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  • Antonio Scurati: A cidade mais privilegiada da Itália está agora na fila do pão

    Antonio Scurati: A cidade mais privilegiada da Itália está agora na fila do pão

    por Antonio Scurati

    (Ilustração de Bacellar e fotos de Sato do Brasil)

    Como posso convencer a minha mulher de que, enquanto olho pela janela, estou a trabalhar? — perguntava-se Joseph Conrad no início do século passado. Eu, em vez disso, pergunto-me: como posso explicar à minha filha que, quando olho pela janela, vejo o fim de uma era? A era em que ela nasceu, mas que não conhecerá, a era do mais longo e distraído período de paz e prosperidade desfrutado na história da Humanidade.

    Janelas para o Mundo

    Vivo em Milão, até ontem a mais evoluída, rica e brilhante cidade de Itália, uma das mais desejadas do mundo. A cidade da moda, do design, da Expo. A cidade do aperitivo, que deu ao mundo o Negroni Sbagliato e a happy hour e que hoje é a capital mundial do Covid-19, a capital da região que, sozinha, soma trinta mil contágios confirmados e três mil mortos. Uma taxa de mortalidade de 10 por cento, os caixões empilhados à frente dos pavilhões dos hospitais, uma pestilência vaporosa que paira sobre as torres da sua catedral como sobre as cidades amaldiçoadas das antigas tragédias gregas. As sirenes das ambulâncias tornaram-se na banda sonora dos nossos dias; as nossas noites são atormentadas por homens adultos que choramingam no sono: “O que é, sentes-te bem?”; “Nada, não é nada, volta a dormir”. Milhares de amigos, parentes e conhecidos seus tossem até cuspir sangue, sozinhos, fora de todas as estatísticas e sem qualquer assistência, nas camas dos seus estúdios decorados por arquitetos de renome.

    Se, neste momento, olhar pela janela, vejo uma pobre loja de conveniência gerida com admirável diligência por imigrantes cingaleses. Até ontem, era uma singular anomalia neste bairro semi-central e, ao seu modo elegante, uma nota dissonante. Hoje é um lugar de peregrinação. Na fila para o pão em frente às suas vitrinas despidas, vejo homens e mulheres que até ontem o desdenhavam por não ter a sua marca preferida de farelo. Ficam, apoiados pela disciplina do desânimo, a um metro de distância uns dos outros, ao mesmo tempo ameaçadores e ameaçados, com máscaras improvisadas, feitas de pedaços de tecido com os quais, até ontem, protegiam as plantas exóticas do seu roof garden, gazes desfiadas penduradas nos seus rostos com a melancolia mole dos restos de uma era acabada.

    Janelas para o Mundo

     

    “Uma taxa de mortalidade de 10 por cento, os caixões empilhados à frente dos pavilhões dos hospitais, uma pestilência vaporosa que paira sobre as torres da sua catedral como sobre as cidades amaldiçoadas das antigas tragédias gregas. As sirenes das ambulâncias tornaram-se na banda sonora dos nossos dias”

    Vejo estes homens e estas mulheres tristes, incongruentes consigo mesmos. Olho-os. Não tenho nenhuma intenção de os diminuir ou de troçar deles. São homens e mulheres adultos, contudo por cima das máscaras mostram o olhar assustado das crianças carenciadas. Chegaram totalmente impreparados ao seu encontro com a história e, no entanto, precisamente por este motivo, são homens e mulheres corajosos. Fizeram parte do pedaço mais abastado, protegido, longevo, bem vestido, nutrido e cuidado da Humanidade a pisar a face da Terra e, agora, na casa dos cinquenta, estão na fila do pão.

    A sua aprendizagem na vida foi uma longa aprendizagem da irrealidade televisiva. Tinham vinte anos quando assistiram, a partir das suas salas de estar, à primeira guerra da história humana em direto na televisão, trinta quando foram alvejados através dos televisores pelo terror mediático, quarenta quando a odisseia dos condenados da terra aterrou nas praias das suas férias. Todos encontros fatídicos que não poderiam perder. As grandes cenas da sua existência foram consumidas em eventos mediáticos, foram guerreiros de sala, banhistas nas praias dos migrantes, veteranos traumatizados pelas noites passadas em frente à televisão. E agora estão na fila do pão.

    A sua infância foi uma manga japonesa, a sua juventude uma festa de piscina — lembram-se? Era sábado à noite e íamos a uma festa; era sempre sábado à noite e íamos sempre a uma festa —, a sua idade adulta é um tributo a uma trindade insossa e feroz: o frenesim do trabalho, os verões no outlet, o sublime do spa. Viveram bem, melhor do que qualquer outra pessoa, mas quanto mais viviam mais inexperientes eram na vida: nunca conheceram o terror da guerra, nunca foram tocados pelo sentimento trágico da existência, nunca uma questão sobre o seu lugar no universo. E agora, aos cinquenta anos, com os cabelos já brancos, o abdómen prolapso e a ânsia que lhes incomoda os pulmões, estão na fila do pão. Turistas compulsivos, correram o mundo sem nunca sair de casa e agora a sua casa marca para eles os limites do mundo; sofreram quase só dramas interiores e agora o drama da história catapulta-os para a linha de fogo de uma pandemia global; têm uma casa na praia e um telemóvel de última geração, mas agora estão na fila do pão; tiveram mais cães do que filhos e agora arriscam as suas vidas para levar o seu caniche a mijar.

    Janelas para o Mundo

    Olho-os da janela do meu estúdio enquanto escrevo. Observo-os enquanto o número de mortes sobe para quatro mil, enquanto a abcissa do contágio cresce exponencialmente, enquanto sustenho a respiração para não inalar o ar do tempo. Olho-os e compadeço-me deles porque foram a geração mais sortuda da história humana, mas, depois, tocou-lhes viver o fim do seu mundo justamente quando começaram a ficar demasiado velhos para esperar um mundo vindouro. Porém, terão de o fazer, fá-lo-ão, estou seguro. Vão ter de imaginar o mundo que têm sido obrigados a experienciar nestes dias: um mundo que se questiona sobre como educar os próprios filhos, sobre como preservar um ar respirável, sobre como cuidar de si e dos outros. Uma era acabou, outra começará. Amanhã. Hoje estamos na fila para o pão. Hoje os jornais titulam: resiste, Milão! E Milão resiste.

    Lanço um último olhar pela janela sobre os meus contemporâneos dos cinquenta anos, os meus concidadãos milaneses, os meus rapazes repentinamente envelhecidos: como são grandes e patéticos com os seus ténis de corrida e as suas máscaras cirúrgicas. Tenho piedade, compreendo-os, compadeço-me deles. Dentro de alguns segundos estarei na fila junto deles.

     

    Antonio Scurati é um escritor e académico italiano, autor de livros como a biografia de Mussolini “M, o Filho do Século” e “A Criança que Sonhava com o Fim do Mundo”, traduzido para português. Vive em Milão.

    Este artigo faz parte da coleção “Janelas para o Mundo”, organizada pelo jornal alemão Frankfurter Allgemeine Zeitung. Vários escritores e filósofos de todo o mundo escrevem sobre o que veem das suas janelas durante o período de isolamento motivado pela pandemia da Covid-19. Antonio Scurati foi um deles. Como sinal de proximidade cultural em tempos de distância política e social, artigos desta coleção são publicados também noutros jornais internacionais, como o Corriere della Sera (Itália), o Politiken (Dinamarca), o Observador (Portugal) e o Die Presse (Áustria).

    Via https://observador.pt/especiais/milao-a-cidade-mais-privilegiada-de-italia-esta-agora-na-fila-do-pao/

    Fotos: Sato do Brasil/JornalistasLivres

  • O que escrevem aqueles que, reclusos, oram?

    O que escrevem aqueles que, reclusos, oram?

    “A Terra é um presente para descobrir que somos amados. É preciso pedir perdão à Terra”, escreve o Papa Francisco

    Avenida dos Baobás, em Madagascar (Foto: Dennis van de Water)

     

    Justamente porque tudo está conectado (cf. Laudato si ’42; 56) no bem, no amor, justamente por essa razão, toda falta de amor repercute em tudo. A crise ecológica que estamos vivenciando é, acima de tudo, um dos efeitos desse olhar doente sobre nós, sobre os outros, sobre o mundo, sobre o tempo que passa; um olhar doente que não nos faz perceber tudo como um presente oferecido para descobrir que somos amados. É esse amor autêntico, que às vezes nos alcança de maneira inimaginável e inesperada, que nos pede para rever nossos estilos de vida, nossos critérios de julgamento, os valores nos quais baseamos nossas escolhas. De fato, agora se sabe que poluiçãomudanças climáticasdesertificaçãomigrações ambientaisconsumo insustentável dos recursos do planetaacidificação dos oceanosredução da biodiversidade são aspectos inseparáveis da desigualdade social: da crescente concentração de poder e riqueza nas mãos de muito poucas e das chamadas sociedades do bem-estar, dos insanos gastos militares, da cultura do descarte e de uma falta de consideração do mundo do ponto de vista das periferias, da falta de proteção de crianças e menores, de idosos vulneráveis e crianças ainda não nascidas.

    Um dos grandes riscos de nosso tempo, então, diante da grave ameaça à vida no planeta causada pela crise ecológica, é a de não ler esse fenômeno como o aspecto de uma crise global, mas de nos limitarmos a procurar – embora necessárias e indispensáveis – soluções puramente ambientais. Ora, uma crise global requer uma visão e abordagem globais, que passam primeiro por um renascimento espiritual no sentido mais nobre do termo. Paradoxalmente, as mudanças climáticas poderiam se tornar uma oportunidade para nos questionarmos sobre o mistério de ser criado e sobre o quê vale a pena viver. Isso levaria a uma profunda revisão de nossos modelos culturais e econômicos, para um crescimento na justiça e no compartilhamento, na redescoberta do valor de cada pessoa, no empenho para que aqueles que hoje estão à margem possam ser incluídos e aqueles que vierem amanhã ainda possam desfrutar do beleza do nosso mundo, que é e continuará sendo um presente oferecido à nossa liberdade e à nossa responsabilidade.

    cultura dominante – aquela que respiramos através das leituras, dos encontros, das diversões, nas mídia etc. – baseia-se na posse: de coisas, de sucesso, de visibilidade, de poder. Quem tem muito vale muito, é admirado, considerado e exerce alguma forma de poder; enquanto aquele que tem pouco ou nada, corre o risco perder até mesmo seu próprio rosto, porque desaparece, torna-se uma daquelas pessoas invisíveis que povoam nossas cidades, uma daquelas pessoas que não notamos ou com quem tentamos não entrar em contato. Certamente, cada um de nós é, acima de tudo, vítima dessa mentalidade, porque de muitas maneiras somos bombardeados por ela. Desde crianças, crescemos em um mundo em que uma ideologia mercantil generalizada, que é a verdadeira ideologia e prática da globalização, estimula em nós um individualismo que se torna narcisismo, ganância, ambições elementares, negação do outro …

     

    Portanto, nessa nossa situação atual, uma atitude justa e sábia, ao invés da acusação ou do julgamento, é acima de tudo a tomada de consciência. Somos envolvidos, de fato, em estruturas de pecado (como São João Paulo II as chamava) que produzem o mal, poluem o meio ambiente, ferem e humilham os pobres, favorecem a lógica da posse e do poder, exploram os recursos naturais, obrigam populações inteiras a deixar suas terras, alimentam o ódio, a violência e a guerra. É uma tendência cultural e espiritual que opera uma distorção em nosso senso espiritual que vice-versa – em virtude de termos sido criados à imagem e semelhança de Deus – nos orienta naturalmente ao bem, ao amor e ao serviço dos outros. Por essas razões, a virada não pode vir simplesmente do nosso empenho ou de uma revolução tecnológica: sem negligenciar tudo isso, precisamos nos redescobrir pessoas, ou seja, homens e mulheres que reconhecem que são incapazes de saber quem são sem os outros e que se sentem chamados a considerar o mundo à sua volta não como um objetivo em si, mas como um sacramento da comunhão. Dessa maneira, os problemas de hoje podem se tornar oportunidades autênticas, para que possamos nos descobrir verdadeiramente como uma única família, a família humana. Enquanto tomamos consciência de que estamos perdendo a meta, de que estamos dando prioridade ao que não é essencial ou mesmo ao que não é bom e causa mal, o arrependimento e o pedido de perdão podem nascer em nós.

    Eu sinceramente sonho com um crescimento da consciência e do sincero arrependimento de todos nós, homens e mulheres do século XXI, crentes e não crentes, de parte de nossas sociedades, por nos deixarmos levar por lógicas que dividem, provocam fome, isolam e condenam. Seria bom se pudéssemos pedir perdão aos pobres, aos excluídos; então poderíamos nos arrepender sinceramente também do mal feito à terra, ao mar, ao ar, aos animais … Pedir e conceder perdão são ações que são possíveis apenas no Espírito Santo, porque Ele é o artífice da comunhão que abre os fechamentos dos indivíduos; e é preciso muito amor para deixar de lado o orgulho, perceber que se cometeu um erro e ter esperança de que novos caminhos sejam realmente possíveis. Portanto, o arrependimento para todos nós, para a nossa era, é uma graça a ser humildemente implorada ao Senhor Jesus Cristo, para que em nossa história essa nossa geração possa ser lembrada não por seus erros, mas pela humildade e sabedoria de ter sabido inverter a rota.

    O que estou dizendo talvez pareça idealista e pouco concreto, enquanto parecem mais viáveis as estradas que visam o desenvolvimento de inovações tecnológicas, a redução no uso de embalagens, o desenvolvimento de energia a partir de fontes renováveis etc.. Tudo isso, sem dúvida, não é apenas um dever, mas necessário. No entanto, não é suficiente. A ecologia é a ecologia do homem e de toda a criação, não apenas de uma parte. Como em uma doença grave, a medicina sozinha não é suficiente, mas é preciso olhar para o doente e entender as causas que levaram ao aparecimento do mal; assim, da mesma forma, a crise de nosso tempo deve ser enfrentada em suas raízes. O caminho proposto consiste, então, em repensar nosso futuro a partir das relações: os homens e as mulheres de nosso tempo têm tanta sede de autenticidade, de rever sinceramente os critérios da vida, de reorientar-se para o que vale, reestruturando a existência e a cultura.

     

    *publicado no livro Nostra Madre Terra. O extrato é publicado por Corriere della Sera, 16-10-2019. A tradução é de Luisa Rabolini.

     

     

     

     

    DEZ DICAS PARA ENFRENTAR A RECLUSÃO

    por Frei Betto

    Estive recluso sob a ditadura militar. Nos quatro anos de prisão trancaram-me em celas solitárias nos DOPS de Porto Alegre e da capital paulista, e também, no estado de São Paulo, no quartel-general da PM, no Batalhão da ROTA, na Penitenciária do Estado, no Carandiru e na Penitenciária de Presidente Venceslau.
    Partilho, portanto, 10 dicas para suportar melhor esse período de reclusão forcada pela pandemia:

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

    1. Mantenha corpo e cabeça juntos. Estar com o corpo confinado em casa e a mente focada lá fora pode causar depressão.

    2. Crie rotina. Não fique de pijama o dia todo, como se estivesse doente. Imponha-se uma agenda de atividades: exercícios físicos, em especial aeróbicos (para estimular o aparelho respiratório), leitura, arrumação de armários, limpeza de cômodos, cozinhar, pesquisar na internet etc.

    3. Não fique o dia todo diante da TV ou do computador. Diversifique suas ocupações. Não banque o passageiro que permanece o dia todo na estação sem a menor ideia do horário do trem.

    4. Use o telefone para falar com parentes e amigos, em especial com os mais velhos, os vulneráveis e os que vivem só. Entretê-los fará bem a eles e a você.

    5. Dedique-se a um trabalho manual: consertar equipamentos, montar quebra-cabeças, costurar, cozinhar etc.

    6. Ocupe-se com jogos. Se está em companhia de outras pessoas, estabeleçam um período do dia para jogar xadrez, damas, baralho etc.

    7. Escreva um diário da quarentena. Ainda que sem nenhuma intenção de que outros leiam, faça-o para si mesmo. Colocar no papel ou no computador ideias e sentimentos é profundamente terapêutico.

    8. Se há crianças ou outros adultos em casa, divida com eles as tarefas domésticas. Estabeleça um programa de atividades, e momentos de convívio e momentos de cada um ficar na sua.

    9. Medite. Ainda que você não seja religioso, aprenda a meditar, pois isso esvazia a mente, retém a imaginação, evita ansiedade e alivia tensões. Dedique ao menos 30 minutos do dia à meditação.

    10. Não se convença de que a pandemia cessará logo ou durará tantos meses. Aja como se o período de reclusão fosse durar muito tempo. Na prisão, nada pior do que advogado que garante ao cliente que ele recuperará a liberdade dentro de dois ou três meses. Isso desencadeia uma expectativa desgastante. Assim, prepare-se para uma longa viagem dentro da própria casa.

     

  • Arte contra a barbárie – Mulheres resistem na poesia

    Arte contra a barbárie – Mulheres resistem na poesia

    O coletivo Mulherio das Letras, criado em 2017, conta hoje com adesão de mais de seis mil mulheres brasileiras residentes no Brasil e algumas no exterior. Nos últimos dias 2, 3 e 4 de novembro, realizou o II Encontro Nacional no Guarujá, SP, reunindo cerca de 200 de suas integrantes. Do primeiro, realizado no ano passado em João Pessoa, na Paraíba, participaram aproximadamente 500 mulheres, todas ligadas à literatura e ao livro, como poetas, ficcionistas, dramaturgas, tradutoras, pesquisadoras, críticas, editoras, livreiras, ilustradoras, designers e jornalistas, muitas das quais ativistas culturais e sociais, ligadas a movimentos e coletivos.

    Maria Firmina dos Reis e Patrícia Galvão – Pagu, mulheres de reconhecido destaque nacional, foram homenageadas através de exposições, palestras e debates, no primeiro e segundo encontro, respectivamente.

    Realizados com o apoio e infraestrutura das respectivas Prefeituras Municipais locais, os encontros tiveram caráter inovador, organizados de forma coletiva e horizontal, longe do modelo adotado como padrão de festivais e feiras de literatura que ocorrem em todo o Brasil.

    Trata-se de uma iniciativa pioneira, marco no cenário da literatura brasileira na luta por maior visibilidade da produção literária da mulher na literatura e na luta por direitos que teve na figura da escritora Maria Valéria Rezende, residente em João Pessoa, figura extraordinária de nossas letras, uma de suas principais ideólogas e motor inspirador em todas as etapas do coletivo.

    As incontáveis discussões realizadas nos encontros nacionais bem como em inúmeros coletivos regionais decorridos durante o ano, através de rodas de conversas, palestras e oficinas, acabaram também por conduzir a debater as distorções da atual conjuntura brasileira e vêm balizado propostas e passos decisivos ainda a percorrer, transformando o coletivo em verdadeiro movimento.

    Uma delegação de Natal, RN, composta por Rejane Souza, Jeanne Araújo, Eliety Marry e Gilvania Machado, representando o coletivo Nísia Floresta, propôs e foi aprovada por unanimidade, a realização do III Encontro Nacional do Mulherio das Letras na cidade de Natal, em outubro de 2019. O fato se reveste de simbologia, levando-se em conta que o Rio Grande do Norte elegeu este ano uma mulher para Governadora, Fátima Bezerra, a única mulher eleita governadora no país, tendo recebido a maior votação da história daquele estado.

     

    Ao final do Encontro, uma Carta Aberta (abaixo) foi redigida, aprovada e já começou a circular nas redes sociais e blogs alternativos.

     

    CARTA ABERTA DO II ENCONTRO NACIONAL DO MULHERIO DAS LETRAS – GUARUJÁ 2018

     

    “A esperança é cortada, mas se regenera”. (Pagu)

     

    O Mulherio das Letras, criado em 2017, é um coletivo feminista literário, diretamente interessado na expressão pela palavra escrita e oral, com adesão de mais de seis mil mulheres brasileiras residentes no Brasil e no exterior, que se propõe a discutir as questões da mulher nas áreas da arte e da cultura.

     

    As mulheres reunidas neste encontro, diante da atual e grave conjuntura do Brasil, se comprometem a defender as seguintes pautas:

     

    1. O exercício pleno e irrestrito da democracia;
      2. A liberdade de expressão;
      3. A garantia e ampliação das políticas públicas para o livro, a leitura, a literatura e as bibliotecas;
      4. Salvaguardar os direitos das mulheres, bem como fortalecer e dar visibilidade à literatura produzida por elas;
      5. Comprometimento com a defesa da diversidade étnica, de gênero, de classe, de orientação sexual, bem como com a inclusão das mulheres com deficiência;
      6. A defesa da educação e, especialmente, da universidade pública, gratuita, laica, de qualidade, inclusiva e aberta à comunidade;
      7. A resistência ao sucateamento e desmantelamento dos equipamentos culturais e instituições públicas.

     

    Paralelamente, o Mulherio das Letras realizará ações efetivas nos níveis regional, nacional e internacional, no sentido de manter permanentemente mobilizado o Movimento.

     

    Comissão de redação:
    Cátia Moraes
    Dalila Teles Veras
    Giovana Damaceno
    Lindevânia Martins
    Patrícia Vasconcelos
    Rejane Souza
    Rosana Chrispim

     

    Carta aprovada com acréscimos e supressões na leitura pública deste documento no encerramento do Encontro.

    Guarujá-SP, 4 de novembro de 2018.

  • Meu amigo Ariano

    Meu amigo Ariano

    Meu amigo Ariano eu conheci ainda menino, mas fui conhecendo mais conforme fui crescendo.
    Acho que tinha uns 11, 12 anos quando o acaso nos apresentou.
    Foi na biblioteca da escola que a gente se conheceu.

    Corria o ano de 1985.
    No recreio do grupo escolar era fácil identificar três tipos de crianças: as poucas às quais os pais davam dinheiro para o lanche, as muitas às quais os pais não davam dinheiro para o lanche e tinha eu, que não tinha nem o dinheiro do lanche dado pelos pais, nem os pais.

    Restavam duas alternativas possíveis, a fila da merenda oferecida pelo governo Montoro, que não era nenhum Lula lá, mas quebrou o galho naqueles tempos bicudos de redemocratização, e a biblioteca da escola, meu reino encantado particular.

    Salvo quando tinha alguma sorte — coisa rara, e faturava um trocado de maneira honesta ou nem tanto, pontualmente as 16:00h a fila da merenda e a biblioteca da escola eram meus destinos certos de segunda a sexta-feira.

    Foi numa dessas incursões ao meu reino encantado particular, mais conhecido como biblioteca pública, que conheci o meu amigo Ariano.
    E o meu amigo Ariano me apresentou os seus amigos.

    • João Grilo, um rapaz pobre que vivia tentando se dar bem através de expedientes. Trabalhava para o Padeiro, e era o melhor amigo de Chicó.

    • Chicó era um rapaz bem covarde, que gosta de contar mentiras. Entre uma mentira e outra, deixava escapar a grande verdade, que na verdade tinha um bom coração. Também trabalhava para o Padeiro, que remédio? e era o melhor amigo de João.

    • O Padeiro era um homem avarento, dono da padaria onde trabalhavam Chicó e João Grilo. Padeiro era casado com Dora.

    • Dora era uma mulher muito infeliz. Adúltera, mas que se dizia santa. Tentava agradar seu marido, o Padeiro mas o enganava, e a si mesma também se enganava.

    • Padre João era o padre que chefiava a paróquia de Taperoá, cidade onde vivia quase todo mundo dessa crônica. Muito racista e avarento, Padre João só queria saber de dinheiro, e não era pouco dinheiro não.

    • O Bispo, que assim como o padre, era muito avarento, e difamava seu colega de batina, o Frade.

    • O Frade era um homem religioso, honesto e de bom coração. Nem sabia que era difamado pelo seu colega de batina, o Bispo.

    • Antônio Morais era um major ignorante e autoritário, que usava seu poder para amedrontar os mais pobres. Uma espécie de Jair Bolsonaro do século passado.

    • Severino era um cangaceiro que encontrou no crime uma forma de sobrevivência. Seus pais foram mortos pela polícia, e desde então Severino desacreditou da Justiça, e fez do Cangaço a sua própria Justiça.

    • Cangaceiro era um dos capangas de Severino que fazia de tudo para agradar seu chefe, Severino. Não era muito inteligente Cangaceiro, mas era leal ao seu chefe, Severino, e era só isso que importava aos dois.

    • A Compadecida era a própria Nossa Senhora, mãe de todos e toda bondosa. Delicada. Confesso que foi um choque conhecê-la, eu que não estava nem um pouco acostumado com essa coisa de mãe, menos ainda de bondosa e delicada então nem se fala.

    • Manuel era um juiz do povo, julgando sempre com sabedoria e imparcialidade, e que tinha o dom da misericórdia. Diferente dos juízes de hoje, principalmente um certo Sérgio Fernando. Aliás era diferente também na cor da pele, preta, o que causava espanto em alguns, mas em mim não. Simpatizei como ele na hora. Era pobre, como eu. Era dos meus.

    • Encourado era a encarnação do diabo. Desprovido de qualquer tipo de sensibilidade ou misericórdia, era uma versão mais diabólica do Bolsonaro.
      Pois é, o mal tem várias versões e faz tempo, há muitas gerações.

    Pois bem, foi na biblioteca de um grupo escolar na Zona Sul de São Paulo, numa tarde em 1985, que o acaso me apresentou ao amigo Ariano Suassuna através de sua obra prima, “O Auto da Compadecida”.

    Desde então Ariano passou a ser meu amigo, um dos melhores amigos que já tive.

    Nunca cheguei a conhecer o amigo Ariano Suassuna pessoalmente, mas nos tornamos amigos inseparáveis desde aquela tarde, em 1985.

    Ariano Suassuna nos deixou no dia 23 de julho de 2014, mas nossa amizade dura até hoje.

    Um dia eu contarei para meu filho Fidel as histórias que Ariano Suassuna me contou através de suas obras.

    Contarei para ele as vezes em que me sentia deprimido, absolutamente sozinho, e abria um vídeo do amigo Ariano no Youtube, e sua maneira simples de enxergar a vida e contar seus causos me enchiam o coração de alegria, espantando a tristeza e a depressão que insistiam em nele fazer morada.

    Contarei todas essas histórias para Fidel, e muitas outras mais, e terminarei todas essas histórias como meu amigo Chicó terminava as suas, assim:
    “só sei que foi assim.”

    “Cumpriu sua sentença. Encontrou-se com o único mal irremediável, aquilo que é a marca do nosso estranho destino sobre a terra, aquele fato sem explicação que iguala tudo o que é vivo num só rebanho de condenados, porque tudo o que é vivo, morre.”
    Trecho de “O Auto da Compadecida”

    Ariano Suassuna, presente!

    ★Parahyba, Paraíba — 16 de junho de 1927
    ★Recife, Pernambuco — 23 de julho de 2014

  • Pode uma escritora negra falar sem que o mediador tente roubar a cena?

    Pode uma escritora negra falar sem que o mediador tente roubar a cena?

    Começou com uma frase de efeito: “a carne mais barata do mercado é a carne negra”, seguramente porque a expositora da noite era negra. Ali mesmo ele deu com os burros n’água, impactou negativamente a galera. O bordão seria repetido por mais quatro ou cinco vezes ao longo de cansativo, desnecessário e, sobretudo, inadequada exposição.

    O mediador não identificado era só mais um homem branco, totalmente perdido (para ser gentil) diante do esplendor de uma mulher negra, reverenciada por todos.

    A suposta mediação foi assaz deselegante. Uma verborragia de dados e citações estatísticas, provavelmente confrontadas pela primeira vez, na pesquisa que alimentou a tentativa vã de antecipar-se a Ana Maria. Deu com os burros n’água pela segunda vez.

    Ana Maria gingou, logo no início. Agradeceu a generosidade de seu interlocutor (fina ironia) e leu um trecho da apresentação de Um defeito de cor, no qual, grosso modo, está dito que um mineiro é aquilo que parece não ser. Ou seja, o rapaz veio com o milho e ela já estava com o fubá pronto. A escritora disse o que quis, o que havia planejado, e não foi nada do que fora discursado pelo mediador, achando que se adiantava à convidada.

    E o que me dá certeza de saber o que ia na cabeça dele quando tentou, com aquele amontoado de frases, engambelar o mais ingênuo dos bobos? Letramento racial, baby. Depois de décadas enfrentando as armadilhas do racismo, a gente aprende como ele opera e também a branquitude, que nos dá rasteiras com sorrisos fraternos e gentilezas.

    Mas, Ana Maria Gonçalves baixou o Gunga, chamou o moço no pé do berimbau e deu a letra. Ali, mandava ela. Era a estrela da festa e seu ninguém lhe ofuscaria o brilho. É boa angoleira, essa Ana. Sabe entrar saindo e sabe sair entrando.

  • “O orgulho negro é aprender a se manter vivo”

    “O orgulho negro é aprender a se manter vivo”

    Por Maria Carolina Trevisan
    Fotos: Terremoto
    Edição e montagem do vídeo: Joana Brasileiro

    A palavra organiza o caos. Em #Parem De Nos Matar!, livro mais recente da pensadora e dramaturga negra Cidinha da Silva a crônica tem a tarefa de entregar ao leitor a crueza da realidade. Com palavras precisas, perspicazes, com sofisticação linguística e estilo potente, Cidinha faz pensar sobre o cotidiano de forma crítica. Aborda principalmente o universo em que o racismo é um dos protagonistas, junto com outras interseccionalidades que geralmente envolve o preconceito racial no Brasil, como o machismo ou as questões de classe social.

    Como a realidade é árida, torna-se necessário lançar mão da beleza para tratar de temas tão duros. Nesse sentido, o texto literário atrai o leitor como se ele fosse mergulhar em uma viagem. E Cidinha emprega com sabedoria a poesia, que emociona o leitor. São “laivos de poesia e beleza para louvar a vida e a memória dos viventes exterminados pela violência física ou dos que sobreviveram, mas têm sua humanidade achatada pelo racismo”, explica a pensadora.

    Autora de 11 livros publicados, entre eles literatura infantil e juvenil, romances, poemas e contos, Cidinha também escreveu peças teatrais como “Os Coloridos e Engravidei”, “Pari Cavalos e Aprendi a Voar sem Asas”, ambas encenadas pela companhia de teatro negro Os Crespos. “Oh, Margem! Reinventa os Rios” (Selo Povo), “Racismo no Brasil e Afetos Correlatos (Conversê)”, “Africanidades e relações raciais: insumos para políticas públicas na área do livro, leitura, literatura e bibliotecas no Brasil” (Fundação Cultural Palmares), “Sobreviventes!” (Pallas) e “Cada tridente em seu lugar e outras crônicas” (Instituto Kuanza).

    “#Parem de nos matar!” (Editora Ijumaa) é seu livro mais recente. Tem prefácio de Sueli Carneiro, uma das mais importantes lideranças do movimento negro no Brasil. Em São Paulo, teve lançamento no espaço Aparelha Luzia, de cultura negra.

    Jornalistas Livres – Como você descobriu o talento pelo texto literário?

    Cidinha da Silva – Primeiro aconteceu o encantamento pela leitura desde que me alfabetizei aos 6 anos e consequentemente veio o desejo de criar minhas próprias histórias. Tudo então se transformou num exercício de escrita frequente: as composições do grupo escolar, as redações do ensino fundamental e médio, os trabalhos escolares, as resenhas sobre livros lidos na escola, além dos poemas ridículos escritos na adolescência.

    De que maneira a literatura opera quando trata de temas tão delicados como as crônicas de sua obra mais recente “#Parem De Nos Matar!” ? O texto literário – e a poesia que tantas vezes está contida nos seus textos – ajuda a conscientizar os leitores? Por quê? 

    O fazer literário em #Parem de nos matar! é a construção e o refinamento de uma poética que trate de temas duros (racismo, extermínio, morte cultural e simbólica de pessoas negras), sempre que possível com laivos de poesia e beleza para louvar a vida e a memória dos viventes exterminados pela violência física ou dos que sobreviveram, mas têm sua humanidade achatada pelo racismo.

    Não nutro preocupações de conscientização ou convencimento a partir de minhas idéias, desejo, sim, abrir frestas de diálogo e de percepção sensível na literatura que faço.

    A literatura negra e autores negros podem contribuir para diminuir a desigualdade racial? De que maneira?

    Não creio. As desigualdades raciais são resultado do racismo estrutural que nos marca de maneira indelével como sociedade. Para combatê-lo, além de cravar o direito à vida sem racismo no rol efetivo dos Direitos Humanos, são necessárias políticas públicas estruturantes.
    A literatura é um sopro, um veio d’água, uma mina de ouro. Sua natureza é diferente da política de combate, a não ser que ela se pretenda combatente, o que não é o meu caso. Sua natureza é a natureza da voz que se lança no mundo e quer ser ouvida. Que pula no despenhadeiro confiante na experimentação do que vier a ocorrer.
    O que relaciona esta segunda parte da resposta às desigualdades raciais do enunciado é que as vozes negras, em sociedades racistas como a brasileira, são obstadas em seu vôo de liberdade. Nesse sentido, a literatura negra amplia nossa humanidade e nos posiciona no mundo como seres mais plenos.

    Na dimensão da literatura infantil, como se dá o enfrentamento ao racismo?

    Creio que isso acontece por alguns fatores articulados, a saber: Pela escolha temática e posso exemplificar como o fiz em meus 3 livros infanto-juvenis.

    Em “Os nove pentes d’África (2009)”, uma família negra feliz, solidária e fagueira enfrenta a morte de seu patriarca, Francisco Ayrá. Em “Kuami”, um romance de 2011, abordo a amizade de Janaína, uma sereia negra de dreadloks e Kuami, um pequeno elefante que nasce num barco no oceano Atlântico, na travessia de África para a Amazônia brasileira. “O Mar de Manu (2011)”, um conto, materializa-se em África, num vilarejo localizado em algum lugar entre 3 países da África Ocidental que não são banhados pelo mar, o Níger, o Burkina Faso e o Mali.

    Outros aspectos importantes são a construção de linguagem e de personagens para contar essas histórias, no Pentes, por exemplo, a narradora é uma das netas de Francisco Ayrá, Bárbara, de 16 anos, que mesmo sendo uma das netas do meio, em termos etários, apresenta-se como a mais velha, a mais madura, a depositária dos valores familiares. Desse modo, a narradora faz uma discussão subjetiva sobre a ancestralidade.

    Manu, por sua vez, é uma criança africana que aprende muito com a avó, Baya. Por exemplo, ele quer que o pai compre uma vara de pescar para que ele possa pescar estrelas, inspirado por uma história contada pela avó, dando conta de que os Tuareg (povo nômade do norte da África) quando se perdem no deserto espetam uma estrela com a lança e ela lhes ilumina o caminho de volta.

    A elaboração das imagens também é outro aspecto fundamental. O livro precisa apresentar imagens dignas das personagens, as negras, principalmente, evitando, assim, estigmas e estereótipos racistas na trama social brasileira.

    Uma de suas crônicas aborda a impunidade para crimes que envolvem práticas racistas (como a violência policial). Por que isso acontece, na sua opinião? Como podemos avançar? 

    O tratamento dado à Chacina do Cabula (19 de fevereiro de 2016), quando 12 homens negros foram mortos pela polícia sob alegações estapafúrdias de legítima defesa dos policiais, tratada como gol de placa pelo governador do estado e policiais inocentados pela justiça é um bom exemplo. A Campanha Reaja ou será morto! Reaja ou será morta! está lutando pela federalização do caso, como forma de enfrentar os vícios de produção de inocência no caso da justiça local quando os crimes envolvem policiais.

    Como mulheres negras preparam seus filhos para lidar com a polícia e ao mesmo tempo manter a autoestima e o orgulho de ser negro?

    Existe uma charge que circula pela internet bastante emblemática, um garoto branco vai sair e avisa a mãe. Ela responde: Tá bom, filho. Leva o agasalho, vai esfriar. Do outro lado, um garoto negro diz a mesma coisa à mãe e ela responde algo como: Não esqueça a carteira de identidade, não corra em hipótese alguma, nem para pegar ônibus, se tiver uma viatura policial por perto; se um policial te abordar, não se assuste, não fale alto, faça o que ele pedir, evite gestos bruscos, deixe as mãos à vista. Não esqueça de levar o agasalho. Vai esfriar.

    O orgulho negro, como se vê, é aprender a se manter vivo.

    Como você compreende a ascensão política de Fernando Holiday (DEM-SP), que rejeita o Hino da Negritude, entre outras expressões da luta pela justiça racial?

    Rejeitar o Hino da Negritude é um direito dele (nosso). A gente pode gostar ou não. A gente pode inclusive discordar do sentido político daquela letra. Ela pode se filiar a uma concepção de luta racial que não é a nossa. Não vejo problema nisso.

    Problemática é a postura política de direita representada por Holiday e o papel retrógrado do negro que é anti-negro, do gay que é anti-gay.

    A ascensão política de Holiday pode ser compreendida no escopo do crescimento da direita no mundo e que precisa escolher membros de grupos discriminados para vocalizar uma postura política que repudie as conquistas políticas de grupos assassinados diuturnamente, apensa por serem quem são.

    De que maneira age a naturalização da morte de pessoas negras? Por que a perda dessas vidas não gera comoção social ampla? Como isso pode ser desconstruído?

    As pessoas negras são portadoras de vidas que valem menos em sociedades racistas e de mentalidade escravocrata como a brasileira. Logo, é mais fácil tirá-las, pois isso não pesa, não comove, não agride, não violenta a humanidade dos que se beneficiam dos privilégios raciais. Ao contrário, o morticínio negro afirma o lugar de privilégio e proteção da branquitude. É cômodo. A desconstrução se dá pela luta política, pelo enfrentamento dos crimes, pela punição dos culpados, pelo fim da impunidade, pela elaboração de leis, práticas culturais e políticas que valorizem as pessoas negras e enfrentem as desigualdades raciais de maneira sistêmica.

    Que consequências pode ter para as conquistas da população negra – em especial, das mulheres negras – um governo que não reconhece a dimensão racial como uma linha fundamental de políticas públicas?

    As piores possíveis. Antes de qualquer coisa, esse governo não deveria estar aí. É ilegítimo. É usurpador. A luta deve ser para derrubá-lo, não para “melhorá-lo”. Não é possível “melhorá-lo” porque ele é um embuste desde o nascedouro.

    Por que é tão difícil a sociedade brasileira reconhecer seu racismo estrutural e as assimetrias raciais a que estamos submetidos até hoje?

    Porque é cômodo, confortável e lucrativo para a branquitude que se beneficia dos privilégios raciais.

    A repórter Maria Carolina Trevisan participou da leitura do livro no evento de lançamento, no Aparelha Luzia, ao lado do educador Ruivo Lopes. Assista a trechos do lançamento:

    Conheça aqui a obra completa de Cidinha.