Uma rede de voluntários e militantes que atuam da produção ao preparo de alimentos orgânicos, saudáveis e da agricultura familiar tem feito a diferença na vida e na saúde de moradores em situação de rua e em condição de vulnerabilidade da cidade de São Paulo, por meio do projeto Lute como quem cuida. Elaborado e colocado em prática de maneira coletiva pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e o Movimento Sem Teto do Centro (MSTC) de São Paulo, o projeto distribui aproximadamente 300 marmitas todos os dias há mais de três meses.
A ideia é criar uma rede de solidariedade contínua, que atenda essas populações em um momento delicado, com a crise causada pelo coronavírus. A falta de recursos e trabalho pode agravar ainda mais a insegurança alimentar e nutricional. No Brasil, o acesso a alimentos cultivados sem veneno ainda é limitado. Em parte, pelo preço que as grandes redes varejistas praticam, mas também pela falta de incentivo à agricultura familiar.
A dirigente do MST no estado de São Paulo Daiane Ramos explica que a campanha teve início no âmbito da Brigada Estadual de Solidariedade Zilda Camargo, formada por militantes de diversos municípios, e cresceu com foco na coletividade. Segundo ela, a intenção é chegar à doação de 30 mil marmitas entre julho e agosto.
“Essa brigada está desde o dia 20 de abril participando desse trabalho intenso de solidariedade para a Rede Rua e o Prédio dos Imigrantes (que abriga pessoas de outros países em situação de vulnerabilidade). No fim ela se estendeu, na parceria com o MSTC. As organizações se unem por uma causa única, de trazer esse alimento saudável e orgânico para essas pessoas mais vulneráveis. Infelizmente, com a covid, vem aumentando esse número.”
Mais que a simples doação dos produtos, o projeto tem cuidado especial com a garantia de que essas pessoas vão receber o melhor da produção orgânica do país. Todo o preparo – da higienização ao embalo – segue normas sanitárias criteriosas, que ficaram ainda mais rígidas com a pandemia. O cardápio é definido entre os militantes, mas leva em consideração também as sugestões de quem recebe as marmitas.
Moradores de rua do centro de São Paulo recebem os alimentos. / Arquivo Brigada Zilda Camargo Ramos
Os mais de 200 quilos semanais de arroz, por exemplo, vêm de assentamentos do Rio Grande do Sul, que hoje são os maiores produtores do grão na América Latina. A Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF), em Guararema (Região Metropolitana de São Paulo), fornece as hortaliças e o pão. Assentamentos e acampamentos de outros municípios enviam em média por semana 90 quilos de feijão, 30 quilos de macarrão, 230 quilos de carne, 120 dúzias de ovos e 150 quilos de legumes.
O trabalho é totalmente coletivo e dividido. Cada voluntário tem a oportunidade de passar por diferentes etapas do processo, para ampliação da experiência e dos laços criados entre quem está na colheita e atrás do fogão e as pessoas que recebem os alimentos. Oscar do Nascimento Teles, militante do MST e morador do Assentamento Dom Tomás Balduíno, no Pontal do Paranapanema (SP), faz parte dessa rede. Ele relata o cuidado existente em todo o processo.
“Os companheiros estão fazendo isso com muito amor e carinho, porque a gente viu a realidade na rua de quem tá recebendo o alimento. Você ver as pessoas na fila, erguendo as mãos para pegar aquela comida. Isso fortalece demais nosso trabalho na cozinha, em fazer isso com amor, carinho e preparar os alimentos com todo um protocolo de higiene e cuidado. Nessa grandeza que é São Paulo, é um pouquinho que a gente está fazendo, mas de grande proporção. A gente sabe da importância”, finaliza.
Pela “manutenção imediata da vida”, a iniciativa “Lute como quem cuida” convida a sociedade civil para também colaborar. As doações podem ser realizadas por meio do site da campanha na internet.
Namur chegou com um pandeiro na mão e um cigarro na boca. Parecia se contentar com o cenário escolhido para a primeira entrevista desta reportagem: a escadaria situada na rua Treze de Maio, um dos lugares mais emblemáticos do tradicionalíssimo bairro do Bixiga, cravado no centro de São Paulo. Devagar, como quem comemora e, ao mesmo tempo, lamenta a rotina de quem tem horas de batuque pela frente, sobe os degraus para as primeiras fotos e se queixa: “o Bixiga mudou muito. Você saía aqui nas ruas e tinha casas noturnas, de samba tinham várias — Teleco-Teco, Igrejinha, Catedral do Samba, Boca da Noite. Cresci vendo Benito Di Paula iniciando carreira, trombando com Osvaldinho da Cuíca…”
Namur Scaldaferri, líder do grupo Madeira de Lei, na escadaria da Treze de Maio. Foto Patrícia de Matos
O saudoso é nada mais, nada menos, do que o responsável pela composição do samba-enredo que deu o primeiro título de escola campeã para a icônica Vai-Vai, em 1978. De lá para cá, foram 15 vitórias, das quais 7 são filhas diretas das inspirações musicais do filho de italianos. Os mais de 45 anos de samba de Namur Scaldaferri renderam um dos maiores suspiros boêmios e musicais da Bela Vista de hoje, o grupo Madeira de Lei. Formado por amigos que corriam pelas ruas quando meninos enquanto davam seus primeiros passos na música, o grupo realiza, há 11 anos, todas as sextas-feiras, o “Samba da Treze”, uma roda de samba de rua instalada na esquina da Conselheiro Carrão com a Treze de Maio.
O som toca com uma técnica precária, acompanhado por uma multidão que canta alto, mal distribuída de forma caótica em uma rua disputada palmo a palmo por pessoas e automóveis. Jovens de classe média sedentos por uma dose de tradição se misturam a frequentadores da Vai-Vai e personagens como o Sol, que tem uma canção só para ele. Do outro lado da rua, há uma loja com focaccias e o seu letreiro é escrito em italiano. Pode-se ver a igreja da Achiropita, também, cujo padre se tornou um dos protagonistas de uma briga pelo fim da festa.
Namur jovem na escadaria da Treze de Maio, o segundo da esquerda para a direita. Foto: arquivo pessoal
O SAMBA CONTINUA?
Foi de uns quatro anos para cá, segundo Carla Borges, a produtora do grupo, que o samba estremeceu. No dia 7 de julho de 2018, durante um dos inúmeros diálogos do Madeira de Lei com os órgãos públicos — no caso, a subprefeitura da Sé —, a organizadora conheceu um inquérito civil com reclamações sobre a atividade de todas as sextas. Nele, há denúncias de perturbação do sossego, uso de drogas, entre outras ocorrências.
Carla Borges, produtora do Samba da Treze, minutos antes do batuque começar. Créditos: Patrícia de Matos
A ação foi produto de um movimento composto pela igreja da Achiropita, a Associação Viva Treze e a Coordenadoria Estadual de Conselhos Comunitários (CONSEG). Esse foi o estopim de um embate de vários capítulos que envolvem o samba, o poder público e os comércios da região. Em um dos episódios, Carla chegou a ser multada em 20 mil reais pela realização do evento. Em outro, a Polícia Militar foi enviada para impedir a realização da festa que já tinha centenas de confirmados no Facebook.
Há cerca de dois anos, Flávia March, Comandante do 11º Batalhão da Política Militar, começou a participar das reuniões junto ao Ministério Público a fim de, segundo ela, “buscar solução para o conflito, discutir o tema de forma pacífica, pois o diálogo e a mediação são a melhor solução.”
Em uma das conversas com integrantes do Madeira de Lei, a policial teria advertido sobre “a necessidade de comunicação do organizador do evento junto aos órgãos públicos, no sentido de obter autorizações.” Alega, ainda, que o barulho se perpetua na rua após a apresentação do grupo, causando reclamações devido à “perturbação do sossego público (…), venda de bebidas alcoólicas a menores, uso de entorpecentes, golpes da máquina de cartão, furtos de celulares, entre outros.”
O Samba da Treze não é a única atividade realizada no famoso quarteirão do Bixiga. Há, também, a festa da paróquia italiana que tem, entre seus patrocinadores, a rede Globo. Durante os dias de festividade, dezenas de barracas se misturam ao público do samba. As ruas são fechadas e as músicas e orações podem ser ouvidas a certa distância através de caixas de som instaladas no alto dos postes de luz.
A presidente da coordenadoria, Patrícia Navarro, defende que “as duas festas (a da paróquia e a do samba) são distintas, mesmo porque a Achiropita acontece apenas uma vez no ano durante, aproximadamente, 10 dias.” A capitã Flávia diz que “não há qualquer distinção quanto ao tratamento, seja qual for o pleito junto à Polícia Militar. O que ocorre é que a Festa da Achiropita encontra-se no calendário da prefeitura.”
Descendente de italianos, Namur costumava, ao longo de seus 60 anos de vida, frequentar a igreja da Achiropita, onde também foi batizado. Declara-se favorável à festa, mas questiona que “as barracas ficam na rua o mês inteiro, fecha todo o quarteirão. Aí pode. Não sei se é porque é uma festa italiana e a nossa é negra. A gente começa a pensar, porque a nossa festa é popular, de origem negra e de participação dos menos favorecidos. Aqui não importa se você chega de Mercedes ou de chinelo de dedo.”
Músicos do grupo Madeira de Lei, no auge da apresentação. Créditos: Patrícia de Matos
ESCRAVIDÃO, SEDE E FOME NO DNA DO BIXIGA
Com 75 ruas — onde estão 860 imóveis tombados — e 1,5 quilômetros de diâmetro, o Bixiga é uma cidade interiorana, daquelas que você cruza de uma ponta a outra cumprimentando padeiros e vizinhos. Apesar da moda de prédios cada vez mais altos, uma parte do bairro parece ser uma fotografia de uma São Paulo que, no século 20, foi três — um vilarejo, uma grande cidade e uma metrópole.
Hoje, o Rio Saracura corre embaixo de uma importante avenida do bairro — a 9 de julho. Em uma de suas extremidades, onde atualmente fica o Anhangabaú, vendiam-se escravos. Apesar de não ver mais o céu, o rio é testemunha dos que fugiam seguindo sua margem até onde fica a região da 14 Bis e da Vai-Vai. O lugar se configurou em um quilombo, pólo da cultura africana que fez do Bixiga uma das poucas zonas da época em que se viam, mais livremente, jogos de capoeira, ritmos africanos e, claro, o samba.
Em uma São Paulo composta majoritariamente por negros — a cada três pessoas negras, uma era branca — o pano de fundo do projeto racista de branqueamento se conjugou com a nascente indústria que, por sua vez, provocou a substituição da força de trabalho escrava pela dos imigrantes italianos.
Quem revela essa história é Paulo Santiago, fotógrafo e fundador do Museu do Bixiga. Ele conta que “os italianos começaram a se misturar com os negros, tanto que dos quinze títulos que a Vai-Vai ganhou, sete foram de sambas-enredo compostos pelo Namur, líder do Madeira de Lei e filho de italianos. Essa ligação dos negros com os italianos se deu de cara. São grupos barulhentos, muito musicais, muita coisa de comida.” Depois, vieram os nordestinos, resultando na composição social do bairro que conhecemos hoje. “Os negros fugiam da escravidão, os italianos fugiam da fome e os nordestinos, da seca”, fundamenta.
Paulo Santiago, fundador do Museu do Bixiga. Créditos: Patrícia de Matos
Na visão de Santiago, o bairro precisa de união. “A sociedade brasileira está dividida. Qualquer coisa vira uma guerra. Aí entra o MP e piora tudo (…) não adianta criar rivalidades, que não vai levar a nada. Nessa guerra, todos perdem.”
SAMBA, O PATRIMÔNIO
Em defesa do Samba da Treze, Namur diz que a festa segue o que a lei manda. “Antes da meia noite, o samba acaba”, afirma. Neste horário, já estão a postos dezenas de ambulantes, dispostos a saciar a sede de milhares de baladeiros sedentos por diversão. É aí que a festa continua.
Logo, outros bares, um do lado do outro, recebem o insaciável público do samba recém encerrado. Estes se somam aos que vão chegando de outros lugares e, de repente, a rua Treze de Maio vira um point mais parecido com a configuração de um bloco de carnaval.
Paulo concorda com Namur. “Esse é um problema do psiu (a lei que determina limite de decibéis de acordo com o horário). Disseram que o psiu só trabalha até 22h porque não tem verba. Bem, eu acho que se tem esse problema, ele é do psiu, não dá para jogar em cima do Madeira de Lei.”
Em meados de julho deste ano, o grupo deu um passo adiante na luta pela continuidade do show musical. Lançou um abaixo-assinado. Nele, dizem: “nós, moradores, comerciantes e frequentadores do Samba da Treze assinamos o presente abaixo-assinado no sentido de que a manifestação cultural praticada pelo Grupo Madeira de Lei (…) não oferece perturbação do sossego, degradação da rua (…) tão pouco algazarra e brigas, portanto, não nos opomos à continuidade do mesmo.”
A movimentação política rendeu, entre outras manifestações de apoio, um Projeto de Lei, já em fase final de tramitação na Câmara Municipal de São Paulo, que torna o Samba da Treze Patrimônio Imaterial de capital paulistana. O projeto foi elaborado pelo vereador Toninho Vespoli (PSOL-SP). Em suas palavras, as “manifestações contrárias à festa se demonstraram um tanto preconceituosas.” O parlamentar diz que foi à roda de samba e que vê “o contrário do que afirmam: ali as pessoas transitam. Quando mais gente ocupando os espaços públicos, melhor. Fica muito mais perigoso quando a zona fica morta. O esvaziamento da cidade cria um ambiente propício para o perigo.”
O vereador quer criar um ambiente de diálogo que estimule o consenso na região e enxerga na proposta, “além da garantia do reconhecimento de uma cultura do samba em São Paulo, que já é patrimônio imaterial do Brasil (…) o fomento ao turismo”. Ele acredita que a ação do Ministério Público foi autoritária, na medida em que “parece que, logo no começo, o MP já tomou um lado. O órgão poderia ser o espaço para esse diálogo, mas infelizmente não senti essa disposição deles.” Para ele, “falta a prefeitura assumir a sua responsabilidade em implementar políticas culturais voltadas para a região.”
Em um cenário que parece um retrato de um tempo que se foi, as inúmeras disputas a céu aberto na esquina da Treze de Maio com a Conselheiro Carrão não deixam a desejar a nenhum roteiro da mais dramática novela das oito. Uma vez, o padre da igreja, depois de se envolver em brigas com bares vizinhos, chegou a ser ferido com uma faca.
Ninguém parece querer falar baixo enquanto o samba toca, “sem arredar o pé”, como diz Namur. Camadas de história, afeto e ressentimento podem ser encontradas ali, na mesma esquina de sempre. A vida, naquele lugar, tem ritmo negro e cheiro de focaccia. Enquanto leis tramitam, cantineiros se revoltam e o poder público se contorce diante do nó cultural, oito cadeiras e um som precário são suficientes para puxar os milhares que, todas as sextas-feiras, esperam o início do primeiro batuque para espantar os fantasmas da semana. Namur profetiza: “É tradição, o samba continua.”
Dia 15 de setembro teve início a primeira ativação da galeria Reocupa com a exposição “O que não é floresta é prisão política”, no saguão do antigo prédio abandonado pelo Estado, onde um dia funcionou a sede do INSS,em São Paulo.
O lugar que o Estado abandonou hoje está cheio de vida, uma vida diversa e pulsante conhecida por Ocupação 9 de Julho, organizada e revitalizada pelo Movimento dos Sem Teto do Centro (MSTC). Além de abrigar 140 famílias, é um ponto cultural, por onde circulam diversos grupos de artistas, que mobilizam muitos eventos e atividades, construídas coletivamente e em parceria com moradores e lideranças.
Assim é também a galeria Reocupa, que se faz através de trocas e convívios entre essa rede. A Cozinha da Ocupação 9 de Julho, se tornou um evento imperdível, que acontecesse uma vez por mês, que além promover oficinas culinárias, serve almoços e acontecem diversos tipos de eventos e shows. Mais informações em: https://www.facebook.com/cozinhaocupacao9dejulho/
Uma potente floresta
O que não é floresta é prisão política inaugura o espaço com trabalhos de mais de 60 artistas brasileiras e brasileiros, numa lista em composição que hoje conta com 93 convidadas e convidados. Por isso, não há uma data limite para encerramento da exposição, que será ativada em eventos programados para acontecer a cada semana, continuamente.
fotos Fernando Sato
Quando o coletivo de artistas começou a construir a exposição, ainda não tinham no horizonte os incêndios na Floresta Amazônica, tampouco as notícias dos mandados de prisão das lideranças dos movimentos por moradia, “mas intuíamos que o inaceitável se aproximava”.
O que não é floresta é prisão política é uma mostra que nasce neste contexto. É um processo em curso que, como uma floresta, não se fecha e se realiza de forma colaborativa. Há uma partilha coletiva, múltipla, que toma de empréstimo a imagem da floresta para compor arranjos que se contaminam entre si, mesmo diante das diversas práticas de cada participante dessa exposição. Assim, não há uma hierarquia na montagem nem na seleção das obras, mas sim a intenção de construir um sentido sensível, livre, para esse espaço expositivo da Ocupação 9 de Julho, a Galeria Reocupa.
Foto Fernando Sato
Acompanhe a programação e próximas ativações semanais da mostra O que não é floresta é prisão política pelas páginas:
Galeria Reocupa / Ocupação 9 de Julho / MSTC, fica na Rua Álvaro de Carvalho, 427.
Mais sobre a Ocupação 9 de Julho
Localizada no centro de São Paulo, na Bela Vista, o prédio da Ocupação 9 de julho representa um marco de luta por moradia social no Centro, e importante ponto cultural da cidade. O MSTC realizou um esforço pela valorização do prédio, acondicionando os espaços não só às necessidades dos moradores e o cumprimento da normativa vigente, quanto a sua adequação para dar espaço a uma quadra esportiva, horta comunitária, biblioteca e brinquedoteca, marcenaria, além de uma cozinha coletiva. Esses espaços e a gestão coletiva deles fazem com que a Ocupação 9 de Julho torne-se um exemplo de equipamento cultural – bem ali onde poderia existir o escuro e a invisibilidade, o apagamento e o silêncio, há a reabilitação da voz, da vida e dos afetos através da expressão artística e simbólica para a construção de um mundo possível.
O pedido de reintegração de posse do antigo prédio do INSS na Avenida 9 de Julho, onde hoje fica a Ocupação 9 de Julho, do Movimento Sem Teto do Centro (MSTC), foi extinto pela 14ª Vara Cível Federal de São Paulo, no dia 15/07.
Após o pedido para a reintegração ter sido realizado pelo INSS (Instituto Nacional de Seguridade Social) o movimento dos ocupantes recorreu. Durante o processo a posse do imóvel passou para o IPREM (Instituto de Previdência Municipal) que foi intimando duas vezes a se manifestar, mas não respondeu as intimações.
Enquanto o processo corria na Justiça a ocupação se tornou um polo cultural na região central, sendo diversas vezes palco de encontros de artistas e acadêmicos.
A 14ª Vara resolveu, após a falta do proprietário atual, que “caracterizada a carência de ação por ausência de interesse de agir e legitimidade supervenientes e JULGO EXTINTO o processo”. Na decisão ainda afirma que “o interesse de agir corresponde à necessidade e utilidade da via judicial como forma de obter a declaração jurisdicional do direito aplicável ao caso concreto litigioso. Esse interesse de agir deve existir não somente quando da propositura da ação, mas durante todo o transcurso da mesma”, reforçando a falta de interesse do IPREM em se pronunciar no pedido.
Decisão que arquiva o pedido
Decisão que arquiva o pedido
Decisão que arquiva o pedido
PRISÕES
Quatro lideranças de movimentos de moradia de São Paulo foram presas no dia 24 de junho sem que houvessem provas. Ednalva Silva Franco Pereira e Angélica dos Santos Lima (do Movimento de Moradia para Todos), e Sidney Ferreira Silva e Janice Ferreira Silva (a Preta Ferreira), do Movimento dos Sem Teto do Centro (MSTC) estão há 23 dias em prisão preventiva.
As prisões de outras cinco pessoas, entre elas Carmen Silva Ferreira, a protagonista do filme “Era o Hotel Cambridge” (2016), também foram pedidas e concedidas pelo juiz Marco Antônio Martin Vargas, que autorizou ainda buscas e apreensões em endereços de 17 dirigentes de movimentos. Todos os alvos dos mandados de prisão e de busca e apreensão, segundo a polícia, são suspeitos de associação criminosa e extorsão, por cobrarem “aluguéis” entre R$ 200 e R$ 400 nas ocupações que coordenam.
A investigação que levou às prisões foi uma resposta à tragédia ocorrida no dia 1º de maio de 2018, quando o edifício Wilton Paes de Almeida, ocupado por pobres sem teto, acabou consumido por um incêndio e desabou, deixando nove mortos. Ananias Pereira dos Santos, alvo de mandado de prisão ainda não cumprido, era coordenador do MLSM (Movimento de Luta Social por Moradia), que comandava a ocupação no Wilton Paes.
Prisão de lideranças pretas e pobres, baseada em acusações sem provas, sabe-se, é parte da herança escravocrata do Brasil e de um sistema de Justiça que nasceu para naturalizar a obscena exploração de negros e índios escravizados. Mas, neste caso, a perseguição não se deu ao trabalho nem ao menos de honrar os frufrus do discurso jurídico, que sempre ocultam natureza racista dos operadores do Direito neste país.
Na última sexta-feira, dia 11 de julho, o promotor de justiça criminal Cassio Roberto Conserino, do Ministério Público do Estado de São Paulo, denunciou à Justiça que 19 diferentes lideranças ou membros de movimentos de luta por moradia, entre os quais Carmen Silva Ferreira e Preta Ferreira, do Movimento dos Sem-Teto do Centro (MSTC), fazem parte de uma suposta “organização criminosa”, inclusive com ligações com a facção PCC. Não dava para esperar nada diferente de Conserino.
Em documento sigiloso a que os Jornalistas Livres tiveram acesso, o promotor afirma que os membros das diversas ocupações da cidade “associaram-se entre si” de maneira ordenada, em vários grupos, com divisão de tarefas, ainda que informalmente, “com o objetivo de obter direta e indiretamente vantagens de cunho econômico, mediante a prática de incontáveis extorsões”.
Cassio Roberto Conserino, autor da denúncia, foi um dos promotores que apresentaram a denúncia criminal sobre o tríplex atribuído ao ex-presidente Lula, transformando-o em réu. Anticomunista militante, em março desse ano, Conserino foi condenado a pagar indenização de R$ 60 mil por danos morais a Lula por causa de um post no Facebook em que se referia ao ex-presidente como “encantador de burros”, expressão que o juiz Anderson Fabrício da Cruz, da 3ª Vara Cível de São Bernardo do Campo, em São Paulo, disse tratar-se “de conteúdo ofensivo, pejorativo e injuriante”, conforme “deveria ser do conhecimento de um experiente integrante do sistema de Justiça”.
No caso dos movimentos de moradia, o promotor Conserino baseou a denúncia no inquérito policial que tinha como propósito investigar responsabilidades pelo incêndio e desabamento do edifício Wilton Paes de Almeida, ocupado por pessoas sem casa, no dia 1º de maio de 2018. Na tragédia, sete pessoas perderam a vida. O Movimento de Luta Social por Moradia (MLSM), dirigido por Ananias Pereira dos Santos, era quem coordenava aquela ocupação.
O problema é que o inquérito policial e depois a denúncia do promotor Conserino, em vez de apurar as irregularidades que por ventura existissem no prédio sinistrado, resolveram mover uma cruzada contra todos os movimentos de moradia que atuam no centro da cidade de São Paulo.
Estariam a serviço da especulação imobiliária? Dos proprietários de imóveis vazios que ficam anos e anos sem pagar IPTU, cheios de lixo, focos da criminalidade, de ratos e doenças?
Conserino denuncia várias lideranças, entre as quais, como dito acima, as lideranças do MSTC (Movimento dos Sem-Teto do Centro), por supostamente extorquir, mediante violência, moradores pobres das ocupações. Se pelo menos tivesse se dado ao trabalho de andar alguns quarteirões entre o Fórum e a Ocupação 9 de Julho, dirigida por Carmen Silva Ferreira, o Promotor Anticomunista Militante Conserino teria se surpreendido com a organização, a limpeza, a habitabilidade de um prédio que até três anos atrás era apenas um depósito de lixo, doenças e ratos (fora os dependentes químicos que utilizavam o local para consumir drogas).
O prédio já foi inspecionado pela Prefeitura e até premiado internacionalmente por sua atuação na solução do problema de moradia em São Paulo. Mas, para o Promotor Anticomunista Militante Conserino, todos os gestores e movimentos seriam, como diz o povo, “farinha do mesmo saco”.
Depoimento de Chucre sobre Carmen
Ocorre que os movimentos populares por moradia são diversos. O secretário de habitação de São Paulo, Fernando Chucre, sabe disso. À época do incêndio do Wilton Paes, por exemplo, declarou que aquele grupo que o coordenava “não participa da política habitacional, como os demais movimentos que, inclusive, são parte da solução desse problema”. E na semana passada, em depoimento aos Jornalistas Livres, afirmou sobre Carmen Silva: “Ela é uma mulher extremamente segura e envolvida com o movimento que administra. Eu tenho muito respeito por ela.” E não só.
Chucre apontou que “o movimento de Carmen conseguiu o retrofit [reforma de imóvel antigo] para o Hotel Cambridge”. De fato, agora renomeado como Residencial Cambridge, o imóvel ganhou edital para financiamento da Caixa Econômica Federal, dentro do programa Minha Casa Minha Vida-Entidades. A obra segue sob severas e constantes fiscalizações do poder público. Importante dizer: ao contrário do que imaginam os críticos dos movimentos sociais por moradia, nada vem de graça. Todos os futuros moradores vão pagar pelo financiamento que, por sinal, já colabora com os impostos da cidade ao arcar com custos de IPTU, o Imposto Predial e Territorial Urbano.
DEPOIMENTOS ANÔNIMOS
A denúncia do Promotor Anticomunista Militante Conserino é baseada em depoimentos anônimos e interceptações telefônicas que, coisa gravíssima, provam que havia discussões entre vizinhos! É isso o que o promotor cita à guisa de provar que todos os dirigentes dos movimentos de moradia extorquem dinheiro dos moradores “mediante grave ameaça e com o intuito de obter para si indevida vantagem econômica, a fazer alguma coisa, ou seja, pagar alugueres e outras verbas para entrar e permanecer em edifícios invadidos pelos grupos criminosos”. Carmen Silva Ferreira já foi acusada desse mesmo crime e foi inocentada em 2018, porque ficou comprovado que as pequenas contribuições pagas pelos moradores das ocupações que ela dirige (R$ 200 por mês de cada família) são revertidas em melhorias nos imóveis ocupados.
Além disso, a denúncia do Promotor Anticomunista Militante Conserino padece do vício de ser in-in (incompetente e inventiva). Por exemplo, diz que as ocupações são habitadas por “estrangeiros em sua maioria”, um erro crasso, sanável com meia hora de trabalho sério. Acusa o movimento de Carmen Silva Ferreira, o MSTC, de estar por detrás da ocupação do Cine Marrocos, fechada em 2016 depois de se terem encontrado armas e drogas no poço do elevador. Ali quem atuava era o Movimento Sem Teto de São Paulo (MSTS), mas a letrinha dissonante não incomodou o Promotor Anticomunista Militante Conserino. Carmen nunca nem sequer pôs os pés no Cine Marrocos. Se tivesse conversado com o delegado de polícia que atuou no Cine Marrocos e assina o inquérito sobre a moradia, o Promotor Anticomunista Militante Conserino teria evitado o vexame de confundir movimentos tão diferentes (ou será que esse é mesmo o propósito?). E há várias mentiras como essa na acusação, revelando, mais uma vez, o caráter persecutório das denúncias do Promotor Anticomunista Militante Cassio Conserino.
Entre as 19 prisões pedidas pelo promotor, quatro já estão sendo cumpridas: a da cantora, atriz e produtora cultural Preta Ferreira, formada em publicidade, do educador Sidney Ferreira, ambos do MSTC, e de Ednalva Silva Franco Pereira e Angélica dos Santos Lima, do Movimento de Moradia para Todos (MMPT). Todos negros e pobres.
Para comentar a denúncia do Promotor Anticomunista Militante Conserino, Jornalistas Livres entrevistaram Lúcio França, advogado que representa Carmen Silva, Preta Ferreira e Sidney Ferreira, do Movimento dos Sem-Teto do Centro.
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Jornalistas Livres — O senhor poderia comentar a denúncia contra Carmen Silva Ferreira e seus filhos, Preta Ferreira e Sidney Ferreira, do Movimento dos Sem Teto do Centro (MSTC), apresentada no dia 3 de julho na segunda promotoria de Justiça Criminal Ministério Público pelo promotor Cassio Conserino?
Doutor Lúcio França — É muito importante ir um pouquinho mais atrás, onde começou tudo isso. Houve um processo com as mesmas acusações contra Carmem Silva Ferreira em 2017. Nesse processo, houve uma investigação sobre esses mesmos fatos agora descritos na atual denúncia do promotor Cassio Conserino. Ou seja, investigou-se se Carmem Silva Ferreira cometeu atos de extorsão, cobranças indevidas, se ameaçou ou coagiu moradores das ocupações. Ficou comprovado que isso nunca existiu. Quando uma pessoa entra no movimento dirigido por Carmen, ela é orientada sobre as regras de conduta, os regulamentos e os procedimentos internos das ocupações dirigidas pelo MSTC. Por exemplo: não se admite violência doméstica de nenhuma forma; mães não podem deixar seus filhos trancados no apartamento e sair para trabalhar ou se divertir; todas as crianças são obrigadas a frequentar escolas; não se pode consumir drogas na ocupação; tráfico, nem pensar. As contribuições para a manutenção do prédio são decididas em assembléias e todas as famílias devem colaborar ou justificar eventuais faltas; há uma escala de limpeza dos andares e todas as famílias precisam contribuir com a higiene do espaço comum, e por aí vai. No processo que se iniciou em 2017, tudo isso foi juntado, e Carmen Silva Ferreira foi inocentada. Estamos assistindo agora a uma reedição daquele processo que ocorreu em 2017 e a denúncia atual do promotor de justiça Cassio Conserino cita “coincidentemente” contra a Carmen as mesmas testemunhas acusadoras que foram desqualificadas no processo que resultou na absolvição da liderança do MSTC.
Jornalistas Livres — Quem são essas pessoas que acusam Carmen?
Doutor Lúcio França — São dissidentes do MSTC, o movimento dos sem-teto do centro. São pessoas que queriam ocupar o lugar da principal dirigente do movimento, que nutriam por ela uma profunda inveja da liderança que ela conquistou com o movimento, e que se ligaram a pessoas inidôneas para acusá-la. É importante falar que Carmen é a liderança principal da Ocupação que se instalou no antigo Hotel Cambridge e que agora se encontra em fase de reforma para ser transformado moradia de interesse social, isso tudo com o financiamento da Caixa Econômica Federal. A história desse movimento de moradia acabou transformada no filme da premiadíssima diretora Eliane Caffé, “Era o Hotel Cambridge”, de 2016.
Jornalistas Livres — Como o senhor avalia a prisão temporária pedida para Carmen Silva Ferreira e a prisão preventiva de seus filhos, Preta Ferreira e Sidney Ferreira Silva?
Doutor Lúcio França — É importante ressaltar que o promotor que atuou no primeiro processo chegou a pedir a prisão de Carmen por três vezes na primeira instância e foi recusado. Ele então foi à segunda instância e os desembargadores por unanimidade recusaram-se a prendê-la. Ao final, viu-se que a prisão não cabia mesmo, já que ficou comprovada a inocência de Carmen e ela foi absolvida. Quanto aos demais acusados do MSTC, os filhos de Carmen —Preta Ferreira e Sidney Ferreira—, é preciso dizer que Sidney nem mora mais em ocupações, tendo fixado residência em outra cidade na região metropolitana de São Paulo. Quanto a Preta Ferreira, ela nunca fez qualquer ameaça contra qualquer pessoa, morador de ocupação ou não. As pessoas que disseram terem sido ameaçadas por Preta estão mentindo e sabem disso. Aliás, na verdade, é bem o contrário o que se passou. Foi Preta Ferreira quem foi ameaçada, bem como toda a família de Carmen, por essa denunciante.
Jornalistas Livres — Como se chegou, então, a essas prisões?
Doutor Lúcio França — A nossa leitura é a seguinte: no meio desse primeiro processo contra a Carmen ocorreu a tragédia com o edifício Wilton Paes de Almeida (1º de maio de 2018), no Largo do Paissandu, centro de São Paulo. Trata-se de um antigo prédio da Polícia Federal que ficou abandonado por anos e acabou ocupado. Essa ocupação, entretanto, nunca fez parte do MSTC (Movimento dos Sem Teto do Centro), mas sim de um tal Movimento de Luta Social por Moradia (MLSM), coordenado e dirigido por uma pessoa de nome Ananias Pereira dos Santos. São movimentos absolutamente distintos. Mas, a partir do desabamento e da tragédia Wilton Paes de Almeida, onde morreram sete pessoas, foi instaurado inquérito para apurar as responsabilidades. Era isso mesmo o que deveria ser feito. O problema foi aproveitarem-se da tragédia para prejudicar Carmem e outras lideranças idôneas e honestas do movimento de moradia. A polícia em primeiro lugar e o promotor, logo depois, colocaram todos os movimentos que atuam no centro na mesma vala comum da criminalidade. Trata-se de uma clara manipulação, já que Carmen Silva Ferreira é uma liderança reconhecida nacional e internacionalmente. Agora mesmo, é uma das convidadas da Bienal de Arquitetura de Chicago (EUA), o que mostra seu prestígio internacional. No ano passado, a Bienal de Veneza instalou-se na Ocupação Nove de Julho, dirigida por Carmen, exatamente por tê-la como modelo de intervenção urbana levada a cabo com o movimento social. Carmem dá palestras no Brasil e no mundo inteiro sobre direitos humanos e o Direito à Cidade. Enfim este é o trabalho dela, que foi muito bem explicado no primeiro processo, aquele do qual ela saiu absolvida. O juiz que decidiu pela absolvição desqualificou assim as testemunhas mentirosas que visavam colar na pessoa de Carmem a pecha de alguém que extorque, ameaça e constrange pessoas. Uma mentira completa.
Jornalistas Livres — Fiquemos no caso de Carmen Silva Ferreira: como é possível que ela esteja sendo acusada novamente de cometer delitos pelos quais ela já foi processada e julgada inocente?
Doutor Lúcio França — Quanto ao fato de Carmen estar sendo acusada pelos mesmos crimes pelos quais já foi absolvida do primeiro processo, isso configura-se uma clara ilegalidade. O princípio non bis in idem (não repetir sobre o mesmo) estabelece que ninguém pode ser julgado duas vezes pelo mesmo fato delituoso. O bis in idem no direito penal seria a não observância desse princípio, acusando e julgando uma pessoa pelo mesmo crime.
Jornalistas Livres — E por que isso está ocorrendo?
Doutor Lúcio França — Isso se deve ao fato de que as acusações contra Carmem e filhos são acusações políticas, típicas de ditaduras. Por exemplo, isso ocorreu no Brasil durante a ditadura militar entre 1964 e 1985. Caetano Veloso e Gilberto Gil, para ficar em dois casos apenas, foram presos em São Paulo aqui na região da Praça da República pelo pessoal do Segundo Exército. Eles perguntaram por que estavam sendo presos, mas só ficaram sabendo anos depois que contra eles pesava a acusação de terem pego uma bandeira do Brasil e escrito, no lugar do Ordem e Progresso, a frase do [pintor, escultor, artista plástico e performático] Hélio Oiticica “Seja marginal, seja herói”. A acusação, portanto, seria eles terem “ultrajado a bandeira nacional”. Um mero pretexto. Foi esse o motivo alegado para a prisão de oito meses incomunicáveis, ao fim dos quais Gil e Caetano foram obrigados a se exilarem em Londres. Então, é assim que nós temos hoje gente disposta a criar fatos ficcionais para acusar pessoas honestas, abrir um processo, destruindo vidas e reputações. Carmen teve a sorte de encontrar um juiz justo na primeira vez, alguém que analisou as provas e decidiu pela sua absolvição.
Jornalistas Livres — Como o senhor avalia o fato de terem sido decretadas as prisões de várias lideranças de moradia, entre os quais Sidney e Preta? Como é possível que a prisão de Carmen tenha sido pedida e concedida por um juiz se antes, mediante as mesmas provas e as mesmas testemunhas, a prisão dela foi recusada por três vezes e depois também recusada na segunda instância?
Doutor Lúcio França — Agora, chegaram de repente e decretaram a prisão de Carmen. Não poderia ser assim. Por que não houve flagrante, nenhuma acusação grave envolvendo a figura dela. Quando houve a queda do Wilton Paes de Almeida, todas as lideranças do movimento de moradia começaram a ser chamadas à polícia para serem ouvidas. Eu mesmo fui com a Carmen e ela deu todas as explicações pedidas a respeito de seu movimento, o MSTC. Ou seja, ela já foi ouvida. Preta, também. Então, não houve obstrução da Justiça não houve fuga. Carmen e seus filhos, que têm endereço domiciliar e trabalho conhecido, se apresentaram com a cabeça erguida para fornecer todas as explicações pedidas pela autoridade policial. Tudo estava correndo em segredo de Justiça, mas –estranhamente— há três meses essas prisões foram anunciadas no programa “Fantástico” da TV Globo. Como é que é um canal de televisão, num programa de domingo, uma das maiores audiências, anuncia que haverá prisões dois meses depois? Trata-se de uma coisa montada. Trata-se de uma questão política porque querem criminalizar as lideranças da luta por moradia digna na cidade de São Paulo. O objetivo é depois acabar com os próprios movimentos de moradia.
Jornalistas Livres — Isso não se configura numa terrível forma de violência do Estado contra pessoas pretas pobres?
Doutor Lúcio França — Sim é uma violência de Estado. A filha de Carmem, Preta Ferreira, estava iniciando uma carreira como cantora, atuava como atriz e produtora cultural. Ela, de repente, foi arrancada de seu trabalho e de sua vida e colocada atrás das grades por uma denúncia absolutamente vazia. Isso é uma violação de direitos. O mesmo ocorre com Sidney. Mas não podemos generalizar. O próprio judiciário de São Paulo já absolveu Carmen uma vez antes. Hoje, estamos vivendo retrocesso muito grande em todo o país e sabemos que judiciário é muito conservador em sua maioria. Mas, “nem todas as mães são Marias e nem todos os juízes são iguais”.
Jornalistas Livres — O movimento por moradia começou a se organizar na época do ex-governador de São Paulo, Paulo Maluf, um homem de direita. Mas nem mesmo Maluf pedia a prisão das lideranças que lutavam por moradia digna. Maluf era contra a luta por moradia e pedia a reintegração de posse, mas nunca ousou prender lideranças por serem lideranças…
Doutor Lúcio França — É por isso que nós consideramos as prisões de Carmen, Preta e Sidney como prisões políticas. São prisões de pessoas primárias, sem antecedentes criminais, com endereços e trabalhos conhecidos, que não têm envolvimento criminal algum, muito menos com crime organizado, como eles querem fazer crer. São prisões totalmente políticas. Nós acreditamos na inocência de Carmen Silva Ferreira, de Preta Ferreira e de Sidney Ferreira. Pela vida que eles têm, por tudo que eles fazem pela população mais pobre da cidade de São Paulo, até sacrificando suas vidas pessoais em função de uma causa.
Jornalistas Livres — Cassio Conserino, o promotor que denuncia agora as lideranças de moradia é o mesmo promotor que, em 2016, queria denunciar Lula na investigação do tríplex do Guarujá, que usou as redes sociais para chamar o ex-presidente de ‘encantador de burros’ e que acabou condenado a a pagar indenização de R$ 60 mil a Lula por danos morais. É coincidência o fato de, de repente, um promotor anticomunista militante seja alçado à condição de promotor de Justiça em um caso como este?
Doutor Lúcio França — Não só ele fez isso como convocou alguns promotores fazer uma manifestação contra Lula e Dilma dentro do Fórum. O promotor de justiça tem que ser isento. Por isso, ele é “promotor de justiça”. Este é o nome do cargo dele. Ele não é um “promotor de acusação”. Ele tem que ser isento assim como o juiz. Tem que ser técnico. Mas, aqui, estamos vendo que a questão política está acima da técnica. Isso é gravíssimo. É uma usurpação do estado de direito.
Jornalistas Livres — O senhor esteve hoje com a Preta Ferreira no presídio feminino de Santana. Como está a Preta?
Doutor Lúcio França — Ao contrário do que imaginávamos, ela não está abatida. Está muito firme, com a serenidade de quem sabe da sua inocência. Preta nos disse que agora está muito mais consciente da luta que terá de travar quando sair da prisão. Da sua luta como negra, mulher e artista ligada ao movimento social. Está lendo muito e ficou bastante emocionada quando soube que o ex-presidente Lula lhe enviou uma carta de solidariedade. Ela não sabia disso ainda.
Nos últimos 20 dias os Jornalistas Livres montaram sua base no prédio do antigo INSS, região central de São Paulo, que foi tomado por 200 famílias. Na Ocupação 9 de Julho vivem há dois anos quase 450 mulheres, homens, crianças, velhos e adolescentes. São alegres, organizados e resilientes. Acolhidos por eles, trabalhamos em uma sala ampla que virou estúdio e redação. Durante 280 horas produzimos conteúdos sobre as eleições, pautando a cobertura da campanha de Fernando Haddad que a velha mídia e a mídia servil não enxergaram. Não havia lugar melhor para ouvir o nome do próximo presidente do Brasil, Jair Bolsonaro.
Primeiro, as pessoas choraram diante de um telão onde acompanhavam a apuração. Não demorou para a decepção dar lugar ao consolo. E à resistência. Todos se juntaram no pátio, onde acontecia uma festa que comemorava o aniversário da ocupação e a democracia. “Dona Carmen vai falar, arrumem um lugar para ela subir”, diz um morador. Apareceu uma cadeira de plástico. Carmen da Silva Ferreira, 58 anos, oito filhos, é líder da comunidade ligada ao MSTC, e pode ser considerada o retrato da força bruta, terna e teimosa da mulher brasileira que nunca se deixa deter. Seu primeiro endereço na capital paulista foi a rua. Veio da Bahia, escapando da violência doméstica, e logo aprendeu a organizar as pessoas que sofrem como ela.
Foi importante estar ali para receber o resultado das eleições. Fernando Haddad e Manuela terminaram vitoriosos pela campanha que fizeram, pelos 47.038.966 de votos que obtiveram. O fim não é hoje.
Ouvir Carmen é restaurador: “Estamos vivendo o retrocesso no Brasil. Mas não vamos cair no retrocesso deles. Faremos nossa resistência, como sempre fizemos. Não é com arma, como o senhor Bolsonaro declarou. Vai ser com a voz, com o canto. Vai ser com amor, porque somos uma família. Aqui está a verdadeira família, a que ama independentemente de classe, de cor, de sexualidade. E vamos mostrar que ele vai ter que nos exterminar, porque a nação é feita de 80% de pessoas que trabalham duro, como nós. Tudo tem sido difícil, nada para nós veio de graça.”
Carmen sentiu-se mal e desmaiou. Sua filha Preta Ferreira, 32 anos, tomou a palavra: “Nada mudou. Um vai cair, o outro se levanta. Mataram Marielle, o mestre Moa e nós estamos aqui”. A emoção tomou conta das pessoas, mas elas continuaram atentas. Preta afirmou: “Que sirva de lição. Quem não escutou: ‘Cuidado’, agora vai ouvir: ‘Coitado”. Ela sugeriu que ficassem unidos e que entendessem que a minoria, na verdade, é a maioria. “Ninguém vai anular nossa existência. A gente vai combater o mal com amor.” Palavras de ordem foram lembradas: “O povo unido jamais será vencido”, “Lula Livre”, “Aqui está o povo sem medo de lutar”, “Quem não luta tá morto”… Alguém gritou: “Nós seremos a maior oposição que o Brasil já viu”.
Dona Carmen, recuperada do mal-estar, volta a discursar: “Eles estão achando que vamos sair por aí depredando. Temos sabedoria. Não vão tirar nossa inteligência. Vamos reformar os quilombos, andar de mãos dadas, mostrar que somos um povo legítimo.”
Preta Ferreira ao centro. Foto Christian Braga Jornalistas Livres
Foram de muito aprendizado os 20 dias que passamos na ocupação, comendo na cozinha onde Sheila, uma moradora, preparava arroz, feijão com louro e outras comidas de sabor inesquecível. Bolsonaro terá que ser o presidente de Sheila, Carmen, Preta, de um povo que não aceita mais o anonimato, a exclusão, que saiu do armário, que não se envergonha de ser negro, que chegou à universidade, aprendeu a lutar por moradia. Um povo que se levanta, como disse Preta, de qualquer adversidade, da derrota política.
Os 20 dias de cobertura vão ficar na memória do público que carinhosamente nos acompanhou e acreditou na verdade das nossas publicações. Os Jornalistas Livres vão guardar para sempre a acolhida na Ocupação. E a história da comunicação no Brasil tem um novo capítulo sobre a guerrilha travada para furar bloqueios e registrar a mais difícil campanha da esquerda depois da redemocratização do país. Cada jornalista livre vai para a casa agradecendo o banho de cidadania e coragem que tomou aqui. Salve Dona Carmen, que deu o rumo para a resistência sábia que teremos de fazer. Sem afastar um milímetro da defesa das conquistas que tivemos até aqui. E, se prevalecer entre nós o espírito dos moradores da Ocupação 9 de Julho, vamos erguer a cabeça e encarar o que vem por aí.
Assista o vídeo do depoimento de Carmen da Silva Ferreira.
Patrícia Zaidan é autora do texto, que traduziu o sentimento de todos nós, Jornalistas Livres.