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Tag: Lei antimanicomial

  • Os Cavaleiros da Contra-Reforma

    Os Cavaleiros da Contra-Reforma

    Quem leu a manchete que divulgou a aprovação da “Nova RAPS” (Rede de Atenção Psicossocial) na última quinta-feira (14), pela CIT (Comissão Intergestora Tripartite – composta por secretários de Saúde da união, estados e municípios), poderia pensar que se trata de uma conquista, que avançamos no campo da política pública de saúde mental no Brasil. Em pleno golpe, um respiro! Nada mais falacioso, no mesmo estilo do que é veiculado na mídia sobre as benesses das reformas todas (trabalhista, da previdência etc.), que o golpe não cessa de nos empurrar goela abaixo todos os dias.

    A manchete nos diz que foram vetadas a abertura de novos leitos em manicômio e que será ampliada a rede de assistência. Pois bem, a lei 10.216 de 2001, que consolida a diretriz da atenção em saúde mental no Brasil, já vetava a abertura de novos leitos nesses lugares que produzem muitas coisas (sobretudo violação de direitos), menos saúde mental. A proposta, alardeada pelo Ministério da Saúde como avanço, foi comemorada pelos setores mais retrógrados da saúde mental no Brasil, aliada da indústria farmacêutica. Na prática, a idéia é aumentar o valor de repasse da diária para os leitos manicomiais e cessar seu fechamento progressivo, que acontecia quando os moradores de hospitais psiquiátricos (que ainda são mais de 4.000 pessoas em pleno século 21…) saíam de seus cárceres para retornar à vida em sociedade. Essas vagas em manicômios (sim, hospitais psiquiátricos e manicômios são a mesma coisa!) não serão mais extintas com a nova política, mas serão disponibilizadas para novas internações, que seguirão produzindo muitos novos moradores.

    Além disso, a ampliação da rede de assistência hospitalar consiste na reinvenção de um modo de cuidado já superado em terras tupiniquins: o ambulatório de psiquiatria, de inspiração biomédica e medicalizante. Neste, o psiquiatra detém o poder hegemônico sobre o tratamento, e outras profissões da saúde, como a psicologia, a terapia ocupacional, etc., e também o serviço social, fundamentais para a alteração da compreensão do fenômeno dos transtornos mentais e seus cuidados para muito além dos marcadores biológicos, são meros coadjuvantes. É claro que os termos usados na resolução não são esses e usam do linguajar da Reforma Psiquiátrica brasileira para propor as mudanças… Não sejamos ingênuos.

    Não bastasse, a resolução prevê maior apoio e fomento às famigeradas Comunidades Terapêuticas, locais de internação para usuários de álcool e outras drogas, normalmente ligadas a setores religiosos, onde o fundamento do tratamento se resume a encarceramento, “enxada e bíblia”, além da clássica violação de direitos. O que está previsto para o Brasil é o que já assistimos em menor escala no município de São Paulo. Um exemplo inegável disto é o fato de que nos últimos dois meses, dois jovens que viviam há anos no centro de São Paulo, cuidados (com muitas dificuldades) por equipes comunitárias, e que sobreviveram às ruas, à doença mental e ao crack, não sobreviveram um mês ao Hospital Psiquiátrico. A lógica “cidade linda” chega ao planalto, para aprofundar o projeto de extermínio dos mais vulneráveis.

    *Psicóloga e psicanalista, trabalhadora da saúde mental pública no Brasil há 25 anos, docente da especialização “Saúde Mental e Reforma Psiquiátrica: clínica e política na transformação das práticas”, do Instituto Sedes Sapientiae e militante da Luta Antimanicomial

  • Por cidadania e dignidade

    Por cidadania e dignidade

    Ativistas da luta antimanicomial ocupam ruas e praças no país inteiro pedindo a revogação da nomeação do coordenador de saúde mental. Para eles, o caminho é tratar o sofrimento mental com liberdade, acolhimento e carinho.

    Por Agatha Azevedo (Mídia NINJA), para os Jornalistas Livres

    Em Belo Horizonte, centenas de pessoas foram à Praça da Assembleia mostrar a insatisfação com a indicação do nome do antigo diretor técnico da Casa de Saúde, Dr. Eiras de Paracambi, fechada por violação de direitos humanos. “Hoje a gente está aqui numa manifestação que já é nacional, pedindo a saída do coordenador de saúde mental, recém nomeado, Valencius Wurch, que foi na década de 80 um participante do movimento manicomial e diretor do maior hospital psiquiátrico da América Latina.”, diz Ana Paula Novaes, gerente do Centro de Convivência Venda Nova.

    Foto: Nicole Marinho

    O grito dos profissionais da área psiquiátrica e psicológica, e dos usuários dos chamados serviços substitutivos, é um temor à volta do período no qual as pessoas em situação de sofrimento mental eram tratadas de forma sub-humana e permaneciam durante anos em situação degradante. “Nós tivemos uma anomalia chamada indústria da loucura, uma máquina na época da ditadura militar, onde houve um favorecimento do manicômio como uma forma de contenção de tensões sociais — o sujeito está dando problema, manda ele pro manicômio!” explica Marcus Vinícius de Oliveira, militante luta antimanicomial/ Movimento por uma sociedade sem manicômios.

    Foto: Nicole Marinho

    Segundo Marcus Vinícius, a luta antimanicomial surge no Brasil em 1987, muito vinculada ao crescimento de quase 400% no número de leitos em manicômios no país e à capitalização do setor da saúde, gerando inúmeros hospitais psiquiátricos privados. “O Movimento por uma sociedade sem manicômios traz uma nova perspectiva: nós não queremos melhorar os manicômios, nós queremos fechar os manicômios. Quando você fecha e diz que não vai ter mais manicômio, você tem que responder a uma certa pergunta: — E o que você vai fazer com os loucos? Até então, os loucos iam para os hospícios. Se você não vai mandá-los para lá, para onde? Aí nasce um processo de reforma até mesmo sanitária e psiquiátrica e construção de um SUS antimanicomial.”

    Na visão da classe que lida diretamente com o sofrimento mental, é possível que o tratamento dessas pessoas seja feito apenas pelos serviços substitutivos, “Queremos que se fechem os manicômios a medida que vão se abrindo os serviços substitutivos, a lei diz isso, mas já tem uma conversa de que é possível a convivência com um bom hospital e o serviço substitutivo. Nós somos radicalmente contra, pois ainda que seja uma gaiola de ouro, o passarinho vai estar preso.”, indaga Marta Soares, militante da luta antimanicomial/ membro da Associação Suricato.

    Marta Soares , militante da luta antimanicomial/ membro da Associação Suricato. Foto: Nicole Marinho

    Ainda sobre a privação de direitos, o deputado federal Adelmo Leão reforça que “nas condições de sofrimento mental, o tratamento não se faz com restrição de liberdade, não se faz com opressão, não se faz com afastamento, mas se faz com um ambiente o mais acolhedor possível, o mais respeitoso possível, e o mais democrático e livre possível.” Neste sentido, Ana Paula contextualiza: “o histórico da nossa luta mostra que é possível cuidar das pessoas em liberdade. Minas Gerais tem um histórico de construção de uma rede substitutiva de hospitais psiquiátricos, Belo Horizonte hoje é referência nacional.”

    Sobre os avanços, Marcus Vinícius apresenta estatísticas promissoras. “Nós conseguimos que a reforma psiquiátrica se ampliasse e hoje nós temos 2 mil e trezentos serviços substitutivos públicos pelo país. Daqueles 100 mil leitos, nós conseguimos fechar 77 mil. Nós conseguimos um conceito de cidadania, nosso movimento social sempre trabalhou em sinergia com a política pública, que é produzir liberdade para os loucos.”

    Foto: Nicole Marinho

    Nos manicômios, era comum ocorrerem óbitos. Grande parte dos quadros de sofrimento mental regrediam e se agravavam e muitas pessoas eram abandonadas por suas famílias dentro de um sistema que impossibilita a reabilitação, além dos inúmeros casos de pessoas contra a ditadura e LGBTs que acabavam sendo colocadas neste tipo de instituição.

    Distante dessa realidade, a proposta dos serviços substitutivos é a da readequação do indivíduo em sociedade.“A gente não interna ninguém, numa situação de crise a gente tem a opção de pernoite, mas o sujeito continua o tratamento nas Unidades Básicas de Saúde próximas às suas casas, e é acompanhado pela equipe de saúde mental e do programa de saúde da família. Para estes usuários que perderam vínculo, sociabilidade e laço social, o centro entra para possibilitar que as pessoas reconstruam as suas vidas. A partir da arte, da criatividade, da liberdade, essas pessoas podem ter uma nova possibilidade de vida e resgate da cidadania.”- explica Ana Paula Novaes, sobre o funcionamento do Centro de convivência Venda Nova.

    Fotos: Nicole Marinho

    Olhar o outro na sua individualidade, respeitando-o e ajudando-o, é o ponto chave para o tratamento do sofrimento mental. “A chave é compreender o motivo pelo qual ele sofre, afinal, o sintoma é a expressão do sofrimento. Nossa busca é por um local onde as pessoas com distúrbios mentais sejam aceitas na sua forma de ver o mundo e respeitadas enquanto cidadãs. Gente é morar, tratar e conviver, a reforma psiquiátrica tem dialogado com a construção de lugares onde se aborda o problema mental de maneira solidária, voltada à compreender as pessoas, e não à normalizá-las”, explica Marcus Vinícius.

    Rumo à pátria sem manicômios, o movimento ocupa no momento a sede do Ministério da Saúde, na sede da coordenação e só pretende parar as suas ações quando Valencius Wurch for exonerado do cargo de coordenador nacional de saúde mental.

    Foto: Nicole Marinho