Quando sombras de corrupção recaem sobre o Judiciário

Protestos nos muros da Universidade de Coimbra

 

por Bethânia Suano*, direto de Coimbra, Portugal

 

 

Evitamos muitas vezes a fadiga que é fazer um post no facebook, onde temos centenas de amigas e amigos virtuais, para discutir, afirmar posicionamentos ou desfazer amizades. Cansa, depois de discutirmos qualquer coisa, não mudarmos nada em termos práticos, e a vida cotidiana continuar cheia de desigualdades em que tropeçamos dia após dia. Contudo, aproveito o ensejo da vinda do juiz Sérgio Moro a Coimbra, onde me encontro, ter repercutido na mídia e nas batalhas das bolhas virtuais, para tecer algumas considerações, relevando o aspecto da comunicação pública desses momentos que vivenciamos, sobre o que tenho refletido nesta seara tão caótica que tem sido a política nacional brasileira e o campo jurídico, envolvendo ondas de opinião pública.

 

Teoricamente, no Brasil, as instituições são divididas em três poderes independentes e complementares, cujo funcionamento garantiria tal independência e a tão almejada estabilidade democrática.

 

Temos problemas de ordem de falta de honestidade

(podem ser chamados de corrupção, mas podem ser verificados como tradição institucional mesmo)

e foi para dizer quem pode ser desonesto no nosso país

que se insurgiram homens brancos letrados de toga ou sem,

com brado retumbante e altivez do “Brasil Passado A Limpo”,

desde o fim de 2014, ano da reeleição da Presidenta Dilma Rousseff.

 

Estes, que se colocam desde sempre como representantes da Lei e do Direito, dentre os quais encontramos Sérgio Moro, o de maior destaque no Judiciário Nacional (para um campo eivado de egos, Gilmar Mendes ficou em segunda divisão), desfilam como se a política nacional tivesse se tornado uma competição de escola de samba no noticiário (nada contra o Carnaval, mas este que é do povo, quase foi cortado da cultura nacional).

 

Ironicamente, advogados contratados por variados espectros políticos, que vão do lado ex-presidente Lula ao do presidente interino Michel Temer, muito embora haja distância e proximidade entre os dois na régua político-ideológica e eleitoral, alertaram constantemente que muitos princípios do Direito estavam sendo quebrados seletivamente. Entraram na baila legalidade, devido processo legal, presunção da inocência, ônus da prova e até intimidade dos acusados, dentre outros parâmetros legais ordinários ou constitucionais. Isso ocorreu em momentos alternados, claro, conforme a necessidade do cliente/público-alvo da vez.

 

Concordo com quem refere que a “ordem legal” rompeu-se dramaticamente a partir da condução coercitiva do Lula sem justificativa legal. Afinal, não existia nenhuma lei que autorizasse ou justificasse aquele circo armado no Aeroporto de Congonhas, sem motivos de fundo. Naquele momento, o alerta se fazia aceso e, acrescente-se, que o juiz Moro estava no comando e nós brasileiras e brasileiros ainda hoje tentamos juntar os cacos do caos institucional instalado, mesmo sem compreendermos com clareza a repercussão que tal ato, seguido de outros, causaria ao valor da política e à legitimidade dos atos do Judiciário. Há muitos outros episódios liderados por Moro que podem ser citados, como a divulgação da escuta do telefonema entre a presidenta impichada Dilma Rousseff e o ex-presidente Lula às vésperas da nomeação deste para a Casa Civil.

 

Quando é que aceitamos com naturalidade um juiz conduzir um processo criminal

como um autor conduz uma novela das 8 na Globo?

 

Cabe aqui uma pequena digressão para além de Moro em tela. Apenas para frisar que, então, no insólito 2015, veio a coroação do que chamamos rompimento da ordem legal ou mesmo de quebra do empolado “Estado Democrático de Direito” com o impeachment da Presidenta Dilma Rousseff. Atenção que não se pretende aqui defender Dilma. O impeachment ocorreu apesar da legalidade e não com a legalidade – claramente não houve crime de responsabilidade, a ponto de continuarem sendo tomados pelo Governo Temer os mesmos “procedimentos de gestão orçamentária” – antes designados pedaladas e decretos suplementares.

 

Tudo isto para exemplificar que não estamos acabando com a corrupção no Brasil,

o que ocorre é apenas a redefinição de quem tem direito de ser corrupto.

 

Pois, pensem bem, como um juiz de 1a. instância, que devia estar entupido de processos na sua Vara em Curitiba, viaja tanto para o exterior para fazer palestras? Quanto tempo tem para dar tantas entrevistas na mídia? Se o (e)leitor conhece um juiz ou juíza da sua Comarca, pergunte como funciona. Mesmo que este ou esta tenha excelentes escreventes, auxiliares, estagiárias e estagiários, precisa, minimamente, gerir uma demanda imensa, gerir quem escreve sentenças e despachos e, ainda, tem que estar presente em audiências.

 

Voltando a Coimbra, lamento muitíssimo, ainda que não me surpreenda na mesma escala, ver a Faculdade de Direito, da tão renomada Universidade de Coimbra, sediar um evento pago (e caríssimo), com oradores majoritariamente homens e dentre os quais ter Sérgio Moro, para falar sobre um tema, nada mais nada menos que “Transparência, Accountability, Compliance, Boa Governança e Princípio Anticorrupção”.

 

Estas palavras, que dão nome ao referido curso, transformar-se-ão em valores e práticas quando não forem instrumento seletivo para designar quem tem direito a sonegar impostos, direito a guardar dinheiro em paraíso fiscal, direito a passar na frente na fila do passaporte, ter direito a passaporte e mudar de país… não se trata de passaporte para lazer mas para sobreviver, direito a estudar Direito, direito a elaborar e interpretar leis, direito a modificar orçamento público fora dos prazos, direito à auxílio-moradia, direito à auxílio-alimentação e refeição, direito a aceitar ser ministro do STF e presidir o TSE e quantos outros “direitos” poderíamos listar aqui. Direitos que são legítimos para alguns e imorais para outros, uma face da nossa tradição de corrupção e desigualdade institucionalizada.

 

É por essas e outras que o juiz Sérgio Moro foi alvo de protestos em Coimbra

por grande parte da comunidade brasileira de estudantes, pesquisadores e seus familiares.

Estas pessoas, reunidas como coletivo político, associação de pesquisadores ou apenas concidadãos indignados na mesa de um café ou numa escrivaninha de biblioteca, não aceitam passivamente que os meios acadêmico, político e jurídico sejam apenas espaços de reprodução e seleção sexista, racista e elitista de quem permanece nos espaços de poder e decisão. Isso demonstra que a vida cotidiana continua sendo, simbólica e efetivamente, sinônimo de resistência. Afinal, é necessário reiterar o óbvio: abaixo o direito de qualquer pessoa ser corrupta!

 

 

* Bethânia Suano e advogada atuante na área de Direitos Humanos e Doutoranda em “Direito, Justiça e Cidadania no Séc. XXI”, pelo Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra.

 

 

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