continuidade de disseminação dessa nova enfermidade, por conta da combinação da pandemia com a situação caótica dos presídios paulistas, em especial de sua superlotação”. E ainda colocam que é importante evitar a disseminação nos presídios para além da segurança das unidades, pois após o primeiro preso “contrair o vírus os efeitos serão devastadores e ampliar-se-ão a todas as pessoas que vivem nos municípios e cidades em que estão localizadas as unidades prisionais”.

    Situação prisional em São Paulo (Fonte: relatório conjunto da Defensoria Pública da União e Defensoria Pública do Estado de SP)

    O HC foca questão carcerária e a relação com o coronavírus no país e no mundo para conter o avanço na população prisional e na sociedade como um todo, como por exemplo nos Estados Unidos, no Irã e no Bahrein. Não só em âmbito internacional, mas também internamente já há medidas nesse sentido, como do TJ/MG” que adotou medidas parecidas com as recomendadas pelo pedido.

    Lembraram também outras ações nacionais como a da “Vara de Execuções Penais do Rio de Janeiro/RJ adotou medida liberando os presos que já haviam sido ‘beneficiados com visita periódica ao lar’, sem necessidade de retorno” e do “próprio Tribunal de Justiça de São Paulo, em acertadíssima posição, adotou medidas liberatórias e humanitárias em relação aos adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa”.

    O pedido enumera a situação de diversas unidades do sistema estadual que apresentam superlotação, chegando a conclusão de que “24 unidades prisionais do estado estão superlotadas, em outras palavras, 69% das unidades abrigam mais pessoas que a sua capacidade” de acordo com a Secretária de Administração Penitenciária (SAP).

    Os dados juntados no relatório, sobre o próprio coronavírus, apontam que parte significativa da população carcerária corre grandes perigo de morte, uma vez que estão nos grupos de risco das doenças. O grupo de risco é composto por pessoas que sofrem de asma, problemas respiratórios, doenças cardíacas, diabéticos, fumantes e idosos, segundo a Organização Mundial da Saúde (O.M.S). Mas recentemente a OMS tem divulgado casos de mortes de crianças e jovens sem as condições do grupo de risco.

    Também apontam para falhas estruturais do sistema estadual que complicam ainda mais a situação. Entre essas são destacadas o racionamento de água em 70,07% das unidades,  insuficiência na reposição de itens de higiene (“69% das pessoas presas entrevistadas pelos defensores afirmaram que não recebem sabonete todas as vezes que necessitam” é um dos trechos do relatório), poucas “opções de roupas para as mais diferentes variações climáticas” e que em 77,28% das unidades prisionais não possuem profissionais de saúde o suficiente.

    O pedido foi negado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, mas os órgãos recorreram em instâncias federais.

    Situação em São Paulo

    Em sentido contrário aos pedidos feitos pela advogada e pelas defensorias a SAP adotou medidas que mantém os presos nas unidades e dificulta qualquer relacionamento exterior ou saída.

    No último dia 17 foram suspensas as saídas temporárias, afetando cerca de  34 presos do regime semiaberto. A secretaria justificou a decisão afirmando que uma vez que saíssem eles “retornando ao cárcere, teriam elevado potencial para instalar e propagar o coronavírus em uma população vulnerável, gerando riscos à saúde de servidores e de custodiados”.

    Também foram alteradas as regras de visita nas unidades, que determinam apenas 1 visitante [por preso] por fim de semana; proibiram a entrada de menores de idade ou qualquer pessoa do grupo de risco e a realização de triagem, para evitar que pessoas com sintomas entrem nas unidades. Por conta de fugas que ocorreram na semana passada os Centros de Progressão Penitenciária (CPPs) de Mongaguá, Tremembé e Porto Feliz e a ala de semiaberto da Penitenciária I de Mirandópolis tiveram as visitas canceladas.