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  • Lula fala ao povo: quando o discurso funda a História

    Lula fala ao povo: quando o discurso funda a História

    Por Rosane Borges***, especial para os Jornalistas Livres

     

    Dos discursos e seus ecos

    Seja pela vocação que têm para suscitar outros/novos modos de existência, seja por instituírem novas configurações da política, seja por inventarem novas bússolas para a travessia de nossas vidas, alguns discursos se consagraram na História como prenúncio ou advento de um “novo tempo, apesar dos perigos”.

    Num amplo arco, recordemos, entre tantas, algumas falas de repercussão sísmica, como o audacioso discurso “E eu não sou uma mulher”?, da estadunidense Sojourner Truth, ex-escravizada que demoliu a Women’s Rights Convention, em Ohio. Na ocasião, 1851, Truth questionou porque as mulheres brancas eram privilegiadas e as mulheres negras vistas como inferiores, intelectual e fisicamente, úteis somente para o trabalho braçal.

    Menção obrigatória deve ser feita também ao discurso de posse de Nelson Mandela (“Nosso maior medo não é sermos inadequados. Nosso maior medo é que nós somos poderosos além do que podemos imaginar. É nossa luz, não nossa escuridão, que mais incomoda…”). No mesmo diapasão, está o discurso memorável de Martin Luther King (“Eu tenho um sonho”).

    O celebrado “Saio da vida para entrar na História”, redigido na última linha da carta-testamento de Getúlio Varga endereçada ao povo brasileiro, é outro fragmento discursivo com desdobramentos importantes, especialmente para o próprio presidente, que escreveu o documento horas antes de se matar, em 24 de agosto de 1954.

    Com a missiva, Getúlio refunda a História, opera um movimento no sentido anti-horário em sua biografia, tonifica a memória sobre ele, convertendo significantes negativos em signos que favoreceram a reprojeção da imagem, então ameaçada, de estadista.

    Na atmosfera do golpe, compõe a galeria de exemplos a defesa da presidenta Dilma Rousseff em agosto de 2016, no Senado Federal. Embora Dilma não tenha proferido necessariamente um discurso, mas elaborado argumentos e contra-argumentos para sua defesa, pode-se destacar da sabatina a sua coragem em cair de pé, num jogo que já estava jogado. A presidenta não foi convencer as “Suas Excelências” de que era inocente, mas dizer a eles e ao povo brasileiro que tinha dignidade para olhar frontalmente em quem não tinha estatura, nem elementos, para efetuar sua condenação. Com a defesa, Dilma preparou uma memória futura para uma história que se encerraria de maneira infausta para ela.

     

    “A partir de agora minhas ideias vão se misturar com as ideias de vocês”

     

    Eis que em mais uma volta do parafuso do golpe de 2016, Moro decreta, em velocidade inédita, a prisão do presidente Lula logo depois de o recurso do habeas corpus ter sido negado pelo STF, na última quinta-feira, 5.

    Reafirmando que é dono do seu destino, Lula definiu, com altivez e serenidade, o momento de sua apresentação, deixando frustrada a turma de Curitiba, a mídia hegemônica (a Globo teve que engolir a única possibilidade de transmitir os acontecimentos pelas imagens da TVT) e os paulistanos agressores de panelas, no crepúsculo desta sexta-feira, 6. Em suma, colocou todos eles no bolso. Coisa de gênio!

    Mas o ponto alto da mobilização no Sindicato dos Metalúrgicos em São Bernardo do Campo, que recebeu um mar de gente nestes dois dias (foi tudo muito lindo, há que se dizer), foi o discurso antológico de Lula, que pode ser comparado a um rio com múltiplos afluentes, por ser indutor de esperanças várias. Lula provocou estímulos inabarcavelmente amplos. De sua fala surgiram vários rebentos de maternidade/paternidade coletiva: assim como Luther King ele também sonhou (e realizou), falou do que assusta os inimigos, como mencionou Mandela, e não se curvou na derradeira hora, seguindo a atitude exemplar de Dilma Rousseff.

    O pronunciamento de Lula guarda semelhanças com a carta-testamento de Getúlio. Ambos nos ensinaram, a partir de ângulos diferentes, que é o discurso que funda a História e não o contrário. Tema espinhoso que habita os arredores da filosofia da linguagem, das teorias do discurso e da enunciação, o par discurso X história é próprio da luta política. Manejá-lo bem, é saber estabelecer parâmetros precedentes para o que se diz e, pela fala, restaurar a história e o movimento do mundo.

    A psicanálise nos ensinou que a realidade é o discurso, que o seu habitat natural é a linguagem. Mas os discursos e, portanto, as realidades que fundam e definem, não são quaisquer coisas: são articulações (relações) determinadas, estruturam o mundo histórico-social e são por ele estruturadas. Além disso, são passíveis de transformações e têm funções.

    Pode-se insistir, com razão, que ao contrário de Getúlio Vargas, Lula não opera um movimento anti-horário para dignificar o seu passado. Não. Ele não precisa disso. O seu pronunciamento exerce uma função indispensável num presente que prepara dias cada vez mais difíceis para todos nós: ele possibilita que voltemos a sonhar com um futuro em que prosperidade, justiça e igualdade sejam cimentos para a edificação de um outro país.

    Num mundo e num país poliperspectivamente partido, quando Moro anuncia que “já era” para Lula, eis que ele inverte, com o pronunciamento, os elementos dessa equação e anuncia que na verdade tudo só está começando. “A partir de agora minhas ideias vão se misturar com as ideias de vocês.”

    Vindo de onde veio, é um homem forte, audacioso que, na condição de prisioneiro político, coloca o judiciário brasileiro no subsolo da História, ao passo que o pé direito de sua edificação política ficou mais alto (mas as mãos que a construíram seguiram certamente à esquerda). Lula mitou again!

     

    veia neste link a transcrição, na íntegra, do discurso de Lula

    #LulaLivre

     

    ***Rosane Borges, 42 anos, é jornalista, professora universitária e autora de diversos livros, entre eles “Esboços de um tempo presente” (2016), “Mídia e racismo” (2012) e “Espelho infiel: o negro no jornalismo brasileiro” (2004).

  • Qual é o limite entre a “arte” e a calúnia, a injúria e a difamação?

    “O cineasta José Patilha – apelido adquirido pelo formato de sua barba –, diretor de Tropa de Grafite, e a provedora de filmes Netsucks receberam milionário apoio financeiro da CIA (Central de Inteligência Artificial) e dos irmãos Koch, familiares do ex-tenista brasileiro, para produzir e divulgar seu novo trabalho: O Maquinismo. A série, nesse ano eleitoral, visa buscar apoio dos brasileiros a políticos que mantenham e ampliem a subordinação do Brasil aos interesses de Washington.”

    Essa afirmação, cunhada somente para exemplificar o método usado por Padilha, pode ser encarada como liberdade artística? Poética? Não há um propósito claro de criar suspeitas sobre a dupla cineasta e provedora de filmes?
    Ruffo e Verena, policiais, são adoráveis, meus heróis. O juiz é sóbrio, correto, firme e discreto. Como não se apaixonar? O Cláudio, procurador, faz jus à qualificação que Ruffo lhe carimba na testa, no final. Em meio a exemplos de virtude e de velhacaria, Padilha e Netflix enquadram Lula e Dilma no segundo time. A série, O Mecanismo, da dupla Padilha e Netflix seria uma boa diversão, se não fosse uma obra empreendida para apoiar o golpe, ao criticar genericamente a corrupção e atribuir atos não comprovados à Lula e ao PT.

     

    Chamar a Petrobras de Petrobrasil, Dilma de candidata Janete Ruscok, Lula de presidente, Temer de Thames, a JBS de “açougueiros de Goiânia”, entre outras charadas frívolas, dá, a Padilha e à Netflix, o direito de caluniar, injuriar e difamar?

    “Estancar a sangria”, frase proferida pelo senador Romero Jucá (MDB), aliado fiel de Temer, foi gravada pela Polícia Federal, vazada e amplamente divulgada pelos meios de comunicação e mídias sociais. Pois bem, a dupla Padilha Netflix coloca a frase na boca do presidente Lula. Além de mostrá-lo, no apartamento do Guarujá, tentando obstruir a Lava Jato.

    O filme mostra um ex-ministro da justiça, Mário Garcez Brito, tentando negociar o fim das investigações com um grande acordo entre os empreiteiros e o procurador-geral. Esse ex-ministro, chamado de “o mago” e na sequência “o bruxo”, esteve no governo de 2003 a 2007 e se apresenta, na série, com graves problemas pulmonares. Essa caracterização não é exatamente igual a dizer que se tratava de Márcio Thomaz Bastos, ministro da justiça entre 2003 e 2007, que morreu de câncer no pulmão em novembro de 2014?

    Estarão Padilha e Netflix, bem como seu panfleto, acima da lei?

    Dizer que é uma “ficção inspirada livremente em eventos reais” confere poderes à dupla Padilha Netflix de misturar fatos com invencionices politicamente dirigidas? Nos créditos finais informam, ainda, que “Os personagens e eventos representados neste programa são fictícios. Não há intenção de retratação de pessoa e/ou eventos reais.” A intenção de Padilha é evidente. É coerente com sua posição política amplamente conhecida.

    Padilha assegurou, em entrevista (2016) ao Instituto Millenium – que congrega expoentes da direita nacional – que a Lava Jato “não tem viés político nenhum”. Perguntado – no que a corrupção do governo petista se diferencia da que se via antes? – Padilha assegurou que:

    A política no Brasil – nas esferas municipal, estadual e federal – sempre funcionou assim: os partidos elegem seus representantes e indicam pessoas para cargos-chave com poder de contratar serviços públicos. Depois, superfaturam as obras e embolsam um pedaço do dinheiro, que vai para pessoas físicas e o financiamento de campanhas. O PT fez isso em volumes muito maiores – vide a compra da Refinaria de Pasadena. E o caso do PT também é pior porque o roubo sistêmico se soma a um enorme cinismo. Lula, antes, fazia o discurso da ética e da moralidade. Mas, quando chegou ao poder, não só montou seu esquema como levou ao limite da sustentabilidade o assalto a empresas estatais e órgãos públicos. Um político assim só poderia chamar para si mais ódio do que os outros, obviamente.

    Precisamos de mais alguma informação para saber de que lado Padilha está?
    A Lava Jato, há 4 anos, revira a vida de Lula e, para condená-lo, baseou-se em um apartamento que não está em seu nome, nunca foi de sua posse. A acusação não conseguiu demonstrar atos que liguem Lula, à Petrobras e à empreiteira. A Polícia Federal, o Ministério Publico e o Judiciário não conseguiram comprovar o que a dupla Padilha e Netflix afirma, sob uma cortina de fumaça que tentar nublar os fatos, com apelidos pueris na série o Mecanismo.

     

    Pode-se, através de pretenso trabalho artístico, acusar desse modo impunemente?

    Perversidade vergonhosa desse folhetim foi, também, usar o mestre Nélson Cavaquinho e a música Juízo Final. Ele, Nélson, não merecia essa afronta, Patilha.

    Do mal será queimada a semente
    O amor será eterno novamente

    A Lava Jato queimará a semente do mal? Sei…

  • A intervenção militar no Rio: dos juízes aos generais

    A intervenção militar no Rio: dos juízes aos generais

    Artigo de Luiz Eduardo Soares*

    A situação da segurança pública no Rio é gravíssima e, portanto, não há mais lugar para discursos oficiais defensivos e auto-indulgentes. O crime organizado se espalhou como por metástase, mas note bem: só há crime organizado quando estão envolvidos agentes do Estado. Segmentos numerosos e importantes das instituições policiais não apenas se associaram ao crime, mas o promoveram – e aqui se fala sobretudo no mais relevante: tráfico de armas, crime federal. O que fez a Polícia Federal ? O que fez o Exército, responsável com a PF pelo controle das armas? O que fez a Marinha para bloquear o tráfico de armas na Baía de Guanabara? O Estado do Rio está falido, suas instituições profundamente atingidas, mas o que dizer do governo federal e dos organismos federais? De que modo uma ocupação militar resolveria questões cujo enfrentamento exige investigação profunda e atuação nas fronteiras do estado, além de reformas institucionais radicais e grandes investimentos sociais?

    Os próprios militares sabem que não podem nem lhes cabe resolver o problema da insegurança pública. Sua presença transmitirá uma sensação temporária de que o Rio se acalmou, porque os sintomas estarão abafados, mas nada será solucionado e a solução sequer será encaminhada. Basta analisar o que se passou na Maré: o Exército ocupou as favelas por um ano, desgastou-se na relação com as comunidades, a um custo de R$ 600 milhões, e tão logo as tropas se retiraram, os problemas retornaram com mais força.
    Já que não se trata de enfrentar os verdadeiros e permanentes desafios da segurança pública, muito menos resolvê-los, a que serve a intervenção: são três, a meu ver, suas funções, todas de natureza eminentemente política – é lamentável que os militares se prestem a esse papel, deixando-se manipular, politicamente, como peões em um jogo de cartas marcadas.

    1 – Muda-se a narrativa sobre a realidade do Rio, investindo-se na expectativa sebastianista da redenção, que se realizaria, nesse caso, pelas Forças Armadas, em especial o Exército, e pelo governo federal. Um projeto dessa magnitude não seria implantado sem um acordo com a grande mídia, porque sua descrição dos fatos e sua escolha de focos serão decisivas para o êxito político da operação. Ela consistirá essencialmente no deslocamento de Bolsonaro, abrindo-se um espaço para que uma candidatura de centro-direita, em nome da lei e da ordem, mas legalista, capture o eleitorado de direita: ter-se-ia, assim, uma espécie de bolsonarismo sem Bolsonaro. Sai o capitão aventureiro e desorienatdo e entram generais formalmente legalistas, embora “duros”. Abre-se novo espaço para candidaturas no Rio e no país, e para a emergência de lideranças “de fora da política” e “impolutas”. Parece que está em curso uma transição: aos poucos, deixamos de ser o país dos juízes para nos tornarmos a nação dos generais – de novo, ainda que, dessa vez, com cobertura legal, uma vez que, depois do impeachment, qualquer atropelo às leis poderá ser tolerado desde que os fins justifiquem, para seus operadores, os meios.

    As denúncias relativas ao auxílio moradia contra Moro e Bretas, poucos dias depois da condenação de Lula em segunda instância, deixa claro que, para a mídia e as elites que mandam no país, em particular o capital financeiro e seus sócios internacionais, o papel dos magistrados já foi cumprido e agora é tempo de “cortar suas asinhas” para evitar que acreditem no próprio personagem e avancem sobre o PSDB, os bancos e as corporações midiáticas. Como se vê, a intervenção militar no Rio complementa a exclusão de Lula da disputa eleitoral, uma vez que não seria suficiente exclui-lo e prosseguir na sistemática marginalização da candidatura Ciro Gomes, se a direita e o centro não se entendessem e criassem uma alternativa viável.

    2 – Atuando-se reativamente na emergência, impede-se mais uma vez que alcancem a agenda pública temas fundamentais: (a) a política de drogas; (b) a reforma do modelo policial e a refundação das polícias, com a mudança do artigo 144 da Constituição (por exemplo, com a aprovação da PEC-51 que o senador Lindbergh Faria apresentou em 2013); (c) a repactuação entre o Estado e as comunidades que vivem em territórios vulneráveis, em especial a juventude, de modo a que as instituições policiais deixem de ser parte do problema e se transformem em parte da solução. Hoje, as execuções extra-judiciais são a regra, o que leva analistas a declarar que essas áreas estão sob a regência de um Estado de exceção. Infelizmente, isso ocorre com a anuência, por cumplicidade ou omissão, do Ministério Público e as bençãos do poder Judiciário; (d) o investimento em infraestrutura, educação e cultura, e a abertura de novas oportunidades para a juventude mais vulnerável, respeitando-se as camadas populares e, assim, bloqueando o aprofundamento do racismo estrutural. Os recursos, aos bilhões, viriam do corte no pagamento de juros aos rentistas.

    3 – Um efeito lateral nada desprezível seria a suspensão das votações no Congresso da reforma da previdência, salvando o governo de uma derrota, no item que supostamente justificaria sua ascensão ao poder. Por mais que, hoje, o governo negue essa possibilidade, está aberta a temporada de caça a brechas judiciais para obstar o processo de votação.

    Não posso concluir sem chamar atenção para os riscos que a intervenção militar representa para os moradores das comunidades e para os próprios militares, que são jovens e não foram treinados senão para o enfrentamento de tipo bélico. A primeira morte provocada por um militar, em decorrência da nova legislação, será julgada pela Justiça militar, o que poderá transferir para a arena jurídico-política internacional a problemática da ocupação do Exército, tornando a operação política um desastre, a médio prazo, a despeito do provável apoio ufanista da grande mídia. Por outro lado, se um militar for atingido mortalmente, as consequências serão imprevisíveis, fazendo girar mais rápida e intensamente o círculo, ou a espiral da violência.
    Além de tudo, não nos esqueçamos do exemplo mexicano: quando as Forças Armadas se envolvem na segurança pública, abrem-se as portas para sua degradação institucional.

     (*) Antropólogo, cientista político e escritor, é um dos maiores especialistas em segurança pública do país. Foi secretário de Segurança Pública do Rio de Janeiro durante o governo Anthony  Garotinho e ocupou a Secretaria Nacional de Segurança Pública no governo Lula, tendo sido afastado dos dois cargos por pressões políticas. Na carreira de escritor, Soares foi co-autor dos best-sellers Elite da Tropa e Elite da Tropa 2.
  • Lula tem de ser candidato, ainda que na condição de preso político

    Lula tem de ser candidato, ainda que na condição de preso político

    O avançar do processo contra o presidente Lula traz consigo uma dialética inicialmente imprevista: na medida em que se aproxima o seu aniquilamento jurídico, crescem o apoio popular e o sentimento de que ele é, em verdade, vítima de persecução política.

    Essa contradição se intensificou a partir do próprio movimento do real, ou seja, do desenvolvimento dos fatos: a crença inicial de que Lula, ao ser acusado de corrupção, responderia a um julgamento como qualquer outro cidadão, foi desmanchando-se no ar com o decorrer das ações penais.

    Em consequência, quanto mais visível se tornava a politização do judiciário, maior era a politização por parte de Lula e movimentos sociais.

    Assim, a linha política majoritária do PT, que defendia intransigentemente a independência, a autonomia e a credibilidade, foi sendo alterada ao longo desses anos.

    Refiro-me ao período Eduardo Cardozo no Ministério da Justiça, quando um ideário republicano e conciliador orientava a ação de amplos setores das esquerdas e reduzia seus horizontes para o simples “fortalecimento das instituições”.

    Cardozo era o símbolo máximo dessa estratégia.

    Especialmente nas vésperas e logo após o golpe de Estado – ou seja, em momento dramaticamente tardio –, percebe-se uma guinada estratégica, em que, pela primeira vez, começa a tornar-se nítido no debate de tais setores de esquerda que, em verdade, estava havendo uma exasperação da luta de classes e que a institucionalidade era parte central daquela.

    Depoimentos em juízo voltados à população e não apenas ao processo, coletivas de imprensa, e, finalmente, após a condenação em primeira instância, as Caravanas de Lula pelas regiões do país, surgem como mecanismo de mobilização popular e enfrentamento à perseguição jurídico-política.

    Aquela crença original, que mesmo após 2014 permeava as mentes de setores das esquerdas (quanto a acreditar no funcionamento das instituições, na prevalência dos direitos e garantias individuais, da legalidade, nas possibilidades de novas composições e alternativas conciliatórias, em ser um golpe de Estado algo anacrônico), corroeu-se no tempo.

    Agora, olhando retrospectivamente, até Reinaldo Azevedo admite: a Lava Jato atuou completamente fora da legalidade.

    Condução coercitiva sem prévia intimação para depor; vazamento para a Rede Globo de áudios da presidenta da República – um crime, e contra a soberania nacional – com fins de criar a atmosfera política para o golpe de Estado; denúncia apresentada pelo Ministério Público através de um PowerPoint, em um hotel de luxo locado para o fim de apresentar o presidente Lula como chefe de organização criminosa que quebrou a Petrobrás, enquanto sua condenação se deveu ao Triplex do Guarujá, etc.

    Tais elementos seriam suficientes para demonstrar a parcialidade do juízo em curso.

    Mas cada um desses eventos, acumulados no tempo histórico, possibilitava novas interpretações da população que, ao balançar-se em favor de Lula, levava a Lava Jato a necessitar de nova radicalização.

    E foi assim que o TRF-4, furando a fila de 257 processos, inclusive alguns relativos à corrupção.

    O furo da fila, em pleno janeiro, antes do carnaval, não foi por acaso: era simbólico marcar a sua condenação para um ano após a morte de Dona Marisa, bem como era necessário apressá-la para impedir o desenvolvimento de sua antítese, a mobilização popular.

    Lula e as esquerdas, mais uma vez, foram convocados a responder.

    A resposta foi uma gigantesca mobilização em Porto Alegre, construindo uma atmosfera de mobilização popular pela cidade apenas vista nos Fóruns Sociais Mundiais, em contextos outrora completamente favoráveis.

    O TRF-4, então, arriscou. Os desembargadores poderiam:

    a) absolvê-lo;

    b) condená-lo mediante placar de 2 x 1;

    c) manter a condenação, mas reduzir a dosimetria da pena; ou

    d) determinar o cumprimento da sentença apenas com o trânsito em julgado.

    Ao final, escolheram outra alternativa: majoraram a pena para:

    1) impedir Lula de beneficiar-se da prescrição retroativa quanto ao crime de corrupção passiva;

    2) demonstrar, simbolicamente, que Moro não perseguiu ex-presidente, na verdade, teria sido “benevolente”. Ademais, o placar de 3 x 0 impede Lula de opor embargos infringentes e, pela Ficha Limpa, o impõe a condição de inelegível.

    Por fim, determinaram o cumprimento imediato da pena, logo após julgado os possíveis embargos de declaração.

    Ou seja, o presidente Lula pode vir a ser preso ainda antes do carnaval ou logo após.

    Estes desembargadores – o relator, por sinal, consta na dedicatória do livro de Sérgio Moro e com ele cursou mestrado – desconsideraram que, nos embargos de declaração da defesa, Moro disse que em nenhum momento afirmou que a compra do triplex advinha dos contratos da Petrobrás.

    Ora, se o processo foi mantido em Curitiba somente por envolver a Petrobrás, tal afirmativa necessariamente deslocaria a competência da ação para São Paulo, sede do tríplex.

    Logo, Moro não é o juiz natural de tal caso.

    Da mesma maneira, desconsideraram a inexistência de escritura pública ou mesmo posse do tal apartamento – que tem 85 m2, sem vista para o mar. Ou seja, nada à altura “do líder da organização criminosa”, segundo o Ministério Público.

    Condenado por corrupção passiva e lavagem de dinheiro, em nenhum momento se provou que Lula detém a propriedade ou gozou um dia sequer de tal apartamento, bem como qual ato executou, como presidente, para beneficiar diretamente a OAS.

    Além disso tudo, a condenação se deu com base na delação de Léo Pinheiro, ex-presidente da OAS.

    Léo teve sua primeira delação travada, quando inocentou Lula. Ao mudar sua versão, conquistou agora no TRF-4 a redução de sua pena de dez anos para somente três.

    Há tempos, portanto, saímos da legalidade burguesa.

    Aliás, a história demonstra que assim o é quando as classes subalternas não aceitam o domínio burguês.

    Para manter o ataque do capital contra o trabalho – consubstanciado nas reformas trabalhista, da previdência, na Emenda Constitucional do corte dos investimentos (EC95) –, o único caminho é desmontar as organizações dos trabalhadores e inviabilizar seus líderes.

    Para responder ao ataque do capital, o único caminho para trabalhadores e trabalhadoras é fortalecer suas organizações e defender suas lideranças historicamente construídas.

    E a condenação de Lula somente é compreensível neste contexto.

    Acontece que a condenação tornou Lula inelegível, mas não o impede de registrar sua candidatura.

    É uma condenação em âmbito penal, não eleitoral.

    Em verdade, todos os prazos em âmbito da Justiça Eleitoral permitem que ele seja candidato, e eleito no primeiro turno.

    Caso consiga alguma vitória no STF ou STJ, pode vir a ser empossado.

    Caso não, o TSE pode cassar seu registro e terá de convocar novas eleições.

    Estamos, portanto, perante em uma encruzilhada histórica: uma vez mais as esquerdas são convidadas a usar a institucionalidade para a organização, conscientização e avanço das classes trabalhadoras, ou a declinar e aceitar esta ditadura branda das elites nacionais e internacionais.

    Aceitar o enfrentamento implica inclusive entrar em campanha eleitoral com seu candidato preso, demonstrando claramente que o julgamento foi uma farsa e que caberá à população desmoralizá-la.

    Após tantas vacilações, tentativas de concertações – que incluíram ilusões como a capacidade de Lula ministro frear o golpe de Estado, ou, pior ainda, a de que acordo com setores de direita “menos golpistas”, quando das eleições para presidência das Casas do Congresso, seria uma via para a superação do golpe –, não há mais tempo para titubear.

    O próprio movimento histórico obrigou o PT a corrigir a sua estratégia.

    A Lava Jato, ao condenar Lula, impôs a sua candidatura.

    Não lançá-lo, é legitimar a fraude.

    Submetê-lo ao crivo popular, é convocar as classes trabalhadoras para a maior polarização desde 1989.

    Na pior das conjunturas, chegaríamos a uma segunda eleição com um acúmulo político no seio da sociedade capaz de confrontar-se com o conglomerado das classes proprietárias, mesmo que outro seja o candidato ou candidata.

    Se vencer e não conseguir ser empossado, a polarização e politização da sociedade jogarão em favor do campo popular quando da nova disputa, e não o oposto.

    Portanto, os trabalhadores e trabalhadoras nada têm a perder, a não ser os seus grilhões.

    • Daniel Araújo Valença professor do curso de Direito da UFERSA e coordenador do Grupo de Estudos em Direito Crítico, Marxismo e América Latina – Gedic.
  • Seria perfeito se fosse BBB

    Seria perfeito se fosse BBB

     

    Perguntamos: Você é a favor de o Tribunal Regional Federal condenar o ex-presidente Lula e impedi-lo de concorrer de novo à Presidência da República?

     

     

    Foram 18.295 votos nas 24 horas da pesquisa, entre 04 e 05 de janeiro. 66% responderam “sim”. 34% reponderam “não”.

     

     

    Claro que não é possível pretender padrão científico a uma consulta feita por uma rede social. Não era o que buscávamos. Vozes da turba de extrema direita caçoaram que perdemos em casa. Como se o Twitter fosse nossa casa e a enquete, uma vez lançada, não estivesse sujeita a cursos incontroláveis e extravasasse nossos seguidores.

     

     

    Esquerdopatas passando vergonha… Vamos votar galera!”

     

     

    O ‘Jornalistas’ Esquerdistas fez enquete achando que a maioria dos seus seguidores seria contra a prisão do Lula, mas levou…”

     

     

    A essas horas o responsável pela ideia da enquete deve estar em algum Gulag desativado na Sibéria.”

     

     

    Nosso interesse era, em primeiro lugar, chamar a atenção das pessoas, seguidores ou não dos Jornalistas Livres, para o julgamento que se aproxima. Vimos até notícia, não desmentida, de que o Supremo Tribunal de Justiça “já discutia uma eventual condenação de Lula”. E pensamos: se o STJ já discute cenários, por que os eleitores não devem, também, começar a fazer seus cenários. E, especialmente, imaginar como demonstrarão seu repúdio ou aprovação ao resultado do julgamento no TRF.

     

     

    Tínhamos um segundo interesse importante. Queríamos que as pessoas expusessem suas razões. Queríamos saber quais argumentos seriam usados. Pedimos que justificassem suas posições. Alguns caçoaram disso também. Mas, a verdade é que colhemos mais de 1.400 justificativas que nos dão farto material para análise do momento político brasileiro e, sobretudo, atrás de quais ideias-chave e atrás de quais lideranças caminha a extrema direita.

     

     

    Bem, a enquete ia muito favoravelmente ao ex-presidente até chegarmos aos 3 mil votos. Nesse momento, como um estouro de bolha, percebemos a maciça entrada da direita favorável à condenação em segunda instância do ex-presidente. Não podemos afirmar se eram robôs, MAVs (Militantes em Ambiente Virtual) remunerados ou militantes de direita, pura e simplesmente. Percebemos alguns líderes que tuitavam “Bora votar” e “Vamos virar”. De fato, viraram.

     

     

    Um desses líderes, com 25 mil seguidores, retuíta o Antagonista, Donald Trump, Diogo Mainardi, Danilo Gentili, Janaína Paschoal. Recebe dois questionamentos ao arregimentar seguidores para a votação.

     

     

    Diz ele:

     

    Bora votar… O cachaceiro ta vencendo essa enquete esquerdista.”

     

     

    Um de seus seguidores questiona:

     

    Pensando friamente sobre esse processo, caso ele apresentasse essas mesmas provas reivindicando posse do apto ele conseguiria? Acho q não. Então não estou contando muito c condenação infelizmente.”

     

     

    Outro de seus seguidores questiona:

     

    Espero de fato que esse ladrão seja preso. Vejo em meu Facebook uma casta que defende esse bandido dizendo que não existem provas documentais que comprovam a culpa dele. Sabe se isso é verídico?”

     

     

    Seus seguidores piscaram. Ele responde:

     

    Que tem vagabundo defendendo ele, claro que tem…. mas as provas contra ele são centenas.”

     

     

    A enquete, em termos numéricos, terminou apontando que, de cada três que participaram, dois torcem pela condenação de Lula e um tem segurança de que não há provas suficientes para condenação do ex-presidente nessa ação que envolve o triplex do Guarujá.

     

     

    Houve muitas conversas entre surdos, em que um se recusava a ouvir o outro, agressões, mas também diálogos:

     

     

    Eu sou um cidadão de bem, de classe média, não concordo com quaisquer privilégios a quaisquer classes, apoio a LJ, defendo privatizações como forma de evitar corrupção. Defendo penas implacáveis para os criminosos de colarinho Branco.

     

    Não lhe parece estranho que não se investigue adequadamente quem desvia dinheiro de merenda ou do metro de SP? Aliás, o PSDB está no poder em SP há 30 anos e quase nunca é investigado. Não lhe parece estranho procuradores fazerem discursos políticos? Não são pagos pra isso!

     

    Não sou militante do PSDB ou algo parecido.

     

    Perfeito. Então reflita por favor: Se qualquer ex-prefeitinho do interior, quando corrupto, mora num palacete; Por que um ex-presidente moraria num apartamento de 3 quartos em São Bernardo do Campo? Ele não mora nos Jardins e nem no Morumbi! Onde mora FHC? Sarney? Temer?

     

    Por isso sou a favor de se acabar com o foro privilegiado.

     

    Isso, todos nós defendemos.

     

     

    Grande parte dos argumentos se deram entre haver ou não provas contra o ex-presidente. Seus defensores afirmaram não haver, seus acusadores afirmavam haver inúmeras. Verdade que alinhavam o desemprego, a “quebra” do país e muitas outras “provas”, que significariam no máximo desaprovação de um governo e saíam completamente da questão do triplex do Guarujá.

     

     

    E não tem provas. País falido. 14 milhões brasileiros desempregados. Empresas falidas Empresários arruinados. E estes imbecis defendo o indefensável. É deprimente a doutrinação.”

     

     

    Não possui provas documentais?! Existem processos com mais de 4 mil páginas e inúmeros documentos apreendidos com provas. Não só contra ele mas contra os seus colegas.”

     

     

    Os defensores do ex-presidente, por outro lado, retrucavam:

     

     

    “Essa peça acusatória nem deveria virar processo. Não há prova, não há crime por parte de Lula. Moro e TRF-4 estão fazendo política.”

     

     

    “Aqui não se trata de uma opinião, mas constatação de fato. Não há prova dos supostos crimes atribuídos pelo MPF ao presidente Lula. Essa verdade já foi sobejamente demonstrada. Além do que o Juízo de Curitiba não é competente para apreciar o caso. Portanto…”

     

     

    Muitos comentários tentavam passar a ideia de que era impossível haver mais de 4 mil páginas sem provas documentais. Ressaltavam a impossibilidade de se ler o inquérito todo, que há partes sigilosas e que deveríamos confiar na justiça. A sentença, entretanto, não é tão extensa, apenas 216 páginas, é pública e aponta claramente o raciocínio que o juiz usou para condenar o ex-presidente.

     

     

    Afirma o filósofo Euclides André Mance, que virou do avesso a lógica do juiz, que “na prova documental e oral constante na sentença, há somente uma única afirmação literal de que o ex-presidente era proprietário do imóvel, publicada em matéria do jornal O Globo”. Em outras palavras, não há na peça nenhuma prova que afirme literalmente que o ex-presidente é proprietário do imóvel.

     

     

    O autor reforça que “a afirmação literal de que ele fosse o proprietário do imóvel foi feita, na sentença, somente pelo juiz e pela autora dessa matéria – como veremos ao longo do exame da sentença”. Se estiver em dúvida sobre a veracidade da afirmação de Mance, basta buscar nas 261 páginas da sentença. Não resta dúvidas que, na existência de outras evidências, nas milhares de páginas dos autos, o juiz as teria colocado em posto de altíssima relevância na sentença.

     

     

    Há ainda a delação de Léo Pinheiro, da OAS. Vejamos o diálogo que o juiz reproduz na sentença:

     

     

    Defesa:- Vou perguntar objetivamente para o senhor, o senhor entende que o senhor deu a propriedade desse apartamento para o ex-presidente Lula?

     

     

    José Adelmário Pinheiro Filho:- O apartamento era do presidente Lula desde o dia que me passaram para estudar os empreendimentos da Bancoop, já foi me dito que era do presidente Lula e de sua família, que eu não comercializasse e tratasse aquilo como uma coisa de propriedade do presidente.

     

     

    E quando efetivamente foi passada a propriedade para o ex-presidente? Vejamos mais um trecho extraído da sentença:

     

     

    Juiz Federal:- E depois, como é que isso se desdobrou depois de agosto, o senhor disse que o apartamento ficaria pronto até o final do ano, ele ficou pronto?

     

     

    José Adelmário Pinheiro Filho:- Ficou pronto.

     

     

    Juiz Federal:- Mas ele foi entregue daí à família do ex-presidente?

     

     

    José Adelmário Pinheiro Filho:- Eu fui preso em 14 de novembro de 2014, aí eu já não acompanhei mais.

     

     

    As “inúmeras provas”, que habitam as mentes daqueles que julgam o ex-presidente culpado por ter recebido o triplex como propina, resumem-se a uma matéria do Globo e uma declaração titubeante de Pinheiro.

     

     

    Foi ótimo ver as reações as torcidas se formando os argumentos sendo trocados por quem realmente queria discutir temos hoje um grande banco de informações sobre o pensamento de um lado e do outro, o que nos ajudará na cobertura do julgamento que se realizará no dia 24.

     

     

    Ao mesmo tempo, nós e todas as pessoas honestas sabemos que não se faz Justiça repetindo a lógica dos programas de auditório. O “Vai para o trono ou não vai?” do Chacrinha, a votação do Big Brother Brasil e a condenação de Jesus Cristo se fizeram assim. É bom pros opressores e pro showbusiness. Justiça é outra coisa. Depende de provas e de cabeça fria.

     

     

    Notas:

     

    1 Para ver a íntegra do livro As Falácias de Moro, de Euclides Mance: http://solidarius.com.br/mance/biblioteca/livro_falacias_de_moro.pdf
    2 Para ver a íntegra da sentença de Moro condenando Lula:
    https://www.conjur.com.br/dl/sentenca-condena-lula-triplex.pdf

  • Quando sombras de corrupção recaem sobre o Judiciário

    Quando sombras de corrupção recaem sobre o Judiciário

     

    por Bethânia Suano*, direto de Coimbra, Portugal

     

     

    Evitamos muitas vezes a fadiga que é fazer um post no facebook, onde temos centenas de amigas e amigos virtuais, para discutir, afirmar posicionamentos ou desfazer amizades. Cansa, depois de discutirmos qualquer coisa, não mudarmos nada em termos práticos, e a vida cotidiana continuar cheia de desigualdades em que tropeçamos dia após dia. Contudo, aproveito o ensejo da vinda do juiz Sérgio Moro a Coimbra, onde me encontro, ter repercutido na mídia e nas batalhas das bolhas virtuais, para tecer algumas considerações, relevando o aspecto da comunicação pública desses momentos que vivenciamos, sobre o que tenho refletido nesta seara tão caótica que tem sido a política nacional brasileira e o campo jurídico, envolvendo ondas de opinião pública.

     

    Teoricamente, no Brasil, as instituições são divididas em três poderes independentes e complementares, cujo funcionamento garantiria tal independência e a tão almejada estabilidade democrática.

     

    Temos problemas de ordem de falta de honestidade

    (podem ser chamados de corrupção, mas podem ser verificados como tradição institucional mesmo)

    e foi para dizer quem pode ser desonesto no nosso país

    que se insurgiram homens brancos letrados de toga ou sem,

    com brado retumbante e altivez do “Brasil Passado A Limpo”,

    desde o fim de 2014, ano da reeleição da Presidenta Dilma Rousseff.

     

    Estes, que se colocam desde sempre como representantes da Lei e do Direito, dentre os quais encontramos Sérgio Moro, o de maior destaque no Judiciário Nacional (para um campo eivado de egos, Gilmar Mendes ficou em segunda divisão), desfilam como se a política nacional tivesse se tornado uma competição de escola de samba no noticiário (nada contra o Carnaval, mas este que é do povo, quase foi cortado da cultura nacional).

     

    Ironicamente, advogados contratados por variados espectros políticos, que vão do lado ex-presidente Lula ao do presidente interino Michel Temer, muito embora haja distância e proximidade entre os dois na régua político-ideológica e eleitoral, alertaram constantemente que muitos princípios do Direito estavam sendo quebrados seletivamente. Entraram na baila legalidade, devido processo legal, presunção da inocência, ônus da prova e até intimidade dos acusados, dentre outros parâmetros legais ordinários ou constitucionais. Isso ocorreu em momentos alternados, claro, conforme a necessidade do cliente/público-alvo da vez.

     

    Concordo com quem refere que a “ordem legal” rompeu-se dramaticamente a partir da condução coercitiva do Lula sem justificativa legal. Afinal, não existia nenhuma lei que autorizasse ou justificasse aquele circo armado no Aeroporto de Congonhas, sem motivos de fundo. Naquele momento, o alerta se fazia aceso e, acrescente-se, que o juiz Moro estava no comando e nós brasileiras e brasileiros ainda hoje tentamos juntar os cacos do caos institucional instalado, mesmo sem compreendermos com clareza a repercussão que tal ato, seguido de outros, causaria ao valor da política e à legitimidade dos atos do Judiciário. Há muitos outros episódios liderados por Moro que podem ser citados, como a divulgação da escuta do telefonema entre a presidenta impichada Dilma Rousseff e o ex-presidente Lula às vésperas da nomeação deste para a Casa Civil.

     

    Quando é que aceitamos com naturalidade um juiz conduzir um processo criminal

    como um autor conduz uma novela das 8 na Globo?

     

    Cabe aqui uma pequena digressão para além de Moro em tela. Apenas para frisar que, então, no insólito 2015, veio a coroação do que chamamos rompimento da ordem legal ou mesmo de quebra do empolado “Estado Democrático de Direito” com o impeachment da Presidenta Dilma Rousseff. Atenção que não se pretende aqui defender Dilma. O impeachment ocorreu apesar da legalidade e não com a legalidade – claramente não houve crime de responsabilidade, a ponto de continuarem sendo tomados pelo Governo Temer os mesmos “procedimentos de gestão orçamentária” – antes designados pedaladas e decretos suplementares.

     

    Tudo isto para exemplificar que não estamos acabando com a corrupção no Brasil,

    o que ocorre é apenas a redefinição de quem tem direito de ser corrupto.

     

    Pois, pensem bem, como um juiz de 1a. instância, que devia estar entupido de processos na sua Vara em Curitiba, viaja tanto para o exterior para fazer palestras? Quanto tempo tem para dar tantas entrevistas na mídia? Se o (e)leitor conhece um juiz ou juíza da sua Comarca, pergunte como funciona. Mesmo que este ou esta tenha excelentes escreventes, auxiliares, estagiárias e estagiários, precisa, minimamente, gerir uma demanda imensa, gerir quem escreve sentenças e despachos e, ainda, tem que estar presente em audiências.

     

    Voltando a Coimbra, lamento muitíssimo, ainda que não me surpreenda na mesma escala, ver a Faculdade de Direito, da tão renomada Universidade de Coimbra, sediar um evento pago (e caríssimo), com oradores majoritariamente homens e dentre os quais ter Sérgio Moro, para falar sobre um tema, nada mais nada menos que “Transparência, Accountability, Compliance, Boa Governança e Princípio Anticorrupção”.

     

    Estas palavras, que dão nome ao referido curso, transformar-se-ão em valores e práticas quando não forem instrumento seletivo para designar quem tem direito a sonegar impostos, direito a guardar dinheiro em paraíso fiscal, direito a passar na frente na fila do passaporte, ter direito a passaporte e mudar de país… não se trata de passaporte para lazer mas para sobreviver, direito a estudar Direito, direito a elaborar e interpretar leis, direito a modificar orçamento público fora dos prazos, direito à auxílio-moradia, direito à auxílio-alimentação e refeição, direito a aceitar ser ministro do STF e presidir o TSE e quantos outros “direitos” poderíamos listar aqui. Direitos que são legítimos para alguns e imorais para outros, uma face da nossa tradição de corrupção e desigualdade institucionalizada.

     

    É por essas e outras que o juiz Sérgio Moro foi alvo de protestos em Coimbra

    por grande parte da comunidade brasileira de estudantes, pesquisadores e seus familiares.

    Estas pessoas, reunidas como coletivo político, associação de pesquisadores ou apenas concidadãos indignados na mesa de um café ou numa escrivaninha de biblioteca, não aceitam passivamente que os meios acadêmico, político e jurídico sejam apenas espaços de reprodução e seleção sexista, racista e elitista de quem permanece nos espaços de poder e decisão. Isso demonstra que a vida cotidiana continua sendo, simbólica e efetivamente, sinônimo de resistência. Afinal, é necessário reiterar o óbvio: abaixo o direito de qualquer pessoa ser corrupta!

     

     

    * Bethânia Suano e advogada atuante na área de Direitos Humanos e Doutoranda em “Direito, Justiça e Cidadania no Séc. XXI”, pelo Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra.