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  • Brian Willson, um norte-americano herói nacional da Nicarágua

    Brian Willson, um norte-americano herói nacional da Nicarágua

    Há 33 anos o dia primeiro de setembro marca um acontecimento trágico que fez de um norte-americano, veterano do Vietnã, um verdadeiro herói nacional para o povo da Nicarágua.

    Por Juliana Medeiros

    Durante protestos que ocorriam em 1987 nos EUA pelo fim da ingerência na região centro-americana, o pacifista Brian Willson teve as pernas amputadas por um trem carregado de armas dos EUA cujo governo apoiava diretamente os chamados contra, tentando derrotar a revolução sandinista que vencera em 1979 a ditadura dos Somoza, uma das mais sanguinárias e longevas das Américas.

    Brian Willson

    Brian e mais outros dois veteranos acreditavam que o trem – em baixa velocidade em razão da presença de manifestantes na área – seria parado e, de acordo com a lei e protocolos vigentes, ele e seus companheiros seriam detidos em seguida. No entanto, ocorreu o oposto ao esperado por todos: o trem acelerou o triplo de sua velocidade – de 5HPM para 17HPM – atropelando Brian Willson e quase o matando.

    Depois de um longo período de cirurgias, adaptação às próteses e recuperação dos vários ferimentos por todo o corpo, Brian sobreviveu para seguir fazendo o mesmo de então: ser uma voz dissonante da narrativa bélica e imperialista de seu próprio país. Em seu perfil no Facebook  ele afirmou: “Foi uma tentativa de assassinato. Portanto, estou comemorando 33 anos desde minha quase morte, junto a meus companheiros e irmãs nicaraguenses”.

    CELEBRIDADE DA LUTA PELA PAZ

    A vice-presidenta Rosário Murillo anunciou no dia anterior que o dia 1º seria repleto de homenagens do povo nicaraguense “ao sacrifício do herói da solidariedade e da paz e que honra a Nicarágua vivendo em nosso país”. O anúncio oficial em cadeia nacional era um convite aos nica para que participassem do evento já que na Nicarágua todos conhecem bem e se orgulham desse personagem. Desde esses acontecimentos, Brian Willson tornou-se uma verdadeira celebridade, sendo às vezes difícil para ele uma simples caminhada nas ruas sem ser abordado por nicaraguenses ávidos por conversar e tirar fotos com o ídolo.

    O dia de homenagens começou na Chancelaria do país e depois Brian – que já havia sido condecorado em 1988 com a Medalha Augusto César Sandino – foi homenageado na Assembleia Nacional onde recebeu a Ordem José Dolores Estrada em seu máximo grau. No final do dia ele ainda esteve em outro evento na Universidade Nacional.

    A honraria recebida por Brian na Assembleia remete à outra luta do povo nicaraguense, anterior ao período dos Somoza. Em 1855 outro norte-americano, o flibusteiro William Walker, foi para a Nicarágua acompanhado de seus recrutas mercenários e acabou se envolvendo em um conflito interno se unindo ao lado que procurava derrubar o então presidente Fruto Chamorro Pérez. À medida em que avançava em sua campanha militar, conseguiu fraudar o processo eleitoral e  se “autoproclamou” presidente da Nicarágua. O então presidente dos EUA, Franklin Pierce, reconheceu imediatamente seu governo como “legítimo”, em mais uma das várias evidências históricas da política intervencionista que os EUA mantêm até os dias hoje contra dezenas de países. Na ocasião, o General nicaraguense José Dolores Estrada comandou e venceu a batalha conhecida como San Jacinto (região próxima à Capital, Manágua). William Walker depois de fugir da Nicarágua, tentou ainda ocupar Honduras, mas foi capturado e fuzilado no país vizinho. As invasões do “aventureiro” Walker – que já havia estado também no México – acabaram contribuindo para a formação do conceito de América Latina. Já o General Estrada, homem mestiço negro e índio, mesmo tendo libertado seu país do invasor não foi devidamente reconhecido na época. As elites nicaraguenses se recusaram a render homenagens a um mestiço. Foi o governo revolucionário que, décadas depois de sua morte, decidiu dar seu nome a um dos graus máximos de distinção nacional.

    Brian Willson relatou no documentário que conta sua história- Paying the Price for Peace – que em janeiro de 1986 pediu demissão de seu trabalho no escritório de atenção a veteranos no estado de Massachusetts para viajar à Nicarágua e “aprender sobre a Revolução Popular Sandinista”. O então jovem novaiorquino disse que “queria ver com seus próprios olhos a natureza e extensão da intervenção”, realizada pelo governo do então presidente Ronald Reagan, que financiava os contra – mercenários que com dinheiro do Congresso e apoio da CIA foram armados e treinados com o objetivo de exterminar a resistência popular à ditadura dos Somoza. Quando voltou aos EUA, Willson se comprometeu ainda mais com as manifestações pela paz no seu país e organizou o protesto em frente à base militar no estado da Califórnia, de onde saíam as munições para a repressão na Nicarágua. Mas as cerca de 50 pessoas envolvidas no ato pacífico não foram presas por desobediência civil, como estabelecia a lei. Willson relata que mais tarde soube que o FBI já os investigava desde 1986, a ele e outro veterano, suspeitos de “terrorismo doméstico” e que houve “uma ordem para que a tripulação não detivesse o trem”. 

    UMA HONRA COMPARTILHADA

    Em seu discurso na Assembleia Nacional da Nicarágua, o veterano de 79 anos recém-completados – Willson faz aniversário, ironicamente, no dia 4 de julho quando os EUA celebram sua independência – lembrou desse período e resumiu o que o motivou a correr o imenso risco, inclusive sofrendo ataques fundamentalistas e perseguição em seu próprio pais, e seguir defendendo a causa sandinista até hoje:

    “(…) O trem estava carregado com armas, munições e explosivos que seriam transportados a El Salvador e Nicarágua com o objetivo de assassinar camponeses nesses países e atender aos interesses criminosos do Congresso e governo dos EUA. Eu e mais de 40 manifestantes fomos à base militar na Califórnia para tentar impedir que o trem saísse e o que nós esperávamos é que seríamos presos por conta disso. Mas nesse dia o trem não parou, ao contrário, acelerou três vezes mais que o limite de velocidade. Diferente dos outros manifestantes eu estava sentado nos trilhos com as pernas cruzadas e não consegui sair a tempo e o trem passou por cima de mim. Soubemos depois que já éramos investigados por “terrorismo doméstico” pelo FBI e que o trem recebeu ordens de não parar. Hoje, portanto, é o aniversario dessa tentativa de assassinato (…).

    Eu desenvolvi essa motivação para denunciar a política dos EUA depois de 1969 quando fui enviado a comandar uma unidade militar no Vietnã. Nós literalmente cometemos atrocidades todos os dias naquele país. Eu tinha 27 anos, um pouco mais do que a média dos que cumpriam o serviço militar na ocasião, e tive uma epifania enquanto assistia aos bombardeios [dos EUA no Vietnã]. Todos incluíam Napalm [bomba incendiária] e com isso nós destruímos milhares de vilarejos e matamos incontáveis vietnamitas. Foi quando comecei a questionar o que eu estava fazendo ali e o que esses pobres camponeses tinham a ver com tudo aquilo. Pessoas que simplesmente queriam viver suas vidas tranquilamente. Mas nós, nos EUA, sempre usamos aquela “palavra mágica” e os classificamos de “comunistas”, mesmo não tendo a menor ideia do que isso significa. Eu me dei conta, vendo aqueles milhares de corpos de camponeses vietnamitas pelo chão, de que essas eram pessoas realmente autenticas e que não fazia o menor sentido eu estar ali, há mais de 9000 milhas de casa, matando aquelas pessoas. Eu me senti como um robô ideológico, cumprindo ordens insanas e criminosas. Foi através dessas experiências que me tornei crítico à política dos EUA e passei, nos últimos 50 anos, a estudar a história do meu próprio país e aí me dei conta de outra coisa:  tudo que nos ensinaram sobre as origens e fundação dos EUA era uma mentira. Nada ocorreu como nos contaram, os EUA sempre foram um estado policial para indígenas, negros e para as mulheres. É basicamente uma terra de supremacistas brancos e a verdade é que sempre foi assim. Nós criamos uma identidade falsa que nos permite até hoje fazer o que quisermos contra qualquer um que consideramos inferior a nós, e isso é o que domina nossa história (…).

    Eu cheguei em 1986 na Nicarágua procurando entender a revolução sandinista porque é algo que jamais ocorreu nos EUA. Nós falamos dos fundadores da pátria como revolucionários, mas na verdade esses eram um monte de brancos que tinham seus escravos e cujas propriedades passaram a ser valorizadas quando eles iniciaram o extermínio da população indígena. Por isso me entusiasmou muito ver na Nicarágua um povo que tinha a valentia de se livrar de uma ditadura apoiada pelos EUA. Também foi muito emotivo ver o que esse governo vem realizando desde 2007 com tantos programas sociais(…).

    Brian Willson discursando na sessão solene

    Não é casual que Cuba, Venezuela e Nicarágua vem sendo chamados de “trio do mal” pelos EUA. É simplesmente porque esses são os países que se recusam a adotar as políticas neoliberais impostas por Washington na região e servem sua população com programas de educação, saúde, nutrição, com rodovias, pontes, que literalmente investem em sua gente(…).

    E agora temos esse plano mais recente dos EUA, uma guerra cibernética contra a Nicarágua usando softwares especiais e alta tecnologia para tentar gerar distúrbios na sociedade nicaraguense. Este plano foi revelado no final de julho deste ano e eu quero alertar o povo nicaraguense para que esteja preparado para os distúrbios que vão ocorrer, com desestabilização da conexão WiFi no país, interferências na rede elétrica, dentre outros. Mas saibam que nós, os expatriados que estamos aqui, certamente estaremos defendo junto a vocês sua soberania. Essa revolução não vai se deter(…).

    Por fim, eu apenas queria lembrar a vocês que nem todos os gringos são estúpidos, há muitos que tem consciência, ainda que como eu, tenham famílias cuja maioria é de extrema direita. Donald Trump,  podemos dizer que é a uma pessoa asquerosa, detestável, mas cumpriu uma função histórica importante. Ele mostrou a natureza autêntica desse governo que sempre foi o mesmo. Quando aquele policial colocou seu joelho no pescoço de George Floyd, naqueles 8 minutos e 46 segundos o mundo viu a fotografia real desses 400 anos de supremacia branca, 400 anos de perseguição aos pobres, indígenas, negros. E  a verdade é que ninguém pode prever o que vai ocorrer nos próximos 3 meses. Trump tem 85 milhões de seguidores no Facebook, muitos deles estão armados e eu acho que Trump vai fazer sua parte para incentivar que haja mais violência. Então talvez tenhamos uma guerra civil, talvez um cometa nos atinja, não sei, mas sei que será um momento de calamidade nos EUA e no mundo. E é por isso que o exemplo da Nicarágua, tentando preservar os avanços que conseguiu em sua luta são tão importantes. Vocês [o governo sandinista] são exemplo de justiça para seu povo. E eu sei que a oposição vem sendo bastante apoiada e financiada pelos EUA, mas quando ouço e vejo suas ações eu apenas penso que francamente eles deveriam se mudar para lá e deixar a Nicarágua em paz(…)

    Foto: Jairo Cajina/Nicarágua

    COMPANHEIROS VETERANOS

    Marvin Ortega, atual Embaixador da Nicarágua no Panamá, conta que a maioria dos nicaraguenses passou a saber da existência de Brian Willson em razão da greve de fome que ele e seus companheiros fizeram na escadaria do Capitólio, antes dos fatos ocorridos na Califórnia.

    “Eu o conheci através de uma amiga norte-americana que casou e vive Nicarágua e que é o ponto de contato com a solidariedade nos EUA. Ela realizou um evento da solidariedade e ele estava nessa festa, mas até aquele momento, Brian era mais um dentre tantos – porque realmente eram e continuam sendo muitos os norteamericanos solidários à Nicarágua. Mas a partir dessa greve de fome ele passou a ficar realmente conhecido no país. Desde esse momento ele já foi elevado a uma personalidade nacional de primeira linha e começou a ser visto como “o cara” da solidariedade nos EUA. E ele tem sido uma pessoa muito ativa nas relações com a Nicarágua, inclusive participou de uma caminhada na fronteira organizada por Miguel D’Escoto [teólogo e ex-chanceler da Nicarágua, falecido em 2017] em que participou também Dom Pedro Casaldáliga [Bispo hispano-brasileiro da prelazia de São Félix do Araguaia, falecido em agosto deste ano]”

    O sandinista, de 75 anos, conclui: “Depois desse episódio trágico, ele se tornou uma celebridade na Nicarágua porque isso é algo realmente muito forte e mesmo depois que perdemos as eleições [em 1989] ele continuou vindo e apoiando a revolução”.

    Já o advogado e ativista norteamericano Dan Kovalik, que também tem uma longa história de solidariedade com a Revolução Sandinista e cujo último livro (“No More War: How the West Violates International Law by Using ‘Humanitarian’ Intervention to Advance Economic and Strategic Interests” ) conta com um cuidadoso prefácio de Willson, lembra que o conheceu ainda em 1988, um ano depois do trágico ocorrido participando do Comboio da Paz dos Veteranos:

    “Por acaso estava na Nicarágua em 1º de setembro de 1987, quando Brian fez seu grande sacrifício pela paz na América Central. Soubemos muito rapidamente que isso havia acontecido e me afetou muito, especialmente porque os nicaraguenses foram muito afetados por isso. É tão irônico e comovente que Brian, um oficial militar dos EUA no Vietnã, tenha ficado gravemente ferido e sido quase morto, não no campo de batalha, mas em sua ação pela paz. Depois, conheci Brian brevemente em 1988, quando estava dirigindo para a Nicarágua com o Comboio. Brian havia perdido as pernas menos de um ano antes, mas estava de volta à estrada para apoiar nossos esforços e continuar seu trabalho pela paz. Finalmente, passei um tempo real com Brian durante o verão de 2018 em sua casa em Granada, Nicarágua. Foi justo na época em que a crise [mais recente tentativa de golpe de estado] daquele verão estava acabando [Dan trabalhou na ocasião na produção do documentário: The April Crises & Beyond]. Brian sofreu muito durante este período, de depressão e solidão, já que muitos de seus ex-amigos na Nicarágua se voltaram contra a revolução que ele ama. Mas ele perseverou e se recuperou desde então. Brian é um homem de grande força, determinação e compaixão. Não se pode deixar de ser inspirado e grato por seu incrível exemplo”.

    Brian Willson com o presidente Daniel Ortega

    MAIS DE 40 ANOS DE RESISTÊNCIA POPULAR

    Brian e a Nicarágua só veriam a Frente Sandinista de Libertação Nacional vencer de fato a guerrilha dos contra em 1989, quando estes perderam capacidade combativa, mas a luta popular precisou seguir resistindo. Em 1986, depois de ganharem as primeiras eleições pós-revolução, os sandinistas foram vítimas do intenso desgaste provocado por anos de guerra e seguidas tentativas de interferências em seu governo por parte das elites e da direita no país, o que fez com que perdessem as eleições em 1989 para a liberal Violeta Barrios de Chamorro. O movimento não voltou à luta armada, reconheceu a derrota e se reorganizou em suas bases para voltar a vencer eleições em 2006 com Daniel Ortega, um dos comandantes da guerrilha que vem sendo reeleito desde então. Mas abandonar as armas não foi o suficiente para os EUA que negando, como costumeiramente faz, ter participado das várias prisões ilegais, torturas e chacinas promovidas pelos Somoza, passou a acusar o governo revolucionário eleito de ser uma “ditadura”, jamais deixando de atacá-lo até os dias de hoje.

    Como acrescentou Rosário Murillo em seu comunicado: “Estarão presentes os nossos embaixadores em diversos países do mundo, as nossas missões, também os representantes dos movimentos de solidariedade e  ONGs, todos participando desta grande e merecida homenagem de amor, de reconhecimento à sua coragem, que nunca esqueceremos, que sempre saberemos elevar e reconhecer, do irmão representante daquele bom povo dos Estados Unidos da América que ao longo da história se opôs às políticas de seu governo em diversos países do mundo, onde infelizmente essas políticas representaram morte, interferência e morte, intervenção e morte, destruição de modelos de culturas que são momentaneamente invadidas ou interrompidas por essas políticas, bem como geraram genocídio. A boa gente dos Estados Unidos que sempre se manifestou nas ruas contra as injustiças”.

    A luta para libertar o país centro-americano da repressão começou formalmente com a FSLN – Frente Sandinista de Libertação Nacional em 1961, mas desde a morte de Augusto César Sandino em 1934, vários foram os movimentos e guerrilhas populares que tentaram vencer a dinastia dos Somoza. Após a guerrilha conhecida como “Chaparral” os sobreviventes organizaram a Frente Sandino que se unificaria com a FSLN em 1961. A família Somoza influenciou governos muitos anos antes e depois governou a Nicarágua em uma ditadura hereditária por mais de 40 anos, tendo sido uma das mais mortais da história contemporânea. Em todo esse largo período, os EUA estiveram por trás de governos, forças paramilitares, sabotagens e planos de extermínio.

    A SOMBRA QUE PAIRA SOBRE A AMÉRICA LATINA

    A sombra intervencionista do Império segue pairando sobre a América Latina, agora com a possibilidade de ter o Brasil como aliado, como evidenciam os novos documentos da Política Nacional de Defesa, reveladas em reportagem do The Intercept, que “propõem uma política de defesa sem transparência, ameaçam vizinhos [especialmente a Venezuela] e afrontam a Constituição”. Na verdade, desde o início do Governo Bolsonaro já se está colocando em prática estratégias que coincidem com planos golpistas da oposição ao Governo Bolivariano como demonstra em outra reportagem sobre o tema, o Brasil de Fato,  cujo levantamento traça uma linha do tempo entre os acontecimentos no país caribenho e as ações da política externa brasileira.

    Também o diário britânico independente The Guardian publicou essa semana uma extensa reportagem sobre a nefasta Operação Condor, onde o presidente Jair Bolsonaro é um dos citados por haver defendido em várias ocasiões a ditadura ocorrida no Brasil:

    “O medo da violência de extremistas de direita ainda persegue a América do Sul, especialmente entre os sobreviventes. A defesa da ditadura pelo presidente Jair Bolsonaro é especialmente preocupante. A ideia de que uma rede semelhante à Condor possa um dia reaparecer não é fantasiosa. O melhor escudo contra isso é garantir que os perpetradores do terrorismo de estado sejam presos, mesmo que isso leve décadas (…)”

    A tragédia que atingiu Brian Willson não conseguiu fazer com que ele desistisse de apoiar a Nicarágua e siga denunciando os planos intervencionistas e a política de terror dos EUA. Com disposição inclusive de lutar, se preciso, contra as novas ameaças aos sandinistas, ele finalizou seu discurso na Assembleia Nacional dizendo que aprendeu com a Nicarágua aquilo que sua experiência no Vietnã não permitiu:

    Compartilho com vocês a honra de receber essa medalha hoje e essa honra se deriva da inspiração que tiro de vocês. A Nicarágua me ensinou como se faz uma revolução. Quando eu estava no Vietnam, vi que estava do lado errado e isso é uma coisa muito difícil de se reconhecer naquelas condições. Mas desde que cheguei aqui, em 1986, e me deparei com esta revolução, foi quando me senti em casa”.

    Perto de completar 80 anos de idade, em meio a uma pandemia e cenário político caótico em seu próprio país, é de Granada, na Nicarágua, onde vive há alguns anos, que Brian Willson envia seu recado ao mundo e deixa sementes que certamente serão necessárias às futuras gerações de defensores da paz.

  • Liberdade de imprensa? Onde?

    Liberdade de imprensa? Onde?

    Sob o título “Os bispos brasileiros apoiam o plano para democratizar a mídia”, uma revista sul-americana ligada à igreja descreve uma proposta em debate na assembleia constituinte que “abriria a mídia poderosa e altamente concentrada do Brasil para a participação do cidadão”.
    Noam Chomsky, em Necessary Illusions (1989)

    Nessa palestra com a mídia alternativa, o professor Noam Chomsky abordou as características dos meios de comunicação hegemônicos dos países desenvolvidos, especialmente dos EUA e da Inglaterra, para, em seguida, deter-se sobre a imprensa da América Latina.
    Ele contou que cerca de 30 anos após a publicação do livro a Revolução dos Bichos, de George Orwell, foi divulgada a introdução que esse autor tinha escrito, mas que tinha sido suprimida das publicações originais.
    O livro é uma sátira ao inimigo totalitário, mas a introdução deixava um recado claro de que as pessoas livres da Inglaterra não deviam se vangloriar sobre a liberdade de imprensa, porque na Inglaterra ideias impopulares podiam ser suprimidas sem o uso da força.
    Vejamos o parágrafo da introdução em que Orwell critica a imprensa inglesa:

    Ideias impopulares podem ser silenciadas, e fatos inconvenientes mantidos obscuros, sem a necessidade de qualquer proibição oficial.
    Qualquer um que tenha vivido muito tempo em um país estrangeiro saberá de casos de notícias sensacionalistas – coisas que por seus próprios méritos receberiam grandes manchetes – sendo mantidas fora da imprensa britânica, não porque o governo interveio, mas por causa de um acordo tácito geral que “não seria apropriado” mencionar esse fato em particular.
    No que diz respeito aos jornais diários, isso é fácil de entender. A imprensa britânica é extremamente centralizada e a maior parte pertence a homens ricos que têm todos os motivos para serem desonestos em certos tópicos importantes.
    Mas o mesmo tipo de censura velada também opera em livros e periódicos, bem como em peças de teatro, filmes e rádio.
    A todo momento, há uma ortodoxia, um corpo de ideias,  que é assumido, todas as pessoas que pensam corretamente aceitarão sem questionar.
    Não é exatamente proibido dizer isto, isso ou aquilo, mas não é “apropriado” dizê-lo, assim como nos tempos vitorianos não era “apropriado” mencionar calças na presença de uma dama.
    Qualquer um que desafie a ortodoxia predominante se encontrará silenciado com surpreendente eficácia.
    Uma opinião genuinamente fora de moda quase nunca recebe uma audiência justa, seja na imprensa popular ou nos periódicos intelectuais.

    foto por Lina Marinelli

    O professor Chomsky complementa Orwell:

    Se olharmos de perto os meios de comunicação das sociedades livres, como os EUA, descobrimos que os pontos de Orwell são bastante bem evidenciados (…)
    A grande mídia é composta por grandes empresas, frequentemente possuídas por corporações ainda maiores, que como outros negócios, têm um produto que vendem no mercado. O mercado é os anunciantes, ou seja, outras empresas. O produto é você. As pessoas que leem, que assistem na televisão. Então, a estrutura dos meios de comunicação é grandes empresas vendendo pessoas, consumidores, para outras empresas, anunciantes.
    Bem, os vendedores e os compradores têm essencialmente os mesmos interesses. Bem óbvio quais interesses são. E desse ponto pode-se tirar algumas conclusões sobre o provável enquadramento de assuntos, escolha de assuntos e conteúdo da mídia (…)
    Na verdade, devemos ir um passo adiante de Orwell. Você aprende, você internaliza o entendimento que há certas coisas que não é apropriado pensar, não somente dizer. Coisas que não devem nem passar pela sua cabeça. Isso é o que Gramsci chama de senso comum hegemônico.

    Ele busca exemplos, no comportamento dos meios de comunicação nas invasões do Vietnã e do Iraque, que vão reforçar esse entendimento. Para ele, os dois piores crimes, cometidos após o final da Segunda Guerra Mundial, foram a invasão americana e a destruição da Indochina e a invasão americana e inglesa do Iraque.
    As opiniões publicadas se dividiam, no final da guerra do Vietnã em 1975, entre aqueles, à direita, que julgavam que os EUA teriam ganho a guerra se tivessem usado mais força e lutado mais duramente e outros que consideravam justificada a entrada na guerra, “para fazer o bem”, mas que os EUA falharam.
    Anthony Lewis, à esquerda, citado por Chomsky, afirmou em sua coluna de 1 de maio de 1975 no New York Times que a guerra estava terminada e que:

    As primeiras decisões americanas sobre a Indochina podem ser consideradas como tentativas erradas de fazer o bem. Mas em 1969 ficou claro para a maior parte do mundo – e para a maioria dos americanos – que a intervenção fora um erro desastroso. Em vez de encarar essa verdade, Kissinger tentou evitá-la ampliando a guerra e depois retirando as forças de combate americanas sob a ilusão de que a “estabilidade” havia sido alcançada.

     

    A interpretação do que afirma Lewis é que se os EUA tomaram a decisão de invadir o Vietnã era para fazer o bem. Por definição. É impossível pensar de outro modo. Ao mesmo tempo, a grande maioria da opinião pública, revelada por estudos sérios, julgava a guerra errada e imoral e não um erro. E isso nunca foi publicado. O professor Chomsky julga que esse resultado é marcante pois a opinião pública nunca leu ou ouviu da imprensa que a guerra era imoral. As pessoas chegaram a essa conclusão por si mesmos.
    “Esse assunto nunca foi publicamente discutido. Exceto por pessoas bem à margem, como eu, que não chegam à mídia hegemônica”, afirma ele.

    foto por Lina Marinelli

    A invasão ao Iraque obteve enorme apoio no princípio, mas, quando as coisas se revelaram mais complicadas, as críticas começaram. Por exemplo com as críticas de Obama que do mesmo modo que o jornalista do New York Times aponta um erro estratégico e não uma ação errada e imoral:

    Ao contrário do senador John McCain, opus-me à guerra no Iraque antes de começar e a terminaria como presidente. Eu acreditava que era um erro grave permitirmos nos distrair da luta contra a Al Qaeda e o Talibã ao invadir um país que não representava uma ameaça iminente e não tinha nada a ver com os ataques de 11 de setembro.

    Passando à América Latina, Chomsky conta que foi chamado à Nicarágua para estudar um jornal local chamado La Prensa que era abertamente contra o governo sandinista e fazia campanha, sem nenhum escrúpulo, a favor dos ‘contra” apoiados pelo governo dos EUA. “Em qualquer país do ocidente, tal jornal seria, não somente eliminado, mas seus editores teriam sorte de ir para a prisão, pois mais provavelmente seriam colocados em frente a um pelotão de fuzilamento”. Em seu livro, Ilusões Necessárias de 1989, ele diz:

     

    Nos anos 80, a Nicarágua tem sido bastante incomum na abertura de sua sociedade em tempos de crise. Jornalistas hostis, que não são mais do que agentes da grande potência que ataca a Nicarágua, viajam e fazem suas reportagens livremente por todo o país.
    Autoridades amargamente anti-sandinistas dos EUA e outros defensores do ataque terrorista americano podem entrar e proferir discursos públicos e coletivas de imprensa, conclamando à derrubada do governo, e para se encontrar com a oposição política financiada pelos EUA, segmentos que declaram os mesmos objetivos e mal escondem seu apoio aos contras.
    Os meios de comunicação nacionais que se identificam com o ataque contra a Nicarágua e servem a seus propósitos, e são financiados pela potência estrangeira que ataca o país, foram sujeitos a assédio, censura e suspensão periódica; mas nem eles, seus editores e funcionários, nem figuras da oposição com os mesmos compromissos enfrentaram qualquer coisa remotamente parecida com a repressão da mídia e dos dissidentes nas “democracias novatas” apoiadas pelos EUA.

    Do mesmo modo, Chavez foi muito duramente condenado por ter reduzido o alcance da RCTV que apoiou o golpe militar em 2002. Questionado sobre crítica à Chavez, em 2007, Chomsky ponderou:

    No entanto, permita-me dizer que concordo com a crítica ocidental em um aspecto crucial. Quando eles dizem que nada como isso poderia acontecer aqui, isso é correto.
    Mas a razão, que não é declarada, é que se houvesse algo como a RCTV nos Estados Unidos, na Inglaterra ou na Europa Ocidental, os donos e os gerentes teriam sido levados a julgamento e executados – nos Estados Unidos executados, na Europa enviados para a prisão permanentemente, em 2002.
    Você não pode imaginar o New York Times ou a CBS News apoiando um golpe militar que derrubou o governo mesmo que por um dia.
    A reação seria “enviá-los para um pelotão de fuzilamento”. Então, sim, não teria acontecido no ocidente porque nunca teria chegado tão longe.

    Chomsky terminou seu encontro com a mídia alternativa apontando uma tendência geral de leniência dos governos de esquerda moderada com o golpismo da imprensa latino americana:

    Em geral, todos os governos moderadamente de esquerda da América Latina permitiram o funcionamento da imprensa, o funcionamento da mídia. E a mídia é universalmente muito hostil a esse governos. Houve até mesmo casos em que a mídia apoiou ataques diretos contra o país, apoiou golpes militares e continuou a ser publicada sem ser extinta. Isso é um problema, claro, pois o que o governo fizer estará sob severo ataque universal no espectro permitido. No Ocidente isto nunca seria permitido. Isso é inconcebível nos países livres.

     

    O Instituto Gallup, em 2013, resolveu perguntar qual era o país que mais ameaçava a país mundial, assinala Chomsky. O resultado da pesquisa nos EUA cravou Irã, Coréia e Rússia. Para pesquisados dos outros países os EUA eram a maior ameaça à paz mundial. Esse tema não foi discutido na grande imprensa do mundo desenvolvido. Tampouco por aqui.

  • Boff pede autonomia à Nicarágua, mas não às custas de violência contra seu povo

    Boff pede autonomia à Nicarágua, mas não às custas de violência contra seu povo

    Caros companheiros do Cenidh e querido José Argüello Lacayo:

    Como Presidente Honorário do nosso Centro de Defesa dos Direitos Humanos de Petrópolis, Rio, uno-me ao Centro Nicaraguense de Direitos Humanos, que com seu comunicado de apoio aos  Bispos, faz uma crítica justa que o governo está perseguindo, raptando e assassinando seus próprios compatriotas.

    Repito as palavras do Papa João Paulo II: não há guerra santa, nem guerra justa, nem guerra humanitária, porque toda guerra mata e ofende a Deus. O mesmo vale para aqueles que comandam práticas similares contra o seu povo.

    Estou perplexo com o fato de que um governo que liderou a liberação da Nicarágua possa imitar as práticas do antigo ditador. O poder não existe para se impor ao seu povo, mas para servi-lo na justiça e na paz.

    A Nicarágua precisa de diálogo, mas antes de tudo precisa que as forças repressivas parem de matar, especialmente os jovens. Isso é inaceitável. Nicarágua precisa de paz e novamente paz.

    Cito a mais bela definição de paz, consignada na Carta da Terra, que diz:

    “A paz é a plenitude que resulta de relacionamentos corretos consigo mesmo, com outras pessoas, outras culturas, outras vidas, com a Terra e com o Todo maior do qual fazemos parte” (n.16 f).

    Isto é, a paz não existe em si mesma. A paz é a consequência de relacionamentos corretos em todas as instâncias pessoais e sociais. Essa paz, fruto de tais relações, é o que mais queremos para o povo, para o governo e para toda a Nicarágua.

    Com a solidariedade do Centro de Defesa dos Direitos Humanos de Petrópolis, Rio, e a minha pessoal, sentimo-nos unidos a todos vocês também em oração diante do Senhor, príncipe da Paz.

    Leonardo Boff, teólogo e presidente da CDDH de Petrópolis, no Rio de Janeiro.
    Petrópolis 21 de julho de 2018.

    A agência France Presse afirma que Boff complementou sua carta com as seguintes considerações:

    “Tenho consciência de que neste conflito há interesses estrangeiros articulados com os nacionais que se opõem a governos ditos progressistas, especialmente os Estados Unidos, e que por isso mesmo a situação é ambígua”, afirmou.

    “Queremos a autonomia da Nicarágua, mas não a preço da violência contra o próprio povo”, concluiu.

    • Para ler em espanhol: http://www.redescristianas.net/pronunciamiento-de-leonardo-boff-gran-amigo-de-nicaragua-su-definicion-de-paz-es-hoy-urgente-en-nicaragua/