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  • O show de Trump: renovação ou cancelamento?

    O show de Trump: renovação ou cancelamento?

    Nos EUA voto popular não significa vitória. Biden terá mais votos do que Trump e ainda assim o resultado da eleição continuará indefinido por algum tempo. Apesar dos descalabros que marcaram a gestão Trump antes e durante a pandemia, o seu desempenho na atual corrida eleitoral será muito forte.

    Mateus Pereira, Valdei Araujo e Walderez Ramalho, professores da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) em Mariana, MG

    A disputa está sendo muito mais acirrada do que era inicialmente previsto pela maior parte dos institutos de pesquisa e da mídia americana, embora a cautela e o medo nunca deixaram de estar presentes. Sob esse ponto de vista, as eleições deste ano são como uma repetição do que vimos em 2016, ainda que o resultado possa ser a derrota eleitoral para Trump. Em 2016 foram os democratas que denunciaram a interferência russa, agora é o presidente-agitador que se apressa em questionar a legitimidade do pleito, sem mostrar nenhuma prova. Sabemos que no ambiente do atualismo provas têm como base apenas convicções.

    Um sistema eleitoral que sobreviveu por séculos, sem grandes mudanças, pode ter se tornado obsoleto desde a eleição de Bush, em 2000. Um lembrete do possível declínio da democracia americana: das últimas oito eleições presidenciais desde 1992, os democratas venceram no voto popular as últimas sete, mas em apenas quatro ocasiões ganharam o colégio eleitoral e fizeram o presidente.

    Acreditamos que as eleições nos EUA são um exemplo do confronto entre duas estratégias e duas concepções sobre fazer política: de um lado, Trump e sua promessa de eterna atualização da atualidade em modo nostálgico; e Biden, com sua aposta moderada no cansaço na agitação atualista que seu adversário republicano encarna e radicaliza, e a retomada da política em moldes liberais. Essa retomada é feita sem uma crítica efetiva ao modelo neoliberal abraçado pela cúpula do partido democrata. Uma aposta radical, como Sanders, teria se saído melhor? É difícil dizer, mas tudo leva a crer que não, tendo em vista o complicado xadrez do voto estado a estado.

    A escolha entre as duas estratégias/concepções se mostrou muito mais difícil e apertada do que se imaginava. A tal “onda azul” anunciada por parte da imprensa estadunidense esteve longe de acontecer. De fato, Trump se mostrou eleitoralmente muito mais forte do que os analistas supunham. Considerando que esta não é a primeira vez que os institutos de pesquisa falharam em captar esse movimento no eleitorado americano, e considerando também que fenômeno semelhante ocorreu no Brasil em 2018, coloca-se a questão de saber se as tradicionais pesquisas de opinião tornaram-se de alguma forma obsoletas em um mundo atualista. Esse quadro muda pouco, mesmo com uma  eventual vitória de Biden ou pior, com uma inconveniente reeleição de Trump.

    São vários fatores que devem ser considerados para avaliar essa questão. Os próprios institutos se apressaram a ensaiar algumas explicações ao público. O diretor da Trafalgar Group, Robert Cahaly, afirmou que muitos eleitores “esconderam”, como já havia acontecido, sua preferência por Trump por algum receio ou constrangimento social.[1] Não podemos desconsiderar algum tipo de boicote/sabotagem dos eleitores republicanos, já que na retórica do trumpismo as pesquisas de opinião fazem parte da mídia vendida. Outros recorreram à justificativa de que as pesquisas anteriores representavam apenas fotografias do momento específico em que as entrevistas foram feitas, e não o que se poderia esperar na eleição propriamente dita. Isso poderia ter sido de fato observado pela tendência de redução da vantagem de Biden nos últimos 15 dias. Afinal, o episódio da contaminação de Trump e sua rápida recuperação pode ter tido um saldo positivo, ao menos na mobilização de sua base, como já havíamos especulado em coluna anterior.

    Aceite-se ou não essas justificativas, fato é que os institutos de pesquisa sairão dessas eleições com sua credibilidade e imagem pública mais arranhadas, sobretudo diante das especificidades do sistema eleitoral americano. Como afirmamos, muitos fatores concorrem para esse desgaste. Um deles está relacionado à condição atualista que caracteriza o nosso presente e como cada um dos candidatos se coloca frente a tal condição.

    Trump é um político bastante sintonizado com o ambiente da comunicação atualista onde as provas dispensam comprovação factual. Seja nas redes sociais, seja em seus concorridos comícios, o presidente se revela um comunicador difícil de ser batido. Dentre os aspectos associados à condição atualista, destacamos a intensidade e velocidade sem precedentes do fluxo de notícias, em detrimento dos protocolos de verificação e checagem da informação veiculada. Esse ambiente infodêmico[2] é particularmente fértil para a produção de desinformação e sua disseminação como misinformação.[3] Além das informações imprecisas, para não dizer apenas falsas, que a infodemia trumpista ajuda a difundir, é preciso levar em consideração a agitação/ativação que produz. É como se a oposição se agitasse confusamente e a base trumpista se ativasse a cada um de seus comentários polêmicos. Assim, o uso constante das redes sociais para disseminar fake news ou comentários faz com que, seja de modo positivo ou negativo, o presidente esteja sempre no foco da mídia. O acúmulo de notícias sobre suas falas ou atos inconsequentes faz com que seja difícil recuperar qual foi o absurdo dito ou feito na semana anterior. Na condição atualista há um valor excepcional em estar mais atualizado (e exposto) que o seu adversário. 

    Ainda assim, a manipulação das fake news como ferramenta política supõe uma linguagem organizada para se tornar eficaz. Essa afirmação pode soar chocante à primeira vista: como podemos atribuir coerência a um discurso fundamentado em desinformação e que frequentemente e sem o menor pudor afirma hoje o contrário do que disse ontem, como o exemplo do uso de máscaras na pandemia?[4] O ponto aqui é que a condição atualista coloca muitos obstáculos para que o passado, mesmo o mais recente, seja trazido à reflexão. Assim, quando confrontados com suas próprias contradições, políticos atualistas como Trump e Bolsonaro simplesmente atualizam suas narrativas e afirmações quando as anteriores se tornam insustentáveis. Com muita frequência, os seus discursos mudam em função da conveniência da atualidade, sem a mínima necessidade de se prestar conta da contradição com o que eles mesmos diziam no dia anterior.

    Essa estrutura atualista do discurso político só se torna eficaz, porém, no interior de uma linguagem organizada e facilmente identificável pelo público que a compartilha, no interior de uma condição material de reorganização do mundo do trabalho e do capital. A crise de 2008, concentração de renda, neoliberalismo, capitalismo de vigilância e a formação do atual “precariado” são elementos, dentre outros, fundamentais para entender a emergência de líderes que governam e são eleitos por pequenas maiorias mobilizadas pela historicidade e ideologia atualista. Só assim podemos entender a força de Trump na eleição independente do resultado final, ainda que sua derrota  interesse a todos os democratas do mundo.

    Trump lança mão de artifícios retóricos quando confrontado com suas afirmações evidentemente baseadas em mentiras e contradições, de tal maneira que ele consegue, mesmo em tais situações, transmitir e reforçar o código entre o seu público. O código se estrutura em uma lógica antagonista, na qual o portador é sempre vítima de perseguição por parte do establishment e da imprensa vendida para a “esquerda corrupta” ou as corporações globalistas.

    O ponto principal a ser considerado é que para ser politicamente eficaz não é necessário que o código seja compartilhado por todos; mas que seja continuamente ativado junto aqueles que já o compartilham. Por mais que esteja sustentado em desinformações, o fato é que o código é bastante poderoso na ativação de afetos políticos centrais como o medo, ódio e ansiedade, vetores de forte engajamento e agitação política que Trump e Bolsonaro sabem tão bem promover.

    O sucesso dessa estratégia se coaduna com a popularização das redes sociais e dos smartphones, bem como das novas tecnologias de processamento de dados manipulados para fins políticos. Nesse contexto, tornou-se possível criar e difundir mensagens sob medida para cada tipo de público, cada indivíduo ou grupo formula suas próprias percepções sobre o mundo a partir de narrativas (códigos) que não mais precisam ser expostos publicamente a todos para serem eficazes. Após alguns reconhecimentos iniciais, os algoritmos se encarregam de abastecer-nos das notícias que nos mobilizam, sempre com o mesmo teor e formato. Reforça-se, assim, o fenômeno das “bolhas”.[5] Esses códigos podem circular de forma subterrânea, de tal modo que o que parece absurdo e chocante para uns, é perfeitamente aceitável e normalizado para outros.

    Esse ambiente de circulação de notícias e códigos é condizente com a ordem atualista de nosso tempo e, ao nosso ver, é um fator importante a ser considerado no desempenho surpreendente de Trump nestas eleições. E um dos preços a se pagar para tal sucesso é a radicalização do clima de agitação que tem marcado a nossa época. Esse quadro tem resultado inclusive em distúrbios psicológicos cada vez mais comuns, como o “transtorno do estresse eleitoral”, que segundo estimativas afeta sete em cada dez cidadãos estadunidenses.[6]

    Os políticos atualistas claramente não se importam em pagar esse preço, na verdade eles têm lucrado com isso. Mas, ao fim e ao cabo, eles não podem evitar completamente os efeitos colaterais de suas apostas. Agitação e dispersão geram também cansaço no eleitorado. Biden e os democratas tomaram esse efeito como vetor de suas estratégias para estas eleições. Frente à irrefreável agitação de Trump, Biden se vendeu como a opção mais “centrista”, de moderação e convergência. A divergência entre as duas estratégias foi mais uma vez demonstrada logo após o fechamento da votação: enquanto Trump se apressou em declarar-se vencedor e dizer que irá judicializar a eleição em caso de derrota, Biden classificou tal postura como “ultrajante” e pregou calma aos seus apoiadores[7].

    Mesmo que a vitória do democrata seja confirmada, é inegável que o preço desse lance foi bastante alto. A imprensa americana noticiou como parcelas importantes do eleitorado negro, que o próprio Biden afirmou ser “a chave para a vitória”, relataram estarem pouco motivados a votarem no candidato democrata.[8] O mesmo ocorreu entre parte do eleitorado hispânico, em especial na Flórida e no Texas. O conservadorismo nos costumes, a adesão a denominações evangélicas que tem crescido entre hispânicos e a tradição anticomunista dos cubanos, e agora também venezuelanos, na Flórida, são fenômenos a serem considerados. Enquanto fechamos essa coluna Trump ainda lidera na Pensilvânia, estado no qual o operariado branco migrou dos democratas para o trumpismo. No último debate, Biden acabou por reconhecer que teria que acabar com a exploração do altamente poluente gás de xisto, o que foi imediatamente explorado por Trump: “Eis uma declaração importante”, ironizou o presidente. Caso perca por margem apertada na Pensilvânia, onde os trabalhadores dessa indústria são amplamente sensíveis ao tema, talvez essa declaração tenha custado a eleição.

    Para entender melhor essas flutuações teríamos que fazer algo pouco praticado durante a campanha, uma avaliação retrospectiva fundada em boa informação acerca das políticas públicas implementadas por democratas e republicanos, em especial nos governos Obama e Trump. O apoio ao republicano não é apenas resultado da mágica da comunicação, deriva também da tibieza das políticas democratas e dos acertos de Trump. Reforma do sistema criminal, política externa menos intervencionista, foco na economia e na criação de empregos, com bons resultados, ao menos até a pandemia.

    A decisão das eleições primárias do Partido Democrata em nomear um candidato “centrista” para concorrer nessas eleições – ao contrário de uma opção mais radical do populismo de esquerda como Bernie Sanders – foi importante para unificar o partido (em especial o seu establishment) e angariar o apoio do eleitorado “cansado” da agitação radicalizada. Por outro lado, a figura moderada de Biden não se mostrou capaz de promover um grau de engajamento e mobilização do público à altura do seu adversário agitador, nem está claro ainda se seu discurso de união nacional conseguiu atrair eleitores de Trump. Essa diferença é importante em um contexto onde o voto não é obrigatório e, no caso particular das eleições deste ano, ainda mais desencorajado pela pandemia do coronavírus.

    Mesmo assim, a moderação pode ter sido eficaz para para derrotar a agitação, mas não para desativá-la. E ainda não podemos assegurar como os EUA sairá dessas eleições, pois Trump continua sendo quem é. Há ainda o risco de o agitador perder e não aceitar sair, e as consequências disso poderão ser catastróficas. E mesmo que ele saia, o trumpismo – o negacionismo, o anti-esquerdismo, o desejo de retorno a um passado glorioso e mítico – ainda permanecerá em parcelas consideráveis da população.

    O que tudo isso ensina para o campo democrático brasileiro, que tem de enfrentar a sua própria versão de agitador atualista? Desde o início da votação nos EUA, Bolsonaro disparou freneticamente uma série de tweets ressoando as alegações infundadas de seu ídolo sobre as eleições serem “fraudadas” a favor dos democratas, o que seria um risco para a “liberdade” e para o Brasil. Afinal, nosso agitador atualista tupiniquim sabe bem que a permanência de Trump é uma força de sustentação fundamental para ele. As relações entre EUA e Brasil deixaram de ser uma relação entre Estados, mas sim uma relação de “amizade” (leia-se emulação e, do nosso ponto de vista, subserviência) entre os chefes de turno da Casa Branca e do Palácio do Planalto.

    Assim, e seguindo o estilo atualista de fazer política, Bolsonaro ressoa as afirmações sem fundamento de Trump, sem se preocupar com a veracidade e desprezando o princípio diplomático básico da impessoalidade. Mas Bolsonaro também tem seu próprio código “alternativo”, cujo enfrentamento é a tarefa prioritária das forças democráticas no Brasil, que deverá avaliar e tomar suas próprias escolhas para vencer o confronto. Assim como o trumpismo, nos Estados Unidos, o bolsonarismo é um fenômeno que não necessariamente depende da permanência de Bolsonaro no poder: ele mobiliza parcelas consideráveis da população através de seus discursos, que defendem o conservadorismo nos costumes, o liberalismo na economia, a luta contra “o sistema”, a religião e a admiração pelo militarismo.

    Será que a aposta moderada e centrista será suficiente para derrotar o bolsonarismo aqui? Mesmo que por pouco? Ou, em nosso contexto particular, faz-se necessário redobrar a aposta na radicalização pela via da esquerda? Mesmo que a vitória de Biden seja confirmada, ainda não está claro qual das duas vias parece a mais indicada para o Brasil. Enfim, tudo indica um destino trágico da democracia liberal de “pequenas maiorias” em tempos de agitação atualista. Sem negar a nossa atual realidade, cabe a nós pensar e imaginar alternativas, por mais difícil que pareça ser em nosso atual nevoeiro e impregnados por uma sensação de asfixia. Além disso, a lentidão com que a apuração avança em alguns estados decisivos promete nos deixar hipnotizados pelos mapas eleitorais na expectativa da atualização decisiva.

    (*) Mateus Pereira e Valdei Araujo escreveram o Almanaque da Covid-19: 150 dias para não esquecer ou o encontro do presidente fake e um vírus real com Mayra Marques. Ambos são professores de História na Universidade Federal de Ouro Preto, em Mariana (MG). Também são autores do livro Atualismo 1.0: como a ideia de atualização mudou o século XXI e organizadores de Do Fake ao Fato: (des)atualizando Bolsonaro, com Bruna Klem. Walderez Ramalho é doutorando em História na mesma instituição. Agradecemos à Márcia Motta e ao grupo Proprietas pelo apoio e interlocução nesse projeto.


    [1] https://noticias.uol.com.br/colunas/thais-oyama/2020/11/04/o-eleitor-oculto-de-trump-e-o-novo-erro-dos-institutos-de-pesquisa.htm

    [2] PEREIRA, Mateus; MARQUES, Mayra; ARAUJO, Valdei. Almanaque da COVID-19: 150 dias para não esquecer, ou a história do encontro entre um presidente fake e um vírus real. Vitória: Editora Milfontes, 2020.

    [3] Usamos aqui um neologismo para dar conta da diferença que em inglês é mais clara entre a produção deliberada de notícias falsas (disinformation) e sua disseminação involuntária (misinformation).

    [4] https://noticias.uol.com.br/internacional/ultimas-noticias/2020/07/20/trump-muda-discurso-e-agora-diz-que-usar-mascara-e-patriotico.htm

    [5] EMPOLI, Giuliano Da. Os engenheiros do caos: como as fake news, as teorias da conspiração e os algorítimos estão sendo utilizados para disseminar ódio, medo e influenciar eleições. São Paulo: Vestígio, 2019.

    [6] https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2020/10/quase-sete-em-cada-dez-americanos-relatam-transtorno-do-estresse-eleitoral.shtml

    [7] https://br.noticias.yahoo.com/em-pronunciamentos-biden-prega-calma-e-trump-faz-acusacao-de-roubo-065922289.html

    [8] https://www.aljazeera.com/news/2020/9/12/biden-battles-trump-lack-of-enthusiasm-among-black-voters

  • Liberdade de imprensa? Onde?

    Liberdade de imprensa? Onde?

    Sob o título “Os bispos brasileiros apoiam o plano para democratizar a mídia”, uma revista sul-americana ligada à igreja descreve uma proposta em debate na assembleia constituinte que “abriria a mídia poderosa e altamente concentrada do Brasil para a participação do cidadão”.
    Noam Chomsky, em Necessary Illusions (1989)

    Nessa palestra com a mídia alternativa, o professor Noam Chomsky abordou as características dos meios de comunicação hegemônicos dos países desenvolvidos, especialmente dos EUA e da Inglaterra, para, em seguida, deter-se sobre a imprensa da América Latina.
    Ele contou que cerca de 30 anos após a publicação do livro a Revolução dos Bichos, de George Orwell, foi divulgada a introdução que esse autor tinha escrito, mas que tinha sido suprimida das publicações originais.
    O livro é uma sátira ao inimigo totalitário, mas a introdução deixava um recado claro de que as pessoas livres da Inglaterra não deviam se vangloriar sobre a liberdade de imprensa, porque na Inglaterra ideias impopulares podiam ser suprimidas sem o uso da força.
    Vejamos o parágrafo da introdução em que Orwell critica a imprensa inglesa:

    Ideias impopulares podem ser silenciadas, e fatos inconvenientes mantidos obscuros, sem a necessidade de qualquer proibição oficial.
    Qualquer um que tenha vivido muito tempo em um país estrangeiro saberá de casos de notícias sensacionalistas – coisas que por seus próprios méritos receberiam grandes manchetes – sendo mantidas fora da imprensa britânica, não porque o governo interveio, mas por causa de um acordo tácito geral que “não seria apropriado” mencionar esse fato em particular.
    No que diz respeito aos jornais diários, isso é fácil de entender. A imprensa britânica é extremamente centralizada e a maior parte pertence a homens ricos que têm todos os motivos para serem desonestos em certos tópicos importantes.
    Mas o mesmo tipo de censura velada também opera em livros e periódicos, bem como em peças de teatro, filmes e rádio.
    A todo momento, há uma ortodoxia, um corpo de ideias,  que é assumido, todas as pessoas que pensam corretamente aceitarão sem questionar.
    Não é exatamente proibido dizer isto, isso ou aquilo, mas não é “apropriado” dizê-lo, assim como nos tempos vitorianos não era “apropriado” mencionar calças na presença de uma dama.
    Qualquer um que desafie a ortodoxia predominante se encontrará silenciado com surpreendente eficácia.
    Uma opinião genuinamente fora de moda quase nunca recebe uma audiência justa, seja na imprensa popular ou nos periódicos intelectuais.

    foto por Lina Marinelli

    O professor Chomsky complementa Orwell:

    Se olharmos de perto os meios de comunicação das sociedades livres, como os EUA, descobrimos que os pontos de Orwell são bastante bem evidenciados (…)
    A grande mídia é composta por grandes empresas, frequentemente possuídas por corporações ainda maiores, que como outros negócios, têm um produto que vendem no mercado. O mercado é os anunciantes, ou seja, outras empresas. O produto é você. As pessoas que leem, que assistem na televisão. Então, a estrutura dos meios de comunicação é grandes empresas vendendo pessoas, consumidores, para outras empresas, anunciantes.
    Bem, os vendedores e os compradores têm essencialmente os mesmos interesses. Bem óbvio quais interesses são. E desse ponto pode-se tirar algumas conclusões sobre o provável enquadramento de assuntos, escolha de assuntos e conteúdo da mídia (…)
    Na verdade, devemos ir um passo adiante de Orwell. Você aprende, você internaliza o entendimento que há certas coisas que não é apropriado pensar, não somente dizer. Coisas que não devem nem passar pela sua cabeça. Isso é o que Gramsci chama de senso comum hegemônico.

    Ele busca exemplos, no comportamento dos meios de comunicação nas invasões do Vietnã e do Iraque, que vão reforçar esse entendimento. Para ele, os dois piores crimes, cometidos após o final da Segunda Guerra Mundial, foram a invasão americana e a destruição da Indochina e a invasão americana e inglesa do Iraque.
    As opiniões publicadas se dividiam, no final da guerra do Vietnã em 1975, entre aqueles, à direita, que julgavam que os EUA teriam ganho a guerra se tivessem usado mais força e lutado mais duramente e outros que consideravam justificada a entrada na guerra, “para fazer o bem”, mas que os EUA falharam.
    Anthony Lewis, à esquerda, citado por Chomsky, afirmou em sua coluna de 1 de maio de 1975 no New York Times que a guerra estava terminada e que:

    As primeiras decisões americanas sobre a Indochina podem ser consideradas como tentativas erradas de fazer o bem. Mas em 1969 ficou claro para a maior parte do mundo – e para a maioria dos americanos – que a intervenção fora um erro desastroso. Em vez de encarar essa verdade, Kissinger tentou evitá-la ampliando a guerra e depois retirando as forças de combate americanas sob a ilusão de que a “estabilidade” havia sido alcançada.

     

    A interpretação do que afirma Lewis é que se os EUA tomaram a decisão de invadir o Vietnã era para fazer o bem. Por definição. É impossível pensar de outro modo. Ao mesmo tempo, a grande maioria da opinião pública, revelada por estudos sérios, julgava a guerra errada e imoral e não um erro. E isso nunca foi publicado. O professor Chomsky julga que esse resultado é marcante pois a opinião pública nunca leu ou ouviu da imprensa que a guerra era imoral. As pessoas chegaram a essa conclusão por si mesmos.
    “Esse assunto nunca foi publicamente discutido. Exceto por pessoas bem à margem, como eu, que não chegam à mídia hegemônica”, afirma ele.

    foto por Lina Marinelli

    A invasão ao Iraque obteve enorme apoio no princípio, mas, quando as coisas se revelaram mais complicadas, as críticas começaram. Por exemplo com as críticas de Obama que do mesmo modo que o jornalista do New York Times aponta um erro estratégico e não uma ação errada e imoral:

    Ao contrário do senador John McCain, opus-me à guerra no Iraque antes de começar e a terminaria como presidente. Eu acreditava que era um erro grave permitirmos nos distrair da luta contra a Al Qaeda e o Talibã ao invadir um país que não representava uma ameaça iminente e não tinha nada a ver com os ataques de 11 de setembro.

    Passando à América Latina, Chomsky conta que foi chamado à Nicarágua para estudar um jornal local chamado La Prensa que era abertamente contra o governo sandinista e fazia campanha, sem nenhum escrúpulo, a favor dos ‘contra” apoiados pelo governo dos EUA. “Em qualquer país do ocidente, tal jornal seria, não somente eliminado, mas seus editores teriam sorte de ir para a prisão, pois mais provavelmente seriam colocados em frente a um pelotão de fuzilamento”. Em seu livro, Ilusões Necessárias de 1989, ele diz:

     

    Nos anos 80, a Nicarágua tem sido bastante incomum na abertura de sua sociedade em tempos de crise. Jornalistas hostis, que não são mais do que agentes da grande potência que ataca a Nicarágua, viajam e fazem suas reportagens livremente por todo o país.
    Autoridades amargamente anti-sandinistas dos EUA e outros defensores do ataque terrorista americano podem entrar e proferir discursos públicos e coletivas de imprensa, conclamando à derrubada do governo, e para se encontrar com a oposição política financiada pelos EUA, segmentos que declaram os mesmos objetivos e mal escondem seu apoio aos contras.
    Os meios de comunicação nacionais que se identificam com o ataque contra a Nicarágua e servem a seus propósitos, e são financiados pela potência estrangeira que ataca o país, foram sujeitos a assédio, censura e suspensão periódica; mas nem eles, seus editores e funcionários, nem figuras da oposição com os mesmos compromissos enfrentaram qualquer coisa remotamente parecida com a repressão da mídia e dos dissidentes nas “democracias novatas” apoiadas pelos EUA.

    Do mesmo modo, Chavez foi muito duramente condenado por ter reduzido o alcance da RCTV que apoiou o golpe militar em 2002. Questionado sobre crítica à Chavez, em 2007, Chomsky ponderou:

    No entanto, permita-me dizer que concordo com a crítica ocidental em um aspecto crucial. Quando eles dizem que nada como isso poderia acontecer aqui, isso é correto.
    Mas a razão, que não é declarada, é que se houvesse algo como a RCTV nos Estados Unidos, na Inglaterra ou na Europa Ocidental, os donos e os gerentes teriam sido levados a julgamento e executados – nos Estados Unidos executados, na Europa enviados para a prisão permanentemente, em 2002.
    Você não pode imaginar o New York Times ou a CBS News apoiando um golpe militar que derrubou o governo mesmo que por um dia.
    A reação seria “enviá-los para um pelotão de fuzilamento”. Então, sim, não teria acontecido no ocidente porque nunca teria chegado tão longe.

    Chomsky terminou seu encontro com a mídia alternativa apontando uma tendência geral de leniência dos governos de esquerda moderada com o golpismo da imprensa latino americana:

    Em geral, todos os governos moderadamente de esquerda da América Latina permitiram o funcionamento da imprensa, o funcionamento da mídia. E a mídia é universalmente muito hostil a esse governos. Houve até mesmo casos em que a mídia apoiou ataques diretos contra o país, apoiou golpes militares e continuou a ser publicada sem ser extinta. Isso é um problema, claro, pois o que o governo fizer estará sob severo ataque universal no espectro permitido. No Ocidente isto nunca seria permitido. Isso é inconcebível nos países livres.

     

    O Instituto Gallup, em 2013, resolveu perguntar qual era o país que mais ameaçava a país mundial, assinala Chomsky. O resultado da pesquisa nos EUA cravou Irã, Coréia e Rússia. Para pesquisados dos outros países os EUA eram a maior ameaça à paz mundial. Esse tema não foi discutido na grande imprensa do mundo desenvolvido. Tampouco por aqui.