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  • Vale S.A. nada fez após cinco anos do crime em Mariana

    Vale S.A. nada fez após cinco anos do crime em Mariana

    Há exatamente cinco anos acontecia o rompimento da barragem do Fundão em Bento Rodrigues, distrito de Mariana, MG, levando 20 vidas, destruindo a vila e jogando toneladas de lama de minério no oceano ao acabar com a vida ao longo do Rio Doce em Minas e no Espírito Santo. A barragem da Vale S.A. e BHP Billiton, mas operada pela mineradora Samarco, rompeu-se na tarde do dia 5 de novembro de 2015.

    Durante todo esse período, mais de 1.800 dias, os responsáveis pelo crime não foram julgados. Em 2019, o crime de homicídio foi retirado do processo. As mortes provocadas pelo rompimento da barragem foram consideradas pela Justiça como simples consequência da inundação causada pelo rompimento, prevalecendo a impunidade. De lá para cá, as comunidades destruídas não foram reconstruídas e não há respostas para a recuperação do meio ambiente e para moradores, que passaram a sofrer de depressão e outras doenças.

    Foto de Aloísio Morais

    “Tudo está por fazer”. Esta é a conclusão da chefe da Força-Tarefa Rio Doce, Silmara Goulart, procuradora do Ministério Público Federal (MPF), sobre o crime cometido pelas empresas Vale S.A., BHP Billiton e Samarco. “A sensação, olhando cinco anos de desastre, é de consternação e profunda tristeza com a desolação, tudo ainda está por fazer”, conclui Silmara. “Nenhum grupo de atingidos foi integralmente indenizado, o meio ambiente também não foi integralmente recuperado e sequer o distrito de Bento Rodrigues foi reconstruído”, afirmou.

    Além disso, um outro bom exemplo que ela aponta é o auxílio emergencial pago aos atingidos, que foi suspenso em plena pandemia. A procuradora ressalta também o fato do caso envolver duas empresas que estão entre as mais ricas do mundo, a Vale e a BHP Billiton, controladoras da Samarco, que atua em Mariana. “Antes do desastre, elas preferiram economizar para não reparar a barragem que estava em risco. Agora, os mesmos responsáveis preferem brigar para economizar centavos às custas da dignidade humana. Nós, do MPF e instituições parceiras, tentamos todas as estratégias possíveis, pedimos recomendações, recorremos de decisões, mas os resultados são frustrantes”, disse Silmara durante entrevista coletiva.

    Na zona rural de Barra Longa as casas e imóveis das comunidades foram parcialmente encobertas pela lama que chegou pelo rio Gualaxo do Norte. Foto de Tânia Rego/ABR

    Na ocasião, MPF, Ministério Público de Minas Gerais e Defensoria Pública de Minas Gerais e do Espírito Santo criticaram a  Fundação Renova, criada pelas mineradoras para reparar os danos ambientais e sociais, pelo descumprimento de acordos feitos ainda em 2016, como a criação das câmaras técnicas para assessorar os atingidos. Apenas cinco das 23 câmaras foram contratadas até agora. “Brumadinho (na Grande Belo Horizonte, onde outra barragem se rompeu há quase dois anos) tem assessoria técnica, embora a Vale lute contra. Lá temos avanços incríveis que, infelizmente, não temos em Mariana, onde o desastre é mais antigo”, apontou o promotor André Sperling.

    As instituições criticam também a atuação da 12ª Vara da Justiça Federal por decisões recentes envolvendo a tragédia de Mariana. “A diferença principal (entre a reparação em Brumadinho e Mariana), além da experiência acumulada de um caso para o outro, é a atuação do Judiciário Estadual, que foi bem superior em comparação com o Judiciário Federal”, completou Sperling.

    Ilustração de Vilé

    O procurador Edilson Vitorelli, do MPF, lembrou que, no meio deste ano, o órgão ficou sabendo pela imprensa que corria na Justiça um processo de reparação de dano que não constava no processo coletivo. “Começamos a fazer pesquisa e descobrimos que a Justiça Federal de Belo Horizonte admitiu a instauração de 13 processos desmembrados do nosso processo federal, os quais não eram conhecidos de nenhumas das instituições da força-tarefa. Desses 13 processos, além do MPF não ter sido intimado, nove foram mantidos em segredo de Justiça. Nem que se tentasse pesquisar não seria viável localizá-los. Quem faz coisa certa não faz escondido. Se fosse coisa boa para os atingidos não seria feito de forma oculta”, afirmou Vitorelli.

    A Fundação Renova, administrada por Samarco, Vale e BHP Billiton, informou que os novos processos indenizatórios, de adesão facultativa, foram implementados a partir de decisão da 12ª Vara Federal, após petições apresentadas pelas Comissões de Atingidos de Baixo Guandu (ES) e Naque, no Vale do Aço. “O papel da Fundação Renova é executar o que está definido pela sentença judicial”, justificou.

    Até setembro, segundo a Renova, foram destinados R$ 10,1 bilhões para as ações de recuperação e compensação. Até 31 de agosto, cerca de R$ 2,6 bilhões foram pagos em indenizações e auxílios para cerca de 321 mil pessoas.

    Ilustração de Janete

    Nota do MAB

    A propósito dos cinco anos do crime da Vale S.A. em Mariana, o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) divulgou a seguinte nota:

    Nós, atingidos e atingidas de toda a bacia do Rio Doce e litoral capixaba, somos pescadores e pescadoras tradicionais do rio, do mar e do mangue, marisqueiras. Somos trabalhadores da cadeia de apoio da pesca, comerciantes, pousadeiros e surfistas. Somos ribeirinhos e agricultores familiares e artesãs. Somos povos tradicionais, indígenas e quilombolas, assentados da reforma agrária, moradores das comunidades atingidas. Nós somos homens e mulheres, idosos e crianças que tivemos nossos sonhos e projetos de vida interrompidos há cinco anos, pelo crime das mineradoras Vale, Samarco e BHP.

    Estamos hoje, dia 5 de novembro de 2020, em Regência (ES), reunidos na foz do rio Doce, para dizer às empresas criminosas: Nossas vidas não têm preço! Não daremos quitação geral as empresas! Não estamos quites deste crime!

    Não tivemos de volta nossas vidas, nosso rio, nosso trabalho, nossa renda, nosso lazer, nossa autonomia, nossos sonhos, nem sequer as nossas casas foram concluídas em Mariana e Barra longa, nos três reassentamentos propostos. Somos seres humanos e não mercadoria, não estamos a venda, sem reparação não haverá quitação.

    Temos direito a ter voz e vez nas decisões. Estamos cansados de ter nossos destinos colocados à mercê de empresas, políticos e juízes, poderosos e donos desse sistema, que rouba nossos direitos à luz do dia sem nenhum pudor, e nos afundam cada vez mais nessa lama tóxica de interesses privados.

    Nossos saberes tradicionais e populares, o nosso conhecimento acumulado por meio de gerações sobre nossos territórios e nossos modos de vida deve ser levado em conta. Já estávamos nos territórios antes da lama chegar. Estaremos aqui, e a nossa descendência estará por gerações nos mesmos territórios, mesmo após a Fundação Renova e os governantes que hoje estão à frente da reparação.

    Não permitiremos mais que as nossas vidas sejam resolvidas entre quatro paredes pelas criminosas e seus cúmplices. A solução do problema vira de nós, atingidos e atingidas, povo unido e organizado.

    A verdadeira participação popular virá das ruas, das praias, das escolas, das beiradas de rios e mangues, das vilas e das comunidades atingidas. Virá do povo atingido, em seu espaço de vivência, de afeto e de luta.

    E, por fim, não abriremos mão de nossa saúde e bem-estar. Além das 19 vidas e do aborto em Bento Rodrigues, muitas outras vidas foram perdidas nesses cinco anos. Vidas que se foram, e vidas que nunca mais serão as mesmas.

    Queremos de volta nossa água, nosso rio, nossas praias, nosso lazer e nosso alimento. Aqui está o povo que sempre trabalhou duro para ter o que comer, e sempre produziu alimento saudável para as nossas famílias e comunidades.

    Não pedimos para ser atingidos por esse crime, mas agora que fomos, seremos de cabeça erguida e com a certeza de que estamos do lado certo da história. É hora de o Brasil dar um basta a essas empresas que se orgulham de recordes seguidos de lucro – enquanto negam ao povo humilde a justa reparação aos danos causados aos nossos territórios, aos nossos corpos e as nossas vidas.

    Vale, Samarco e BHP, se preparem, pois estamos aqui para dizer em alto e bom som: saímos do luto, e os próximos cinco anos serão de muita luta!

    Do Rio ao Mar, não irão nos calar! Águas para Vida, Não para Morte!

    Ruínas deixadas pela lama em Bento Rodrigues – José Cruz/Agência Brasil
    Barra Longa (MG) – Rio Gualaxo do Norte poluído pela lama levada pelo rompimento da Barragem de Fundão – José Cruz/Agência Brasil

    Obs. A foto de abertura deste texto é de Antônio Cruz/ABR

  • Crime de Brumadinho: Em Pompéu, com o Paraopeba contaminado, pescadores denunciam falta de renda

    Crime de Brumadinho: Em Pompéu, com o Paraopeba contaminado, pescadores denunciam falta de renda

    Nesta terça-feira (21), a “Marcha dos Atingidos: 1 ano do crime da Vale em Brumadinho” caminhou por Pompéu. A cidade, que fica a 175 km de Belo Horizonte, foi impactada pelo rompimento da barragem, em especial, no quesito econômico – os pescadores da região estão sem renda por conta da contaminação do Paraopeba.

    Pescadora de Cachoeira do Choro, Eliana Marques, 50, relata com tristeza a quebra dos laços afetivos causada pela falta de perspectiva de vida na comunidade. “Na minha casa, são cinco moradores, mas só eu consegui direito ao auxílio porque tenho conta de luz no meu nome. Meu filho e a esposa dele foram embora para conseguir algum sustento para o meu neto de 3 anos, ele chora quase todo dia de saudade da mãe. Nem os comerciantes conseguem sobreviver lá, o território está cada vez mais vazio”, conta.
    Segundo a atingida, a situação ficou ainda pior. “Estamos na piracema [época de reprodução dos peixes, quando a pesca fica proibida]. Em setembro, a Vale cortou nosso auxílio emergencial obrigando os pescadores a voltar para o rio e tentar vender os peixes fora da região”, explica Eliana.
    Para além da questão econômica, o contato com o rio Paraopeba traz também elementos simbólicos, já que para os ribeirinhos a relação com o rio é de um vínculo muito forte. “Cada cantinho lá tem um nome que a gente deu, no final de semana a gente pegava as tralhas e ia para beira do rio, era churrasco, cervejinha, todo mundo junto”, relembra a pescadora.

    Foto: Coletivo de Comunicação do MAB

    Água potável 
    Raimunda Maria da Silva, também moradora de Cachoeira do Choro, relata que, desde o rompimento da barragem em Brumadinho, é obrigada a se deslocar constantemente até o município de Sabará em busca de água potável. “Cachoeira era o meu lugar, eu tinha minha horta, a gente nadava no rio, pescava e usava a água até para cozinhar. Minha horta está morrendo, não tenho mais condições de cuidar”, explica.
    A atingida pelo crime de Brumadinho relata que já teve problemas de garganta após consumir a água do Paraopeba, que fica a 300 metros de sua casa. Na família de Raimunda, uma situação comum daqueles que conseguiram receber o auxílio emergencial: apenas ela foi cadastrada, sendo atualmente a única fonte de renda familiar.
    A comunidade está impaciente com o jogo de empurra entre a Vale e COPASA (Companhia de Saneamento de Minas Gerais). “Já protocolamos diversos pedidos de análise da qualidade da água para consumo e nada, nenhuma resposta”, afirma a pescadora Eliana Marques. Segundo a atingida, durante o ano, a água apresentou alteração de coloração e odor.
    Tatiane de Menezes, que é produtora rural no assentamento Queima Fogo, em Pompéu, conta que a Vale distribui água mineral para as famílias, mas que há problema no abastecimento de água mineral. “As pessoas consomem a água dos caminhões pipa da COPASA, que chegam enferrujado, com a água em condições alteradas”, diz a agricultora.

    Foto: Coletivo de Comunicação do MAB

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  • Contra a privatização da água

    Contra a privatização da água

    por Adriana Castro (texto e fotos), especial para os Jornalistas Livres

    Durante a abertura do 8º Fórum Mundial da Água, na manhã desta segunda-feira (19/3), Michel Temer informou que o governo trabalha em um projeto de lei cujo objetivo é “modernizar” o marco regulatório do saneamento básico. Sem mais detalhes, a proposta causou reações imediatas.
    A informação não é novidade, mas acende o alerta vermelho. Sindicatos ligados à Central Única dos Trabalhadores (CUT) adiantam que a proposta temerosa nada mais é do que Medida Provisória do Saneamento, que abre as portas do setor para a privatização nos municípios superavitários e o sucateamento ainda maior dos municípios deficitários, onde os serviços já são ruins. Esse é o futuro “moderno” do saneamento no país, caso seja aprovada a Medida Provisória.

    Água não é mercadoria

    Com visões de mundo diametralmente opostas e divergentes, dois grandes eventos – o 8º Fórum Mundial da Água e o Fórum Alternativo Mundial da Água (FAMA) – acontecem simultaneamente em Brasília. O primeiro, conta com patrocínio da Petrobras e Nestle, do combalido Sistema Único da Saúde/Funasa, da Sabesp, da Eletrobras e custo, não confirmado, de 120 milhões. De euros… São mais de 40 mil participantes, o que esgotou a capacidade da rede hoteleira na cidade. Cada participante tem que desembolsar algo em torno de dois mil reais para a inscrição.

    Já o FAMA, promovido pelos movimentos sociais, sindicatos e organizações da sociedade se pagou por meio de doações, a entrada é gratuita e reúne seis mil participantes no Parque da Cidade, com 38 delegações estrangeiras e representantes de todas as regiões brasileiras.

    A discussão central é uma só: a privatização da água. “Água é direito não mercadoria” é a bandeira do Fórum Alternativo Mundial da Água que até quinta-feira irá debater e propor políticas públicas e mobilização nacional contra a privatização da água.

    A ideia é enfrentar a onda de privatização empreendida pelo governo golpista, que atualmente mira o saneamento básico e os setores de água e energia, este expresso na venda da Eletrobras e no desmonte da Petrobras.

    Mas os ataques não são apenas do Executivo. Aberto à consulta pública, o projeto de lei nº 495/2017, do senador tucano Tasso Jereissati cria “o mercado da água”.

    No FAMA há o consenso de lutar por um modelo público e de qualidade. E argumentos não faltam para embasar a proposta. Nos últimos anos vários serviços de água foram municipalizados. Na França, por exemplo, já são 106 municípios que retomaram da iniciativa privada os serviços de abastecimento d’agua. No mundo todo são 267 casos nos Estados Unidos, Alemanha, Argentina e Canadá.

    Água para matar a fome

    Rosmari Malheiros, diretora da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag), reafirmou a importância da água na produção de alimentos. Levar alimentos a mesa dos brasileiros é algo feito por pequenos e médios agricultores, responsáveis por plantar em torno de 70% de tudo que comemos.

    Ela adiantou que os movimentos sociais do campo e da cidade estão unidos. “Vamos lutar pela não-mercantilização da água”, garantiu. Não só os agricultores. Os indígenas, quilombolas, comunidades tradicionais, estão representados no FAMA. Nesta terça-feira, por exemplo, os jovens Krenak participam de debates sobre o impacto do crime da Samarco na terra indígena em Resplendor (Minas Gerais). Passados dois anos do “acidente”, os Krenak dependem de caminhões-pipa para o abastecimento. Os peixes do rio Doce desapareceram há dois anos, anteriormente base da alimentação da população indígena.

    No último final de semana, mais de 200 atividades foram realizadas na Universidade de Brasília (UnB). A programação continua até quinta-feira, desta vez no Parque da Cidade. Caravanas de todo canto do país ainda estão chegando. Serão mesas de debate, atividades culturais e a plenária final com a redação e votação do documento final.

    A luta pela água em Correntina, Bahia

    Na Bahia, a luta popular contra a privatização da água no município de Correntina, a 920 km
    de Salvador, tem sido um dos destaques da atualidade.

    O geraizeiro Jamilton Santos de Magalhães, da comunidade Fundo e Fecho de Pasto, conhece de perto o drama de quem precisa concorrer com a força política e econômica do agronegócio.

    Para se ter uma ideia, os ruralistas respondem por cerca de 75% da captação de água de toda a Bacia do Rio São Francisco, responsável pelos afluentes que deságuam na região. A atividade compromete diretamente o acesso ao recurso por parte dos segmentos populares.

    “Todo mundo sabe que, quando o agronegócio chega, muda tudo num local, aí a comunidade precisa lutar muito pra poder consumir água e pra manter o cerrado de pé. É uma luta dura, mas nós somos guardiões do cerrado e vamos continuar, porque ninguém pode morrer de sede estando na margem de um rio”, desabafa o geraizeiro.

    A privatização e a contaminação dos recursos hídricos comprometem diretamente a manutenção dos biomas. No caso do cerrado, mais de 50% da área já foram destruídos. Segundo pesquisadores que atuam na região Centro-Oeste, todos os anos cerca de dez córregos ou rios desaparecem por conta do desequilíbrio ambiental. “Se a gente não aprender a preservar isso, as consequências serão ainda mais graves no futuro”, sublinha Isolete Nichinieski.

    O bioma tem um valor central para o meio ambiente e é responsável pela distribuição de boa parte da água que abastece o Brasil e a América do Sul. É dele que nascem os principais rios brasileiros, com destaque para as Bacias Amazônica, do São Francisco e do Prata.

    Água pode significar morte!

    “Em decorrência do sistema capitalista que exclui a maioria da população do direito à cidadania e do acesso às fontes essenciais, o quadro mundial de distribuição do consumo de água é aterrador.
    De acordo com o Relatório da Organização Mundial de Saúde (OMS) e do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), divulgado em julho de 2017, mais de dois bilhões de pessoas, que representa cerca de 30% da população mundial, não têm acesso à água potável.

    Além disso, mais de 60% não são atendidas por serviços seguros de saneamento – dessas, 160 milhões tem como única alternativa o consumo de água não tratada de fontes superficiais, como córregos e lagos. Como resultado, 361 mil crianças morrem com menos de 5 anos devido à diarreia.

    Há também o alarmante número de 263 milhões de pessoas que se deslocam mais de 30 minutos para ter acesso a uma fonte segura de água. Nesse caso, é importante frisar a questão de gênero, já que a maioria desse montante é de mulheres, historicamente responsabilizadas pelos serviços domésticos e de cuidados. São diversos os exemplos ao redor do mundo de mulheres que caminham quilômetros com recipientes de água na cabeça para abastecer as necessidades para a reprodução da vida.

    Precisamos utilizar esta semana para expor todos esses casos de violação dos direitos fundamentais do ser humano, mas, sobretudo, reunir forças para continuar na luta em defesa da água e da vida.”

    (Da Assessoria de imprensa / FAMA – http://fama2018.org/2018/03/19/agua-e-direito-nao-mercadoria/ – por Guilherme Weimann, jornalista e militante do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB); integra a equipe de comunicação do FAMA.)

  • Universidade pintada de povo

    Universidade pintada de povo

    “Nós que queremos mudar o mundo, precisamos libertar a HISTÓRIA, porque ela está presa a um discurso que a nega.”

     

    Texto e fotos por Antonio Kanova – Da Página do MST

     

    No último sábado (9), em Veranópolis, na região da Serra Gaúcha, aconteceu a formatura da turma do Curso de Licenciatura em História formada por militantes sociais. 

    A turma que começou em 2013 e que conta com militantes do MST, Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), Pastoral da Juventude Rural (PJR) e Pastoral da Juventude do Meio Popular (PJMP), formou 38 educandos e educandas das cinco regiões do país. 

    O curso foi viabilizado em parceria com a Universidade Federal Fronteira Sul (UFFS), o Instituto Técnico de Capacitação em Pesquisa da Reforma Agrária (ITERRA) e o Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera). 

     

    Para os movimentos sociais e o conjunto da classe trabalhadora, formar uma turma no Curso de Licenciatura em História, em uma universidade pública, já que em muitas vezes o acesso à educação superior para os trabalhadores é negado, é uma tarefa difícil. É isso o que afirma o formando Geraldo Lopes, de Rondônia.

    “O curso foi importante para nós, camponeses da classe trabalhadora, que muitas vezes não conseguimos ingressar em uma universidade pública. Porém, a partir deste momento, isto está rompido e vamos poder contar a história de baixo”, concluiu.

    Em tempos em que a história é contada a partir dos interesses da classe dominante, motivados em pagar a memória de um povo, se faz a necessidade de disputar a universidade, a pesquisa, a formação intelectual e a consciência das pessoas. Cedenir de Oliveira, representante do Iterra, afirmou que a “tarefa é formar quadros da classe e que um povo que não entende sua história não tem condições de projetar seu estudo”.

    Gerson Fraga, padrinho da turma e também historiador, ressaltou que a tarefa dos novos historiadores é grande. “Não cabe aos historiadores apenas interpretar o tempo. É preciso vivê-lo. E estes parecem ser tempos especialmente complicados de serem vividos”, fazendo referencia ao momento em que o Brasil está vivendo de golpe institucional, de retiradas de direitos e de retrocessos políticos e sociais. 

    Segundo o doutor João Alfredo Braida, pró-reitor da UFFS, “esta foi a turma de maior taxa de sucesso na Universidade Federal Fronteira Sul”. Este é um motivo de muita felicidade e a prova de que parcerias como essas devem continuar. A universidade também manifestou a intenção de abrir outra turma de Licenciatura em História em conjunto com os movimentos sociais. 

     
     
  • Privatização de hidrelétricas pode tornar a conta de luz mais cara em Minas Gerais

    Privatização de hidrelétricas pode tornar a conta de luz mais cara em Minas Gerais

    Em abril deste ano, o Governo Federal publicou um edital de licitação para vender quatro usinas: Miranda, Jaguara, São Simão e Volta Grande. Estas representam 50% da geração de energia da estatal mineira e, no tempo em que estiveram operando, cerca de 30 anos, o valor de construção das mesmas já foi pago nos boletos de conta de luz. Isso significa dizer que, caso elas sejam vendidas para o capital privado, o consumidor estaria pagando novamente por hidrelétricas já construídas e a energia seria ainda mais cara. Para lutar contra os retrocessos na área da energia, entidades, movimentos sociais e sindicais e membros da sociedade civil, criaram a Plataforma Operária e Camponesa de Energia.

    A licitação ainda está pendente por algumas questões judiciais e do TCU (Tribunal de Contas da União), porém a previsão é que ela ocorra em setembro. A justificativa dada pelo Governo Federal é a de que vender as usinas ajudaria a fechar as contas públicas deste ano. Porém, segundo a Plataforma Operária e Camponesa de Energia, os grandes empresários e banqueiros estão sendo isentos de impostos num processo de renúncia fiscal que ultrapassa os R$ 100 bilhões, e este dinheiro é que deveria ser usado para as pagar as contas da união em 2017.

    Construindo uma alternativa para manutenção da soberania da energia elétrica, a Plataforma se uniu em torno da causa para pensar uma forma de salvar a Cemig e garantir que o lucro das hidrelétricas retornasse ao povo. Caso ocorra a perda da soberania da energia no estado, é possível que a empresa estatal decrete falência, já que perderia a metade da sua potência geradora de energia.

    Tirando o valor de manutenção e de pagamento dos quadros de funcionários, as concessionárias de hidrelétrica tem um lucro de 2 bilhões por ano. A Plataforma reivindica que seja criado um fundo, junto à empresa estatal, em que a sociedade civil e o Estado possam escolher para onde irá esta verba, que seria reinvestida em saúde, educação, cultura, apoio aos atingidos por barragens, agricultura familiar e camponesa, entre outras áreas, conforme a necessidade da população mineira. Segundo a mesma, esta proposta é possível e viável, pois é muito semelhante à campanha feita em relação ao pré-sal, cujos lucros vão para um Fundo Social e são destinados à educação.

    Entenda de onde vem o debate

    O direito à exploração de usinas hidrelétricas para gerar energia é uma concessão pública, que deve ser renovada de tempos em tempos e afeta diretamente o bolso das pessoas. Para reduzir o valor da energia elétrica, em 2012 o Governo Federal, representado por Dilma Rousseff, fez uma Medida Provisória (MP) que renovava a concessão de diversas usinas cujos contratos venceriam entre 2013 e 2016 e visava diminuir o valor das contas de luz. Governo de Minas e a Cemig, não concordando com as condições de redução da tarifa, renovaram 18 outras usinas, mas optaram por não renovar três concessões, Miranda, Jaguara e Simão. Houve uma tentativa no mesmo ano de renovação das concessões por mais 20 anos via justiça, mas o pedido à época foi negado.

    A proposta de Dilma era de que as concessionárias fossem remuneradas somente pela operação e manutenção das usinas, visto que seu valor de construção inicial já teria sido pago. Como essa ideia na época não era de interesse do Governo do Estado, a Cemig recuou em aceitar a proposta. Além das usinas que deveriam ter sido renovadas em 2012, Temer pretende leiloar a hidrelétrica de Volta Grande, cuja concessão venceu em fevereiro de 2017.

  • ‘Esta água tem uma coisa dentro dela que está acabando com a vida da gente’

    ‘Esta água tem uma coisa dentro dela que está acabando com a vida da gente’

    Texto: Larissa Gould. Fotos: Leandro Taques.

    Dona Eliane Gomes da Silva, tem 67 anos, 28 em Cachoeira Escura. No rosto e nas mãos as marcas de uma vida cheia de privações. Nos convida para entra em sua casa, durante a marcha do Movimento dos Atingidos por Barragens – MAB, em sua passagem pelo distrito. O único cômodo é dividido em quarto, sala e cozinha. Nos recebe na porta, sua filha senta em um sofá ao lado, o outro filho ao seu lado, o terceiro deitado em uma cama nos fundos. Começa a falar rápido, antes mesmo de ligarmos os equipamentos. As angustias de mãe têm pressa para serem botadas para fora. Contadas àqueles jornalistas desconhecidos que se colocam em sua frente. No desespero por ajuda, nos confere sua confiança.

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    É casada e têm três filhos. Arrimo de família, recebe uma pensão de R$ 600,00 “e ainda pago aluguel”. O marido faz pequenos serviços gerais e de pedreiro para complementar a renda. Os dois pescavam no Rio Doce para fazer um extra. “Era muito bom antes da Lama, o povo todo pescava e nadava. Dava para tomar a água direto do Rio que não tinha problema”, lembra.

     

    Nos mostra as manchas na pele dos filhos, e até do cachorro “Já passei óleo queimado nele, não funciona, um até já morreu”, relata.

     

    A família toda está doente. Assim como os vizinhos. Ela perdeu 30 kg e sente dores no corpo, na barriga e na cabeça. Seu marido  tem uma infecção no ouvido há meses “saí pus com sangue”. A filha de 17 anos teve uma infecção uterina. Todos têm doenças na pele. Mas o caso mais grave, é o do filho mais velho, enfermo na cama: não anda, não fala. “Ontem eu gastei meu último dinheiro para pagar o carro que faz mudança para levar ele na UPA, por que a ambulância não quis vir pegar”. O médico não dá diagnóstico algum. “Disse nada. Perguntou o que ele tinha comido. Digo: é a água. Daí ele não falou mais nada. Aplicou as injeções, mandou tomar uns comprimidos e mandou para casa. Os comprimidos eu não comprei não por que não tenho dinheiro”. Na hora ele até melhorou, mas foi só chegar em casa que já caiu de cama.

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    Por conta disso, teve que comprar os mantimentos da família fiado na vendinha local. Não sabe como vai passar até receber. “Liguei na Samarco, eles dizem que ‘vão vir visitar, vão vir visitar’ até hoje não veio ninguém.”
    Na conversa, dona Eliane relata, além dos problemas com a água contaminada e doenças, dificuldades para a realização do cadastros dos atingidos, até hoje ela e sua família não receberam o cartão, com o valor de um salário mínimo + 20% por dependente, que a empresa deveria dar aos atingidos.

    Veja seu relato (a parte que conseguimos gravar =] )

     

    Jornalistas Livres: O que mudou na vida da senhora e do Distrito depois da Lama?

     

    Eliane: A situação aqui é essa, nós sobrevivíamos dos peixes. Nós não pescava, não era com carteira, mas nós pescava para comer e para vender. E a barragem vai, arrebenta e vai tudo embora as nossas armadilha. Agora, estamos vivendo com as graças do senhor, e nós bebemos dessa água. Por que a bica que tem a outra água é tanta gente que até seca. E nós bebemos dessa água e cozinhamos dessa água e ficamos tudo doente. Esta daqui (aponta para a filha) foi para o hospital 4 vezes, este daqui (aponta para o filho ao lado) deu pereba na perna e no corpo todo. Eu adoeci e tô com gosto de barro na boca.

     

    JL: A família toma esta água todo dia? Existe outra água para usarem?

     

    E: Uai, vai fazer o quê? A gente tem que comer, dinheiro para comprar água mineral não tem. No começo o povo começou a partir as águas mineral aqui. Depois ó (faz um gesto de fim com as mãos) parou. Tavam batendo até nos outros aí por causa de água. Teve até briga, tirando sangue aí dos outros.

     

    Disse que tinha gente pegando água mineral e vendendo. Eles tavam dando para matar necessidade. Mas disse que tavam vendendo água mineral. É por isso que parou. Por causa de uns, outros dançam, né?

     

    Filha: E ninguém mais aguenta ter que ir buscar água na bica.

     

    JL: E onde fica a bica? Como funciona?

     

    E: É uma bica que tem ali embaixo. Tá que nem procissão de tanta gente. Dá até briga naquela bica ali por causa de água. E a água lá quando o sol tá muito quente a água seca. A água seca. E aí a gente tem que beber desta água, cozinhar com ela, tomar banho com ela.

     

    JL: Quantas vez por dia vocês vão buscar água?

     

    Filha: Não dá para ficar ir buscando toda hora, né. Meu pai tem problema na coluna e não pode ficar indo toda hora.

     

    E: Ele tá indo buscar água doente. O prefeito diz que também toma desta água. Eu digo: toma dessa água? Cê é rico, se paga para para buscar água longe e para comprar água mineral. Agora, nós que somos pobres que vive das graças do senhor não temos condições de comprar. Mas Deus vai ver o que faz para nós, por que a minha vida tá sofrida viu? Tá sofrida com esse problema desta água, adoecendo a gente dentro de casa aqui. Não tem jeito não, é só Deus mesmo para tomar conta de nós. O povo já pegou número de CPF e nada.

     

    JL: Mas onde a senhora fez o cadastro?

     

    E: Fiz ali com o pessoal ali, já tem quase um ano e não resolveu nada. Diz eles que cadastrou né, eu ligo para a Samarco e a Samarco todo dia diz que tá vindo aqui visitar. Todo dia eles tão vindo visitar aqui e nunca que eles vêm visitar. Eles tá querendo é isso, que a gente morra. É isso que eles querem. Eu não tenho uma casa, um lugar para mim poder mudar daqui para mim usar uma água que não tem infecção nela. Água não tenho condições de comprar, então a gente tem que morrer aqui mesmo, bebendo a água.
    JL: Mas quem fez o cadastro da senhora? Te deu algum comprovante?

     

    E: A gente fez o cadastro lá com o Celso.

     

    JL: Mas o Celso é da Samarco, da prefeitura, de alguma igreja ou instituição?

     

    Não é de igreja não, nem da Samarco, é um homem que conserta televisão. Ele pegou nossos dados e falou para a gente entrar com um advogado. Eu digo, me dá o dinheiro que eu pago o advogado.

     

    JL: Então, na verdade a senhora nem sabe se o seu cadastro foi feito. Esse tal de Celso pegou os dados da senhora, mas não deu nenhum comprovante. A Samarco não veio aqui fazer o cadastro?

     

    E: Não sei.

     

    Filha: Não, não veio ninguém da Samarco aqui.

     

    JL: Nem da prefeitura?

     

    Filha: não, nada.

     

    E: Eu ligo para a Samarco e eles dizem que vão vir nos entrevistar e não vêm. Eu digo, ‘depois que nós estiver tudo no caixão vocês não precisam vir mais não. Não precisa vir.

     

    Filha: E tem um monte de gente recebendo por aí e a gente nada.
    JL: E a saúde da senhora?

     

    E: Eu vou secando, vou só secando. Meu peso não é este, meu peso era 60 kg. Eu tô pesando 32 Kg. Aqui em mim (aponta para a barriga) dói tanto que parece que tem uma bola, demora duas horas pra mim conseguir andar e eu tenho que ficar assim (se contraí) parece que tem uma coisa me cortando. Quando eu bebo está água eu vomito, dá vomito. É essa água. Esta água tem uma coisa dentro dela que está acabando com a vida da gente.

     

    Filha: o médico falou que eu não estou mais conseguindo fazer ‘as coisas’ por causa desta água, que dá problema no intestino.

     

    E: Ele ali (aponta para o filho ao lado) pegou pereba na perna, sabe o que eu tive passar? Pó secante. Secou, mas ir por dentro? Como fica?
    A gente tá todo intoxicado, aquela ali (aponta para a filha), teve até infecção no útero. Na garganta também. Meu marido tá com o ouvido todo inflamado, sai até pus com sangue.

     

    O único dinheiro que eu tinha, que era para eu fazer compra pra mim comer mais meus filhos, eu paguei o carro para levar meu filho para a UPA. Por que a ambulância não quis socorrer. O restantinho que eu tinha para comer dentro da minha casa. Agora eu precisei de comprar troço fiado pros filho comer. Não sei da onde eu vou arrancar esse dinheiro para pagar.

     

    JL: E os vizinhos?

     

    Mesma coisa. Muitas pessoas aqui intoxico tudo. Aquela vizinha ali (aponta para o lado) adoeceu tudo e perdeu até o pai. O pai da minha vizinha morreu, por causa desta água aí. A água infeccionou ele todo.

     

    JL: E os animais de estimação da senhora?

     

    Morreu até um. Já morreu um cachorro já. Morreu um cãozinho dos meu. Da mesma água que nós bebe, eles bebe. Da mesma comida que nós come eles come. Eu passei óleo queimado no cachorro e não adiantou nada. Um até já morreu.

     

    JL: E um ano depois do desastre? Como tão as coisas?

     

    E: Nada foi resolvido, então eles tá querendo é isso. Que a gente morre.

    1 ano de Lama e Luta – Cachoeira Escura: no mapa da tragédia

    A lente encontra um rosto, mas não conclui o clique: “Moço, entra aqui para ver o estado do meu filho, essa água está matando ele”.

    Entramos em sua casa, uma casa simples, de um único cômodo. A Marcha dos Atingidos por Barragens passava em sua porta. Dona Eliane Gomes da Silva, uma senhora de idade, é uma das atingidas pelo desastre da lama.
    A Marcha saiu de Regência/ES e chegou ao distrito de Cachoeira Escura em seu segundo dia, depois de ter passado por Colatina, Mascarenhas, Baixo Guandu e Governador Valadares.

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    Cachoeira Escura, distrito de Belo Oriente, fica na Macrorregião do Vale do Rio Doce, no Vale do Aço, a cerca de 250 km da capital mineira. Saindo da rodovia BR-381, à direita, uma ruazinha de mão dupla, com um restaurante e um bar, dá boas vindas ao distrito. A rua segue com uma fileira de casas térreas, igreja, praça, gente sentada nos banquinhos em frente às casas vendo a marcha passar…

    Em torno de 12 mil pessoas moram lá, não é uma cidade “nunca vai virar, porque aqui tem a Cenibra, empresa de Eucalipto que gera a maior parte do PIB do município”, explica Camila Brito, coordenadora do Movimento dos Atingidos por Barragens – MAB, que acompanha a região.

    Mas talvez nunca ficássemos sabendo de nenhuma dessas coisas, não fosse o crime cometido pela Vale/Samarco/BHP. Em 05 de novembro de 2015, a barragem da mineradora rompeu. O Mar de Lama tóxica soterrou Bento Rodrigues, distrito de Mariana, e outros municípios vizinhos, deixando 21 mortos, e a contagem continua. “Estávamos em uma reunião quando ficamos sabendo do rompimento, mas não tínhamos dimensão do tamanho do desastre naquele momento” lembra Camila. Ninguém tinha.


    A Lama tóxica seguiu o do Rio Gualacho do Sul, para Rio Carmo até Rio Doce, envenenando a água até Regência, no Espírito Santo, onde desembocou no mar. Os danos ambientais e sociais são imensuráveis. Cachoeira Escura e seus 12 mil habitantes fazem parte dos atingidos.

    Dona Eliane. Foto: Leandro Taques.
    Dona Eliane. Foto: Leandro Taques.

    Quando eu tomo essa água sinto o gosto de barro na boca, dói tudo, dói o peito, a barriga, a cabeça”, relata dona Eliane. Sua família toda está doente. O marido tem uma infecção no ouvido há meses “saí pus com sangue”, a filha de 17 anos teve uma infecção uterina, ela própria perdeu 30 kg. Todos têm doenças na pele. Mas o caso mais grave, que motivou o seu convite é o filho, enfermo na cama: não anda, não fala. “Ontem eu gastei meu último dinheiro para pagar o carrinho que faz mudança para levar ele na UPA, por que a ambulância não quis vir pegar”. – E o médico disse para a senhora o que ele têm? “Disse nada. Perguntou o que ele tinha comido. Digo: é a água. Daí ele não falou mais nada. Aplicou as injeções, mandou tomar uns comprimidos e mandou para casa. Os comprimidos eu não comprei não por que não tenho dinheiro”. – E ele ficou melhor? “Na hora ficou sim, mas chegando em casa já caiu de cama de novo”.

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    Camila. Foto: Leandro Taques.

    Assim que o crime foi cometido, o MAB passou a visitar as cidades e distritos atingidos. No primeiro contato com Cachoeira Escura, moradores influentes da região trataram logo de dispensar o movimento. Ali, de acordo com eles, nada havia acontecido. “O prefeito fala que bebe dessa água, digo: ele tem dinheiro e manda buscar longe”, reclama dona Eliane.
    Estranhando a reação, voltaram com uma outra abordagem. “Coloquei logo um carro de som na rua, falando que o Movimento dos Atingidos por Barragens estava ali para denunciar o crime da Samarco, e que ia fazer uma reunião em uma escola municipal”, conta Camila. Uma multidão apareceu.

    Um ano depois as famílias ainda não foram indenizadas. Tampouco foi soluciona o problema da água envenenada. “O meu vizinho morreu com infecção e o corpo cheio de perebas.” – Tem médico? A Samarco já cadastrou a família da senhora? “Não cadastrou não. Aqui tem uma médica cubana, que vem aqui e passa pra gente pomada, remédio. Ela fala que é para a gente não tomar a água, mas não tem como. Dinheiro para comprar não tem. Tem uma biquinha ali na frente, para o povo todo, dá até briga. Tem dia que a gente fica o dia todo lá para voltar com dois galões de 5 L de água. Não tem outro jeito, tem que tomar a água”.

    É assim a rotina do vilarejo. A bica que D. Eliane se refere é um cano na rua. Depois do acidente, ela conta que o vizinho, solidário, puxou um cano da fonte de água do seu quintal até a rua. Está é a única fonte de água potável e gratuita da vizinhança.

    Passamos por ela no caminho da marcha. E a marcha seguiu. No caminho, outros atingidos relataram problemas de saúde e nos mostram manchas na pele. De acordo com a prefeitura, a água não apresenta riscos.

    De cidade a cidade a marcha dos atingidos cresce. Em Cachoeira Escura eramos cerca de 300. Em cada parada um ato simbólico representava a luta e a esperança de todos. Lá, plantaríamos mudas de árvore às margens do Rio Doce.

    Lá também fica uma estação da Vale, uma das proprietárias da Samarco, patrocinadora do crime da lama tóxica. Acontece que a Vale e o Estado não gostam de luta.

    Ora, que mal haveria mulheres, crianças, trabalhadoras e trabalhadores, atingidos e atingidas, plantarem mudas? O mal de plantar a resistência.

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    A Vale não facilitou, colocou os trens no meio do caminho, e avisou aos funcionários que um bando de baderneiros estava a caminho, que poderiam até tentar quebrar os trens. O Choque se colocou entre os manifestantes e os trens. Que ironia, o mesmo Estado que negligencia os atingidos é o que protege a empresa assassina. Ironia, mas não novidade.

    Munidos de cassetetes, escudo e cães. Tentaram parar a marcha.

    Coitados. Como se depois de caminhar centenas de quilômetros alguns vagões e militares fossem parar aquele povo de luta. Deram a volta. Plantaram as mudas, plantaram a esperança, plantaram a resistência. Um ano de lama, um ano de luta. 

    Veja também:

    Povo de luta não esquece crime de Mariana

    “O problema é que muito pescador só sabe pescar. Todo dia vivia no rio e agora não pode ir para o rio mais”