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Tag: Mulheres Negras

  • MÔNICA CUNHA: Apesar das marcas em nossos corpos, me levanto

    MÔNICA CUNHA: Apesar das marcas em nossos corpos, me levanto

    Mônica Cunha é ativista de Direitos Humanos e fundadora do Movimento Moleque

    Ainda assim me levanto, para ter direito à quarentena como prevenção à Covid-19.

    Ainda assim me levanto, para ter acesso a uma alimentação de qualidade e não ser condenado à fome pela inércia deste governo genocida.

    Ainda assim me levanto, para respirar e, assim, mostrar que estamos vivos e, enquanto povo negro, seguiremos resistindo.

    Ainda assim me levanto, para provar que nossa história e cultura são valorosas, não apenas para o povo negro, mas para toda a humanidade.

    Ainda assim me levanto, para denunciar que, se vivemos em favelas e periferias, sem acesso a saneamento básico, saúde e a outros direitos sociais, é porque a abolição de 13 de maio de 1888 não passou de uma fake.

    Ainda assim me levanto, para dizer que, se negros e negras recebem salários menores que brancos e brancas, é porque existe o racismo é estrutural e se manifesta na relações de trabalho e econômicas.

    Ainda assim me levanto, para lutar para que outras mulheres negras não chorem por seus filhos, sobrinhos e companheiros. Vidas negras não são descartáveis.

    Ainda assim me levanto, para que jovens mulheres negras possam pensar em ser mães sem ter medo do racismo institucional das polícias que insiste em matar jovens negros.

    Ainda assim me levanto, para dizer que, enquanto houver tiros e mortes nas periferias e favelas, nos manifestaremos de todas as formas para denunciar o racismo da violência de Estado e exigir uma política de segurança centrada na garantia de direitos.

    Ainda assim me levanto, para dizer a negros e negras que somos descendentes de reis e rainhas escravizados pelo colonialismo europeu e que é necessária a reparação ao povo negro pela diáspora africana.

    Ainda assim me levanto, para respirar fundo e gritar aos quatros cantos do mundo: VIDAS NEGRAS IMPORTAM!!!

     

  • “Não peçam sororidade de mulheres negras com racista”

    “Não peçam sororidade de mulheres negras com racista”

    Por Flavia Ribeiro*, especial para os Jornalistas Livres

     

    Eu não tenho sororidade com racista. Sou mulher, sou feminista negra afroamazônica, mas não sou do tipo que ensina racista com paixão e empatia…

    Não me digam que preciso arrancar irmandade para dedicar a quem apoiou publicamente o William Waack, após sua demissão por uma fala racista que foi vazada e que veio à público. Não dá para exigir de mim esse sentimento, não para a mulher que minimizou a escravização de pessoas negras no Brasil. Efeito que faz com que o grupo que representa mais da metade da população brasileira não esteja ocupando uma vaga no ensino superior… Daí ela fez chacota das cotas raciais.

    Ela que não tem qualquer sentimento de empatia com o “marginalzinho amarrado no poste” e queria lançar a campanha de “adote um bandido” para “defensores de direitos humanos”. Ela que defende o direito do cidadão de bem andar armado… Ora qual o perfil das pessoas linchadas historicamente? A cada 23 minutos um jovem negro é assassinado. As mulheres negras são maiores vítimas do feminicídio. Há um genocídio ocorrendo neste país!

    Agora, ela se sentiu ofendida com a declaração do Coronel Mourão e vale ressaltar que ele não estava falando dela. Quando ele disse que famílias de “mãe e avó de áreas pobres são fábricas de elementos desajustados”, ele estava falando de um estereótipo. A ofensa foi direcionada ao grupo que é maioria entre os mais pobres do Brasil. Muitas das vítimas das ofensas sequer tiveram acesso a essa declaração.

    Não estou dizendo que a vida dela e das outras mulheres brancas que se sentiram ofendidas não tem valor, não devem ser enaltecidas, só que ele não estava ofendendo essas pessoas.

    Até bem pouco tempo o apoio ao Coiso estava bem declarado e agora ela mudou. Pediu desculpas por todas as declarações que deu? Eu não faço aliança com quem tem esse histórico apenas porque reviu a posição em relação a um aspecto.

    A Rachel é uma mulher, precisa ser respeitada e tem todo o direito de de manifestar.

    Mas não, eu não tenho sororidade com ela!

     

    *Flávia Ribeiro é mãe, feminista negra afroamazônica e jornalista

    Foto de Raoni Arraes

     

  • Cuidemos de nossas meninas

    Cuidemos de nossas meninas

    Dez mulheres procuraram a Delegacia da Mulher de Florianópolis para denunciar assédio sexual e moral praticado por professor de História da Universidade Estadual de Santa Catarina, UDESC . Uma dessas acusações é de estupro, que teria ocorrido na casa do denunciado no município de Palhoça, fora, portanto, do espaço da universidade.
    As denúncias dão conta de que o assédio sexual e moral teria tido vez nas dependências do Centro de Ciências Humanas e da Educação, na sala de orientação pedagógica, durante encontros reservados de orientação acadêmica.
    O perfil das denunciantes tem em comum o fato de serem mulheres negras, cotistas e bolsistas As não-negras pertencem a grupos sociais vulneráveis, são cotistas e bolsistas também.
    A denúncia de estupro, feita em fevereiro deste ano, encorajou as que foram objeto de assédio a também erguerem a voz. Por esse motivo, elas têm sido constrangidas e ameaçadas.
    Nas redes sociais pessoas apontam o quão inquietante é saber que todas as pessoas envolvidas (quase todas), notadamente o professor, são negras. Se comprovadas as denúncias, ficará explícita a operação de uma lógica perversa e cruel, embora seja redundante somar esses dois adjetivos.
    Vejamos. Como o racismo opera nesses casos de assédio sexual? Se um homem negro assedia uma mulher branca, é muito provável que o sistema racista não o deixe escapar, porque em alguma medida, ainda que mínima, mulheres brancas devem ser protegidas, principalmente de homens animalizados pelo sistema, os negros, no caso. Mas o que conta mesmo é a exclusividade de um produto no mercado de corpos para os homens brancos.
    Se um homem branco assedia uma mulher negra, o sistema racista relativizará o crime e provavelmente o perdoará, porque às mulheres negras é atribuído o não-valor social e qualquer um é instado a dispor de seu corpo sem penalização.
    Se um homem negro assedia uma mulher negra, ele o faz em estado de consciência plena de que poderá se beneficiar do sistema que menospreza a mulher negra, para ficar impune. Ele acredita que ao usar esse estratagema se auto-protege. De fato, o faz, afinal, se o assédio for a uma mulher branca, principalmente àquelas pertencentes aos grupos branco-hegemônicos, o sistema irá trucidá-lo. Ele sabe como saciar suas taras e como se manter vivo, para tanto, escolhe a destruição daquelas que deveriam ser tratadas como suas companheiras de destino, por sofrerem a mesma opressão racial.
    Ao fim de tudo, o que concluímos neste e em inúmeros outros cenários, é que as mulheres negras estão por sua própria conta.
    Uma das cenas de abertura do filme Pantera Negra, não discutida nas resenhas sobre a narrativa, é emblemática dos processos de fragilização a que as mulheres negras estão expostas.
    Diante da iminência da coroação como novo rei, após a morte de T’Chaka, T’Challa, o filho-herdeiro, não pode ser coroado sem a presença de Nakia, seu grande amor. Ela está envolvida em missão (de salvamento de mulheres, descobriremos depois) fora de Wakanda. T’Challa encontra Nakia assentada dentro de um caminhão que transporta várias mulheres islamizadas, reféns de um grupo de homens fortemente armado. Ora, quem está atenta a África contemporânea e suas idiossincrasias, poderá ver ali, referência ao seqüestro de mulheres pelo Boko Haram, grupo terrorista islâmico da Nigéria.
    Os relatos das mulheres resgatadas ou fugitivas informam que as cristãs são obrigadas a se converterem ao Islamismo, antes de serem sexualmente escravizadas pelos terroristas. Quando conseguem voltar para casa, essas meninas, moças e mulheres não têm mais um lugar social nas comunidades de origem. São punidas porque foram escravizadas sexualmente. Mesmo as mães que lutaram por sua liberdade, não sabem o que fazer quando elas voltam à vida civil. E essas mulheres se vêm sozinhas e desamparadas por completo.
    Quem é pelas mulheres negras que denunciam assédio sexual e moral aqui nesse pedaço da diáspora negra? Quem as escuta? Quem considera suas vozes? Quem não as trata como vis mentirosas até que provem os abusos, enquanto se sentem expostas, pois sua palavra é totalmente desqualificada? Quem dá crédito às suas palavras na primeira hora da denúncia? Quem as protege? Quem se preocupa com os danos emocionais e psicológicos, acadêmicos, profissionais e patrimoniais sofridos por elas?
    Há três anos, mulheres organizadas da Universidade Estadual da Bahia, UNEB, lograram exonerar um professor assediador que segue respondendo processo na justiça, acusado por professoras e estudantes. A situação aconteceu no Campus de Eunápolis, Sul do Estado. A denúncia foi feita na universidade e também no Ministério Público, para enfrentar o corporativismo machista que protege os pares. É digno de nota que, por razões de segurança, três estudantes e uma professora foram transferidas para o Campus de Salvador. Nesse ínterim, outra professora sucumbiu à pressão emocional do processo e por pouco não conseguiu interromper a própria vida numa tentativa de suicídio.
    A diretora do Diretório Acadêmico Oito de Maio, gestão Sankofa, Maria Carolina, responsável por acolher as denúncias de assédio sexual e moral contra um professor de História da UDESC e por encaminhá-las à Direção Geral da universidade, está sendo ameaçada, bem como as denunciantes e testemunhas.
    Ora, cabem as perguntas: quem tem poderes para ameaçar? Quem tem instrumentos para coagir e fazer calar? Em nossa estrutura social, que grupos costumam tomar esse tipo de atitude? São os que defendem as pessoas como sujeitos de direitos? São os bandidos? As milícias? Quem são? De que poder material (capacidade de violentar e matar por meio de armas, armadilhas, tocaias, acidentes forjados) e simbólico, expresso principalmente na subordinação de afetos: medo, angústia, solidão, gratidão, culpa, admiração, isolamento, vergonha, abandono, esses grupos dispõem?
    Quem ameaça depoentes num processo abala sua própria presunção de inocência.
    Que sejamos capazes de ouvir nossas meninas, nós, mulheres e homens comprometidos com a justiça, a decência, já que não conseguimos protegê-las do assédio sexual e moral. Que sejam rompidas todas as teias que obrigam meninas e mulheres violentadas ao silêncio envergonhado. Ao acabrunhamento provocado pela defesa generalizada a abusadores. Pela insinuação de que, “se elas não reclamaram antes é porque estavam gostando, porque eram coniventes”.
    Não! Ninguém gosta de ser subjugada, humilhada, violentada. Só a cabeça de psicopatas é capaz de imaginar esse suposto prazer. As mulheres abusadas têm se calado porque sua psiquê é gravemente ferida pelo abuso; porque se sentem desesperadamente sozinhas, fragilizadas, inseguras, amedrontadas, acuadas. Descrentes da humanidade. Zelemos por elas, como faríamos por nossas filhas, antes que seja tarde.
  • Cidinha da Silva: Julho das Pretas

    Cidinha da Silva: Julho das Pretas

    Em 1992, durante o Primeiro Encontro de Mulheres Afro-latino-americanas e Afro-caribenhas na República Dominicana, instituiu-se o 25 de julho, Dia Internacional da Mulher Negra Latino-americana e Caribenha. Em 2014, a Presidenta Dilma sancionou esta mesma data como Dia Nacional Tereza de Benguela e da Mulher Negra.

    Desde o estabelecimento da comemoração na década de 1990, tem crescido no Brasil o volume de eventos políticos e culturais que objetivam discutir questões caras às mulheres negras, ao tempo que também fazem circular sua produção intelectual e artística. Dessa forma, afirma-se o mês de julho como mês das mulheres negras brasileiras, pautado por programação ativa, crítica e reflexiva que as tem como grandes timoneiras. Tanto aquelas oriundas de organizações mais convencionais, quanto as outras, integrantes de novíssimos coletivos políticos. Também aquelas que se juntam para propor um programa exclusivo no Julho das Pretas.

    Mais do que fazer uma cartografia dos eventos, nomeando-os e localizando-os no espaço político-geográfico, interessa-me registrar e agregar algumas características gerais, muito positivas, cuja sistematização pode vir a ter alguma utilidade para o futuro. Interessa-me mais o tempo político desses acontecimentos.

    A primeira característica que me move é geracional. Noto um protagonismo de mulheres negras que estão entre trinta e quarenta anos e que têm se responsabilizado por estabelecer pontes entre sua própria geração e as mulheres de menos de trinta, bem como entre as maiores de quarenta, cinqüenta, sessenta, setenta anos…

     

    As mais velhas, principalmente, as bem mais velhas, têm sido tratadas nesses momentos como sábias senhoras. Isso vai da designação de espaços, assentos especiais, aos cuidados carinhosos e destaque aos lugares de fala das mais experientes.

    As juventudes, por sua vez, têm sido instadas a interagir com as mais velhas e a aprender pela troca, pela experiência e pelo exemplo.

    Essa posição de ponte exercida pelas balzaquianas tem sido fundamental para promover um diálogo fluido, pleno de frestas e sem arestas, que se vale também de manifestações culturais e de apresentações artísticas para promover e discutir política, além dos necessários debates temáticos.

    Existe um diálogo freqüente e profícuo com as novas tecnologias de comunicação. Os registros são de alta qualidade no formato de livros bonitos, leves e dinâmicos; áudios igualmente bem feitos, alguns curtos, outros longos, disseminados pela Web. Não raro, podemos acompanhar os eventos em transmissões feitas em tempo real, em qualquer parte do país, quiçá do mundo.

    Por fim, as organizadoras do Julho das Pretas, por todo o país, têm sido capazes de mobilizar significativos públicos negros, não necessariamente filiados a organizações políticas, nem mesmo aos novíssimos coletivos políticos ou culturais formados para atuar na Web ou a partir dela.

    Trata-se de mulheres negras, jovens, a maioria, interessadas em processos de afirmação identitária, discussão política, arte, estética e cultura negras, aprendizados múltiplos, trocas entre pares e sustentação ao protagonismo de mulheres negras.

    O Julho das Pretas veio para ficar e para transformar.