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  • Há um curto-circuito no coração do golpe

    Há um curto-circuito no coração do golpe

    Artigo de Rodrigo Perez Oliveira, professor de Teoria da História na Universidade Federal da Bahia*

    Acho que poucos de nós duvidam que a palavra “corrupção” é o termo chave da crise brasileira contemporânea. Uma crise que começou em junho de 2013, mas que deita suas raízes mais profundas lá em 2005, na ocasião do que já na época ficou conhecido como o “julgamento do mensalão”.

    Aqui neste ensaio, quero mostrar como essa palavrinha mágica pode ser entendida de várias maneiras e como a história da crise brasileira contemporânea pode ser contada a partir do privilégio de um desses sentidos: o sentido “liberal”, segundo o qual a “corrupção” está diretamente vinculada ao Estado, a tudo que é público. É como se o Estado fosse naturalmente corrupto e corruptor e o combate à corrupção passasse, necessariamente, pelo combate ao Estado, pelo desmonte do Estado.

    O privilégio dessa leitura liberal do fenômeno da corrupção diz muito sobre a crise, especialmente sobre os seus movimentos mais recentes. De uns dias pra cá, os veículos mais poderosos da imprensa hegemônica brasileira (Folha de São Paulo, o departamento de jornalismo da Rede Globo, Estadão) vêm abrindo fogo contra os privilégios dos juízes, que já são conhecidos por todos nós há muito tempo. Por que somente agora a imprensa hegemônica denuncia os privilégios nababescos dos juízes brasileiros? Penso que estamos entrando num novo momento da cronologia da crise, em que a aliança entre o judiciário e a mídia hegemônica, até então sólida como pedra, começa a fazer água. Também aqui a leitura liberal do conceito “corrupção” tem uma importante função política a cumprir.

    Bom, pra começar a conversa é importante esclarecer melhor o que estou querendo dizer quando afirmo que o conceito “corrupção” é polissêmico, que possui vários sentidos. Pra isso, cito, bem rápido, alguns autores que ao longo da história da cultura política ocidental usaram a palavra “corrupção”, fazendo-o de diferentes formas.

    Para Aristóteles, que que no IV século antes de Cristo escreveu o tratado da “Política”, a “corrupção” era o efeito natural do tempo sobre os organismos políticos. Maquiavel, escrevendo no século XVI da era cristã, seguiu a trilha aberta por Aristóteles e definiu a “corrupção” como a perda da capacidade da República em institucionalizar os conflitos travados entre seus cidadãos. Chamo de “republicana” essa forma de tratar a corrupção.

    Karl Marx, escrevendo no século XIX, enfrentou o tema da corrupção em um livro pouco conhecido, cujo título é “A luta de classes na França entre 1848 e 1850”. Basicamente, Marx argumenta que falar em “corrupção política” no sistema capitalista é uma redundância, pois o próprio capitalismo já é corrupto, na medida em que se fundamenta na exploração de uma classe pela outra. Essa é a definição marxista.

    Nenhuma dessas formas de pensar associou a “corrupção” ao roubo do dinheiro público. Vamos encontrar essa associação sendo feita de forma mais clara nos textos que Friedrick Hayek escreveu ao longo do século XX. Preocupado em discutir o tema da “ética na política”, Hayek definiu a corrupção como a apropriação para fins particulares dos recursos públicos. Como o objeto da corrupção seria o dinheiro público, a definição proposta por Hayek sugere que o terreno da “coisa pública”, do “Estado”, é solo fértil para a corrupção. Podemos chamar essa definição de “liberal”.

    Bom, o conceito “corrupção” tem, pelo menos, três significados distintos: o republicano, o marxista e o liberal. Nem carece de gastar muito papel e tinta pra mostrar que na crise brasileira contemporânea um desses significados foi privilegiado: o liberal. Ao menos na minha avaliação, isso não aconteceu à toa, sendo um projeto planejado deliberadamente por segmentos poderosíssimos das elites brasileiras para realizar um antigo sonho, para viabilizar um projeto que vem sendo frustrado desde a década de 1940.

    Que projeto é esse? Que sonho é esse que animou durante esse tempo todo o sono da direita brasileira, mas que jamais foi plenamente realizado?

    Pra responder, apresento uma breve síntese da história contemporânea do Brasil. Síntese histórica é igual prudência e canja de galinha: é sempre bem-vinda. O conhecimento histórico é útil à vida.

    Trata-se do sonho do “Estado Mínimo Brasileiro”, projeto que começou a ser defendido no final dos anos 1940 pela UDN, partido político que na época foi o portador da narrativa da redemocratização que marcou a transição da Ditadura do Estado Novo para a ordem democrática que se consolidaria em 1945. Não era, ainda, o “Estado Mínimo” neoliberal, mas sim um projeto desenvolvimentista internacionalista que priorizava o mercado e o capital, considerando o Estado um obstáculo para a prosperidade nacional.

    Esse projeto desenvolvimentista jamais foi aprovado nas urnas, o que explica em parte o transformismo golpista da UDN. Em algum momento da década de 1950, a UDN cansou de brincar de eleição e passou a recorrer ao expediente golpista. Já que o povo não colaborava, a UDN resolveu caminhar sem o povo mesmo. A aproximação com os militares foi uma consequência quase natural.

    A aliança entre a UDN e os militares viabilizou o golpe civil-militar de 1964. Mas como os militares não são seres acéfalos, não serviram como simples instrumento para a realização do projeto udenista. Acabou mesmo que a UDN deu com os burros n’água, pois os milicos sentaram na cadeira do poder e ali ficaram por mais de 20 anos, perseguindo até mesmo os aliados de véspera, como o líder udenista Carlos Lacerda.

    E o pior para o sonho do “Estado Mínimo Brasileiro” vou contar agora: os militares não efetivaram o projeto udenista, pelo contrário, já que em vários aspectos os governos militares podem ser definidos como estatais-desenvolvimentistas. Isso não significa um elogio aos militares, bem longe disso, pois a ditadura foi fundada em um golpe que destituiu um governo democraticamente eleito. Diante desse vício de origem, nenhum ato da ditadura militar pode ser considerado legítimo.

    Enfim, não foi com a UDN e não foi com os militares que o sonho do “Estado Mínimo Brasileiro” se tornou realidade.

    O projeto voltou com força no final dos anos 1980 e pautou as eleições presidenciais de 1989. Sob a batuta do “Consenso de Washington”, um jovem político alagoano, bonitinho mas ordinário, prometeu “caçar os marajás”. Ou em outras palavras, combater a “corrupção”. Adivinhem como? Enxugando o Estado.

    Sabemos bem o que aconteceu com esse jovem e charmoso político alagoano. Collor também não conseguiu realizar o velho sonho do “Estado Mínimo Brasileiro”.

    Com um discurso de propaganda em muitos aspectos parecidos com o de Collor, só que acrescido da narrativa da “estabilidade econômica resultante do plano real”, Fernando Henrique Cardoso se submeteu às urnas em 1994. E venceu. Havia chegado a vez do príncipe da sociologia uspiana tentar realizar o sonho do “Estado Mínimo Brasileiro”, dessa vez com a legitimidade de uma vitória eleitoral.

    O sucesso foi relativo. Sem dúvidas, FHC avançou mais que seus antecessores, mas no final dos seus oito anos de governo ficou a sensação de que foi pouco, de que dava pra entregar mais. O neoliberalismo é um lobo faminto.

    Por mais que o governo de Lula tenha negociado com a agenda neoliberal, apenas com muita desonestidade intelectual seria possível dizer que o desmonte iniciado pelos tucanos foi mantido pelos governos petistas. Com a eleição de Lula, o sonho do “Estado Mínimo Brasileiro” sofreu um duro revés. Mas o lobo não é só faminto. É insistente e teimoso também.

    O que estou querendo dizer é: A crise brasileira contemporânea representa uma nova ofensiva desse lobo neoliberal contra o Estado brasileiro e pra isso é necessário algo a mais do que o simples argumento macroeconômico. É que esse negócio de economia, de números, não convence muito, tem pouca eficiência retórica.

    É aqui que o tratamento da “corrupção” na perspectiva liberal vai cumprir sua função discursiva, ao definir o Estado como o antro da corrupção, como o cabaré da imoralidade. A diferença é que a experiência mostrou que o marketing político não basta, que é necessário algo mais forte: a judicialização da política. Nasce assim, lá em 2005, a aliança que até a semana passada era a força política mais poderosa da República: o concubinato entre a mídia hegemônica e setores do poder judiciário.

    Quem não lembra de Joaquim Barbosa, o homem da capa preta que prometia colocar todos os políticos corruptos na cadeia?

    O tal combate à corrupção foi seletivo e serviu apenas para desestabilizar os governos petistas, que estavam fortalecendo o Estado como grande agente de regulação estratégica do desenvolvimento nacional. Lideranças petistas foram perseguidas judicialmente, como foi o caso de José Dirceu e José Genoíno, e isso sob os aplausos de uma opinião pública raivosa, com fome de vísceras.

    Pouco importava o devido processo legal, desde que os “corruptos” fossem punidos e os “corruptos”, é claro, eram as lideranças petistas. Pronto! A matriz da crise está aqui. Só que do outro lado tinha um certo Luiz Inácio, cabra esperto, inteligente, que conseguiu sobreviver à primeira ofensiva do conglomerado “judiciário/imprensa hegemônica”.

    Nos anos seguintes, com a prosperidade econômica resultante do boom das commodities, os ânimos foram pacificados. Tava entrando dinheiro no bolso de todo mundo e a opção lulista em não tensionar as contradições estruturais fez com que o lobo faminto e temporariamente saciado pudesse dormir.

    O jogo mudou a partir de 2013, em virtude da combinação da crise econômica com algumas escolhas políticas da presidenta Dilma. Pois sim, em muitos aspectos o “dilmismo” é diferente do “lulismo”. Ainda precisamos avançar na conceituação do “dilmismo”. Não é isso que faço aqui.

    O lobo acordou, mais faminto que nunca e viu naquele momento uma chance de ouro para realizar o sonho do “Estado Mínimo Brasileiro”. Outra vez foi evocada a narrativa liberal do combate à corrupção. Foi assim que o governo da presidenta Dilma foi desestabilizado, foi com essa semântica que o golpe de 2016 se efetivou, novamente sob os aplausos dos “brasileiros de bem”, indignados com a corrupção.

    Mal sabiam os “brasileiros de bem” que eles estavam sendo bombardeados por uma narrativa que deu ao conceito “corrupção” um sentido específico, que de forma alguma é o único. Assim, com essa narrativa, Dilma foi derrubada e Lula condenado, em processos jurídicos profundamente politizados e questionados pela comunidade jurídica nacional e internacional.

    Acontece que a crise é um processo em movimento que ainda não acabou. Ao que parece, acabamos de entrar num outro momento da cronologia da crise: com Lula condenado e virtualmente preso, chegou a hora do lobo neoliberal devorar todo o banquete. O lobo é insaciável.

    E pra matar a fome do lobo, nada melhor do que servir, numa bandeja de prata, os privilégios do judiciário. Não é possível a realização do sonho do “Estado Mínimo Brasileiro” com um judiciário tão caro, cheio dos privilégios, cheio das pensões vitalícias.

    Bastaram menos de 72 horas após a condenação de Lula para aliança entre o judiciário e a mídia hegemônica, até aqui marcada por lealdade recíproca, se dissolver. Moro, Dallagnol, Bretas, até então representados como heróis nas páginas dos principais jornais da imprensa brasileira, se tornaram aproveitadores da coisa pública, se tornaram corruptos.

    Justo agora, os privilégios tão conhecidos por todos nós começaram a incomodar a imprensa hegemônica. De forma alguma, quero defender os juízes, mas precisamos entender que os ataques midiáticos ao judiciário fazem parte do mesmo projeto neoliberal que desestabilizou o reformismo petista. O lobo é faminto, teimoso e criativo. Tomara que as esquerdas brasileiras não se deixem seduzir pelo uivo do lobo, travestido de canto de sereia. Tem sereia não, meus amigos. É lobo mesmo, com os dentes enormes, mais perigoso que aquele jantou a chapeuzinho vermelho. Ou almoçou? Não sei.

    Escrever no olho do furacão é sempre um desafio e aquele que se arrisca acaba botando a língua na guilhotina. Não tem jeito. Por isso, arrisco a integridade da minha língua dizendo que temos um elemento novo na cronologia da crise brasileira.

    As duas forças que juntas foram as responsáveis pela aplicação do golpe têm projetos distintos e até mesmo rivais para o futuro da nação: de um lado, o judiciário querendo uma República dos bacharéis, onde os magistrados serão os guardiões da moral pública, com a devida recompensa, sob a forma de privilégios que não estão disponíveis a nenhum outro setor do funcionalismo público. Do outro lado, a imprensa hegemônica, que representando os interesses do neoliberalismo vê na atual conjuntura de crise a chance para tornar realidade, de uma vez por todas, o antigo sonho do “Estado Mínimo” brasileiro.

    Há um curto-circuito no coração do golpe! Em tempos tão difíceis, com tantas notícias ruins, talvez exista aqui algo a se comemorar.

    (*) Com ilustração de Cau Gomez

     

  • Uma justiça de mercado

    Uma justiça de mercado

     

    Um modo claro para compreender o golpe que depôs Dilma e a condenação de Lula é inserir nosso país na reação conservadora que se iniciou lá nos anos 1970 e que consolidou as ideias de que o mercado deve ser deixado livre, sem regulações que o impeçam de ser “eficiente”, aos olhos de suas elites, e que o Estado, ao contrário, é sempre ineficiente e não deve se meter nos “negócios”. Essa ideologia, chamada de neoliberal, foi a reação contra o aumento da participação dos trabalhadores na renda e na vida geral das sociedades com maior desenvolvimento econômico, que aconteceu após a Segunda Guerra. O sistema judiciário, juízes e cortes, não ficou de fora dessa guinada conservadora.

     

     

    Voltemos alguns anos na história.

     

     

    As origens [do ataque ao sistema econômico] são variadas e difusas. Elas incluem, o que não chega a surpreender, Comunistas, Novos Esquerdistas e outros revolucionários que destruiriam o sistema por completo, tanto o político quanto o econômico. Esses extremistas da esquerda são muito mais numerosos, mais bem financiados e, crescentemente, mais bem-aceitos e encorajados por outros elementos da sociedade, do que em qualquer outra época de nossa história. (Ver em inglês na nota 4)

     

     

    Lewis Powell, que era advogado e tornou-se juiz da Suprema Corte dos Estados Unidos, escreveu esse parágrafo acima em 1971, como parte de um documento que ficou conhecido como “Memorando Powell”, reconhecido como um dos primeiros documentos a descrever as estratégias para reverter o crescimento do poder econômico e político dos trabalhadores no período que se seguiu à Segunda Guerra.

     

     

    O manifesto era endereçado a líderes da Câmara de Comércio dos Estados Unidos e visava unir esforços e recursos dos empresários para combater a “ameaça” da esquerda. Sua proposição não deixava de dar extrema importância ao convencimento de parlamentares, da mídia, das forças armadas, de acadêmicos e de juízes para atuarem em favor do livre mercado e da retirada de regras que “inibiam” a ação das empresas.

     

     

    Powell salientava que o Judiciário poderia ser o instrumento mais importante para mudança social, política e econômica. Ele aconselhava congregar advogados de alta competência para atuar como conselheiros “amigos” da Suprema Corte.

     

     

    Outro advogado e professor na Universidade de Chicago, Richard A. Posner, também exerceu forte influência sobre o conservadorismo das cortes com seu livro, de 1973, “Análise Econômica da Lei”, em que aplicava a ideologia do livre mercado às cortes. A atenção dada ao sistema de justiça, por Powell, Posner e outros, culminou com a formação de cortes com forte inclinação conservadora, cortes que aplicam a ideologia neoliberal às suas decisões, configurando uma justiça de mercado.

     

     

    Voltemos, agora, ao Brasil do século XXI.

     

     

    Carol Proner, doutora em direito e professora na UFRJ, escreveu o artigo “O lawfare neoliberal e o sacrifício de Lula”, que nos inspirou e guiou para essas linhas. Ela argumenta que o atropelo do judiciário empurrou as esquerdas brasileiras para a união e que a prisão de Lula, seu sacrifício, contribuirá para desmascarar a politização da justiça. Ela aponta a tramoia entre o Poder Judiciário, o Ministério Público, a Polícia Federal, apoiados pela mídia e ressalta o constrangimento causado pelos votos, antecipadamente combinados, dos desembargadores do TRF4.

     

     

    Ela se impacienta com os funcionários públicos (juízes, delegados e procuradores) que, em absoluto desrespeito às normas legais, retiram o direito da sociedade de escolher ou rejeitar Lula:

     

     

    É exasperante constatar que funcionários públicos investidos na função de administrar a justiça possam, ignorando normas e princípios legais consolidados, produzir um resultado que afeta diretamente o direito de uma sociedade escolher o seu soberano representante. Afeta até mesmo o direito de não escolher este candidato, comprometendo a sanidade do processo eleitoral.

     

     

    Não é preciso conhecer mais do que um mínimo da teoria do direito, afirma ela, para saber que esses três desembargadores decidiram fora do direito. Dando, assim, o exemplo para que outros juízes e outras cortes atropelem a técnica jurídica produzindo “vítimas e algozes em outras jurisdições”.

     

     

    Carol Proner nos faz recordar que mesmo nas guerras respeitam-se certos princípios que a Lava-jato desprezou ao não garantir devido processo legal, ao aceitar o processo do triplex que não cabia a Moro julgar por não haver provas da ligação com a Petrobras, ao aplicar uma pena muito maior do que é comum em casos semelhantes, ao condenar na ausência de provas, ao desrespeitar o estado de inocência, ao usar uso de provas ilícitas, ao violar os direitos do réu, ao exibir clara condução parcial do juiz, ao desrespeitar o princípio da paridade de armas, “regra medieval que remonta a ordem da cavalaria como sustentáculo de legitimidade de um julgamento justo até mesmo no direito da guerra”.

     

     

    Lawfare

     

     

    A origem da palavra lawfare (que se pronuncia “lofér”, com “o” aberto) é a junção das palavras law, que é lei, e warfare, que significa arma de guerra. Lawfare passou, assim, a referenciar o uso da lei como uma arma de guerra.

     

     

    Susan Tiefenbrun, professora de direito na Universidade de Nova York, explica que lawfare: “é uma arma projetada para destruir o inimigo através do uso, mau uso e abuso do sistema legal e dos meios de comunicação, para levantar o clamor público contra aquele inimigo.”

     

     

    A defesa de Lula enumera 11 táticas lawfare utilizadas pela Operação Lava Jato:

     

    Manipulação do sistema legal, com aparência de legalidade, para fins políticos;

     

    Utilização de processos judiciais sem qualquer mérito;

     

    Abuso do direito para danificar e deslegitimar um adversário;

     

    Promoção de ações judiciais para descredibilizar o oponente;

     

    Tentativa de influenciar opinião pública: utilização da lei para obter publicidade negativa;

     

    Judicialização da política: a lei como instrumento para conectar meios e fins políticos;

     

    Promoção de desilusão popular;

     

    Crítica àqueles que usam o direito internacional e os processos judiciais para fazer reivindicações contra o Estado;

     

    Utilização do direito como forma de constranger e punir o adversário;

     

    Bloqueio e retaliação das tentativas dos atores políticos de fazer uso de procedimentos disponíveis e normas legais para defender seus direitos;

     

    Acusação das ações dos inimigos como imorais e ilegais, com o fim de frustrar objetivos contrários.

     

    A racionalidade neoliberal a corromper todas as esferas da existência humana

     

     

    “Tomando distância, é evidente que o processo tem muito mais a ver com a des-democratização das sociedades mundiais e as ofensivas para desarmar soberanias.” Carol Proner faz, assim, a junção da ideologia neoliberal e os eventos recentes no caso Lula:

     

     

    Para compreender o que move a roda de golpes que atinge o Brasil, já tendo passado pela fase do golpe parlamentar e agora na etapa jurídica, é preciso emprestar as ferramentas de análise da sociologia e da ciência política, de autores como Laval e Dardot que descrevem “a nova razão do mundo”, a racionalidade neoliberal a corromper todas as esferas da existência humana, indo do individual ao estatal, passando por novas formas de gestão do capitalismo financeiro que borram a separação entre público e privado, entre direito público e direito privado, entre funcionário público e empresário-lobista, entre Estado e mercado.

     

     

    Para entendermos o retrocesso de direitos, precisamos reconhecer que o direito está submetido à racionalidade privada. Um quadro em que o direito penal é aplicado de modo diferenciado para “amigos” e “inimigos” da sociedade, em que o direito do trabalho sofre a “modernização flexibilizadora” e em que o direito constitucional é regido pelos ideais neoliberais de liberdade do mercado e desregulamentação das atividades empresariais privadas. Como já pregava a Escola de Chicago na segunda metade do século passado:

     

     

    A Escola de Chicago já pregava, em meados do século XX, a necessidade de formar juízes e convencê-los, por meio de cursos e seminários, das teses da desregulação do setor privado em favor de um laissez-faire absoluto. Controlar as cortes e os tribunais arbitrais passou a ser meta para a lex mercatoria em busca de um poder ilimitado que, juntamente com o controle da mídia e das forças armadas, garantiriam o triunfo do capitalismo contemporâneo. Registre-se, um capitalismo extremamente agressivo, que prescinde de qualquer acordo democrático e cuja faceta política é o neoconservadorismo nacionalista.

     

     

    Carol Proner termina seu artigo afirmando que Lula seguirá liderando processos democráticos e auxiliando a pensar instrumentos que revoguem as reformas que, a pretexto de austeridade fiscal e maior eficiência, retiram direitos dos mais carentes, restringem investimentos públicos, privatizam empresas públicas que são motores do desenvolvimento. Reformas que têm sido provadas ineficientes e danosas ao emprego e ao crescimento independente e soberano do país:

     

    Vendo-se a partir dessa moldura ampliada, há razões de sobra para a iminente prisão de Lula ou ao menos a sua inabilitação jurídica para concorrer ao pleito de 2018, o que não ocorrerá sem grande oposição das forças democráticas que já demonstram farta disposição para o confronto. De toda a sorte, após a grotesca perseguição jurídica, Lula sai maior, mais altivo, e seguirá liderando processos democráticos dentro e fora do país, auxiliando a pensar instrumentos revogatórios das reformas austericidas e propondo projetos restauradores dos direitos usurpados.

     

     

    A justiça de mercado, que tem feito suas vítimas, há anos, entre os pobres, alçou um voo mais audacioso que põe à mostra suas vergonhas à população que ainda a achava legítima.

     

     

    Notas

     

    1 Para ler o artigo de Carol Proner no Sul21:

     

    https://www.sul21.com.br/jornal/o-lawfare-neoliberal-e-o-sacrificio-de-lula-por-carol-proner/

     

     

    2 Para ler o Memorando Powell em inglês:

     

    http://scalar.usc.edu/works/growing-apart-a-political-history-of-american-inequality/the-powell-memorandum

     

     

    3 Para ler o Memorando Powell em português:

     

    http://scalar.usc.edu/works/growing-apart-a-political-history-of-american-inequality/the-powell-memorandum

     

    4 “The sources are varied and diffused. They include, not unexpectedly, the Communists, New Leftists and other revolutionaries who would destroy the entire system, both political and economic. These extremists of the left are far more numerous, better financed, and increasingly are more welcomed and encouraged by other elements of society, than ever before in our history.”

     

     

  • O pato tem razão

    O pato tem razão

     

    Depois de um longo período, após a segunda guerra, de aumento da participação dos trabalhadores na renda e na riqueza, a regressão já se arrasta por 40 anos. A financeirização da economia, com seus reflexos no aumento da desigualdade e no enfraquecimento das democracias, atinge, igualmente, países mais ricos e mais pobres. É nesse contexto que se dá o golpe no Brasil, aponta Dilma, no início de sua aula, ontem (13), na Fundação Perseu Abramo.

     

     

    Mas, o que é financeirização da economia?

     

     

    As transações financeiras, que eram meio de direcionar recursos para a produção, passaram a ser um fim em si mesmas. As empresas, hoje, ou são donas de bancos ou tem áreas financeiras que atuam como bancos. Os interesses das empresas, antes antagônicos, passaram a ser convergentes com os interesses dos bancos. “Dos 100% dos recursos de crédito voltados para a economia [nos EUA], 15% são usados em atividades produtivas, 85% em atividades financeiras”, revela. Dinheiro que cria dinheiro, em outras palavras.

     

     

    A financeirização deslocou o foco das empresas, financeiras ou não, para o maior lucro financeiro possível, no menor prazo possível. E é com esse fim que capturam legisladores, agências reguladoras, governos e jornalistas econômicos, em sua empreitada de banir regras que as controlem e baixar custos, especialmente aqueles relativos ao trabalho.

     

     

    “O mais grave efeito da financeirização, sem dúvida, é provocar um aumento extraordinário da desigualdade. Nos EUA, por exemplo, não é segredo que ocorre um espantoso crescimento da desigualdade que, desde a década de 1980, vinha aumentando. A grande recessão tornou as coisas bem piores do que já estavam, porque a recuperação econômica recente tem sido desigual e socialmente mal distribuída.” (Nota 1)

     

     

    O golpe e suas razões econômicas

     

     

    A eleição de Lula brecou o avanço da financeirização no Brasil. O processo de implantação de uma agenda neoliberal integral, característico dos governos Fernando Collor e Fernando Henrique Cardoso, foi fortemente desacelerado.

     

    “O golpe foi dado porque nós tínhamos, ao contrário de quase todos os outros países da América Latina, no Brasil, impedido que os processos neoliberais ocorressem de forma acelerada. Nós impedimos, por exemplo, que privatizassem a Caixa, o Banco do Brasil, a Petrobras, a Eletrobras, o que for, quando Lula foi eleito em 2003 […] Além disso nenhuma das reformas fundamentais do neoliberalismo foi implantada aqui: não desregulamentaram o mercado de trabalho, nós não tínhamos uma direção clara no sentido de mudar o sistema previdenciário. Enfim, houve um processo incompleto com Collor e Fernando Henrique.”

     

     

    Dilma lembra, ainda, que o país estava quebrado e sob o jugo do FMI quando Lula assumiu o poder em 2003. A ordem vinda da instituição era cortar despesas e investimentos, sociais ou não, para conseguir pagar os juros da dívida que o país contraiu com a instituição no final do governo FHC.

     

     

    “Nós assumimos com o Fundo Monetário aqui dentro. E aguentamos o Fundo Monetário em 2003, 2004 e metade de 2005. Neste momento nós tivemos recursos suficientes para saldar a dívida do Brasil com o Fundo Monetário. Eles não queriam receber, eu me lembro perfeitamente bem. Eles não queriam receber, obviamente, porque ter um país, do tamanho do Brasil, atrelado a eles era, sem dúvida nenhuma, uma afirmação de poder do Fundo Monetário.”

     

     

    Vamos deixá-los sangrar”

     

     

    O partir daí, o governo Lula assume inteiramente o país e, logo, se defronta com a primeira tentativa de “resolver o problema eleitoral através de um golpe político”. Lula é pressionado a renunciar à disputa eleitoral, que ocorreria em 2006, caso em que “eles barrariam as investigações do Mensalão. Obviamente, o presidente Lula não só não aceitou como foi para a rua fazer sua campanha. Cogitaram no impeachment. Apostaram que não fariam”. A ordem era deixar o governo sangrar.

     

     

    Na opinião de Dilma, o país cresceu impulsionado pelo crescimento do consumo e não pelo aumento dos preços das commodities, como afirmam muitos economistas. As exportações representam apenas 11% do PIB, enquanto que o consumo perfaz 60%. A redução da desigualdade, indo na contramão da tendência internacional, contribuiu para que o consumo fosse, naquele primeiro momento, o motor para o crescimento. No segundo momento, o motor foi o crescimento do investimento público.

     

     

    “Nós abandonamos a característica maior dos programas do PSDB que é fazer programas sociais com dimensão bastante reduzida, o que os transformam em programas piloto. Exemplo, se você tem 56 milhões de pessoas que precisam receber Bolsa Família, não adianta você dar para 10 mil. Você não resolve o problema.”

    Dilma complementa que seu governo e de Lula iniciaram a distribuição de riqueza com “grande distribuição de terra” e com o programa Minha Casa Minha Vida.

     

     

    O pato tem razão. Do ponto de vista dele pato

     

     

    Ela ressalta que este programa, Minha Casa Minha Vida, evidencia uma característica importante do orçamento público: “Não há como, no Brasil, fazer um programa de habitação popular que não seja com base em subsídio. Porque a equação da renda não fecha”. As prestações integrais de um imóvel custa entre 50 e 60 mil reais não cabem no orçamento de quem ganha um ou dois salários-mínimos. Ou o governo banca uma parte, ou não faz um programa de habitação popular, assegura ela.

     

     

    “O que acontecia naquele momento? Uma parte expressiva do orçamento foi sim destinada aos pobres. Foi sim. Isso é inequívoco. O pato tem razão. Do ponto de vista dele pato. Não do ponto de vista do resto da população […] Não existe como o Estado brasileiro fazer face às imensas desigualdades sociais existentes no país, não só em termos de agora, o que está acontecendo, mas em termos de todo o passado acumulado, sem, sem impostos”

     

     

     

    Notas

     

     

    1 Para ler o artigo de Dilma Rousseff sobre a financeirização da economia, o neoliberalismo e o golpe, no livro Brasil: uma política externa altiva e ativa, organizado por Valter Pomar: https://fpabramo.org.br/publicacoes/wp-content/uploads/sites/5/2017/05/Brasil-web-042017.pdf

     

     

    2 Para assistir a aula de Dilma Rousseff veja em https://www.facebook.com/ENFPToficial/videos/1606574186055514/

     

  • A difícil missão de defender a reforma da previdência

    A difícil missão de defender a reforma da previdência

    Texto e fotos por Tiago Macambira

    Ao final da tarde de hoje, 09/05, ocorreu no auditório da Universidade Federal de São Carlos – campus Sorocaba – um debate sobre aquilo que vem sendo chamado pelo governo golpista de Reforma da Previdência. Organizado pelo centro acadêmico de economia, o debate contou com a presença do professor do Instituto de Economia da Unicamp, Eduardo Fagnani e do ex-economista chefe da Federação Brasileira de Bancos, Roberto Troster.

     

    Auditório da Ufscar – Sorocaba

    Apesar do nome dado ao evento ser “debate”, não foi isso que ocorreu. No decorrer de sua fala, Troster apenas apresentou gráficos e dados a respeito da macroeconomia brasileira, projeções de crescimento, criticou o tamanho da Estado brasileiro e se referiu a reforma da previdência somente no tocante aos privilégios de uma minoria de aposentados. Claramente fugindo do debate, pois até o presente momento nenhum professor, intelectual ou especialista conseguiu defender de forma clara e objetiva esta “reforma” previdenciária; a não ser os marqueteiros contratados pelo Palácio do Planalto pra desinformar a população com aqueles clássicos argumentos falhos que partem de pressupostos inexistentes.

    Por outro lado, o professor Fagnani focou sua fala no que ele mesmo chamou de “desconstrução de argumentos falaciosos sobre a reforma da previdência” e fez a seguinte pergunta: Onde está o problema da previdência? Troster não respondeu. O mediador não respondeu. Ninguém respondeu.

     

    Eduardo Fagnani

    Em seguida apresentou três fontes de informações seguras a respeito da previdência: Anfip, Dieese, , Plataforma Política Social e ainda citou inúmeras leis e decretos (Leis 12.616/12, 13.135/15; Art. 201 §7 – II da Constituição Federal, entre outros) os quais demonstram que reformas previdenciárias vêm sendo feitas ao longo de anos e que “o equilíbrio das contas previdenciárias a longo prazo não necessita de lei alguma, basta seguir as regras constitucionais”.

    Ao final, Fagnani fez uma comparação simples, demonstrando que o problema nunca foi a previdência, mas sim os gastos com juros, de aproximadamente 500 bilhões; as sonegações fiscais, também ao redor de 500 bilhões; as isenções fiscais, de 280 bilhões e outros. Lembrou ainda que esta reforma, draconiana, é sem paralelo em nações desenvolvidas e que, junto a reforma trabalhista, vai levar o Brasil a níveis de pobreza e miséria inimagináveis.”

     

  • Valores da periferia de SP: quatro opiniões

    Valores da periferia de SP: quatro opiniões

    A pesquisa qualitativa, Percepções e valores políticos nas periferias de São Paulo, realizada pela Fundação Perseu Abramo, gerou discussões e interpretações nas várias cores do espectro ideológico. A direita e a extrema direita a usaram para realçar e propagandear os valores liberais dos moradores da periferia paulistana. A esquerda reagiu de maneira variada, classificando-a de inadequada e inoportuna, e até, por outro lado, louvando o aprofundamento do tema que ela proporcionou.

    Pinçamos, nesse texto, ideias dos três sociólogos reunidos na Fundação Perseu Abramo para discutir a pesquisa, Andréia Galvão, Sérgio Fausto e Giovanni Alves, bem como da entrevista com Gabriel Feltran, ouvido pela Pública.

    Não me parece que as perguntas da pesquisa permitam

    sustentar a conclusão de que para a população

    não há luta de classes e de que o Estado é o inimigo.”

    Andréia Galvão

    Embora considere legítima e adequada a metodologia da pesquisa, Andréia Galvão aponta que as perguntas foram muito amplas e muito abrangentes, o que dificulta chegar às conclusões indicadas pelos próprios pesquisadores. Sua opinião é de que as perguntas deveriam ter sido mais fechadas e mais alinhadas às hipóteses da pesquisa.

    Sobre a conclusão da pesquisa de que a polarização política não é bem definida ou é inexistente para o público estudado, ela realça a diferença que existe entre uma pessoa, por um lado, se reconhecer como pertencente à direita ou à esquerda, ou como conservadora ou progressista, e, por outro lado, ser confrontada com posições que podem ser definidas como sendo de direita ou de esquerda.

    Andréa Galvão exemplifica: “Poderíamos perguntar para o sujeito: ‘Você é homofóbico?’ E ele dizer: ‘Não, não sou, não me reconheço nessa categoria’. Mas, ainda assim, expressar posições que são posições homofóbicas.” O resultado da pesquisa seria mais evidente e objetivo se fossem pedidas avaliações dos entrevistados sobre políticas concretas.

    Com relação ao empreendedorismo referido na pesquisa como aspiração dos entrevistados, a professora questiona que ele pode estar mais relacionado a uma estratégia de sobrevivência pela falta de oferta de postos de trabalho assalariado, e menos a “uma aspiração ideológica a virar patrão”.

    Ela conclui: “A análise dos resultados da pesquisa ganha se a gente consegue destacar e reforçar esses aspectos contraditórios. O conservadorismo no plano dos costumes, que nem aparece muito na pesquisa, não necessariamente equivale à defesa da liberdade econômica, da não-intervenção do Estado, do mercado como valor, e vice-versa. A crítica à ineficiência do Estado, o desejo de consumo individual não equivale a demanda de menos Estado ou de menos bens de consumo coletivo. Eu não vejo liberalismo aqui.”

    “A gente precisa levar em consideração essas três dimensões:

    o global, o que é brasileiro, do ponto de vista da transformação da sociedade,

    e o momento político que nós estamos vivendo que afeta essa paisagem.”

    Sérgio Fausto

    Buscando concluir que os sindicatos e os partidos estão perdendo representatividade e sendo substituídos por outras formas de intermediação, Sérgio Fausto afirma: “O que a gente sabe que está acontecendo? A gente sabe que está acontecendo, primeiro, uma mudança, que não é só no Brasil, em que as sociedades estão se tornando mais heterogêneas, em que as identidades se definem menos em função das posições ocupadas no mercado de trabalho. As classes, tal como concebidas a partir do século XIX, são categorias de análise, hoje, que têm, digamos, uma aderência mais complicada com a realidade. Isso não significa dizer que o conflito distributivo acabou. Mas as identidades se formam a partir de outros elementos também”.

    Para ele as categorias surgidas no século XIX não dão conta de explicar a realidade atual e darão menos ainda com a substituição do trabalho humano por máquinas inteligentes.

    Focando no Brasil, Fausto aponta a ascensão social ocorrida nos últimos anos e a regressão atual: “Você tem uma transformação brasileira de um processo de mobilidade social bastante acentuado, que se deu num curto espaço de tempo e que chega a um fim abrupto. Então, essa pesquisa é colhida num momento em que ‘deu ruim’, ‘deu ruim’ para muita gente que experimentou o plano de saúde privado, a escola privada, e voltou para o sistema público. O que vai resultar dessa experiência, não é claro. Uma sociedade, ainda que não esteja politizada nesse nível sofre os efeitos do colapso do sitema político, tal como ele se organizou no período da redemocratização. Que afetou o PT de maneira muito dura, e não só o PT.”

    “Essa pesquisa está mostrando um Brasil que está num desmonte.”

    Giovanni Alves

    Giovanni Alves contrapõe dois momentos do país: as décadas de 1950 e 1960, em que nos encontrávamos na ascensão história do capitalismo industrial, e as décadas de 2000 e 2010, em que experimentamos a decadência do capitalismo industrial . Afirma ele: “a desindustrialização muda todo o sentido produtivo no caso de uma metrópole como São Paulo”

    “Nos anos 60, você tinha elementos de uma tremenda ideologia que buscava quebrar essa percepção da luta de classes e, de certo modo, passar aquela ideia de que patrão e empregado pertenciam a uma mesma comunidade produtiva. Se formos verificar, temos elementos de continuidade e descontinuidade na miséria das camadas populares nas metrópoles nesse país.”

    Ele salienta aspectos mais gerais do capitalismo global e enfatiza que as mudanças em curso não são singulares do Brasil ou de São Paulo: “Eu salientaria a questão do desmonte do mundo do trabalho, esse aprofundamento da precarização do trabalho nas suas mais diversas dimensões. Isso é um dado que explica muito dos resultados dessa pesquisa”.

    O professor chama atenção para um aspecto que julga pouco lembrado a “precarização das condições existenciais do trabalho vivo”, a falta de sentido de vida oriundo do trabalho. Sindicatos e partidos burocratizaram-se e não se preocuparam com esse aspecto. Para ele a valorização das igrejas e das famílias significa a ocupação, por essas instituições, do vazio de sentido da atividade profissional. As igrejas neopentecostais estão “dentro de uma lógica de mundo, onde alienação se aprofundou a uma dimensão que as pessoas estão recorrendo a esses espaços e não tem volta”.

    Nas conclusões da pesquisa encontramos que “no processo de formação de opinião, as condições materiais de vida e do cotidiano são preponderantes”. Giovanni Alves ressalta esse aspecto como “fundamental para a formação de uma consciência de classe.”

    Ele conclui que teremos outros resultados na ação social “no dia em que essas pessoas tiverem a consciência clara de que não existe mercado para todos”.

    “As esquerdas perderam votos na periferia quando deixaram de ser esquerdas.”

    Gabriel de Santis Feltran

    Feltram, com base na diversidade de formas de ver o mundo nos bairros periféricos, opina que os “jovens” pesquisadores da Fundação Perseu Abramo “não deram conta dessa diversidade e acabaram homogeneizando demais a interpretação”. Para ele é “bem perigoso” imaginar homogeneidade nas periferias que são, ao contrário, crescentemente, heterogêneas.

    Ele nos lembra que “nas eleições municipais as periferias de São Paulo elegeram a Erundina, o Maluf, o Pitta, a Marta, o Kassab, o Haddad e o Doria. Mas, veja, elas votaram no Lula, majoritariamente, desde 1989”.

    Sua avaliação, ainda assim, é que as esquerdas perderam votos na periferia quando se distanciaram e consideraram que a base era “menos importante eleitoralmente do que televisão e políticas populares, de melhora do bem estar, como Bolsa Família, Minha Casa Minha Vida, etc. Não há espaço vazio em política. Outros grupos, como as polícias militares (que têm horas de programa diário na TV aberta, dentro das casas das periferias, com figuras carismáticas como apresentadores), os evangélicos (com suas ações midiáticas e de base), bem como o empreendedorismo do mercado de trabalho, têm estado bem mais perto. E estando perto, ganham eleição ali”.

    Notas

    1 Andréia Galvão é professora do Departamento de Ciência Política da Unicamp

    2 Sérgio Fausto é superindente do Instituto Fernando Henrique Cardoso e da USP

    3 Giovanni Alves é professor do Departamento de Sociologia e Antropologia da Unesp

    4 Gabriel de Santis Feltran é professor do Departamento de Sociologia da UFSCar

    5 Para ler a entrevista de Feltran: http://apublica.org/2017/04/as-esquerdas-perderam-votos-na-periferia-quando-deixaram-de-ser-esquerdas-diz-pesquisador/

    6 Para assitir o debate completo reaizado na FPA: https://www.facebook.com/fundacao.perseuabramo/videos/1414378015288766/

  • Para onde vai a democracia?

    Para onde vai a democracia?

    Amargar um golpe à direita, consolidado por eleições municipais. Eis o que temos para esse fim de ano. Uma alternativa a padecer, talvez seja voltar o olhar para outros arranjos de poder em outros países e em outras regiões. Se não muda o estado das coisas ao nosso redor, ao menos conforta-nos saber tragados por uma onda planetária, perceber que somos resultado da tensão que o modelo capitalista neoliberal impõe aos semiperiféricos, espremidos entre o centro e a periferia. Anima-nos, sobretudo, perceber que há quem se sinta exatamente como nós nos sentimos, que há quem nos sugira modos de avaliar os caminhos de ação. Esse é o alento que nos sopra Boaventura Sousa Santos, em A Difícil Democracia.

    O neoliberalismo é uma máquina imensa de produção de expectativas negativas para que as classes populares não saibam as verdadeiras razões de seu sofrimento, se conformem com o pouco que ainda têm e sejam paralisadas pelo pavor de perdê-lo.” (p.199)

    O que vem à mente quando aprendemos que o modelo neoliberal da União Europeia não foi escolhido pelo voto popular? Há paralelos entre a adoção de regras antidemocráticas fundadas na lógica do capital financeiro internacional nos tratados da Europa e no Brasil do golpe?

    As instituições europeias são hoje o principal agente de imposição da lógica neoliberal em contradição explícita com a tradição social-democrática que presidia o projeto europeu. Isso não quer dizer que a social-democracia tenha desaparecido totalmente. Significa apenas que, em poucos anos, deixou de ser um desígnio europeu e um fator de coesão europeia para passar a ser um privilégio dos poucos países que “merecem” ser social-democratas. Assim, a Alemanha, que é hoje o país dirigente da União Europeia, defende internamente as mesmas políticas social-democráticas que “proíbe” nos países do sul da Europa, seu protetorado informal. Não há projeto europeu; há tão somente uma inércia que é tanto mais ruinosa quanto menos se reconhece como ruína. (p. 10)

    Na América Latina, após breve interregno progressista, voltamos à dominação “pelo monopólio de uma concepção de democracia de tão baixa intensidade que facilmente se confunde com a antidemocracia. Com cada vez mais infeliz convicção, vivemos em sociedades politicamente democráticas e socialmente fascistas…” (p. 13 e 14)

    Sousa Santos nos instiga com termos aos quais não estamos habituados como fascismo social, demodiversidade, neoapartheid, democracia neoliberal, colonialismo interno, democracia participativa, sociologia das emergências, pluriverso. Termos que nos auxiliam a compreender o mundo em que vivemos.

    Vejamos o que Sousa Santos nos ensina sobre o mercado de valores e o mercado político, na democracia liberal e na democracia neoliberal.

    Para a democracia liberal, há dois mercados de valores: o mercado político da pluralidade de ideias e convicções políticas em que os valores não têm preço, precisamente porque são convicções ideológicas de que se alimenta a vida democrática; e o mercado econômico, que é o mercado dos valores que têm preço, o qual é precisamente determinado pelo mercado de bens e serviços. Esses dois mercados devem manter-se totalmente separados para que a democracia liberal funcione de acordo com seus princípios. Ao contrário, a democracia neoliberal dá total primazia ao mercado dos valores econômicos e, por isso, o mercado dos valores políticos tem de funcionar como se fosse um mercado de ativos econômicos. Ou seja, mesmo no domínio das ideologias e das convicções políticas, tudo se compra e tudo se vende. Daí a corrupção endêmica do sistema político, corrupção não só funcional, como necessária. A democracia, enquanto gramática social e acordo de convivência cidadã, desaparece para dar lugar à democracia instrumental, a democracia tolerada enquanto serve aos interesses de quem tem poder econômico e social para tanto. (P. 21 e 22)

    Nosso grau de esperança por tempos menos desiguais, por tempos em que nossa existência faça mais sentido, encontra-se, possivelmente, em seus menores valores históricos. Desapareceram “os vários imaginários de emancipação social que as classes populares geraram com suas lutas contra a dominação capitalista, colonialista e patriarcal. O imaginário da revolução socialista foi dando lugar ao imaginário da social-democracia, e este, ao imaginário da democracia sem adjetivos e apenas com complementos de direitos humanos”. (p. 22)

    Dizemos e repetimos, aos quatro ventos, que a melhor forma de governo é a democracia. Vivemos, porém, em uma democracia sem adjetivos e é imperioso qualificá-la: a democracia liberal representativa não é única.

    Democratizar significa despensar a naturalização da democracia liberal representativa e legitimar outras formas de deliberação democrática (demodiversidade); procurar novas articulações entre democracia representativa, democracia participativa e democracia comunitária; e, sobretudo, ampliar os campos de deliberação democrática para além do restrito campo político liberal que transforma, como indiquei, a democracia política numa ilha democrática em arquipélago de despotismos: a fábrica, a família, a rua, a religião, a comunidade, os mass media, os saberes etc. (p. 145)

    O que une capitalismo, colonialismo e patriarcado? Essas três formas de dominação estão perfeitamente articuladas, concatenadas, para a manutenção do poder nas relações sociais, econômicas, culturais e internacionais. Uma das palavras-chave propostas, portanto, é descolonizar.

    Descolonizar significa erradicar das relações sociais a autorização para dominar os outros sob o pretexto de que são inferiores: porque são mulheres, porque têm uma cor de pele diferente ou porque pertencem a uma religião distinta. (p.180 e 181)

    Para completar, com a terceira palavra palavra-chave da audácia a ser empreendida para agendas transformadoras, Sousa Santos nos indica desmercantilizar: estancar a crença de que o capitalismo é obra da natureza, a crença de que tudo tem valor em moeda, de que tudo se compra e tudo se vende por dinheiro.

    Desmercantilizar é o despensamento da naturalização do capitalismo. Consiste em subtrair vastos campos da atividade econômica à valorização do capital (a lei do valor): economia social, comunitária e popular, cooperativas, controle público dos recursos estratégicos e dos serviços de que depende diretamente o bem-estar dos cidadãos e das comunidades. Significa, sobretudo, impedir que a economia de mercado alargue seu âmbito até transformar a sociedade numa sociedade de mercado (na qual tudo se compra e tudo se vende, incluindo valores éticos e opções políticas), como está a acontecer nas democracias do Estado de mercado.

    Ao contrário do que pretende o neoliberalismo, o mundo só é o que é porque nós queremos. Pode ser de outra maneira, se a isso nos propusermos.” (p. 186)

    Se, às vezes, deixamos de compreender certas agressões aparentemente insensatas, precisamos da ajuda de Sousa Santos para vislumbrá-las na adequada perspectiva:

    A burguesia teve sempre pavor de que as maiorias pobres tomassem o poder e usou o poder político que as revoluções do século XIX lhe concederam para impedir que isso ocorresse. Concebeu a democracia liberal de modo a garantir isso mesmo por meio de medidas que mudaram no tempo, mas mantiveram o objetivo: restrições ao sufrágio, primazia absoluta do direito de propriedade individual, sistema político e eleitoral com múltiplas válvulas de segurança, repressão violenta de atividade política fora das instituições, corrupção dos políticos, legalização dos lóbis. E sempre que a democracia se mostrou disfuncional, manteve-se aberta à possibilidade do recurso à ditadura, o que aconteceu muitas vezes. (p. 191)

    Enfrentemos serenamente a questão: temos de começar tudo de novo?

    Sinais relevantes, quando tentamos prever o futuro das esquerdas, são os pactos recém-firmados na Europa e a possibilidade de que também ocorram na América Latina.

    A família das esquerdas não tem uma forte tradição de pactos. Alguns ramos dessa família têm mais tradição de pactos com a direita do que com outros ramos da família. Dir-se-ia que as divergências internas na família das esquerdas são parte de seu código genético, tão constantes têm sido ao longo dos últimos duzentos anos…À luz dessa história, merece uma reflexão o fato de em tempos recentes termos assistido a um movimento pactista entre diferentes ramos das esquerdas em países democráticos. (p. 198)

    O pacto resulta de uma leitura política de que o que está em causa é a sobrevivência de uma democracia digna do nome e de que as divergências sobre o que isso significa têm agora menos premência do que salvar o que a direita ainda não conseguiu destruir. (p. 199)

    A política de esquerda tem de ser conjuntamente anticapitalista, anticolonialista e antisexista, sob pena de não merecer nenhum desses atributos.” (p. 207)

    No epílogo de seu livro, Boaventura Sousa Santos “transporta-se” para o ano 2050 e conta-nos como enxergou o tempo em que hoje vivemos.

    O capitalismo, que se assentava nas trocas desiguais entre seres humanos supostamente iguais, disfarçava-se tão bem de realidade que o próprio nome caiu em desuso. Os direitos dos trabalhadores eram considerados pouco mais que pretextos para não trabalhar. O colonialismo, que se baseava na discriminação contra seres humanos que apenas eram iguais de modo diferente, tinha de ser aceito como algo tão natural como a preferência estética. As supostas vítimas de racismo e de xenofobia eram sempre provocadoras antes de ser vítimas. Por sua vez, o patriarcado, que assentava na dominação das mulheres e na estigmatização das orientações não heterossexuais, tinha de ser aceito como algo tão natural como uma preferência moral sufragada por quase todos. Às mulheres, aos homossexuais e aos transsexuais haveria que impor limites se elas e eles não soubessem manter-se em seus limites. Nunca as leis gerais e universais foram tão impunemente violadas e seletivamente aplicadas, com tanto respeito aparente pela legalidade. O primado do direito vivia em ameno convívio com o primado da ilegalidade. Era normal desconstituir as constituições em nome delas. (p. 210)

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    Santos, Boaventura de Sousa. A difícil democracia: reinventar as esquerdas. São Paulo, Boitempo, 2016. 220 p.