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  • Homenagem a José Marques de Melo, o Guerreiro Midiático

    Homenagem a José Marques de Melo, o Guerreiro Midiático

    José Marques de Melo, jornalista e pesquisador alagoano autor de dezenas de livros sobre jornalismo, faleceu hoje em sua casa, em São Paulo, aos 75 anos. Primeiro Doutor em Ciências da Comunicação por uma universidade brasileira, criador do Centro de Pesquisas da Comunicação Social da Faculdade de Jornalismo Cásper Líbero (a mais antiga do Brasil) e fundador da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo – ECA/USP, onde lecionou e foi diretor por vários anos, também foi idealizador e co-fundador da Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação – Intercom. No texto abaixo, seu amigo e também professor de jornalismo na Universidade Federal de Mato Grosso – UFMT, Paulo da Rocha Dias, faz uma homenagem poética ao homem que formou gerações de jornalistas brasileiros e inspirou tantos outros no exterior.

    Zé Marques, querido

    Como se explica o teu último almoço? Foi mesmo um ato final de despedida? Ah, foi o mal de Parkinson. Não… Um infarto fulminante. Zé Marques desanimou em questão de minutos. Isso foi hoje pela tarde. Depois do almoço.

    Imaginar-te desanimado, isto é, sem alma, traz à minha memória a tua maior exuberância, a tua alegria de homem bem disposto, animado e otimista. No campo dos estudos de comunicação, eras o mais conhecido pesquisador brasileiro. Aqui dentro e lá fora. Na existência, uma alma nordestina. Um coração brasileiro. Uma perspectiva mundial.

    Teria esse almoço se transformado numa cerimônia pungente e absurda? Sabia de teus sofrimentos e andava satisfeito com a certeza que me dera inda há pouco o Marcelo Marques de Melo de que a cada dia os superavas a todos. Ao receber a notícia do teu encontro com a dona da casa, senti-me aturdido e inconformado, sem saber se duvidava.

    Tu sempre foste um pai para mim. E, tenho certeza, tenho tantos irmãos que não os posso contar. Além do fato material, não tenho, Zé Marques, nenhuma razão para crer que morreste e acho que no fundo insondável estás vivo como é razoável e justo. Cobre-me a neblina e nada de bom consigo vislumbrar através do seu véu. Parece que estou boiando dentro de um pesadelo. Que esse pesadelo é a vida, que tudo é real. Irreconhecivelmente real. Não há dúvida que tu morreste.

    Agora que já não te encontras mais entre nós, é fácil dizer que o teu destino era justamente esta existência caracteristicamente sequente, ligada e contínua que tanto bem fez àqueles que despontavam em tuas mãos para sondar as coisas, investigar, pesquisar, ensinar. Uma existência que sucedeu de êxito em êxito, trabalhando e vencendo, plantando e colhendo, espalhando sementes e ajuntando frutos. E hoje, a noite do tempo te recebe fatigado nos seus braços.

    A tua falta traz à minha memória teus diversos setores de atividade. Na pesquisa em Comunicação e Jornalismo, eras a força polarizadora dos nossos interesses comuns. Devemos-te o congraçamento desta tribo inquieta e belicosa que é a dos jornalistas e dos pesquisadores do fenômeno jornalístico, quase todos guiados por tua mão. Os teus esforços, a tua admirável pertinácia, a tua presença, a tua cultura infinda haviam estabelecido entre todos uma harmonia que receamos agora não saber conservar.

    Guardaremos, Zé Marques, a tua memória como a de um homem de boa vontade e de bom coração. Continuarás por certo a ser na eternidade esta mesma criatura generosa e acolhedora. Veremos se assim é oportunamente, pois todos temos intenção de acompanhar-te. Podes ir preparando um congresso amistoso como aqueles que aqui preparavas. Todos nós, teus amigos, compareceremos. Uns antes, outros depois, alguns com atraso, mas todos estarão, um dia, de novo, reunidos contigo. Adeus, Zé Marques.

     

    PS: Se quiser conhecer melhor a vida e a obra do professor Marques de Melo, baixe aqui a segunda edição do livro Guerreiro Midiático, de seu biógrafo Sérgio Mattos, lançado em 2014 pela editora eLivros da Intercom.

  • Jornal Nacional (sempre ele) manipula contra os movimentos de moradia

    Jornal Nacional (sempre ele) manipula contra os movimentos de moradia

    O Jornal Nacional de segunda-feira (14/5), dedicou um minuto e onze segundos à morte de 58 palestinos num protesto contra o reconhecimento americano de Jerusalém como capital de Israel. A entrevista ao vivo com o técnico da seleção brasileira Tite durou onze minutos e oito segundos. A desproporção já permitiria inferir a escala de valores ($$$) da Globo. Mas tem mais. Logo depois da abertura do telejornal, como se grande furo fosse, a apresentadora Renata Vasconcellos disse: “O Jornal Nacional teve acesso a conversas gravadas em que a coordenadora de um prédio invadido no centro de São Paulo cobrou dinheiro dos moradores, e com ameaças.

    Os flagelados do incêndio e desabamento do edifício Wilton Paes de Almeida ainda jazem ao relento na praça da Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, ao pé de uma escultura dramática, que mostra uma mulher negra, seminua, oferecendo o peito farto de leite ao bebê branco. Os cadáveres dos gêmeos Wendel e Werner, de apenas 10 anos, negros filhos da auxiliar de limpeza Selma Almeida da Silva, negra também, desaparecida nos escombros, ainda nem foram enterrados, e o Jornal Nacional já se assanha. Em vez de responsabilizar o poder público, que ignorou laudos e mais laudos atestando que o prédio do Largo do Paissandu, no centro de São Paulo, estava condenado, lança-se contra o movimento que luta por moradia. Culpa as vítimas pela sua tragédia.

    O principal telejornal da Globo de Ali Kamel, diretor geral de Jornalismo e Esportes, autor do livro “Não Somos Racistas” (aham, só que não!), promoveu o passe de mágica que fez desaparecer os flagelados, os mortos, os desaparecidos do prédio sinistrado no dia 1º de Maio (não mereceram nenhuma fração de segundo do telejornal). Talvez porque, se continuasse a falar sobre o assunto, teria, inevitavelmente, de mostrar as fotos em que o chefão do edifício que desabou, Ananias Pereira, aparecia, alegre e sorridente, há um ano, ao lado do ex-prefeito e pré-candidato a governador de São Paulo pelo PSDB, João Doria Jr., durante comemoração do aniversário do atual prefeito, Bruno Covas (PSDB), que também posou com ele.

    Ananias Pereira é dirigente do autodenominado Movimento de Luta Social por Moradia (MLSM), responsável por sete ocupações de prédios no centro de São Paulo, uma delas sendo a do prédio que ruiu. Afoito como sempre, o ex-prefeito João Doria Jr., fez-se de esquecido sobre a festa de aniversário de Covas e sentenciou: “O prédio foi invadido e parte desta invasão financiada é ocupada por uma facção criminosa”. Ananias, ressalte-se, foi à festa de Covas como convidado, e não como penetra.

    A fala de Doria visava a esconder as responsabilidades da Prefeitura na tragédia.

    Doria, o gestor das mil e uma fantasias,  precisava mesmo achar um bode expiatório. Documento da Secretaria Municipal de Licenciamento, datado de 26 de janeiro de 2017, gestão Doria, apontava os seguintes problemas no prédio Wilton Paes de Almeida:

    • Ausência de extintores;
    • Sistema de hidrantes inoperante;
    • Ausência de mangueiras;
    • Ausência de luzes de emergências;
    • Ausência de sistema de alarme;
    • Instalações elétricas irregulares: fios sem isolamento adequado e expostos, além da entrada de energia improvisada;
    • Elevadores inoperantes e fechados por tapumes;
    • Ausência de corrimão nas escadas;
    • Instalações do sistema de para-raios não puderam ser avaliadas, porque o acesso estava bloqueado.

    Depois de apontar tantas falhas, o documento concluía: A edificação não reúne condições mínimas de segurança contra incêndio.” Mesmo assim, o poder público não tomou providência alguma para atender as famílias que se encontravam sob risco de tragédia iminente e que de lá não saíram por absoluta falta de opção. Ou alguém acha que é melhor dormir na rua?

    Agora, que há mortos, feridos, desaparecidos, a TV Globo opera para ocultar a responsabilidades do poder público (de Doria principalmente, porque era o prefeito até o dia 06 de abril de 2018, cargo ao qual renunciou para disputar o governo do Estado de São Paulo pelo PSDB). Para isso, lança mão de acusações falsas e infundadas contra movimentos sociais. A primeira e mais surrada acusação é a de que os movimentos por moradia são associados à facção criminosa Primeiro Comando da Capital – foi isso o que fez João Doria. Para dar foros de realidade a essa acusação, o procedimento tem sido denunciar a cobrança de taxas de contribuição nas ocupações. (ninguém explica o que tem a ver uma coisa com a outra, mas serve para lançar um tsunami de suspeitas sobre todos os movimentos de moradia).

    O alvo da denúncia, entretanto, não foi Ananias, o “amigo de Doria e Covas”, que mantinha famílias em situação de extrema vulnerabilidade dentro de um prédio bagunçado, com fios desencapados, sem extintores, sem mangueiras de incêndio, com áreas inteiras inundadas, como atestado pela própria Prefeitura.

    Carmen Silva com as cineastas Eliane Caffé e Daniela Thomas

    Foi Carmen da Silva Ferreira, coordenadora do Movimento dos Sem-Teto do Centro (MSTC), líder da luta por moradia e pela Reforma Urbana na cidade de São Paulo, cérebro das iniciativas mais criativas, inclusivas e inovadoras de requalificação de áreas degradadas da megalópole, e responsável pela conquista da moradia pelos sem-teto que ocuparam o antigo Hotel Cambridge, localizado no centro de São Paulo. O prédio, agora desocupado, passará por uma reforma e será então entregue aos pobres que lutaram por ele. A experiência foi tão bem-sucedida que se tornou base do roteiro do premiado filme “Era o Hotel Cambridge“, da diretora Eliane Caffé (2016).

    A trajetória do Hotel Cambridge é exemplar das forças mais terríveis e das mais generosas que atuam sobre o espaço urbano. Fincado em prédio de estilo modernista na avenida Nove de Julho, o Hotel Cambridge foi inaugurado em 1951. Era famoso pelo bar elegante com poltronas vermelhas, onde se apresentou, em 1959, o músico Nat King Cole, quando ele veio ao Brasil. “Stardust“, a canção que fala sobre os encantos do amor que passou, embalou a noite. Poeira estelar.

    Daqueles brilhos, o Cambridge desabou no buraco negro da decadência tão logo o centro econômico e financeiro da cidade deslocou-se para a região da avenida Paulista e, depois, para a Faria Lima e Berrini. Hotéis com nomes chiques e estrangeiros, como o próprio Cambridge, o Othon Palace, o Hilton, o Paris e o Cad’oro, entre outros, viveram em agonia, até o apagar definitivo das suas luzes.

    Carmen da Silva Ferreira, 58 anos, foi quem reacendeu as luzes do prédio de 17 andares e 120 apartamentos. Em vez dos engravatados de antes, ela capitaneou um exército de pobres miseráveis, gente que não tinha nem sequer um teto pra dormir em paz… e eles ocuparam o Hotel Cambridge, então tomado por ratos, baratas, escorpiões, lixo, entulho. Toneladas de dejetos foram retirados dos andares.

    Detalhe: As centenas de edifícios abandonados do centro da cidade são como tumbas de histórias e recordações. Como tumbas, os proprietários lacram-lhes portas e janelas com tijolos e cimento. É para evitar a invasão de animais ou de quem queira questionar a posse do imóvel — o prédio sufoca sem ar e nem luz.

    Felizmente, não é nada que algumas marretadas não resolvam.

    Jornalistas Livres acompanham desde abril de 2015 algumas ocupações coordenadas por Carmen, desde os seus instantes iniciais. Trata-se de uma mulher forte, dotada de determinação e coragem ímpares. É ela que está no centro de uma possante organização que restaura vidas, acolhe os derrotados da cidade, os idosos, as mulheres espancadas, as pessoas que perderam tudo e as que sempre ganharam muito pouco ou quase nada (os trabalhadores informais, os camelôs, cuidadores de enfermos, faxineiros, garis, pedreiros, eletricistas, operários da construção civil, balconistas, cozinheiros, seguranças, operadores de telemarketing, artesãos, auxiliares de enfermagem, protéticos etc. etc. etc.). Carmen gosta de dizer que as pessoas vão ao movimento em busca de direitos (o direito à moradia está impresso na Constituição de 1988), e aprendem que direitos vêm junto com deveres.

    Vida cármica

    Baiana, mãe de oito filhos, Carmen nasceu na Cidade Baixa de Salvador, filha de empregada doméstica e de militar. Foi o pai que a criou e é indelével a marca deixada pela disciplina da caserna no espírito da mulher. Os prédios sob coordenação dela rebrilham de limpeza, fruto de mutirões bem-organizados. Não se consomem drogas, respeita-se o horário de descanso, funcionam projetos profissionalizantes, crianças não podem ser deixadas sozinhas nos apartamentos, homem não bate em mulher nem com uma flor. E por aí vai.

    Tudo isso é fruto de uma sólida hierarquia, resultante de assembléias e reuniões com quórum e representatividade de mais de 80% dos moradores. Começa pelos coordenadores de andares, que atuam como mediadores de conflitos, pelos líderes de projetos comunitários, passa pela Linha de Frente (os fiéis escudeiros da ocupação), e chega até a liderança incontestável de Carmen –a Dona Carmen, como é respeitosamente chamada. Depois das 22h, é tudo silêncio.

    Carmen Silva fala com moradores

    Neste caso, trata-se de autoridade conquistada. Carmen casou-se aos 17 anos e conheceu a violência doméstica, espancada que era pelo marido truculento e cheio de ciúmes. Com 16 anos de união, 8 filhos, ela jogou tudo para o ar e fugiu para São Paulo. Sem teto, conheceu a dura rotina e a solidariedade das ruas. Morou em albergues, um administrado pela Igreja Universal do Reino de Deus, e outro, público, sob o viaduto Pedroso, que atravessa a avenida 23 de Maio, no centro da cidade.

    Rotina dura. No albergue, um humano é só corpo que precisa de pouso e banho. Tem de sair tão logo o dia nasce. E voltar assim que a noite cai, senão não entra. Carmen lembra-se de passar horas e horas, esperando o tempo passar, dentro do templo da Universal na avenida Brigadeiro Luis Antonio. Andou muito, conheceu todas as entidades que serviam comida, em busca de emprego, as quebradas. Virou cozinheira, mas achou pouco…

    A rua é cruel e louca. Ela resistiu ao desespero porque seu único objetivo era trazer todos os filhos para viver sob suas asas (conseguiu). Já viu muita gente forte desabar ante o peso da própria dor.

    Carmen iniciou-se no movimento dos sem-teto quando morou, por seis anos, num antigo prédio do INSS, na avenida Nove de Julho. De lá para cá, participou de dezenas de ocupações. Hoje, é uma profunda conhecedora da cidade que escolheu para viver. Quem está devendo IPTUs milionários, quem são os maiores latifundiários urbanos, quantos imóveis possuem, quem são os habitantes tradicionais de cada bairro. É respeitada na Prefeitura, acaba de ser convidada a lecionar em uma grande Escola de Arquitetura. Urbanista prática, discute altivamente com autoridades dos setores público, privado e acadêmico. Recentemente, foi uma das organizadoras de duas rodas de conversa dentro do Ministério Público de São Paulo, com a presença do próprio Procurador-Geral de Justiça do Estado, Gianpaolo Poggio Smanio, sobre políticas públicas voltadas para Moradia Social e Gênero.

    A hora H

    Junta gente de todos os jeitos na hora de ocupar. A velhinha louca que perdeu tudo na jogatina, a jovem crente desempregada, o dependente de drogas, o estudante de medicina que foi expulso de casa porque o pai descobriu que ele é gay, o pastor, a sambista, o poeta, o militante, o refugiado palestino, sírio e congolês, sobreviventes de tragédias humanitárias, os imigrantes bolivianos, haitianos, a prostituta. Um dos grandes insights do movimento de moradia deu a liga entre todos esses espécimes da grande biodiversidade humana que viceja no centro elétrico da metrópole:

    “Somos todos refugiados: os estrangeiros aos quais a própria pátria tornou-se ameaçadora; e os nacionais, aos quais o Brasil dos privilégios virou as costas”, conforme epifania de Carmen.

     

     

     

     

     

    Nem precisa dizer que é difícil alinhar na vida intensamente coletiva da ocupação as pirações individuais de pessoas tão diversas. Mas, avessos aos vitimismos, embora motivos não faltem, os sem-teto cultivam mesmo é a solidariedade. É o que permite a elaboração coletiva de uma poesia lavrada na esperança de dias melhores.

    Movimento de pobres, de pretos, de pardos, a luta pela moradia no centro de São Paulo é intensa na construção de novíssimos quilombos, dirigidos e habitados em sua maioria por mulheres tão fortes quanto delicadas, capazes de enfrentar as maiores violências enquanto cuidam dos mais fracos e desamparados. É preciso entendê-las, porque elas resgatam para a cidadania aqueles a quem o poder público fecha a cara e os cofres.

    Manipulação escancarada e tombo no Mc Donald’s

    A TV Globo, que nunca simpatizou com as ocupações de imóveis abandonados, feitas por pobres sem teto, não hesitou em invadir um terreno público para instalar seus estúdios de São Paulo, às margens da Marginal Pinheiros. Mas disso, obviamente, os telejornais sob o comando de Ali Kamel não falam. O que lhe importa é operar, com o concurso sempre ativo de promotores inquisitoriais, e com a Polícia Civil, a transmutação da verdade em farsa:

    Uma reportagem do SP2, também da Globo, veiculada no mesmo dia 14 afirmou o seguinte:

    “Depois que o edifício Wilton Paes de Almeida, no Largo do Paissandu, desabou, a Polícia Civil abriu um inquérito para investigar a cobrança das taxas nessas ocupações. Até agora identificou três núcleos que agem de forma parecida em ocupações diferentes: uma comandada por Carmen [da Silva Ferreira], outro por Ednalva Franco e uma terceira, por Ananias Pereira dos Santos, apontado por moradores como coordenador da ocupação do prédio que desabou. A reportagem não conseguiu falar com Ednalva Franco nem com Ananias Pereira.”

    É Fake News em estado puro.

    O repórter Bruno Tavares, autor do texto, sabe que são ocupações distintas, lideradas por pessoas absolutamente diferentes, oriundas de movimentos que mantêm autonomia entre si. Seria o mesmo que dizer que todo o jornalismo do planeta é ruim porque o que o Bruno Tavares faz é um lixo.

    Sim, há diferenças gritantes entre as ocupações.

    Em sua “reportagem”, Bruno Tavares cita investigação do Ministério Público, iniciada em 2016, a partir da denúncia de uma ex-moradora do Hotel Cambridge. Essa moradora disse que já pagava R$ 200 pelas despesas de manutenção do prédio e que estava sendo “vítima de extorsão”, a exemplo dos outros moradores, para desembolsar mais R$ 20, referentes a uma multa por ligação de água clandestina, dividida entre as famílias.

    Apesar do segredo de Justiça em que corre o processo, a Globo “teve acesso” ao processo (claro! de novo, são os tais vazamentos a que a emissora dos Marinho sempre “tem acesso”). Pois deveria ter aproveitado o tal “acesso” privilegiado para informar aos telespectadores que no Cambridge havia 120 famílias, que decidiam coletivamente em assembléias qual o valor das taxas e contribuições que caberiam a cada uma.

    O repórter disse ainda que “ao falar com os promotores, a coordenadora da ocupação não apresentou documentos para comprovar que o dinheiro arrecadado era gasto com a manutenção do prédio.” Engraçado! Em entrevista coletiva no último dia 11, da qual participou uma equipe da Globo News, Carmen apresentou documentos e comprovantes de despesas das ocupações que coordena. Mas isso não interessou ao Jornal Nacional.

    Carmen da Silva Ferreira

    A reportagem mencionou taxas de R$ 200 mensais, e uma taxa extraordinária única de R$ 20, para pagar multa da Sabesp. Vinte Reais. Isso é muito ou é pouco? A reportagem maliciosa não diz. Se fizesse bom jornalismo, Bruno Tavares teria investigado a contabilidade do condomínio. Ou alguém acha o Hotel Cambridge estava “pronto pra morar”, como aqueles apartamentos dos folders e dos anúncios imobiliários que forram as páginas dos jornais impressos?

    Sem água, sem luz (muitos andares tiveram toda a fiação roubada), os encanamentos entupidos ou simplesmente arrancados, sem elevadores, sem extintores ou mangueiras de incêndio, repletos de lixo (só do antigo hotel Cambridge foram retirados 15 mil quilos de entulho!), os prédios dos sem-teto eram sucatas podres antes de serem – aos poucos  - revitalizados pelo movimento social.

    E quem paga por isso? O poder público é que não é. A iniciativa privada é que não é. Muito menos a TV Globo. Então, sobra para os ocupantes, na forma das taxas de contribuição. Aliás, a reportagem de Bruno, se não estivesse atrás de escândalos inexistentes, poderia investigar como as novas tecnologias sociais estão ajudando a baratear os custos de manutenção dos edifícios ocupados. Exemplos? No Hotel Cambridge, os moradores fizeram parceria com a Escola da Cidade e desenvolveram uma horta comunitária para ocupar toda a cobertura com verduras e legumes sem agrotóxicos. Foi da mesma parceria que se originou o lindo e inovador mobiliário que decorava as áreas comuns do prédio — creche, biblioteca e oficinas de costura e maquiagem feitas com material de reciclagem. Dessa parceria também vem a idéia de ressuscitar um antigo poço artesiano abandonado no subsolo do prédio, a fim de utilizar a água para lavagem do chão e descarga das privadas.

    Mas não.

    Em vez da inteligência coletiva do movimento, a reportagem preferiu contemplar, como se verdadeira fosse, a denúncia de uma ex-moradora do Cambridge, apresentada como “testemunha Alfa”, que disse ter sido ameaçada por Carmen. O repórter Bruno Tavares teve acesso inclusive aos vídeos que a tal “testemnha Alfa” gravou com as supostas ameaças. Aliás, esses vídeos também constam no processo que corre em Segredo de Justiça (segredo de Polichinelo…)

    Eis a transcrição das tais ameaças:

    Carmen: A senhora que vai na Sabesp fazer o acordo porque não pagou aqui.
    Alfa: Eu? Tanto dinheiro que você pega dos outros.
    Carmen: O que foi que a senhora falou?
    Alfa: Sai de cima de mim, sai de cima de mim que eu te coloco atrás das grades.
    Carmen: Sem vergonha, caloteira.
    Carmen: A sra. vai sair por bem ou mal. Por bem eu já tomei a providência, agora, se a senhora quiser por mal, vai por mal também.
    Carmen: Contestam porque pagam contribuição. Vocês acham que vão morar de graça na Avenida Nove de Julho?
    Carmen: Daqui a pouco vem a conta de luz aí é outra briga para pagar.

    Leia bem e se quiser veja os vídeos no site da Globo. O que se vê? O que se entende?

    O Cambridge era uma ocupação organizada e legal, reconhecida pela Prefeitura. Pagava a conta de água. Pagava a conta de luz. Como é que se pagava isso? Com a colaboração dos moradores, decidida em assembleia. Quando Carmen afirma que Alfa terá de sair “por bem ou por mal”, refere-se ao cumprimento de decisão da assembleia dos moradores, que não acharam justo pagarem por alguém que queria folgada e graciosamente usufruir a água da Sabesp custeada pelo alheio. Foram os moradores que decidiram pela exclusão de Alfa da ocupação. E caso ela se recusasse a sair, a polícia seria chamada.

    Onde está a ilegalidade? Quem quer que já tenha tido de lidar com condôminos inadimplentes em um prédio de classe média sabe muito bem o que é ter de pagar taxas maiores porque alguns simplesmente se recusam a cumprir suas obrigações com o coletivo.

    É incrível o ministério público se meter numa briga entre vizinhos. É incrível uma briga entre vizinhos ocupar o lugar de uma real investigação sobre as causas do incêndio, desabamento e mortes do edifício Wilton Paes de Almeida. Mas o mais incrível é a TV Globo prestar-se a tal jogo ilusionista, baseando-se na denúncia da “testemunha Alfa”, tristemente famosa na ocupação do Hotel Cambridge por ter tentado – sem sucesso, diga-se – aplicar o golpe do “escorrego” no Mc Donald’s.

    Sim! A mulher que acusa Carmen de cobrança indevida de uma taxa que visava unicamente cobrir as despesas de manutenção do Edifício Cambridge, tentou garfar indenização de 200 salários mínimos (R$ 190.800 em valores atualizados) por um tombo que diz ter sido causado por falta de corrimão em uma loja do Mc Donald’s. Só que o corrimão estava lá! Então, em 25 de junho de 2014, a 5ª Câmara Extraordinária de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, negou o pedido de Alfa.

    É claro que os movimentos de moradia incluem alguns oportunistas e exploradores (categoria de que, aliás, o meio jornalístico está cheio). Isso poderia ser uma boa pauta. Mas a preguiça e a desonestidade levaram a “reportagem” de Bruno Tavares a transformar a pauta em texto final e a suspeita em tese.

    Incrivelmente, a grande mídia que está em busca de culpados de araque esquece-se todo o tempo de mencionar a existência de 290 mil imóveis não-habitados na cidade de São Paulo, segundo levantamento da Secretaria Municipal de Habitação, a partir de dados do Censo de 2010. São imóveis deixados vazios para a especulação. O movimento exige que eles tenham função social. Mas isso não tem importância para os empresários, empreiteiros e especuladores. E nem para os seus serviçais dentro da grande mídia, que não hesitam em jogar no lixo os principais fundamentos do jornalismo para atacar uma das mais generosas e preparadas lideranças do movimento social no Brasil: a mulher negra Carmen da Silva Ferreira.

  • “Está na hora dos jornalistas deixarem as redações”

    “Está na hora dos jornalistas deixarem as redações”

    Há cinquenta anos, um movimento popular, operário e estudantil de denúncia da autoridade e defesa da liberdade de expressão expandiu-se no mundo inteiro. Na França, onde teve ampla repercussão, nasceu o célebre slogan “É proibido proibir”. Era a época das utopias concretas em plena guerra no Vietnã.

    Para comemorar o cinquentenário desse movimento que ainda hoje destaca-se como um dos maiores desde o fim da Segunda Guerra mundial, o consulado da França no Rio de Janeiro promoveu uma série de atividades sobre a censura e a liberdade de expressão. Entre os convidados, o jornalista Edwy Plenel, ex-diretor no jornal Le Monde e fundador, em 2008, de Mediapart, um jornal independente online, participativo e 100% FINANCIADO por cerca de 140 mil assinantes. Na sede da Aliança Francesa do Rio de Janeiro, ele concedeu entrevista à ativista francesa da democratização da mídia e residente no Brasil, Florence Poznanski, para os Jornalistas Livres. Plenel luta por um jornalismo independente capaz de cumprir sua função social e fornecer à sociedade as ferramentas para exercitar plenamente sua cidadania. Um jornalismo que não olhe a sociedade do alto, mas que deixe todas as vozes se expressarem.

    Independentemente das bolhas, dos algoritmos e da nefasta cultura da gratuidade na Internet, ele continua um entusiasta das possibilidades que o sistema digital permite para investigar e produzir a custo baixo informações de alta qualidade que não se encontram na mídia de massa, atrelada aos interesses dos monopólios. Cruzando os olhares entre o Brasil e a Europa, ele faz um rápido balanço sobre o papel da mídia na construção do golpe no Brasil e manda um recado desafiador para os jornalistas brasileiros: “Não está na hora de deixarem suas redações para fundar um jornal verdadeiramente independente? Se não o fizermos, se os jornalistas não mostrarem seu compromisso democrático, se não defenderem seus ideais profissionais, não há razão para o público confiar em nós”. Confira a entrevista:

    Florence Poznanski: O que significa para você, vir ao Brasil nesse período para falar sobre censura?

    Edwy Plenel: A censura hoje se disfarça de liberdade de comércio, liberdade de empreendimento, liberdade de transmitir opiniões. Ela assume a forma de mídia controlada por patrões que defendem seus interesses e se asseguram que as informações que os incomodam não apareçam. Ela está nas redes sociais onde existem algoritmos que trabalham com publicidade e que transforma você em uma mercadoria que, por um lado, utilizam seus dados pessoais e, por outro lado, lhe enviam opiniões apenas e não informações que podem incomodá-la. Eu nunca venho a um país estrangeiro como um doador de lições. Na França, há dez bilionários que controlam a maioria dos meios de comunicação privados. E eles os controlam não para nos impedir de fazer o nosso trabalho, mas para evitar que esses meios perturbem seus interesses e para que não possamos mudar a ordem das coisas. Temos de lutar hoje por um novo ecossistema democrático, podemos chamar isso de revolução, de refundação, de reforma radical, para acompanhar a revolução tecnológica, regular e defender os direitos dos jornalistas, impedir situações de monopólio e fortalecer o ‘direito ao saber’ dos cidadãos. O direito fundamental de saber o que é do interesse público e o que os poderes políticos e
    econômicos escondem.

    “Esses bilionários controlam os meios de comunicação para que não perturbem seus interesses e que não possamos mudar a ordem das coisas”

     

     

     

     

    FP – Aqui no Brasil estamos em uma situação de monopólio que controla mais de 90% dos meios de comunicação. A mídia pública é muito fraca e as iniciativas regulatórias sempre foram reprimidas. Quando falamos de regulação para esses meios, eles chamam isso de censura. Na Argentina, a “ley de médios” foi aprovada e a Clarin está empenhada em acabar com essa lei desde então. Parece-me que na América Latina esses monopólios têm muito mais poder. Você acha que temos as mesmas armas que a Europa para chegarmos lá?

    EP – Nós não podemos ser a favor dos monopólios, devemos necessariamente ter leis anti-concentração. O monopólio é como o fim das espécies vivas, não podemos querer preservar espécies ameaçadas e ser a favor dos monopólios. O monopólio é a morte. “Regulação não é um palavrão. O monopólio é como o fim das espécies vivas, o monopólio é a morte”. Na Europa, temos um mínimo de regulamentação. Não é a lei da selva. Não podemos aceitar que um setor tão importante quanto a informação seja simplesmente o reino dos mais fortes e poderosos. Você precisa de regras. Essas regras devem ser democraticamente discutidas e deliberadas. E o poder estatal não deve se considerar o fiador. Porque existe o risco de que seja usado a serviço do poder político do momento. Essas regras devem ser a favor da independência profissional e da pluralidade do jornalismo, da diversidade das redações. Falar de regulação não é absolutamente um palavrão. Deve-se regular os monopólios privados e também o poder estatal. Na França, temos uma mídia pública paga pelos impostos porque ela é a serviço do bem comum. Mas este serviço público deve ser independente em sua gestão, não pode depender do poder político.

    FP – Aqui, a Empresa Brasil de Comunicação (EBC) foi recentemente transformada em uma agência estatal. Este é um exemplo concreto do que o Estado pode fazer para controlar informações.

    EP – Pois é. Ademais, em relação à mídia privada, disposições que defendam a independência das redações são fundamentais. Os jornalistas não são objetos, bens, propriedades daqueles que possuem esses meios, e os jornalistas precisam lutar pela integridade de seu trabalho.

    FP – Nesse contexto, muitos jornalistas no Brasil estão revoltados com a linha editorial dos meios de comunicação de massa, mas as alternativas do jornalismo independente permanecem frágeis.

    EP – Reconhecer isso é uma coisa. Mas o melhor para os profissionais da informação é mostrar que existe uma alternativa, que ela está na criação de uma mídia independente e de fazê-la funcionar. O Brasil é um país muito grande, muito conectado e existem varias iniciativas na mídia alternativa que estão sendo criadas. Acredito que os profissionais que observam a situação do país, a maneira pela qual o caso jurídico em volta do Lula serve para desacreditar o campo progressista e servir os interesses econômicos dominantes, são perfeitamente capazes de enxergar o que a sociedade precisa saber para reagir. Eu venho de um jornal totalmente digital. E minha mensagem é que é preciso parar de se lamentar, bater a cabeça contra as paredes. Temos que comprovar que existem alternativas, que podemos produzir jornais profissionais independentes que funcionam e não dependem de nenhum poder econômico porque só vivem com o apoio de seus leitores. A experiência de Mediapart é reproduzível em outros lugares. E este é o chamado que faço todas as vezes aos jornalistas que reclamam da mídia tradicional. Eu falo para eles: arrisquem, procurem aproximar-se do público, procurem o apoio dele e vocês verão que isso pode funcionar. É preciso dar-se as condições para fazer um grande jornal digital brasileiro.

    FP – Qual a sua opinião sobre o papel da mídia na construção do golpe no Brasil?

    EP – Eu não tenho conhecimento suficiente para dizer coisas específicas. Vi como todo mundo que durante seus anos de poder o PT não saiu ileso. Existem fatos reais e o jornalismo investigativo comprova isso. Não se pode dizer que são calúnias, há atos e fatos reais que não correspondem aos princípios e ideais do PT. E, ao mesmo tempo, não podemos acreditar na fábula de que seria o maior caso de corrupção da história do Brasil, na medida em que são os próprios corruptos que afirmam isso e que instrumentalizam amplamente o sistema penal. A Justiça deve ser capaz de agir de forma independente e não deve ser usada para solução política.

    Também vi, como todo mundo, a mídia dominante que não dá voz à sociedade, não mostra o que está acontecendo na sociedade. Eles olham de cima para a sociedade. Também existe isso na França, não quero dar lições de fora (nos subúrbios, com os migrantes). Há sempre esse olhar de cima. Na França, por exemplo, os movimentos de solidariedade com os migrantes têm dificuldade em estar presentes nos meios de comunicação de massa. Basta alguns incidentes violentos em uma manifestação para que se fale apenas disso e não da razão da mobilização. Bairros populares são descritos como o inferno, lugares de perigo, enquanto há uma grande vitalidade que sempre passa despercebida.

    “A mídia dominante não dá voz à sociedade, não mostra o que está acontecendo na sociedade. Eles olham de cima para a sociedade”

     

    FP – Você fala da oportunidade do digital para superar os monopólios, mas a Internet é um espaço ainda mais monopolizado do que o sistema de mídia.

    EP – Existem problemas reais sobre a neutralidade digital, um debate para que a Internet não se torne propriedade de operadores privados e para que possamos sempre transmitir nosso conhecimento. O escândalo Facebook/Cambrige Analitica mostrou como a publicidade gratuita é prejudicial à informação e como toda a imprensa é cúmplice disso. Esta publicidade gratuita corrompe a informação livre e valiosa. Nesta arena é preciso lutar, especialmente pela regulação desta arena. Médiapart é totalmente digital e isso é a sua força. Nós usamos as armas democráticas do digital.

    Pegando o contraponto dessa gratuidade publicitaria, eu falo de gratuidade democrática que são nossos programas de TV, que são universidades populares e ajudam na transmissão do conhecimento. E isso não custa muito. Hoje existe o financiamento coletivo, por exemplo, que nós não tínhamos quando criamos o Médiapart. O principal fator que trava o debate público é o reinado das opiniões. E com essas opiniões tudo se torna relativo e não há mais verdade. Nós devemos liderar este debate sobre a verdade. Eu ainda temo esse aspecto da crítica da mídia que só trabalha com críticas políticas. Na minha jornada de 40 anos de jornalismo, tanto sob governos de esquerda quanto de direita, entendi muito bem que não basta acreditar que se pensa politicamente correto para informar a verdade. Você tem que fazer este trabalho de informação e você tem que lutar.

    “O principal fator que trava o debate público é o reinado das opiniões. Em 40 anos de jornalismo, entendi muito bem que não basta acreditar que se pensa politicamente correto para informar a verdade”

    FP – No Brasil, várias iniciativas de mídia digital surgiram nos últimos anos, algumas com orientação ideológica e outras comprometidas com a independência editorial. Mas estudos sobre o comportamento da mídia na sociedade mostram que o nível de confiança na mídia online permanece muito baixo em comparação com a televisão e a imprensa tradicional. Como superar esse dilema diante de um público que muitas vezes prioriza o entretenimento frente ao interesse geral?

    EP – Reconquistar a confiança do público significa defender o valor da informação. Temos que provar que o jornalismo é útil por causa da qualidade, da originalidade e da necessidade de sua informação. E, em contrapartida, devemos convencer o público de que esse trabalho tem um preço, o preço do jornalismo independente a serviço exclusivo do direito de saber dos cidadãos. Em outras palavras, é uma batalha que devemos peitar contra o reino do entretenimento, da opinião e do Ibope. Se não o fizermos, se os  jornalistas não mostrarem seu compromisso democrático, se não defenderem seus ideais profissionais, não há razão para o público confiar em nós.

  • A Globo e sua fábrica de narrativas

    A Globo e sua fábrica de narrativas

    Artigo de Rodrigo Perez Oliveira, professor de Teoria da História da UFBA, com ilustração de Al Margen

    Venho utilizando o termo “fábrica de narrativas” para tratar da atuação da grande imprensa na crise brasileira contemporânea. Talvez este seja um dos aspectos mais importantes da crise: nunca antes na história do Brasil a imprensa foi player tão relevante no jogo político.

    Isso não significa poder absoluto de manipulação. As pessoas não são gado. O público não é rebanho que simplesmente segue a toada da narrativa midiática. É certo que a imprensa hegemônica tenta pautar a opinião pública, conduzir a crise, mas sua eficiência é limitada. É essa tensão entre tentativas e limites o tema deste ensaio.

    Acho mesmo que a imagem da “fábrica” nos ajuda a compreender a atuação dos conglomerados midiáticos na conjuntura da crise. Uma fábrica precisa ser gerenciada, organizada a partir de um centro administrativo comprometido com a realização de um determinado projeto.

    O projeto da grande imprensa brasileira está claro, desde o início da crise: legitimar na opinião pública a agenda desenvolvimentista neoliberal, marcada pelo desmonte do Estado e pela entrega da tutela do desenvolvimento nacional ao controle das forças do mercado.

    Quando falo em “grande imprensa brasileira” estou me referindo, naturalmente, à Rede Globo. Há outros veículos, com suas especificidades. Mas no geral é a Rede Globo quem dá o tom, quem gerencia a fábrica de narrativas.

    Não quero dizer que a Rede Globo, em si, tenha compromisso moral com o neoliberalismo. A Globo não tem moral própria, não tem projeto próprio. A Globo tem clientes.

    Hoje, no Brasil e no mundo, não existe cliente mais valioso que o neoliberalismo, representado pelos grupos que pretendem varrer o Estado de Bem-Estar Social do mapa ocidental.

    Pois sim, leitor e leitora: a crise não é só brasileira.

    O Brasil até pode ser o principal laboratório da ofensiva neoliberal contra o Estado, mas a crise tá longe de ser uma exclusividade nossa.

    O investimento da Rede Globo na defesa da agenda neoliberal é tão intenso que está modificando uma antiga prática da empresa. Antes, o núcleo do entretenimento era relativamente independente do núcleo do jornalismo. As agendas eram diferentes.

    As novelas da Globo, por exemplo, contribuíram bastante para a ampliação dos direitos civis no Brasil, especialmente no que se refere aos direitos de mulheres, de pretos e pretas e da comunidade LGBT. Ou seja, se o departamento de jornalismo da emissora é historicamente conservador e alinhado com as agendas econômicas e políticas do grande capital, o departamento de entretenimento sempre foi relativamente progressista.

    Não que exista propriamente uma contradição entre os interesses políticos e econômicos do grande capital e os valores progressistas ligados ao plano do comportamento e comprometidos com o princípio da “liberdade do corpo”. Cada vez mais, o capitalismo busca a leveza e o distensionamento das relações sociais, o que sugere a superação de opressões que restringem mercados e atrapalham os negócios, como é o caso do machismo, da homofobia e do racismo. Mas não é desse capitalismo leve que quero falar, não aqui, não agora.

    Quero mostrar como o núcleo do jornalismo vem, cada vez mais, utilizando o núcleo do entretenimento para defender as reformas neoliberais que estão desmontando o Estado brasileiro.

    Acontece que o projeto defendido pela fábrica de narrativas tem um grande adversário: o imaginário da população brasileira, que é atravessado pela ideia de que cabe ao Estado prover direitos sociais e tutelar o desenvolvimento nacional.

    Temos, então, a seguinte situação: de um lado está o projeto neoliberal, que apesar de ter tomado de assalto o Poder Executivo e partes consideráveis do Poder Legislativo e do Sistema de Justiça, não conta com o apoio da maioria da população. Do outro lado, o imaginário popular, que depositando suas expectativas de direitos sociais no Estado, resiste à ofensiva neoliberal.

    O Partido dos Trabalhadores ainda é predileto dos brasileiros. Se for candidato, Lula será eleito, talvez no primeiro turno. Chamo isso de resistência.

    A defesa da Rede Globo das reformas neoliberais propostas pelo governo de Michel Temer é um bom termômetro para medirmos a real capacidade da mídia hegemônica em pautar a opinião pública. Muitas vezes, essa capacidade é superestimada.

    Até aqui, foram três as principais reformas: A PEC 241, (também conhecida como a “PEC dos gastos”), a Reforma Trabalhista e a Reforma da Previdência.

    Nos três casos, a Rede Globo mobilizou toda a sua estrutura, incluindo o núcleo do entretenimento, para manipular a opinião pública e garantir apoio popular à agenda reformista. Os programas da grade matutina mostram claramente esse esforço.

    Por partes, um passo de cada vez:

    • A PEC 241

    Entre agosto e dezembro de 2016, nos dias e meses seguintes ao golpe parlamentar que derrubou Dilma Rousseff, o governo de Michel Temer vivia o apogeu de sua vitalidade política. Temer não foi eleito pela opinião pública. Temer foi eleito pelo Congresso Nacional. Por isso, seu governo nasce marcado pela combinação entre a rejeição popular e o apoio parlamentar. Michel Temer entendeu perfeitamente que o Congresso era tudo que tinha.

    A PEC dos gastos foi a primeira grande agenda política de Michel Temer e representa uma mudança nos fundamentos conceituais do Estado brasileiro. Trata-se da restrição do poder de investimento do Estado, ou seja, o Estado deixa de ser soberano para planejar políticas públicas e cumprir seu papel civilizatório. Com a aprovação da PEC, a ação do Estado passa a estar subordinada ao crescimento econômico, ao mercado.

    Na prática, a PEC criminaliza os movimentos anticíclicos do Estado. Ou em outras palavras: em momentos de recessão, de crise, o Estado não tem mais instrumentos legais para contrariar a crise, para fomentar desenvolvimento. O poder, portanto, está no mercado e não no Estado.

    A PEC 241 significa uma ofensiva contra o principal fundamento do imaginário político do Brasil moderno, que desde os anos 1930 define o Estado como o centro de planejamento do desenvolvimento nacional. Até aqui, esse imaginário não tinha sido contrariado, nem pelos militares, nem pelos tucanos.

    Nem os militares, nem os governos de Fernando Henrique Cardoso, chegaram tão longe quanto Michel Temer.

    Uma mudança desse tamanho precisa cortejar a opinião pública. Não que o apoio popular seja imprescindível para a aprovação do projeto, já que a PEC foi aprovada no Congresso e sancionada pelo Palácio do Planalto sem nenhum tipo de consulta.

    Mas todos sabemos que não existe golpe que dure pra sempre. Em algum momento, teremos eleições no Brasil e a manutenção da obra do golpe depende do apoio popular. Não se faz política apenas no palácio. Em algum momento, as ruas serão chamadas, serão ouvidas.

    Nas semanas que envolveram a tramitação da PEC 241, o programa de “Bem Estar” apresentou uma série de matérias que tematizaram a “saúde financeira das famílias”. A mensagem era clara: se uma família não pode gastar mais do que ganha, o Estado também não pode.

    A narrativa midiática implodiu as diferenças que distinguem a família do Estado. A família, núcleo social privado sem nenhum compromisso com o bem comum, se tornou equivalente ao Estado, organização institucional responsável pela manutenção do marco civilizatório.

    É como se ao limitar a capacidade de investimento do Estado, o golpe neoliberal estivesse agindo como um pai zeloso que cuida das finanças da família.

     

    • A Reforma Trabalhista

    A reforma trabalhista também violentou outro fundamento do imaginário político brasileiro: a vinculação entre cidadania e o trabalho formal.

    Durante décadas, o trabalhador formal, com carteira assinada, foi definido como o modelo ideal de cidadão. Esse princípio alimentou práticas de violência contra grupos que por estarem excluídos do trabalho formal eram tratados como “vadios” pelas forças policiais do Estado.

    Teve perseguição ao samba, às religiões de matriz africana. Perseguição aos pobres em geral. Mas a ideia do trabalho formal como exercício de cidadania se consolidou no imaginário político brasileiro.

    A reforma trabalhista, ao “flexibilizar” as leis trabalhistas, atacou o trabalho formal, violentou a cidadania, tal como ela é pensada no Brasil há mais de 70 anos. Temos aqui assunto muito sério e o golpe neoliberal sabe disso. A fábrica de narrativas sabe disso.

    A Reforma Trabalhista tramitou entre maio e julho de 2017. Nesse período, o programa “Encontro com Fátima Bernardes” investiu no culto ao empreendedorismo, trazendo à cena, prioritariamente, empreendedoras mulheres, periféricas e negras. A fábrica sabe o que faz.

    A direção da fábrica sabe que o empoderamento de mulheres, negras e periféricas é uma agenda social relevante. O empreendedorismo dessas mulheres foi tratado como uma estratégia de empoderamento, de libertação.

    Libertação de quem? De qual algoz?

    O patrão, personificando o trabalho formal, foi pintado como o algoz.

    “Quando trabalhava de carteira assinada, eu não tinha tempo nem pra levar minha filha ao médico”, disse a empreendedora em reportagem exibida no horário nobre da programação matutina da principal emissora de TV do Brasil.

    O trabalho formal, nesse sentido, deixa de ser representado como fundamento da cidadania para se tornar uma experiência de opressão.

    E a libertação? Se daria pela rebelião dos trabalhadores? Pela divisão dos lucros? Por relações de trabalho mais humanas?

    É claro que não!

    A libertação é individual, no melhor estilo liberal, e se dá pela abolição do trabalho formal.

    Cada um que seja livre para resolver seus problemas. Livre para levar a filha ao médico na hora que bem entender. Livre para ficar sem assistência social em situação de doença. Livre para não receber 13° salário. Livre para ser demitido sem nenhum tipo de garantia;

    Liberdade é uma palavrinha safada e perigosa. Inspira cuidados.

    • A Reforma da Previdência

    É aqui que podemos observar claramente os limites da manipulação. A Reforma da Previdência é a menina dos olhos do golpe neoliberal. É a única reforma que não foi aprovada.

    Por que?

    Porque a opinião pública está resistindo, não está se deixando manipular. Aposentadoria, INSS, é coisa sagrada para os brasileiros e brasileiras. No ano de eleição, nenhum deputado quis colocar sua assinatura em projeto tão polêmico.

    De fato, a Reforma da Previdência subiu no telhado, foi derrotada. Mas não dá pra dizer que faltou empenho da fábrica de narrativas. A Rede Globo tentou, em todos os lugares, em todos os programas da sua grade, convencer os brasileiras e brasileiras de que é bom trabalhar na terceira idade.

    O Programa da Ana Maria Braga, o programa da Fátima Bernardes, o “Bem Estar”, todos eles passaram os últimos meses de 2017 e os primeiros meses de 2018 defendendo a Reforma da Previdência. Eram velhos e velhas por toda parte. Atrizes e atores idosos cozinhando com a Ana Maria Braga, fazendo exercícios físicos no “Bem Estar”, contando para a Fátima Bernardes como suas vidas sexuais são ativas.

    Não basta o esforço do núcleo de jornalismo. Para passar a Reforma da Previdência não dá pra contar apenas com a Miriam Leitão. Só o economês não é suficiente. Carece de usar toda a estrutura da fábrica.

    A fábrica tentou fazer sua parte.

    A fábrica tentou convencer os brasileiros e brasileiros que acordam às 6 de manhã, que enfrentam duas horas de transporte público, que trabalham até às 17 e voltam pra casa, depois de mais duas horas sacolejando nos trens, ônibus e metrôs, que na velhice eles serão tão saudáveis e ativos como Lima Duarte, Fernanda Montenegro e Natália Grimberg.

    O povo não é burro. De burro, o povo não tem nada.

    Os esforços foram intensos. A fábrica trabalhou bastante. Mas não teve êxito. Todas as pesquisas mostravam que a opinião pública não apoiava a reforma da previdência. Aí, o governo golpista tentou uma saída honrosa, inventando uma intervenção federal na segurança pública do Rio de Janeiro.

    Enfim, o que quis dizer neste ensaio é algo relativamente simples, que pode ser facilmente observador por qualquer um com olhar mais atento para a realidade da crise: a grande imprensa brasileira, a fábrica de narrativa do golpe neoliberal, tenta manipular a opinião pública.

    Tenta, mas não consegue, ou pelo menos não consegue como gostaria. Mas a fábrica é insistente e continua tentando em cada um dos seus produtos, até mesmo naqueles programas bonitinhos, aparentemente despretensiosos e inocentes. Não existe inocência na fábrica.

    A fábrica apostou todas as suas fichas no golpe. Não dá pra voltar atrás.

    Os motores da fábrica estão girando até mesmo quando uma petista, mulher, negra e periférica é laureada campeã de reality show. Pra ser eficiente, a manipulação precisa estar camuflada. A fábrica precisa ser vista como uma empresa de comunicação democrática e aberta a todas as opiniões políticas.

    Tão achando que é paranoia, né? Tão achando que é viagem? Que é teoria da conspiração?

    Ah leitor, ah leitora.. não sejam ingênuos.

    Não existe golpe de Estado sem conspiração. E para que aconteça uma conspiração, para que aconteça um golpe, basta apenas que pessoas muito poderosas estejam dispostas a conspirar.

     

  • Três anos de lutas! VIVA O POVO BRASILEIRO!

    Três anos de lutas! VIVA O POVO BRASILEIRO!

    Em março de 2015, o Brasil navegava em mares turbulentos… As ameaças da direita fascista rugiam em multidões de patos amarelos e monstruosos, desfilando sob os auspícios da mídia golpista. Foi então que construímos os Jornalistas Livres, como uma ferramenta de expressão para o povo que luta pela Democracia e por Direitos.

    Todos juntos e misturados. Outubro de 2017

    Muitos quilolitros de gás lacrimogêneo foram aspirados de lá para cá, muita corrida foi disputada com as bombas de efeito moral das PMs de todo o Brasil, muita conversa, muito amor, muitas lágrimas foram derramadas. E muitas gargalhadas.
    Sem vínculo algum com partidos políticos, sindicatos, governos, mantivemos nossa independência e apartidarismo. Mas sempre ao lado dos explorados e oprimidos.
    Os Jornalistas Livres completam hoje três anos de luta para oferecer à História um ponto de vista diferente daquele da mídia corporativa, enfeudada à herança escravagista do Brasil.

    Queremos agradecer a todos os companheiros de viagem, aos que em algum momento ajudaram na construção dessa mídia livre. Queremos agradecer aos nossos amigos e parceiros, a todos os que curtem, comentam e compartilham nossas publicações. E queremos louvar todos os lutadores sociais, estejam eles nas ocupações de sem-tetos, nas favelas, nas universidades, nas escolas, nos cárceres, nos modernos hospícios em que se internam à força os desajustados e os dependentes de álcool e drogas, nas aldeias e quilombos. Queremos louvar as mulheres, a comunidade LGBTTT, os indígenas, os negros, os pobres e oprimidos que fazem de sua própria sobrevivência um ato de luta e Resistência.

    Quando o país mergulha nas trevas, o sorriso dessas pessoas nos dá a certeza de que é preciso continuar a Luta e a Resistir contra o golpe de cada dia. Parabéns pra todos!

     

    Veja aqui nossos princípios: https://jornalistaslivres.org/quem-somos/

     

  • “A Sós”: Só um grande jornalista poderia fazer um documentário como este

    “A Sós”: Só um grande jornalista poderia fazer um documentário como este

     

    Vinicius Lima é um jornalista recém-formado pela PUC-SP. Há anos ele trabalha no projeto SP invisível, um movimento que conta histórias  de moradores de rua e de pessoas que vivem ou trabalham nas ruas de São Paulo. Veja a página aqui.

    A experiência serviu para apurar o olhar do jovem repórter. Ali, onde as pessoas genericamente vêem “mendigos”, “vagabundos”, “vítimas do sistema”, “craqueiros”, “coitados”, dependendo de onde o observador esteja no espectro político, Vinicius encontra histórias de vida, alegrias, tristezas, amores, escolhas, os porquês de estarem onde estão e fazendo o que fazem.

    Vinicius vai muito além dos estereótipos porque sabe que eles servem apenas para reforçar as barreiras da invisibilidade e, por que não?, justificar nossa insensibilidade diante da dor e do sofrimento do “Outro” —ele não é um ser como nós, dotado de sentidos como os nossos.

    Já foi moda no jornalismo o repórter se fantasiar de morador de rua, de imigrante turco na riquíssima Alemanha, de miserável no Império Americano. Maquiagem, roupas esfarrapadas, sotaque fajuto, tudo para “vivenciar na própria pele” o que o Outro sentiria na condição de marginalizado e excluído.

    Caô total. Verdadeiro estelionato.

    Primeiro, porque esse método de investigação jornalística cassa a palavra de quem já tem a palavra, quando não a própria existência, negada. Quem fala é o repórter fantasiado.

    Depois, porque nunca, nem com todos os artifícios, reproduz-se a singularidade das histórias de vida de quem acabou indo morar nas ruas. O máximo que se consegue é reverberar os preconceitos e clichês de quem se arvora a intérprete do “marginalizado e excluído”.

    Bem mais difícil foi o percurso investigativo escolhido por Vinicius para falar do amor que acontece nas ruas, pela voz dos próprios amantes. Porque pressupôs um trabalho delicado de prospecção e seleção dos cases apresentados. E porque exigiu o estabelecimento de uma profunda relação de confiança entre entrevistador e entrevistado, algo sempre difícil de obter no território inóspito das calçadas.

    Emocionante, delicado, veraz. Tudo isso poderia ser dito deste documentário, produzido como trabalho de conclusão de curso, sob orientação do professor Marcos Cripa, do jornalismo da PUC-SP. Prefiro dizer que é um pungente resgate jornalístico. Torna visível o que foi invisibilizado por camadas e mais camadas de estereótipos. Dá voz a quem sempre foi calado. Preenche com alma e amor os corpos desumanizados pelo preconceito.

    Você não olhará mais para um morador de rua como olhava antes. É para isso que serve o Jornalismo, afinal! Assista agora: