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  • Projeto Futuro do Presente, Presente do Futuro #27 – Matheus Alves: É Sobre isso, Lamento

    Projeto Futuro do Presente, Presente do Futuro #27 – Matheus Alves: É Sobre isso, Lamento

    Da janela, observo os transeuntes. De peitos abertos, dispostos a encarar qualquer perigo, eles surgem e desaparecem em meio às árvores que cercam o quadrado livre do terceiro andar. Vez sim, vez não, também vem em mim a dor de ir ao encontro do perigo. Me pergunto “de que vale o risco?” e automaticamente a resposta vem aos olhos: “é necessário”. De várias formas o perigo nos atrai e bastasse a devastação que ocorre enquanto escrevo este texto e você o lê, mais uma vez nós nos lançaremos ao desconhecido. 

    Por mais que conheçamos o caminho, mesmo que saibamos de cada pedra e raízes das grandiosas árvores que cortam o concreto das calçadas, deixamos de conhecer o que nos cerca. Andar, tornou-se ato de rebeldia e de sobrevivência, mas, ao mesmo tempo, de temor. E apesar disso tudo que já sabemos, há quem não tenha a mesma sorte de escolher se andar é um ato de rebeldia ou de temor. Há quem ande apressadamente como quem persegue algo que implicitamente surge e desaparece aos olhos, trazendo a constatação: quem tem fome, tem pressa.

    No outro lado da rua, há quem não acredite que a devastação é real, que não mata, que não destrói lares e nem deixa irreparáveis sequelas. Só de pensar nessas pessoas, meus dedos tremem, e vez por outra, erro as letras, sendo necessário reparar o erro e penso: e o erro dessas pessoas, quem repara? 

    O tempo passa e, com ele, as pessoas se vão. Para onde vão eu não sei, mas por mais que alguns voltem e abracem seus afetos, há quem não teve nem a oportunidade de dar um beijo de despedida “até mais tarde, fica com Deus”.

    Matheus Alves

    Da  janela é muito simples criar um conto e discorrer sobre os delírios de estarmos isolados, de comprarmos cervejas, vinhos e acendermos uns finos, mas e aí? Sim, eu estou te perguntando e você deve responder em voz alta! E aí? Você e eu fazemos nossa parte na maior crise sanitária da história. Mas, e aí? Responda!

    Matheus Alves

    Não, calma! Não é para sair pê da vida, querendo xingar os eleitos da janela. É para refletir, pois enquanto estamos aqui, sentados, quem está lá fora? Como são essas pessoas?

    Matheus Alves

    Quando elas comem?

    Matheus Alves

    Pera, elas comem?!   

    É. Este poderia ser mais um textão de blog querendo botar o dedo na ferida – que nem é mais necessário fazer, visto o tamanho do rombo em que estamos enfiados até o pescoço – mas não só. A diversidade da desigualdade se apresenta em formas que nem eu mesmo entendo. Ou seria correto dizer “as desigualdades”? 

    Você percebe o tamanho do delírio que é isso tudo que você leu agora? Pois é… Isso é isolamento. Você até falou sozinho e nem percebeu! E sim, falar sozinho é bom.  No mais, o intuito disso aqui é alertar, não fazer um juízo de valor barato. Eu te alerto que a sua proteção não pode se sobrepor a proteção de mais ninguém. O seu direito acaba quando fere o direito alheio, sacou? Enquanto estamos aqui falando sobre alertas, algozes estão fazendo o maior arregaço dentro do profundo Brasil que nos abriga e, bastasse isso, há gente preta e indígena morrendo enquanto eu escrevo essa porra aqui – já com lágrimas deslizando pelo meu rosto – a materialização da raiva que me consome.

    Matheus Alves

    Ou você achava que esse seria mais um textão abordando a COVID-19 sem lembrar os outros vírus que não deixaram de me matar? Ah, é óbvio que eu não pensei nisso… Como eu iria adivinhar que você só se deu conta do perigo há dois, três meses?

    Matheus Alves

    Enfim, é este o meu delírio. Por quê? Porque poderia ser eu, outro jovem negro.

    Matheus Alves
    Matheus Alves

    Se Deus é quem guia, quem é que dirige? 

    Matheus Alves

    É sobre isso, lamento.

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    Conheça mais o trabalho do artista:

    www.omatheusalves.com.br

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    O projeto Futuro do Presente, Presente do Futuro é um projeto dos Jornalistas Livres, a partir de uma ideia do artista e jornalista livre Sato do Brasil. Um espaço de ensaios fotográficos e imagéticos sobre esses tempos de pandemia, vividos sob o signo abissal de um governo inumanista onde começamos a vislumbrar um porvir desconhecido, isolado, estranho mas também louco e visionário. Nessa fresta de tempo, convidamos os criadores das imagens de nosso tempo, trazer seus ensaios, seus pensamentos de mundo, suas críticas, seus sonhos, sua visão da vida. Quem quiser participar, conversamos. Vamos nessa! Trazer um respiro nesse isolamento precário de abraços e encontros. Podem ser imagens revistas de um tempo de memória, documentação desses dias de novas relações, uma ideia do que teremos daqui pra frente. Uma fresta entre passado, futuro e presente.

    Outros ensaios deste projeto: https://jornalistaslivres.org/?s=futuro+do+presente

  • O que de fato importa? As vidas negras ou as mortes negras?

    O que de fato importa? As vidas negras ou as mortes negras?

    Porque os corpos negros só se tornam relevantes quando alguma tragédia acontece?
    A imagem consegue por si só contar inúmeras histórias, que nos ensinam e nos forjam dentro de uma estrutura social. Pensar o modo que temos vivido se dá em uma busca constante por conteúdos visuais, somados a uma defasagem educacional gigante e proposital em nosso país. Desde o fim de maio, circulam por todo o mundo imagens do assassinato de George Floyd, causando uma grande onda de denúncias de violência policial e ações de promoção de causas ligadas ao assunto. A questão que se levanta com tal movimento é o que de fato importa: as vidas ou as mortes negras?

    Por Marcelo Rocha e Matheus Alves*

    Durante os meses de junho e julho, vários veículos de mídia expandiram os debates sobre as questões raciais em seus editoriais, capas e artigos, na busca de suprir violências de mais de 400 anos de extermínio. Fato que tem sua importância no contexto histórico, porém se dá mais uma vez após momentos de violência, repetindo uma estrutura de banalização do mal, pois os casos seguintes se tornaram apenas virais na internet, como na cidade de São Paulo, o caso da comerciante de 51 anos que teve seu pescoço pisoteado pelo soldado da Polícia Militar João Paulo Servato, durante uma abordagem.

    Sabemos que uma das bases da nossa educação é a imagem. Partindo disso, essa construção imagética da violência produz narrativas que por muitas vezes reduzem as ações do povo preto às violências sofridas, enquanto processo de documentação. A pesquisadora norte americana bell hooks, em seu livro “Olhares Negros, Raça e Representação”, faz uma síntese de como essas imagens reforçam a violência, pois não criam outras possibilidades concretas para esse povo e o condicionam à violência, fato que a repercussão da imagem no Brasil, causa um efeito reverso, reproduzindo as ações praticadas. Pensar que a imagem de um policial sufocando um homem negro nos EUA fora reproduzida quase que integralmente por um outro policial no Brasil, nos deixa com a reflexão de que isso pode ser uma demonstração de identidade com a violência praticada contra corpos negros. 

    Foto: Matheus Alves / Jornalistas Livres

    Compreender a importância da valorização das vidas negras se faz necessário não apenas quando uma delas é perdida ou colocada em situação de vulnerabilidade. É algo que precisa ser construído cotidianamente através da promoção da cultura e da diversidade do povo, da inserção destes em espaços de criação de narrativas e decisão política e editorial. A construção da documentação do povo preto precisa considerar os mais diversos pontos de vista, inclusive sua própria história, como nos provoca a filósofa Sueli Carneiro sobre essa urgente tarefa de manter o pensamento negro vivo. 

    Foto: Matheus Alves / Jornalistas Livres

    Há de lembrar que as imagens desde o período colonial têm um papel de manutenção da supremacia branca no Brasil, que apesar de sempre ter existido, agora demonstra sua faceta de forma mais explícita através de ações de extermínio. Ao olharmos toda a história brasileira nos museus e galerias, as únicas formas de representação negra ainda reproduzem essas violências estruturais. Se fazem necessárias alternativas que ultrapassem este lugar de denúncia, mas que construa também narrativas de futuro para as pessoas pretas, vide o trabalho e esforço que tem sido levantado pelos movimentos negros, como o MNU e o Ilê Aiyê, nos anos 70, com a apropriação e ressignificação de termos e figuras para a promoção da autoestima negra nos mais diversos segmentos da sociedade, como na arte e na política.

    Mortes negras: quantas mais?

    Façamos memória das potências negras que já nos deixaram, e que seguem construindo narrativas de transformação, como a própria vereadora Marielle Franco nos alertou pouco antes de ser assassinada: “Quantos mais têm que morrer pra essa guerra acabar?”. Esta frase não fala apenas sobre contar corpos, mas sobre a construção de um projeto de manutenção das vidas negras, onde a necropolítica que a supremacia branca nos determina não seja condicionante da forma que vivemos.

    Foto: Matheus Alves / Jornalistas Livres

    É necessário um processo de ruptura com a normalização dessas mortes, que não partam apenas do lugar momentâneo, mas da construção efetiva de processos de reestruturação social, que sejam interseccionais, como tem sido a Lei Federal de nº 10.639/2003 para a educação brasileira, em todos outros espaços de poder, uma derrubada das estruturas coloniais que ainda se mantém de pé.

    A falácia da democracia racial é grande responsável por promover este sentimento de cooperação e exclui a necessidade de entender a importância dos olhares pretos estamparem de forma positiva os espaços de mídia e os imaginários da sociedade. Por isso, é essencial que haja investimento e reconhecimento, para que sejam efetivados os esforços promovidos por artistas, ativistas e tantas outras figuras negras. Onde possam ocupar espaços na sociedade durante suas vidas. Aqui podemos citar trabalhos como do jovem fotógrafo alagoano Marcelino Melo “Nenê”, 25, que tem documentado de outra forma territórios marcados pela violência na região do Campo Limpo, ou mesmo o do antropólogo Hélio Menezes, 34, através de suas curadorias em espaços das artes, buscando ressignificar as identidades negras em exposições de obras produzidas por artistas negros. Ou, como os dois jovens negros que assinam este artigo – que facilmente poderiam ser manchetes sobre mais um extermínio do estado.

    Foto: Matheus Alves / Jornalistas Livres

    Texto originalmente publicado pela coluna PerifaConnection, na Folha de S.Paulo.

    Marcelo Rocha, 22, é fotógrafo, ativista em educação, negritude e mudanças climáticas, graduando em Ciências Sociais, foi curador das mostras “Humano Cidade: Olhares além da medida” e “QUEBRADA: São Paulo, na visão dos cria”. Cria da cidade de Mauá, São Paulo.

    Matheus Alves, 22, é fotojornalista freelance baseado em Brasília (DF). Tem seu trabalho dedicado a documentar Movimentos Populares de luta pela terra e direito à cidade. Premiado pelo Concurso Fotográfico “Combater os Retrocessos: Existir e Resistir à Retirada de Direitos”, promovido pelo Fundo Brasil de Direitos Humanos em 2019. Colabora com a rede Jornalistas Livres.