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    BACURAU NOS DEU UMA MÁ NOTÍCIA

    ARTIGO

    Rodrigo Perez Oliveira, professor de Teoria da História na Universidade Federal da Bahia

     

    Bacurau, filme de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, lançado no circuito brasileiro neste ano de 2019.

    Nas últimas semanas, a bolha da oposição civilizada e intelectualizada ao bolsonarismo não falou em outra coisa. Bacurau pra cá e Bacurau pra lá. O barulho se justifica. O filme é uma obra prima, imperdível, provocador.

    Uma breve síntese do enredo. Se você ainda não assistiu Bacurau, pode continuar lendo mesmo assim. Deixe se levar por essa histeria anti-spoiler não. Você consegue ser maior que isso.

    Tudo se passa em uma cidade fictícia localizada no oeste de Pernambuco. Arranjados com o prefeito da região e com apoio logístico de brasileiros do sul, um grupo de gringos resolve ir caçar gente no sertão do nordeste brasileiro. É o tesão estadunidense pela arma, pelo tiro, pela caça esportiva. Só que ao invés de irem caçar elefante na África, os gringos vieram ao Brasil matar pessoas.

    Acontece que a comunidade, que já contava com um sistema de autoproteção relativamente organizado (milícias), consegue se defender. Os gringos são mortos, têm suas cabeças cortadas e expostas em praça pública, sob os cliques dos smartphones e tablets dos moradores locais.

    Vi na blogsfera das redes sociais pelo menos três reações diferentes ao filme:

    1°) Alguns receberam Bacurau com animação e entusiasmo, acreditando se tratar de um convite à resistência armada “dos de baixo”. Essa interpretação foi inspirada pela velha fetichização do povo que certa esquerda ainda insiste em endossar, fazendo dos pobres uma espécie de bom selvagem rousseauniano. Pobres armados seriam capazes de construir o reino da justiça, de realizar a utopia na terra. Como se pobres fossem sempre virtuosos e jamais violentassem outros pobres, como se os “pobres” constituíssem grupo coeso e irmanado pela comunhão da experiência de pobreza. É de um marxismo de anteontem.

    2°) Outros criticaram o filme exatamente pelos mesmos motivos que arrancaram aplausos do primeiro grupo. Bacurau seria um elogio à violência popular, o que poderia incitar comportamentos violentos na sociedade civil. É uma leitura inadequadamente literal que não foi capaz de captar o implícito tão valorizado nas obras do Kleber Mendonça Filho. Lembro que isso aconteceu também com Aquarius, lido erradamente como uma crítica à gentrificação das grandes capitais brasileiras. Aquarius ironiza as prioridades da classe média.

    3°) Também houve aqueles que se incomodaram com aquilo que acreditaram ser a caricaturização do nordeste e do seu povo, como se Bacuarau evocasse a simbologia do Arraial de Canudos. Não acho que essa seja uma questão central para o filme. De fato, o que estava em tela era uma comunidade do nordeste, mas poderia ser uma favela do Rio de Janeiro ou uma tribo indígena da Amazônia e o argumento não seria prejudicado. O único momento do filme que o enredo joga com as dicotomias nordeste X sudeste/ sertão X litoral é quando os gringos debocham do casal de cariocas que reivindicam o estatuto de uma brasilidade superior pelo simples fato de que nasceram numa região “mais rica” do Brasil. Os gringos dizem “vocês não são brancos” e depois, simplesmente, matam o casal carioca, do mesmo jeito como estavam matando os moradores de Bacurau. Ou seja, para os gringos, somos todos mestiços, estamos todos na vala comum. É um momento interessante na economia interna da narrativa, mas curto, ligeiro e de importância secundária.

    Penso mesmo que a discussão fundamental levantada pelo filme é outra.

    Bacurau é a distopia neoliberal brasileira, é a caricatura do Estado Mínimo manifestado nos trópicos.

    Uma comunidade completamente abandonada pelo poder público que aprendeu a resolver seus problemas com suas próprias estratégias, o que vai desde a organização de milícias até a autonomia para decidir comer alimento estragado ou usar medicamento tarja preta sem prescrição médica. É a ideia de liberdade liberal levada ao nível do grotesco.

    Bacurau é palco para uma guerra travada entre particulares. A violência é potência afrodisíaca. Em algum momento das quase duas horas de filme, todos gozaram. Os gringos gozaram quando matavam brasileiros reduzidos à condição de animais. Os moradores da Bacurau gozaram quando mataram os gringos.

    O público gozava quando um gringo tombava, tendo sua cabeça estourada e seu corpo esfaqueado.

    Assisti Bacurau numa sala localizada dentro de um dos Campus da universidade onde trabalho. Em tese, o público é formado por pessoas progressistas, de esquerda e que não votaram em Jair Bolsonaro nas eleições do ano passado.

    Bacurau nos fez gemer de prazer a cada gota de sangue de gringo derramada.

    Se alguém tentasse chamar o público à racionalidade (ninguém tentou), perigava ouvir: “Tá com pena do gringo? Leva pra casa!”.

    Bacurau usou o registro ficcional para produzir verossimilhança a partir do absurdo. Ao fazê-lo nos deu uma péssima notícia: temos a violência como gramática comum e todos nós, bem lá no fundo, somos um pouquinho Bolsonaro.

  • Bacurau, da impressão do cotidiano à sugestão de uma esperança.

    Bacurau, da impressão do cotidiano à sugestão de uma esperança.

    É muito simplista achar que o filme fala “apenas” deste governo, pois ele dialoga com mais de 500 anos de um Brasil que subjuga, discrimina e violenta uma parte da população denominada (erroneamente) de minoria.

    A cada cena que passa se traduz com maestria a soberba imperialista, a violência banal, a discriminação entre outros pontos da nossa doente sociedade.

    É interessante ver como o filme trata a questão da pessoa branca que se orgulha de ter antepassados europeus e, por isso, acabam acreditando que são “especiais”. Alguns chegam a dizer:  “Olha eu não sou brasileiro (a) eu sou…pois tenho um tio-avô que nasceu em…” 

    Bacurau é uma crítica social que vai se despindo a cada camada que o filme apresenta. Já na contrapartida é mostrado como os invisíveis e vulneráveis podem e devem resistir.

    “O filme Bacurau mostra como a sabedoria popular vale muito. É como as quebradas, favelas, becos e vielas…”

    Com sua fotografia maravilhosa e uma direção de arte idem, Bacurau é deleite visual. Assim como as músicas que se encaixam e deixam recados implicitness, oras objetivo. A última música diz muito do momento que o Brasil vive. Vale cada minuto assistido!

    Para o país que sempre foi cordial com bandeirantes, não negros, donos do capital a obra deixa o recado: “Brasil você tem complexo de vira lata, é preconceituoso e escravocrata. Porém existe uma parte da população (povão) que se reunida é a bússola da mudança e da resistência.”

    Uma análise técnica do filme

    A resenha que se segue é só mais uma entre tantas outras mas nunca é demais discutir sobre a arte, particularmente quando ela conversa de forma tão íntima com o nosso cotidiano.

    Bacurau, 9 tema da nossa crítica, é sem dúvida o filme nacional mais comentado do ano. Com certeza a conjuntura política corrobora para isso. É sabido de todos o contingenciamento de recursos destinados à arte no país e particularmente ao cinema.

    A Ancine sofre ameaças e há quem diga que o longa Mariguela tem sofrido boicote do governo que atrasou o repasse de fundos para o seu custeio. Por tudo isso e por sua qualidade técnica vale a pena uma nota sobre a obra de Kleber Mendonça e Juliano Dornelles.

    Tamanha foi a apreensão que antecedeu a chegada do filme que muitas das impressões sobre ele são opostas e conflitantes. A despeito disso a aprovação supera em muito a rejeição entre o público e os especialistas.

    Chama a atenção, nos primeiros créditos, a alternância musical de um tema de suspense inspirado, como tantos outros, em Hitchcock, com a música Nao Identificado, de Gal Costa, melodiosa e romântica que de alguma forma confunde o expectador e se liga de forma amorosa com a protagonista Teresa ( Barbara Colen). Por talvez meia hora é impossível à quem assiste prever os momentos futuros e mesmo entender o tema principal do filme. Esse é mais um grande mérito dos diretores, típico das grandes obras. Procurando ainda evitar spoilers na crônica, os antagonistas são apresentados e de novo diretores e roteiristas trabalham para construir uma impressão geral de antipatia em relação aos mesmos.

    A voz que se eleva além do roteiro, como nos longas anteriores “Aquarius” e “O Som ao Redor” , é de resistência e crítica ao contexto político e social em que vivemos. Esta voz é, de forma habilidosa, costurada com o cuidadoso resgate da cultura e do folclore nacionais.

    Muito pode ser dito mas vale ressaltar a interpretação de Sonia Braga e dos demais atores, a maioria deles desconhecidos do grande público. Outro mérito considerável é o cuidadoso trabalho de roteirista e diretores que mantém por muito tempo uma indefinição sobre o desfecho final do filme.

    Flertando com Tarantino e outros mestres mas mantendo uma identidade e assinatura autoral, Bacurau se destaca como um dos melhores filmes do ano do 2019, falando do Brasil e, mais do que isso, sugerindo alguma esperança de futuro que parte da nossa sociedade particular, com seus defeitos mas também virtudes.

    Um material histórico!

  • Bacurau: Distopia-manifesto de um Brasil que resiste

    Bacurau: Distopia-manifesto de um Brasil que resiste

     

    Por Valéria Regina Dallegrave*

    Bacurau é impressionante pela coragem de levar às raias de fato, a violência muitas vezes simbólica contra nordestinos e brasileiros, no cenário nacional e internacional. Considerando a intenção das distopias de ficção científica como de nos alertar sobre futuros possíveis, que podem ser evitados, o filme torna-se muito importante no panorama atual de desvalorização da nossa cultura, em que há, da parte de alguns, completa subserviência aos Estados Unidos, com o representante (ilegítimo) do país imbuído do mais abjeto vira-latismo.

    O filme de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, dois pernambucanos, ousa. Mas não é de hoje que Kleber Mendonça faz isso. O Som ao Redor foi mais sutil quanto à violência, mas já apresentava um gostinho de Bacurau ao mostrar a tensão contínua presente na sociedade, na expectativa da violência. O diretor também não se omitiu, na estréia de Aquarius em Cannes, quando participou, junto com a equipe, da denúncia ao golpe em curso no Brasil.

    Mas voltando a Bacurau, no início acompanhamos Teresa na viagem de retorno à cidade natal, para o funeral de sua avó, Dona Carmelita, falecida aos 94 anos, respeitada como grande matriarca do lugar. A estrada para chegar lá já traz um acidente, com caixões espalhados pela pista. O motorista, visivelmente tenso, não pára, sequer desvia dos caixões. É evidente que algo está muito errado.

    Também é revelado logo que há um “foragido”, com uma recompensa oferecida pela sua cabeça – como em um western -, mas talvez não seja desejável entregá-lo. Precisamos descobrir mais sobre Lunga, e este é um dos pequenos mistérios que são entrelaçados no começo e vão se desvendando no decorrer da trama, assim como a estranha presença de discos voadores no sertão.

    Estranho, aliás, é um bom adjetivo para o filme. No interior empoeirado de Pernambuco, a tecnologia está presente no sinal de wi-fi, em telas e sistemas de som que levam o audiovisual a todos cantos, desde o cortejo fúnebre até o carro de apoio ao Prefeito nem um pouco confiável – representante dos políticos canalhas e mal- intencionados (será que lembra algum em especial?). A ficção árida vai até um ponto de violência absurdo, em que as armas tornam-se elementos importantes para uma explícita cultura da violência e a vida humana deixa de ter valor.

    Ou, talvez seja melhor dizer, especialmente algumas vidas deixam de ter valor. Nos estudos de jornalismo internacional já é evidente que acidentes de avião envolvendo mortes de europeus ou norte-americanos têm maior destaque do que com africanos ou brasileiros. Então, do ponto de vista internacional, será que a vida de um brasileiro vale o mesmo que a de um estadunidense? A resposta dos locais a isso é resistência, é a mesma dada à pergunta irônica “quem nasce em Bacurau é o quê?” “É gente!”

    Estranha é, também, a mala com que Teresa chega, ostensivamente vermelha, conduzida de forma respeitosa e reverente pela coletividade até o interior da casa. Sem dúvida, ela simboliza as “vacinas” que podem salvar algumas vidas…

    Aos poucos vamos conhecendo as diversas tensões que se acumulam. Logo depois de topar com os caixões na estrada, descobrimos que a escassez de água chegou ao ponto limite, em verdadeira guerra. Fica fácil entender o que já é muito bem conhecido no nordeste: o problema não é de seca, mas de cerca.

    Dos estímulos químicos para suportar tal realidade, dois se colocam em oposição (seriam as pílulas vermelha ou azul de matrix?). Há os remédios tarja preta, que acompanham os mantimentos deixados pelo Prefeito Tony Jr e, segundo a médica (Sônia Braga, em personagem que deve ter sido criada especialmente para ela), são distribuídos no país inteiro. Ela alerta que a medicação deixa as pessoas lesadas (aí está uma boa explicação para o estado de coisas no país). Mas há também uma pílula “psicotrópica”, usada entre os moradores como espécie de hóstia, que parece mesmo uma pílula do mato… 

    Entre as diversas referências que podemos encontrar em Bacurau estão westerns, filmes de terror e, entre os cineastas,vale citar Tarantino e talvez Glauber Rocha. Mad Max é facilmente evocado como distopia do futuro árida e violenta. E, por que não, Clube da Luta, com indivíduos que perderam a capacidade de sensibilizar-se no cotidiano e precisam de estímulos mais e mais violentos para sentir prazer…O cangaço está presente como memória e fonte de coragem. A ameaça da cidade ser riscada do mapa – como foi Canudos- exige um reforço especial. Lunga – Silvero Pereira, impressionante no papel -, surge como um Lampião saído dos infernos para lutar ao lado dos habitantes da cidadezinha, e não posso deixar de comentar que sua citação a Che Guevara é, sim, uma homenagem, um tanto sui generis…

    A nudez aparece ocasionalmente, com diversas funções. Como forma de demonstrar a objetificação do corpo ou com a naturalidade do despertar de um casal. Ela é, de fato, inerente à brasilidade, com o carnaval a tranformando em valor cultural (no bom e no mau sentido). No filme, o mais interessante é que a apropriação desta nudez pode trazer até a uma releitura da suposta vulnerabilidade associada a ela…

    Por fim, é preciso destacar dois momentos em que a cultura aparece como legítima arma contra os invasores: na cantoria irônica do repentista e na importância do museu. Aliás, vocês precisam conhecer o museu de Bacurau!

    A única ressalva que julgo necessário fazer, como gaúcha nordestina que sou, residente no Ceará há mais de dez anos, é sobre a forma estereotipada e negativa com que os brasileiros do sul (ou Sudeste?) foram retratados. Se houvesse ao menos outra personagem declaradamente da mesma origem ao lado do povo do vilarejo, para funcionar como contraponto, a caracterização teria sido relativizada. Portanto, ao sair do filme é preciso lembrar que nem todo sulista é subserviente aos EUA , e nem todo nordestino valoriza conscientemente a sua, a nossa cultura.

    O filme já ganhou o Prêmio do Júri no Festival de Cannes, de Melhor Filme na principal mostra de cinema de Munique, na Alemanha, e três prêmios importantes no Festival de Cine de Lima, no Peru (Melhor Filme, Melhor Direção e Prêmio da Crítica Internacional). Além disso, está tendo boa audiência nacional, arrecadou 1,5 milhão em bilheteria no final de semana de estréia…

    No final, letreiros ressaltam que a cultura, além de ser a identidade de um país, também é uma indústria, e merece respeito, com a informação de que a realização e distribuição do longa gerou mais de 800 empregos diretos e indiretos. A valorização da cultura transborda para fora do filme…

    E, para quem leu até aqui, a recomendação é que todos que têm interesse em conhecer uma história de RESISTÊNCIA inspiradora assistam o filme, e logo! Não devemos esperar do desgoverno atual atitudes compatíveis com uma democracia plena. Bacurau não é apenas um filme, mas um manifesto…

    Encerro com a linda letra de Réquiem para Matraga, de Geraldo Vandré, uma surpresa na trilha do filme:

    “Vim aqui só pra dizer

    Ninguém há de me calar

    Se alguém tem que morrer,

    Que seja pra melhorar.

    Tanta vida pra viver,

    Tanta vida a se acabar,

    Com tanto pra se fazer,

    Tanto pra se salvar…

    Você que não me entendeu,

    Não perde por esperar…”

    (*) Escritora e roteirista gaúcha radicada no Ceará