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Tag: Meio ambiente

  • Agosto Indígena: tempo novo é tempo de luta

    Agosto Indígena: tempo novo é tempo de luta

    Guarani, tukano, xavante… representantes de diversas etnias dos povos originários realizaram mais uma manifestação na Avenida Paulista para protestar contra o etnocídio e as ameaças de retrocessos, como a PEC 215 e a Agenda Brasil

    por Adriana Carvalho, apoiadora dos Guarani Mbya, com fotos: Didier Lavialle

    Miguel dorme um sono tranquilo nos braços de seu pai, Thiago Henrique, um dos líderes indígenas da etnia Guarani Mbya. Ele chegou ao mundo há dois meses e já faz parte da história de luta pelos direitos dos povos originários. Entre guarani, tukano, xavante e muitas outras etnias, Miguel pertence aos xondaros e xondarias (guerreiros e guerreiras, como se diz em guarani mbya) que na sexta-feira (14) fecharam a Avenida Paulista durante o Ato do Dia Internacional dos Povos Indígenas, coordenado pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) e pela Comissão Yvyrupa.

    Quando ele crescer um pouco, provavelmente verá as fotos deste dia. E ouvirá muitas histórias. Saberá que teve a sorte de vir ao mundo poucos meses depois de seus parentes conquistarem a portaria declaratória da Terra Indígena Jaraguá. Espera-se que até lá, quando ele tiver idade para entender, possam contar a ele que o processo de demarcação foi concluído totalmente e que seus outros parentes, da Terra Indígena Tenonde Porã, no extremo sul de São Paulo, também obtiveram o reconhecimento legal de suas terras ancestrais. Porque esses são dois dos motivos que levaram tantos indígenas, incluindo o próprio Miguel, a interromper o trânsito nervoso da mais famosa avenida da maior metrópole do Brasil.

     Se alguém se lembrar, poderá contar ao Miguel que naquela sexta-feira, ao chegar ao vão livre do Masp, todos tiveram um embrulho no estômago ao ver que uma dúzia de pessoas vestidas com roupas camufladas e enrolados na bandeira do Brasil pediam a volta do regime militar.

    Esperamos que quando ele tiver idade para entender essa história, seja coisa do passado e que não existam mais retrógrados como esses em nosso país. Talvez alguém se recorde e conte também que quando a senhora camuflada de óculos ray ban começou a vociferar no megafone, do outro lado do vão livre, um grupo do movimento Hip Hop e pelos direitos da população negra começou a tocar um reagge bem alto, encobrindo as palavras de ódio.

    Miguel saberá que seus parentes e ele mesmo foram às ruas para protestar contra um projeto chamado PEC 215 que visa transferir para uma bancada de deputados ruralistas as decisões sobre as demarcações. E que ao dançar, cantar e fumar o petyngua (cachimbo) na avenida também lutavam contra outras investidas contra seus direitos, como uma tal de Agenda Brasil.

    Esperamos que até lá tudo isso seja passado, Miguel. Que sejam apenas histórias tristes que não se repetem mais. Como aquelas pelas quais chora a parente tukano, Daiara. Com os olhos marejados envoltos em um enorme cocar de penas azuis, Daiara subiu ao palco do vão livre no final do Ato e abraçou-se à ativista Márcio Izzo, do Movimento Hip Hop de São Miguel. A primeira lamentava as mortes de parentes como os Guarani Kayowaa, atacados por pistoleiros no Mato Grosso do Sul. A segunda sofria por mais uma chacina acontecida na periferia de Osasco, na véspera, onde as vítimas eram negros e pobres. Enquanto as duas causas se abraçaram ao som do rap e dos chocalhos indígenas, Miguel dormia ainda. Quando ele crescer e estiver bem desperto, desejamos que encontre um tempo novo e melhor.

  • ‘Águas Cantareira’ já pode ser encontrada nos supermercados

    ‘Águas Cantareira’ já pode ser encontrada nos supermercados

     

    O produto gourmet, assinado pelo governador Alckmin e pela Sabesp, vai fazer da crise hídrica uma oportunidade. 100% volume morto.

    Tudo bem que nem tudo que reluz é ouro ou, ainda, que tudo que é sólido se desmanche no ar. Mas duro de acreditar mesmo é que a água da mais rica cidade do Brasil — país com 12% da água potável do planeta — está de fato virando poeira, garganta seca e ar encanado (sim, estamos pagando também por isso).

    A crise da água em São Paulo não acabou e seus moradores enfrentam o mais grave colapso no abastecimento de sua história estacionados na segunda etapa do processo de luto: a da negação. Nem pelo choque passamos, ainda — mas o Exército já treina o cordão de isolamento da Sabesp em caso de revolta popular e caos nas ruas. A estação seca está apenas começando.

    Rótulo do novo produto que já pode ser encontrado nos supermercados perto de você! Arte: Pedro Inoue

    O governo dá desconto para grandes empresas e promete obras de transposição de bacias em regime de urgência, para acumular atrasos em sequência. Os mananciais seguem poluídos, desmatados e cada dia mais secos — e avançamos bebendo o volume morto desde maio do ano passado. Será que caso ou compro uma cisterna?

    Água, quem diria, virou produto exclusivo, coisa rara, objeto de disputa. Status de iguaria e cada vez mais cara. A Sabesp impõe dois aumentos consecutivos na conta mensal em apenas seis meses. Os acionistas da empresa em Nova York são insaciáveis e, em São Paulo, dezenas de bairros já vivem sob a pressão de estar com a pressão reduzida. Banho de chuva virou tendência.

    A garantia da água vem da fonte: Represa Jacareí, no sistema cantareira, durante a última seca, em 2014.

    Com suas últimas gotas pingando nas torneiras dos bairros centrais, o que pode ser mais exclusivo do que a água do Cantareira (Descanse em paz)? Ah, mas sempre haverá a água mineral engarrafada, gourmet de preferência. Nosso governador, aquele que prometeu em rede nacional que não falta e não faltará água em São Paulo, parece ter encontrado uma solução: Águas Cantareira, porque toda crise é uma oportunidade.

    Para quebrar a paralisia do luto e propor ação contra a transformação da água em mercadoria de luxo, o Greenpeace lança a marca Águas Cantareira, o produto do governador Geraldo Alckmin e da Sabesp, pai e mãe da gestão irresponsável do recurso que deve ser garantido como um direito essencial a todos os cidadãos. Se depender deles, não vai faltar sede.

    Assine a petição pelo fim dos descontos aos grandes consumidores em www.aguaparaquem.org.br. Acompanhe o lançamento da Água Cantareira neste 23 de junho nas redes sociais.

  • Mudanças climáticas: a influência das ações do homem nesse processo no Brasil

    Mudanças climáticas: a influência das ações do homem nesse processo no Brasil

     

    Uma pesquisa recentemente divulgada pelo Greenpeace, em parceria com o Datafolha, afirma que os brasileiros, num geral, acreditam que as mudanças climáticas já afetam o país. No entanto, apesar da maioria responder que já ouviu falar sobre o assunto, a parcela que se declara pouco informada em relação às mudanças climáticas é maioria.

    Enquanto um total de 88% respondeu que já tinha ouvido falar sobre mudanças climáticas, apenas 28% se consideram bem informados.

    Para Alexandre Gross, gestor de projetos no Centro de Estudos em Sustentabilidade da FGV, esses 88% podem abranger pessoas com profundo conhecimento sobre o tema e outras que apenas “ouviram falar”. “As pessoas estão mais informadas sobre as mudanças climáticas muito por causa da crise hídrica e do setor elétrico. Nesse sentido, a grande mídia e algumas figuras públicas também estão pautando o assunto”, comenta.

    Foto: Mídia NINJA

    Entre os possíveis fatores responsáveis pela mudança climática, o desmatamento lidera como principal para 95% dos entrevistados. Em seguida, está a queima de petróleo (93%), atividades industriais (92%), queima de carvão mineral (90%) e tratamento de lixo doméstico (87%). Entre os últimos da lista, está o comportamento do sol (83%), as hidroelétricas também (80%), a agropecuária (77%) e por último o el niño (64%).

    O professor da FAAP e teórico ecossocialista, José Correia Leite, considera que a principal causa das mudanças climáticas no Brasil é a agropecuária.

    “O grande vilão [do ecossistema] não é a indústria, é a agropecuária. Ela é a atividade mais predatória desenvolvida no território brasileiro”, diz.

    Para Alexandre, em uma escala global, é a queima de combustíveis fósseis a grande responsável. No Brasil, por outro lado, historicamente foi o que é chamado de uso da terra, categorização que engloba o desmatamento. Em segundo lugar, a agropecuária que foi ultrapassada pelo setor de energia recentemente.

    “É interessante que as pessoas não tenham a percepção de que esse setor é altamente prejudicial. Mas, ao mesmo tempo, é um setor que pode inverter a jogada facilmente. Tem uma metáfora que aponta a agropecuária como o vilão, por contribuir com as mudanças climáticas, a mocinha também, porque sofre com elas. E, além disso, pode ser o herói pelo potencial de diminuir essa emissão”, conta.

    Para José, além de influenciar as mudanças climáticas, a atividade agropecuária contribui com o desmatamento, perda da biodiversidade e destruição do sistema hídrico. “Isso tem um impacto devastador sob os biomas”, completa o especialista.

    Foto: Greenpeace/Gilvan Barreto

    A pesquisa aponta que 66% dos entrevistados considera que o Brasil deveria assumir uma liderança no enfrentamento do problema das mudanças climáticas. O professor da FAAP diz que o país tem potencial para enfrentar o assunto. No entanto: “O Brasil poderia gerar energia elétrica, basicamente, pela solar e eólica. Além das hidroelétricas que já existem, sem construir mais. Me parece que não vai liderar esse enfrentamento, porque não há nenhuma sensibilidade por parte dos dirigentes dos partidos políticos e do setor empresarial nesse sentido”.

    Para ele, o financiamento de partidos políticos por empresas de agronegócio compromete políticas públicas de caráter ambiental. Ainda segundo José, é preciso uma alteração radical da estrutura de poder da política brasileira. “A Dilma faz do Pré-sal seu principal projeto estratégico para o país. Além disso, grande parte das bancadas dos outros partidos, e também o PT, estão vinculadas ao agronegócio. Como essas pessoas vão combater o desmatamento, se elas mesmas estimulam o desmatamento?”, questiona.

    Pesquisa realizada por Antônio Nobre, no final do ano passado, aponta que existe uma mudança no regime de chuvas da Amazônia. Com a devastação, a floresta joga menos umidade no ar, e isso pode estar vinculado com a seca no sudeste.

    “Se isso é verdade, as consequências são enormes, por que o sistema Cantareira pode jamais se recuperar”, alerta. José aponta que essas mudanças não tem a ver apenas com a temperatura do planeta e fatores naturais, e sim com ações do homem.

    Desse ponto de vista, a aprovação do novo código florestal (2012), que reduz a preservação das matas ciliares (vegetação ao redor dos rios) de 50 para 15 metros, contribui para o desmatamento. “A aprovação foi um sinal verde para destruir em uma escala jamais vista no sistema hídrico brasileiro. E isso foi aprovado pelo governo, ou seja, isso foi referendado pela presidente Dilma”, conclui o ecosocialista.

    O Estado do Acre viveu uma cheia histórica de seus rios, com uma elevação de mais de 18m do curso normal, deixando mais de 7 mil pessoas desabrigadas na capital. — Foto: Mídia NINJA

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  • Todo macaco no mesmo galho e a tristeza não é senhora

    Todo macaco no mesmo galho e a tristeza não é senhora

     

    Na noite do dia 16 de abril, durante um debate no bairro do Bixiga em São Paulo, descubro que a serenidade e a vida longa são atributos de mulheres que decidiram seguir um caminho entre livros, mato, rios e índios. A descoberta me acende quando observo, entre as pessoas da plateia, as fotógrafas Maureen Bisilliat e Claudia Andujar, ao lado de Betty Mindlin, antropóloga.

    Foto: Luz del Fuego

    Carmen Junqueira, também antropóloga e professora emérita da PUC, uma das palestrantes, revela sua apreensão e melancolia , após a exibição de um vídeo inédito registrando o recente contato com a etnia Mahsco Piro, que transita na fronteira entre Peru e Brasil. “Quero dizer que esses grupos, que deveriam ser a base de nossa democracia são, ao contrário, aqueles que têm de ser moídos, porque é o que se faz desde sempre. Aqueles índios do passado que conseguiram sobreviver ou aqueles que conseguiram se equilibrar dentro da comunidade. Que não foram laçados ou para trabalhar em fazendas ou, as meninas, postas a trabalhar como domésticas nas cidades vizinhas aos territórios”. Sem resiliência, o caminho do índio tem sido uma via crucis na nossa história, com exceção de um breve período de Marechal Rondon, no início do século 20,em que a matança de índios teve uma trégua. Apesar de toda gravidade, a antropóloga enaltece o privilégio que o Brasil tem de ser contemporâneo de povos que vivem em comunidades quase igualitárias. “Isso para um país que vive com uma vergonhosa distribuição de renda, com uma exploração terrível, só essa lembrança de um futuro que nós almejamos em igualdade já é alimento para nós lutarmos a favor dessas populações”, conclui. Na inusitada casa do bairro paulistano que abrigou o debate reuniram-se o médico Douglas Rodrigues, coordenador do Projeto Xingu, um programa cinquentenário de extensão da Escola Paulista de Medicina, além de André Villas-Bôas, secretário executivo do Instituto Socioambiental. Foram mediados pela jornalista Laura Capriglione, do Jornalistas Livres. “O desvendamento da questão indígena, apesar de estarmos no século XXI, é a proposta desse debate e o desvelamento é uma tradição desse território dos Jornalistas Livres”, diz Laura Capriglione.

    Foto: Hélio Carlos Mello

    Jornalistas Livres, para quem não o conhece, é um coletivo de comunicadores, recentíssimo, que tem como pressuposto a defesa da democracia. Laura afirma que pela primeira vez em muitos anos, décadas, tem gente com coragem de chegar numa avenida e defender a intervenção militar, e defender a ditadura militar, e torturadores se apresentando no meio da avenida Paulista sendo aclamados como heróis do povo brasileiro, torturadores que ceifaram tantas vidas e infelicitaram tanto uma parcela enorme de nossa juventude. Nesse exato momento, os Jornalistas Livres constituíram-se com base em dois princípios: o amor irrestrito pela democracia e o respeito apaixonado pelos direitos humanos. Por isso, para esse grupo, é tão importante destacar a questão indígena, como concernente a uma das parcelas da população mais violentadas por um modelo de desenvolvimento que ignora o direito à autodeterminação dos povos e o próprio direito à sobrevivência, conclui ela.

    O médico Douglas Rodrigues toma a palavra, aludindo à motivação que os coletivos instigam e à revelação de novas etnias, que excita os indigenistas. Ele revela à plateia do século 21 que o país ainda tem muitos grupos indígenas que vivem em estado de isolamento, abstenção essa que mais parece uma estratégia desses grupos para enfrentar o desenvolvimento. Ele explica que o contato é apenas o momento oficial de nossa sociedade com os “descobertos”, pois os avistamentos são apontados pelas populações do entorno dessas regiões.

    Foto: Mídia NINJA

    A primeira consequência disso pode ser a depopulação do território provocada por agentes patológicos, bem como por conflitos. A imunização é fundamental nessa para evitar os grandes riscos de mortalidade. As referências de contato de índios isolados nesse momento no território brasileiro chegam a 102, sendo os grupos já identificados 27. Douglas revela que esses grupos estão fugindo, o isolamento é uma estratégia de sobrevivência frente aos vários programas de infraestrutura para financiar esse projeto de desenvolvimento do novo século, que possui vários equívocos. Diz ainda que, às vezes, infelizmente o contato é a última fronteira de proteção dos isolados. Falta hoje uma política clara que tire o índio da invisibilidade, que haja coragem e seja continuada, conclui ele.

    Por fim, o indigenista André Villas-Bôas, do ISA, revela o quanto foi influenciado na sua juventude, em seu empenho indigenista, pelas fotos das revistas Cruzeiro, Atualidade e a revista norte-americana Life. Aliás a fotografia foi fundamental na manutenção de territórios tradicionais às etnias. A fotografia é arte fundamental na decisão desse caminho. A geração à qual André pertence testemunhou toda violência da década de 70, do regime militar com a construção de estradas, tais como as BRs 364, 163, 158, Transamazônica, Perimetal Norte, que ensejaram grandes etnocídios , mas ao mesmo tempo, contraditoriamente, foi no período militar que alguns dispositivos legais trouxeram um mínimo de segurança. Destoando com o que até então, foram dados os primeiros passos para que se constituísse legitimidade para a demarcação territorial para os povos tradicionais. Talvez possamos um dia fazer uma análise sociológica desse fenômeno militar que batia com uma mão e protegia com a outra.

    Foto: Hélio Carlos Mello

    Temos vários momentos na história brasileira em que isso fica patente com os povos indígenas. Essa geração de André também testemunhou o período da Assembleia Constituinte, e celebrou conquistas incríveis para os índios, face à fragilidade que existia na legislação. Hoje, é muito duro testemunhar o ataque e retrocesso que se pretende em relação a esses direitos conquistados em 1988. É algo que nos abate permanentemente. Essa PEC 215 enseja uma discussão muito mais profunda do que se os índios devem ter terra ou não. Essa PEC nos faz refletir sobre o país que nós queremos para o futuro, conclui.

     


     

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  • Parlamentares versus parentes

    Parlamentares versus parentes

    Brasília, 16 de abril de 2015, terceiro dia de Mobilização Nacional Indígena no 11º Acampamento Terra Livre. É hora de mais de 500 indígenas se pintarem para a guerra, descerem até o poder legislativo da República e ocuparem o Congresso Nacional, organizados em fila indiana para passar pelo cordão de isolamento da Polícia Legislativa. E lá vou eu de novo, junto com esse povo que (não) sou eu, pisar naquele chão de elite branca que (não) é meu.

    Foto: Mídia NINJA

    Rompido o cordão de isolamento, a rampa do Congresso Nacional é do povo indígena — o que valeu apenas para aqueles que tivessem nome e sobrenome passados à Câmara pela organização da Mobilização Nacional Indígena.

    Foto: Mídia NINJA

    Como a provar que todo dia é dia de demagogia nas duas casas legislativas do Brasil, deputados e senadores são uníssonos em comemorar e homenagear o Dia Nacional do Índio, o 19 de abril, data solitária paliativa num oceano de 364 outros dias. A Câmara dos Deputados recebe com carinho e reverência o espetáculo multicolorido de “parentes” vindos de avião, ônibus e carro das cinco regiões do Brasil com S.

    Foto: Mídia NINJA

    A casa toda se levanta para cantar, em português, o Hino Nacional Brasileiro. Alguns indígenas cantam junto, outros mantêm silêncio (ir)reverente.

    Foto: Jardiel Carvalho / Foto Coletivo RUA

    Assentados nos postos rotineiramente ocupados pelos deputados, @s índi@s batucam a internet dos parentes brancos e produzem a cena espetacular de ocuparem, uma vez na vida, os assentos mais poderosos do país que antigamente era só deles. A Rede Globo e demais emissoras (multi)nacionais ignoram solenemente o espetáculo extraordinário de cores e significados.

    Foto: Jardiel Carvalho / Foto Coletivo RUA

    Enquanto isso, nos subterrâneos, os astutos senhores atualmente liderados pelo peemedebista Eduardo Cunha preparam o bote apelidado PEC 215. Sob a tarja de Proposta de Emenda à Constituição, a 215, esse é o eufemismo ruralista-especulativo para designar o estupro (mais um estupro) que pretende sequestrar do poder executivo para o legislativo (ou seja, para os homens — e algumas mulheres — de Cunha e do também peemedebistaRenan Calheiros) a tarefa de (não) demarcar e homologar terras para os habitantes originários do Brasil que foi ficando com Z.

    (“Parente” é o termo amoroso pelo qual os descendentes indígenas de nosso país se tratam e se reconhecem uns aos outros.

    Foto: Jardiel Carvalho / Foto Coletivo RUA

    Superstar entre os parentes na sessão matinal na Câmara, a ex-senadora acreana Marina Silva, da (não-)Rede e do (não-)PSB, é estrela maior entre uma constelação de cocares, penas de pássaros e tons não-pálidos de peles humanas. A terceira colocada nas eleições presidenciais de 2014 diz que “não sabia que iria falar”, antes de observar que esta é sua primeira aparição pública desde a campanha e de sacar de um papel apontamentos para um discurso de forte identificação e empatia com os parentes presentes.

    O discurso é mais brando que o que Marina fez menos de 24 horas antes na plenária pública da tenda de circo do acampamento instalado no gramado da Esplanada dos Ministérios, no qual reafirmou lealdade às causas indígenas, criticou as incoerências político-eleitorais e a política de demarcações da presidenta Dilma Rousseff e afirmou ter se aliado “a uma das candidaturas” do segundo turno de 2014 por causa, entre outras, do compromisso da candidatura em questão em não apoiar a PEC 215.

    Foto: Jardiel Carvalho / Foto Coletivo RUA

    Na Câmara, Marina demonstra que as demarcações diminuíram drasticamente nos governos petista, em comparação aos governos tucanos pré-2003, e troca a ordem dos fatores: não menciona a aliança que fez no segundo turno, mas nomina o tucano Aécio Neves em pessoa, dando conta de um suposto compromisso do senador mineiro com a não-aprovação da PEC anti-indígena pró-ruralista.

    Foto: Jardiel Carvalho / Foto Coletivo RUA

    A demagogia pró-indígena dos congressistas recende a antídoto para a feia cena de dezembro passado, quando a Câmara usou de violência para impedir a entrada dos parente numa sessão da “casa do povo” (leia aqui como a mídia tradicional inverteu a notícia, acusando índios de “invasores” e agressores). Sob os crucifixos católicos que adornam os plenários laicos de Câmara e Senado, agora tudo é paz, todos amam os índios, tudo é festa preparatória para a chegada do 19 de abril.

    Foto: Jardiel Carvalho / Foto Coletivo RUA

    O músico paraibano Chico César toma o microfone para saudar os “parentes” e entoar uma canção provocadora decalcada das epopeias folk do (não)parente do norte Bob Dylan.

    Pajelanças à parte, o tratamento “diferenciado” se conserva. No início da sessão, mais deputados que índios ocupam as tribunas (onde está a Rede Globo, que ainda não chegou para dar holofotes indigenistas aos representantes do povo?). Mais indígenas que congressistas são relegados às últimas falas.

    Foto: Jardiel Carvalho / Foto Coletivo RUA

    Irredutível diante do dominador, o cacique caiapó (e mato-grossense) Raonidiscursa em sua própria língua. ”O homem branco não quer ouvir o que temos a dizer”, lamenta ao microfone um cacique faminto do almoço que começa a tardar.

    Foto: Mídia NINJA

    (Na noite de quarta-feira, depois de ouvir Marina discursar, assisti a uma minúscula reportagem da Globo do Distrito Federal sobre a marcha indígena do dia. Não houve nenhuma ínfima menção à PEC 215, menos ainda ao que ela significa. O locutor afirmou que a passeata era a favor da reforma agrária — termo que não ouvi da boca de nenhum indígena nesses dias. A manifestação interrompeu o trânsito, sublinhou a Globo, que, definitivamente, não é — ou não quer ser — parente de ninguém que seja não-branco. Sim, nós somos racistas, sinhozinho.)

    Foto: Jardiel Carvalho / Foto Coletivo RUA

    Os parentes não se mostram convencidos pela encenação parlamentar. Balançam chocalhos (arcos e flechas foram proibidos de entrar), fazem algazarra contra o pretendido estupro à Constituição de 1988, forçam no grito manso os deputados a vestir a camiseta “não à PEC 215″ que trouxeram como presente de índio para branco. ”Veste! Veste! Veste!”, exigem com firmeza inclusive de uma inicialmente hesitante Marina Silva. A parenta que quase foi presidenta acaba por cobrir parte do vestido verde-amarelo-elegante com a camisa que diz ser sua para sempre.

    Foto: Mídia NINJA

    O festim demagógico se repete como farsa na parte da tarde, no auditório do Senado. A segunda casa legislativa se revela mais exclusiva, exclusivista, restrita e restritiva que a Câmara. Agora a polícia legislativa não quer permitir nem mesmo a entrada dos chocalhos. Na iminência de ser privados de mais uma parte importante de suas identidades, índias e índios ameaçam ir embora para o acampamento, e dali para casa. A comissão de Direitos Humanos do Senado consegue desenlaçar o impasse: os chocalhos entram no salão azul dos brancos homens (e algumas mulheres).

    Foto: Mídia NINJA

    Sob o crucifixo católico que (como na Câmara) adorna o topo da mesa diretora, o aparentemente parente João Capiberibe, do PSB do Amapá, preside uma sessão à qual pouquíssimos parentes-de-Senado estão presentes. Homens e mulheres pintados, seminus e calçados de havaianas tomam assento nas cadeiras paulistas em que cotidianamente se refestelam, lado a lado, os senadores José Serra, Aloysio Nunes (PSDB) e Marta Suplicy (PT ou ex-PT?).

    Foto: Mídia NINJA

    Parente paranaense, me vejo sentado na cadeira do conterrâneo Roberto Requião (PMDB), antes de notar que, no Senado, ele se senta lado a lado com os irmãos-adversários de aldeia Gleisi Hoffman (PT) e Álvaro Dias(PSDB). Não é só no aldeamento demarcado: também no parlamento os parentes rivais são forçados (forçados?) a dividir o mesmo lugar no espaço uns com os outros.

    São tristonhos os primeiros discursos de senadores na tribuna. “Veste! Veste! Veste!”, os agora cerca de 80 parentes no Senado constrangem os parlamentares a assumir a camisa-emblema que só na hora do voto eles revelarão no duro se é ou não é a sua. Capiberibe e um senador do PR de Tocantins se (des)ajeitam na camisa anti-PEC. Os chocalhos balançam, felizes, mas não necessariamente crédulos. O paraibano Cássio Cunha Lima, do PSDB, aparece sorridente para cumprimentar conterrâneos indígenas, mas não cobre peito com o “não à PEC 215″. Os chocalhos sabem a hora de emudecer.

    Foto: Mídia NINJA

    Um cacique põe o dedo na ferida de poderosos sejam executivos, legislativos, judiciários, laicos ou religiosos, em discurso que não será ouvido pelos ausentes Marta, Serra, Aloysio, Aécio, Renan, Requião, Gleisi, Álvaro: “Não adianta falar que defendem os índios, os LGBTs, os quilombolas ou as mulheres, se vocês não defendem de verdade”. Dos assentos onde poderiam estar os senadores, os chocalhos gritam, misturados a trinados que evocam os pássaros das florestas brasileiras com S.

    Foto: Mídia NINJA

    Capiberibe anuncia que vai se ausentar da presidência da sessão para acompanhar uma ainda mais exclusiva delegação indígena ao encontro do vice-presidente da República, Michel Temer, do PMDB. É o mais perto que os parentes chegarão da presidenta Dilma nesta jornada, pelo menos até o instante em que este #JornalistaLivre tem de debandar da “casa do povo” e do convívio com parentes e (não-)parentes, para voar de volta à terra adotiva dos bandeirantes de São Paulo.

    (Você viu no Jornal Nacional da quinta-feira 17 se Dilma ou Temer recebeu nossos parentes indígenas? Você viu nossos parentes na tela da Globo?)