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  • Sofia Feldman recebe bolo da Prefeitura de BH

    Sofia Feldman recebe bolo da Prefeitura de BH

    Pelo visto, a solução financeira do Hospital Sofia Feldman, em Belo Horizonte, ainda está distante. Ontem, depois de propor uma reunião com o Conselho Curador da maternidade, representes da prefeitura não compareceram ao encontro e nem deram notícia. Se fossem até aquela unidade encontrariam dezenas de funcionários protestando contra uma possível intervenção da prefeitura na direção do hospital em troca de verba para sua manutenção.

    O Sofia Feldman é uma fundação financiada pelo SUS e pelo Estado de Minas que funciona no bairro Tupi, Zona Norte da capital, há mais de 30 anos, após ser idealizado pelo fotógrafo José Moreira Sobrinho. Atualmente vem atuado como uma referência para partos naturais e humanizados em todo o Brasil e América Latina. Para se ter ideia, neste momento duas equipes de funcionários da maternidade encontram-se no Japão e em Israel para levar as técnicas de parto desenvolvidas em Belo Horizonte. E é comum o hospital receber grávidas de vários e distantes estados, como Rondônia, que fazem opção e questão e dar à luz beneficiando-se das técnicas desenvolvidas no Sofia Feldman.

    E justamente por isso a maternidade gera ‘ciúmes’, principalmente no setor privado, onde há uma verdadeira farra em torno dos partos por ce$ariana$, que fazem a festa para os bolsos de médicos e hospitais. Isso explica também por que o Sofia Feldman é discriminado na distribuição de verbas públicas. Embora seja responsável por 40% dos partos (1.050 em média por mês) da rede pública de Belo Horizonte, o hospital recebe apenas 22% do bolo de recursos distribuído pelo SUS para sete maternidades da capital. Curiosamente, a Maternidade Odete Valadares, que cuida em média de 300 partos por mês, é a que mais recebe recursos. Curiosamente, também, tem maternidade que recebe R$ 18 mil por parto, enquanto ao Sofia são destinados apenas R$ 5 mil, quando necessitaria de pelo menos R$ 6.500 por parto, tendo o menor custo-benefício para o SUS.

    Desta forma, estrangulado, o Hospital Sofia Feldman vem administrando, hoje, uma dívida de R$ 90 milhões e pede socorro. A maternidade não conseguiu pagar o 13º salário  de seus funcionários e só agora conseguiu pagar os salários de janeiro. Diante da crise, a Prefeitura de Belo Horizonte ensaiou uma ajuda que, na visão dos funcionários da maternidade, trata-se de verdadeiro cavalo de Troia, uma intervenção que deturparia o modelo do hospital. Hoje a prefeitura não coloca nenhum recurso prório lá, apenas repassa recursos federais e do Estado de Minas. Cogitou bancar os custos do hospital mas, em contrapartida, o diretor geral e o diretor financeiro seriam indicados por ela e ficariam subordinados ao Executivo municipal, o que é rechaçado pelos funcionários e todas as pessoas ligadas à instituição, como é o caso do Conselho Curador.

    Mas, como a direção do Sofia Feldman está aberta ao diálogo para solucionar a crise financeira, ontem à tarde receberia representantes da área da saúde da prefeitura para prosseguir nas conversas. Mas os tais representantes da prefeitura acabaram dando o bolo nos integrantes do Conselho Curador, que decidiu partir para a elaboração de um documento formalizando uma proposta de como poderia ser amarrada uma parceria e aguardar um retorno. “Queremos isonomia quanto ao financiamento”, adiantou João Batista Lima, presidente do Conselho Curador.

    “Como o hospital é uma fundação particular, então a prefeitura tem de explicar como faria a parceria”, afirmou o advogado Obregon Gonçalves, integrante do Conselho Curador. “O importante é que o modelo de referência e excelência do Sofia seja respeitado”, acrescentou.

    “E lembramos que não abrimos mão do modelo de humanização do parto”, acentuou Bruno Pedralva, presidente do Conselho Municipal de Saúde. “E a proposta da prefeitura tem de ser aprovada também pelo Conselho”, lembrou.

    O fato é que por trás de toda a crise vivida pelo Hospital Sofia Feldman há um bando de urubus querendo ver a maternidade sucateada para impor seus interesses, o que, aliás, vem ocorrendo em inúmeras instituições de saúde do país, principalmente aquelas que são modelo até mesmo para a iniciativa privada. Por isso, no interior e fora do Sofia não falta quem olhe com preocupação para as movimentações do secretário Municipal de Saúde, Jackson Machado Pinto. Desde outubro, por exemplo, a prefeitura não tem repassado à maternidade os recursos do SUS e do Estado, o que seria uma forma de estrangular o Sofia Feldman.

     

  • “Como ser mulher, mãe, forte e construir uma carreira?”

    “Como ser mulher, mãe, forte e construir uma carreira?”

    Em meio à produção do CD “Canto Sem Pressa” e de uma agenda apertadíssima para construir o trabalho como artista independente, Natasha se viu grávida de José, hoje com um ano e três meses. Ao lado de seu marido e produtor musical Eduardo Andrade, eles optaram por ter o filho, e também parir o disco no ano de 2016. Agora, em setembro de 2017, ela retoma seus trabalhos artísticos e se apresenta em Belo Horizonte, no Palácio das Artes, nesta sexta-feira, 8 de setembro, às 21h. Confira a entrevista, em que ela fala um pouco sobre as alegrias e dores da criação.

    A: Como foi,para você, a maternidade?

    N: A maternidade, sem dúvidas, foi a coisa mais transformadora e intensa que eu já vivi na minha vida, e que vivo pelo resto da minha vida agora. É algo que é para sempre e é uma transformação por completo, a gente necessita de abrir um espaço muito grande na vida para que esse ser que depende totalmente de você e do pai se desenvolva, e junto disso, a gente precisa fazer diariamente muitas escolhas.

    A: Que tipo de escolhas?

    N: Quando a gente descobre que está grávida, é necessário pensar como vai ser o parto, como é que a gente vai alimentar e amamentar o bebê, se vai ser exclusivamente leite materno ou se vai ser com complemento, como que vai ser alimentação do seu filho, como que você vai conduzir a educação do seu filho, entre outras questões. Como ensinar, educar, ou como você vai dizer para ele que algo é certo ou errado também é uma escolha, já que tem várias formas de dizer, são milhões de escolhas que você tem que fazer.

    A: Como ficou o seu emocional durante a gravidez?

    N: Eu fiquei exausta, pois tive que lidar com diversos sentimentos que ficam transitando dia inteiro dentro de mim, entre raiva e amor. Ter um filho deixa a mulher completamente exausta física e emocionalmente também, então mexe com tudo, mexe com a estrutura de todo ser humano. Além disso, eu estava trabalhando muito quando descobri que estava grávida do José.

    A: Como foi a descoberta? 

    N: Então, quando eu estava grávida, eu tava trabalhando muito, muito, muito. Estava gravando o meu primeiro disco, “Canto Sem Pressa”. Eu comecei a gravar o disco em Agosto e em Setembro descobri que estava grávida de 5 semanas, então realmente a concepção foi junto, em cima, do lançamento. Eu trabalho com meu marido, o Dudu, e a gente estava gravando dia e noite, ele é o produtor musical do meu disco e faz a direção musical do show, entre outras coisas, e pra nós na época foi sim um baque, porque não era uma gravidez planejada e porque tem esse peso enorme de que a vida profissional de uma mãe e acaba.

    É aquele clássico ‘acabou para a mãe’, por mais que a gente já veja uma sociedade em que não é mais tão isso, de alguma forma essa ideia entra no nosso corpo, nas nossas células e no nosso pensamento. Bate um desespero. Quando você é uma artista independente que está investindo e batalhando pelo seu espaço, não tem emprego fixo e em construção como artista não é fácil.

    A: O que mudou positivamente?

    N: Tudo, porque quando a gente se permite viver essas transformações, por mais difíceis que sejam elas, elas nos ensinam. Um filho ensina tanto quando estamos abertas. Eu acho que a gente está vivendo uma nova geração que está criando filhos de forma diferente também, de forma mais consciente. Acredito que temos uma responsabilidade muito grande na vida de um filho, é de fato a nossa parte para fazer um mundo melhor.

    Temos que investir tempo e energia na formação de um novo ser que vai para o mundo, é a nossa parte para ter um mundo melhor com seres humanos mais conscientes, menos carentes e não competitivos. Nós participamos efetivamente da construção de um ser humano que aprende muito, principalmente com a realidade dele. Então se você é um pai que grita o dia inteiro com uma criança, ela irá achar que aquilo é normal, e é a mesma coisa se a mãe trata mal as pessoas. Ele acha que aquilo é o mundo, então é o momento de você revisar se revisar inteira, porque tudo fica para a criança.

    A: E sobre a paternidade e a criação que não perpetua o machismo?

    N: O Dudu se esforça. Não faz parte do alicerce da estrutura primordial dos homens saber o quanto é importante participar igualmente da criação do filho, e então aprendemos quase ao mesmo tempo como educar um filho, um pai, e junto disso transformar uma mulher em mãe. E porque que é assim, né? Porque que a gente continua dando boneca para as meninas, e carrinho para os meninos? Porque um fogão com panela para as meninas, e um dinossauro para os meninos? Por quanto tempo que a gente vai perpetuar esses valores terríveis?

    Isso contribui para uma ideia de que se a mãe é responsável pela criança, a mãe é responsável pela cozinha, a mãe é responsável por cuidar da casa, e este instinto materno nos é imposto desde crianças, enquanto os meninos estão se aventurando como super-heróis, salvando o mundo.

    É uma responsabilidade enorme dos pais se reconstruírem também, e é claro que meu filho ganha o carrinho dele no aniversário, mas junto disso eu também posso incentivar que ele brinque com uma boneca, cuide do neném, e de alguma forma estar contribuindo para que isso possa se transformar na vida dele.

    Eu trago meu filho para fazer as coisas de casa comigo, ele tem 1 ano e 3 meses, mas tem a forma dele de fazer. Ele faz a maior zona do mundo, e mais bagunça do que ajuda, mas estando ali ele começa a entender também que a bagunça faz parte, e isso colabora para construção de um ser humano melhor, vai crescer com a noção de que um dia ele vai lavar a louça. Sim, filho, você vai lavar louça! Você vai cuidar do fogão!

    A: Como foi, para você, dar uma pausa na carreira para ser mãe?

    N: Todos os meus desejos, meus sonhos, os meus anseios estão aqui comigo, sabe. E necessitam ser ouvidos, se não acho que uma mulher adoece. A gente vê muitas mulheres adoecidas porque parece que as mulheres tem que fazer uma escolha: ou elas vão cuidar dos filhos, ou elas vão trabalhar. É difícil até a escolha de ter uma babá e não participar tanto como a geração anterior fez na criação. Por outro lado se você se torna uma mãe e não tem mais a sua profissão, você se torna muito frustrada porque você abdicou da sua profissão.  Este balanço é o que penso sempre: como ser mulher, mãe, presente, forte, uma mãe que existe, e como construir a carreira naquilo que eu amo fazer?

    O pai é uma pessoa que precisa contribuir também nesse lugar de desconstrução, junto com a mulher, para ela poder investir nela e na carreira dela né. Cabe à nós desconstruir essa imagem de que a maternidade é a coisa mais linda do mundo. Como tudo na vida, tem seus dois lados, a recompensa é maravilhosa, de fato difícil colocar em palavras de quantos momentos lindos e serenos de amor profundo a gente sente, mas por outro lado é preciso paciência.  Mães precisam de tempo para elas e de tempo descansadas, para exercer a criatividade também.

    A: E hoje nos palcos, como estes dois mundos, o de ser mulher e mãe, se unem ao seu lado artístico?

    N: Eu preparo sempre a logística né, porque não é fácil e quero ele sempre perto de mim e nossa sociedade tem sim muita dificuldade em aceitar as crianças, senti isso depois que tive o José. Nós nos tornamos militantes. A maternidade faz ver cada vez mais que o mundo é bem maior que o nosso umbigo. A maior revolução está dentro da gente e passa por colocar em prática tudo o que acreditamos ser positivo, pois há um ser que se espelha na gente e nos usa de exemplo.

    A maternidade me trouxe toda essa consciência,a gente quer que nossos filhos vivam num mundo melhor também, então temos que fazer a nossa parte. Como cantora o que eu estou buscando hoje em dia é trazer isso cada vez mais para minha mensagem artística. Dar para o mundo e para o palco essa força que eu ganhei depois de ser mãe. Eu tenho recebido muito carinho e isso me alegra, eu vejo também que a energia de qualquer ambiente melhora quando as crianças estão presentes e elas tem que estar presentes. Eles trazem muita alegria, muita suavidade.

  • Pariu Mateus que o embale: a criminalização de mulheres mães solteiras, divorciadas, viúvas e abandonadas

    Pariu Mateus que o embale: a criminalização de mulheres mães solteiras, divorciadas, viúvas e abandonadas

    Segundo uma matéria da Mídia Ninja, veiculada no sítio rebaixada.org, em 26 de março de 2014, feministas de Moscou realizaram um ato contra as declarações do deputado Aleksandr Silin, que chamou as “mães solteiras” de “putas” e “escórias” da sociedade, humilhou seus filhos e ainda propôs a esterilização das mulheres que “não desejam se casar”. Na capital do país que já foi palco da Revolução Russa (1917), o ato recolheu apenas 500 assinaturas em uma moção de repúdio às declarações do deputado e que também exigiu que o Ministério Público o condenasse por crime previsto no artigo 282 do Código Penal: “declaração de ódio a um grupo social”.

    Nesse mesmo período, o Opera Mundi noticiou que a primeira-ministra da Austrália, Júlia Gillard, pediu desculpas pelas adoções forçadas realizadas entre as décadas de 1950 e 1970, quando centenas de “mães solteiras” foram dopadas, atadas às camas de hospital e forçadas a assinar os papéis de adoção sem poder ver seus filhos, que eram entregues sem documentos a outros pais.  Na Irlanda a situação também caminha para uma desculpa oficial, de acordo com a agência de notícias AFP. Recentemente, o Secretário de Estado de Educação, Ciaran Cannon, pediu a abertura de uma investigação sobre a descoberta de quase 800 esqueletos de crianças, enterradas sem caixão em uma fossa comum, ao lado de um antigo convento católico de Tuam, que abrigou entre 1925 e 1961 jovens “mães solteiras”. Essas jovens eram obrigadas a ter seus filhos nessas instituições, a trabalhar feito escravas em lavanderias e, na maioria dos casos, a entregar o filho para adoção. Segunda a historiadora Catherine Corless, as crianças que ficavam nos conventos, como o de St. Mary, em Tuam, serviram de cobaias para testes de vacinas da multinacional GlaxoSmithKline (GSK).

    Essas matérias retratam, junto a outros tantos exemplos em vários países, a história recente de privações e humilhações de toda sorte contra a mulher que é mãe e chefe de família e domicílio, genericamente (des) qualificada de “mãe solteira”. Termo que não compreende a pluralidade dos arranjos familiares contemporâneos, pois a ausência de um cônjuge\pai pode ser por opção ou por ocasião: viuvez, divórcio, abandono. Aqui, onde se canta não existir pecado do lado de baixo do equador, nossos arquivos públicos estão cheios de códices documentais que retratam trajetórias e estratégias de sobrevivência, desde os tempos coloniais, de mulheres sozinhas com filhos que sobreviveram valendo-se da construção de redes de apoio para criar seus filhos, enquanto muitas outras mulheres viram-se obrigadas a deixarem seus filhos nas rodas dos expostos ou entrega-los à adoção forçada. Histórias que ainda precisam ser contadas, aliás.

    De lá para cá, do nosso período colonial até hoje, o mundo felizmente mudou – como demonstram algumas desculpas oficiais mencionadas acima, mas aqui no Brasil algumas questões em relação à mulher, sobretudo em relação à mulher mãe chefe de família (monoparentalidade feminina) ainda permanecem ocupando alguns corações e mentes na chave da (i) moralidade ou da piada com aquilo que não se consegue resolver na realidade. Um passeio rápido pela internet e encontraremos dezenas, centenas de páginas que pregam ódio às mães solteiras e nos transformam em mercadorias de segunda mão, chegando ao absurdo de uma página com o título “quer sexo rápido ainda hoje? Escolha uma mãe solteira e boa foda” – com uma galeria de fotos de mulheres com seus filhos.

    Mas a misoginia, o machismo e o preconceito tem muitas faces, como sabemos. Em matéria de junho de 2011, por exemplo, a Revista TPM, uma publicação que se pretende descolada e moderna, publicou uma reportagem intitulada “Namore uma mãe solteira”. Nela, as autoras, duas mulheres(!), sugerem a criação de uma campanha “divertida e descontraída” para homens namorarem “mães solteiras”, pois há vantagens para eles, os homens: a mãe solteira não tem pressa para casar; a mãe solteira não tem pressa para ter filhos e a mãe solteira não tem tempo para “grudar no pé do homem”. E tudo isso porque a mãe solteira já tem filhos.

    Na lógica machista, misógina e perversa das autoras, esses filhos serão “assumidos” pelo novo companheiro da mulher mãe, desconsiderando a multiplicidade de arranjos familiares contemporâneos em que todas as crianças das famílias monoparentais femininas já têm pai: alguns moram em casas separadas e mantem contato com seus filhos; outros moram em estados diferentes e mantem contato na medida de suas possibilidades; muitos abandonaram suas companheiras durante a gravidez ou assim que a criança nasceu e agem, com o aval da sociedade brasileira, como se a paternidade de uma criança em gestação ou nascida fosse uma escolha, uma opção.

    Assim, para as autoras, essa multiplicidade de arranjos familiares não é uma questão a ser considerada, pois a verdadeira “natureza” da mãe solteira é ter qualidades para agradar o homem que, ao se relacionar com ela, irá a um só tempo restituí-la socialmente da “imoralidade” de seu estado civil (divorciada, viúva ou abandonada) e “resgatar” a criança do pecado de sua condição de “bastarda”. Cumpre destacar que esse termo infame – bastardo – pode designar tanto uma filiação adulterina, uma filiação entre pessoas solteira, quanto a “degeneração da espécie”, no sentido de não ser “puro” em relação à espécie a que pertence.

    Felizmente, esse termo caiu legalmente em desuso aqui no Brasil no Código Civil de 2003. No entanto, algumas pessoas insistem em reabilitá-lo em contextos diversos. Por ocasião do debate sobre a redução da maioria penal, em 23 de abril de 2015, o psicanalista Contardo Calligaris, escreveu no jornal Folha de São Paulo: “A ideia de que a redução da maioridade penal seja um instrumento de dominação de classe é um estranho disparate. Alguém acredita que a delinquência seja um efeito da pobreza?”. Mais adiante, ele mesmo responde à sua indagação, argumentando que a delinquência juvenil é um efeito da “degenerescência moral” na qual muitas crianças brasileiras são criadas: pobreza somada às implicações de crescer em uma família “desestruturada”, na imensa maioria das vezes sem pai presente. Cumpre destacar que o psicanalista que elabora esse tipo de ideia já declarou na grande imprensa ter se casado sete vezes, tido alguns filhos e não convivido com a maioria deles porque veio morar no Brasil.

    O que o psicanalista desconsidera é que a condição econômica (baixa) adjetiva e criminaliza a família chefiadas por mulheres sozinhas. Mais recentemente, o posicionamento política também. Por ocasião das manifestações contra a corrupção brasileira nas quais algumas pessoas usaram roupas com as cores da bandeira nacional e gritaram palavras de ordem racistas, xenófobas, preconceituosas e cheias de ódio, um estudante de jornalismo chileno fez um vídeo em que ele entrevistou várias pessoas da manifestação ocorrida no Rio de Janeiro, em 16 de agosto de 2015. Entre os entrevistados, um senhor elaborou a seguinte ideia sobre o que ele considera ser comunista e petista: trata-se de um grupo de pessoas que cresceu sem a figura paterna em casa, pois todos eles foram mortos pela ditadura civil e militar brasileira. Assim, sem a “força” da autoridade do pai em casa e criados apenas pelas mães, são pessoas “degeneradas”, corruptas por natureza e perigosas. Pessoas que devem ser “eliminadas” do país, segundo esse senhor.

    Infelizmente, essas não são as únicas demonstrações de preconceito, ódio e maneiras de criminalizar as mães chefes de família ainda hoje, mas os exemplos aqui citados nos ajudam a pensar algumas questões urgentes. A primeira delas é que o nosso estado civil – mães solteiras, viúvas, divorciadas, abandonas – é contingencial, de maneira que ele não pode nos qualificar como mulheres mães chefes de famílias, pois podemos alterá-lo a qualquer momento e assim que quisermos. Isso tem uma implicação relevante em relação às reportagens/campanhas como a das autoras na Revista Trip: nosso maior desafio está longe de conseguir um/uma companheiro/companheira para nos redimir socialmente – até porque não precisamos de redenção moral por nada.
    O nosso maior desafio é a desconstrução por séculos da imoralidade e bastardia que pesam sobre nós e nossos filhos. Não precisamos de marido, mas precisamos de respeito por nossas escolhas, contingências e, sobretudo, por nossas crianças. Precisamos de escolas acolhedoras e empáticas em relação às novas e múltiplas configurações familiares na contemporaneidade. Precisamos também e sobretudo de políticas públicas que nos garantam condições de autonomia para criarmos nossas crianças com dignidade e acesso amplo e irrestrito à educação, saúde, moradia e cultura de qualidade.

    A segunda questão é que de acordo com os dados do IBGE/PNAD (Plano Nacional de Amostra Domiciliar), ambos de 2013, a monoparantalidae feminina responde por 53% dos arranjos familiares brasileiros e mesmo assim as mulheres negras e chefes de famílias ainda são o setor de maior vulnerabilidade social do país, pois a maioria das companheiras mulheres mães também fazem parte das estatísticas dos processos de feminização e racialização da pobreza no Brasil, e muitos de seus filhos fazem parte das estatísticas carcerárias e de adoção no Brasil.
    Trata-se de um problema social que teve sua origem no escravismo brasileiro por mais de três séculos e no racismo até os dias de hoje. Dados recentes do IBGE e do PNAD demonstram que a feminização e a racialização da pobreza diminuíram nos últimos 13 anos em razão das políticas públicas compensatórias e com contrapartidas, mas ainda assim permanecem como o setor de maior vulnerabilidade social do país. Problemas sociais estruturais como esse requerem um país com uma Democracia forte e políticas públicas de reparação na longa duração, sem cortes no orçamento e nem reformas na Previdência e na CLT, que acabarão jogando mulheres e crianças na miséria absoluta.

    Por isso, ter ou não um homem ao nosso lado é o menor dos nossos problemas. Precisamos nos organizar e lutar contra todo tipo de preconceito que pesa sobre nós e nossos filhos e lutar diariamente por políticas públicas específicas para romper esse longo processo de vulnerabilidade social ao qual muitas mulheres estão submetidas.

    Acontece amanhã em Salvador – Bahia a Audiência Pública pela Comissão da Mulher, com o tema “Políticas Públicas e a monoparentalidade feminina.”

    *Patrícia Valim é Professora Adjunta de História do Brasil Colonial na Universidade Federal da Bahia. É, sobretudo, mãe de Ana Carolina (24), Maria Eduarda (20) e Bento (quase 5 anos), e avó de Maria Antônia (3 meses). É militante na Monoparentalidade Feminina desde que engravidou de Bento e não quis vincular maternidade e matrimônio.

  • A prisão dos pais condena os filhos?

    A prisão dos pais condena os filhos?

    Por Leo Drumond e Natália Martino | Projeto Voz para os Jornalistas Livres

    Nossa população carcerária é muito jovem e a maioria dos condenados têm filhos. Qualquer estatística ou uma simples observação dentro de unidades prisionais confirmam isso. Quase nada se sabe, porém, sobre essas crianças e adolescentes que crescem sem os pais, apartados pela cadeia. Os dados oficiais não os contemplam, não sabemos quantos são, com quem vivem ou que tipo de auxílio recebem. O senso comum já nos faz imaginar que eles são negativamente impactados pelas prisões dos pais e várias pesquisas confirmam isso. Ainda assim, não existem políticas públicas para eles. Por isso, o recente trabalho de Rafael Posada, apresentado como dissertação do seu mestrado na Faculdade de Ciências Econômicas da UFMG, é importante. Ele ilumina alguns dos aspectos mais cruéis e mais desconhecidos do Sistema Carcerário.

    Vespasiano_MG, 10 de Abril de 2013 10 anos do Choque de Gestao Na foto, a detenta Shirley da Fonseca e seu filho Lazaro Henrique no Centro de Referencia a Gestante Privada de Liberdade. Foto: LEO DRUMOND / NITRO
    A detenta S.F. com seu filho no Centro de Referencia a Gestante Privada de Liberdade (MG). Foto: Leo Drumond / VOZ

    A partir de uma pesquisa com 718 pessoas presas de 19 estabelecimentos penais da Região Metropolitana de Belo Horizonte, Posada chegou às seguintes conclusões. Entre os filhos daqueles que estão encarcerados, 9,7% já esteve ou está atualmente em situação de conflito com a lei. Quando o recorte é feito para aqueles que são menores de idade, entre 12 e 17 anos, a taxa é de 5,7%. É muito? Bom, a taxa de jovens infratores no Brasil corresponde, ainda de acordo com o pesquisador, a 0,1% dos adolescentes. Ou seja, ser filho de alguém que cumpre pena de privação de liberdade aumenta em 59% a chance de ser apanhado pelo Sistema de Justiça. Então, a resposta é sim, é muito.

    Ibirite_MG, 18 de Abril de 2015 Projeto Maes do Carcere Na foto, Patricia, que esta em casa com condicional usando tornozeleira eletrônica Foto: LEO DRUMOND / NITRO
    Na foto, a detenta P., que esta em casa com condicional usando tornozeleira eletrônica
    Foto: Leo Drumond / VOZ

    Os que acreditam que o “fruto não cai longe da árvore” e a criminalidade é uma tendência genética deveriam parar de ler este texto por aqui. Não estamos falando de biologia, estamos falando de dinâmicas sociais. Posada destaca que a maioria desses filhos já apresentava, antes do encarceramento de um dos pais, uma série de desvantagens econômicas que os colocavam mais vulneráveis e mais suscetíveis a entrar em conflito com a lei. Isso sem contar o aspecto do preconceito racial ainda determinante no Sistema de Justiça Criminal. A questão é que a prisão de um dos progenitores adiciona mais desvantagens em relação mesmo aos seus pares sem pais presos.

    Sao Joao Del Rei_MG, 24 de agosto de 2016 A Estrela - Edicao de Sao Joao del Rei Imagem: A ESTRELA
    Recuperando da APAC de São João Del Rei com seu filho durante a visita íntima. Foto: André Gustavo / A ESTRELA

     

    Aos cuidados de uma nova família

    Algumas observações feitas durante as entrevistas levaram o pesquisador a crer que parte do problema está no estigma criado ao redor dessas crianças e adolescentes. “Tem uma reunião de pais na escola e as pessoas dizem que a mãe daquele aluno não foi porque está presa. E ninguém está preparado para lidar com isso”. O pesquisador fala de discriminação entre os colegas e de perseguição policial. Segundo ele, alguns relatos indicam que esses jovens acabam sendo mais visados pelos policiais que patrulham suas comunidades. Há, ainda, mudanças nas condições financeiras e na rotina das crianças e adolescentes, sem contar o impacto de saber que os pais estão presos.

    O mais determinante na perpetuação do ciclo de violência tende a ser a ruptura abrupta da estrutura familiar – o que é muitas vezes mais grave quando quem está presa é a mãe, que na maioria dos casos é a que tem a guarda e se responsabiliza pelo cuidado dos filhos. Assim, a pesquisa concluiu que as chances de um adolescente cuja a mãe está presa entrar em conflito com a lei é mais de 10 vezes maior do que nos casos dos pais encarcerados. Parte da explicação pode estar no fato de que, quando o pai está preso, o filho costuma permanecer com a mãe. É o que acontece em 57% dos casos. Mas quando é a mãe que está atrás das grades, apenas 12% dos filhos ficam com os pais e 34% acabam com os avós. No caso das mulheres presas, há ainda uma maior porcentagem de crianças que acabam em abrigos: 4,5%, contra 0,1% no caso dos pais.

    Na foto, o garoto A., que vive com sua mãe em unidade prisional para grávidas e lactantes. Foto: LEO DRUMOND / VOZ
    Na foto, o garoto A., que vive com sua mãe em unidade prisional para grávidas e lactantes.   Foto: Leo Drumond / VOZ

     

    Ao se analisar o impacto da prisão na vida dos filhos dos condenados, Posada também tratou da vida pregressa dos presos e algumas questões merecem destaque. Mais de um quarto das mulheres entrevistadas disseram ter vivenciado a prisão de um dos pais antes de serem presas e entre os homens a porcentagem é de 12,5%. Além disso, 20% dos homens e 32% das mulheres declararam terem sido vítimas de violência na infância. Quando o assunto é escolaridade, fica evidente de que classe social estamos falando. Mais de 50% das mulheres e de 60% dos homens têm escolaridade muito baixa, ou seja, não completaram nem o Ensino Fundamental. “A população carcerária é caracterizada por biografias nas quais a intervenção do sistema educativo é precária, enquanto a intervenção do sistema penal é total”, salienta Posada.

    O trabalho de Posada é essencial por levantar estatísticas até então inexistentes. Torna ainda mais óbvio o que já se diz há anos: não haverá redução de criminalidade sem programas de universalização de educação e de oportunidades e sem se repensar o Sistema de Justiça Criminal voltado para a segregação de determinados grupos – especialmente no quesito Lei de Drogas. Os que defendem o encarceramento em massa, que enfrentem calados a violência dos filhos daqueles que prenderam.

     

    Sobre o pesquisador

    Colombiano, Rafael Posada é antropólogo e iniciou sua trajetória de trabalho com a população carcerária por um motivo banal, que ele atribui à sorte: “foi o emprego que consegui”. Atuou, assim que saiu da faculdade,  em uma pesquisa realizada pelo governo colombiano nas cadeias do país. Conta que tinha todos os preconceitos que qualquer um tem com essa população. “Quando comecei a trabalhar, todos me diziam para ter cuidado, que eles eram nervosos, perigosos. Aí cheguei para fazer a pesquisa e o guarda me deixou sozinho com 50 presos. Pensei ‘nossa, eles vão me matar’”, recorda-se. Não mataram. “Me trataram normalmente e eu entendi com o tempo que atrás de alguém que cometeu o homicídio é também um pai, um tia, um parente de alguém. Ou seja, podia ser um parente seu. É um ser humano”, diz. Posada nunca mais mudou de área e agora já está no doutorado analisando de forma mais detalhada os dados coletados para a dissertação do mestrado.