DESDE QUE O INTERCEPT começou a publicar a série de reportagens demonstrando conduta irregular da força-tarefa da Lava Jato e do então juiz – agora ministro – Sergio Moro, os defensores da operação vêm adotando uma postura de criminalização do jornalismo, tendo o próprio ministro se referido ao Intercept como “site aliado a hackers criminosos”.
Essa tentativa de nos colar a criminosos foi denunciada por diversos grupos de defesa da liberdade de imprensa – como o Comitê para a Proteção dos Jornalistas, Repórteres sem Fronteiras e a Abraji –, que emitiram comunicados condenando a estratégia de Moro e das autoridades brasileiras de usar intimidação e ameaças para impedir a realização de nosso trabalho jornalístico.
Hoje, nós decidimos publicar na nossa newsletter alguns trechos inéditos do arquivo da #VazaJato para mostrar como, antes de serem alvos de vazamentos, os procuradores da força-tarefa enfatizavam – em chats privados com seus colegas – que jornalistas têm o direito de publicar materiais obtidos por vias ilegais, e que a publicação desses materiais fortalece a democracia.
Deltan Dallagnol, nominalmente o coordenador da força-tarefa, era com frequência o maior entusiasta dessas garantias. O apreço de Deltan pela liberdade de imprensa se deve, possivelmente, ao fato de que a Lava Jato se valeu, por anos, de vazamentos de trechos de delações premiadas e outros materiais confidenciais contidos nos autos das investigações como ferramenta de pressão contra políticos e empresários alvos da força-tarefa.
Vejam essa conversa revelada agora pelo TIB: em novembro de 2015, num chat chamado PF-MPF Lava Jato 2, enquanto discutiam medidas para coibir vazamentos de informações da força-tarefa (“alguns vazamentos tem sido muito prejudiciais”), Deltan alertou seus colegas que utilizar o poder processual para investigar jornalistas que tenham publicado material vazado não seria apenas difícil mas “praticamente impossível”, porque “jornalista que vaza não comete crime”.
Deltan estava certo. A decisão judicial da 2ª Turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região diz claramente: “o jornalista que divulga trechos de investigação policial que corre em sigilo não comete nenhum crime.” A decisão diz ainda que “Não se trata, por certo, de pretender punir a pena e a boca que, no exercício de nobre profissão, revelam, mas a mão de quem, detentor de dever de preservação do sigilo de informações, a usa para reduzir a nada a autoridade da decisão judicial e as garantias constitucionais.” Ou seja: cometem crime os funcionários públicos que vazam informações que deveriam eles mesmos proteger – policiais, procuradores, juízes… – e não os jornalistas que as publicam.
Há cerca de um ano, em maio de 2018, Deltan e seu time redigiram e publicaram um manifesto em defesa das virtudes da liberdade de expressão – elaborado para proteger um dos procuradores. Ele estava sendo ameaçado de punição por ter publicado um artigo com duras críticas à Justiça Eleitoral. Os procuradores criaram um grupo de chat no Telegram – até agora inédito – chamado Liberdade de expressão CF. Durante a redação do manifesto, Deltan ressaltou um ponto crucial para eles à época, e que é central ao trabalho jornalístico que nós estamos realizando sobre as condutas da força-tarefa e de Moro:
Deltan – 17:15:22 – “Autoridades Públicas estão sujeitas a críticas e tem uma esfera de privacidade menor do que o cidadão que não é pessoa pública.”
O argumento de Deltan é precisamente correto – ainda que para o procurador ele deixe de valer quando a autoridade pública em questão é ele próprio. Curiosamente, o ministro do STF Luiz Fux discorda do Deltan de hoje.
Fux já se pronunciou sobre isso no próprio Supremo: “Esta Corte entendeu que o cidadão que decide ingressar no serviço público adere ao regime jurídico próprio da Administração Púbica, que prevê a publicidade de todas as informações de interesse da coletividade, dentre elas o valor pago a título de remuneração aos seus servidores. Desse modo, não há falar em violação ao direito líquido e certo do servidor de ter asseguradas a intimidade e a privacidade.” In Fux We Trust.
Cidadãos privados têm direito à privacidade absoluta. Mas aquelas pessoas que detém o poder – como juizes, procuradores e ministros – “estão sujeitas a críticas e tem uma esfera de privacidade menor.” Esse é um princípio no qual acreditamos enfaticamente e que vem norteando nossa reportagem desde que começamos a trabalhar nesse arquivo.
Deltan ofereceu argumento similar em 2016, quando defendeu a decisão de Moro de tornar públicas gravações telefônicas do ex-presidente Lula. Em defesa do então juiz, Deltan argumentou corretamente que o direito à privacidade das autoridades não se sobrepõe ao interesse do público de saber o que aqueles que detém o poder fazem e dizem em situações privadas – isso que ele estava defendendo um juiz que divulgou um grampo ilegal, algo muito mais sério do que a atitude de whistleblowers.
Outros membros da força-tarefa, antes da publicação das reportagens pelo Intercept, compartilhavam do entusiasmo de Deltan pelo vazamento de documentos governamentais secretos que expõem o comportamento das autoridades. Os procuradores expressaram também sua admiração pelos whistleblowers, como Daniel Ellsberg e Edward Snowden, que tornam públicos documentos secretos comprovando irregularidades ou corrupção por parte das autoridades.
Jurista René Dotti defende atuação do juíz Sérgio Moro | RIC Mais
O jornalista Denian Couto entrevistou nesta sexta-feira (18) o professor de direito penal René Ariel Dotti, da Universidade Federal do Paraná.Dotti é um dos juristas mais importantes e respeitados do…
Em Janeiro de 2017, os procuradores lamentaram o fato do Brasil ter perdido posições no ranking de percepção da corrupção publicado pela Transparência Internacional, e expressaram admiração pela Dinamarca, que lidera o ranking. Após publicar um link para o ranking num chat no Telegram chamado “BD”, a procuradora Monique Cheker (que não pertence à Lava Jato em Curitiba) explicou que o sucesso dos esforços de combate a corrupção na Dinamarca se devem porque o país – ao contrário do Brasil – valoriza e protege as fontes que expõe corrupção (os whistleblowers).
Monique – 08:05:19 – Saiu o índice de percepção da corrupção de 2016. Brasil caiu 3 posições. Aliás, 2/3 dos países caíram de posições. Dinamarca ainda liderando.
Monique – 08:20:47 – É a matéria que saiu ontem.
Monique – 08:21:39 – Aqui
Monique – 08:25:45 – Esse artigo antigo explica o sempre sucesso da Dinamarca e atribui uma das causas ao fato do país incentivar os “whistle-blower”: http://budapesttimes.hu/2013/03/19/why-denmark-always-finishes-on-top/
Livia Tinoco – 08:33:49 – Infelizmente, estamos muito, muito longe do modelo da Dinamarca
“Na Dinamarca nós temos uma cultura política muito inclusiva, e tanto nossas instituições públicas quanto privadas são altamente transparentes, o que faz com que seja fácil, por exemplo, responsabilizar políticos e empresas por irregularidades cometidas.
A mídia tem um papel fundamental no sistema de integridade na Dinamarca, e é muitas vezes chamada de ‘o quarto poder do estado’, que tem o papel de fiscalizar os outros três, garantindo que eles se comportem da forma correta… Muitas empresas também empregam os chamados “sistemas de whistle-blower“, cada vez mais populares na Dinamarca. Isso significa que, se uma pessoa tem conhecimento de algum tipo de corrupção ou desvios éticos que acredita que devem ser tornados públicos, essa pessoa pode denunciar isso – inclusive de forma anônima.”
Nós concordamos em absoluto com os princípios defendidos, em ambientes privados no Telegram, por Deltan e seus colegas: jornalistas não cometem crimes ao apurar e publicar reportagens baseadas em informações obtidas ilegalmente, mas sim contribuem para o fortalecimento das instituições e da cultura democrática; aqueles que detêm poder público sacrificam sua privacidade em nome da transparência; e a ação dos whistleblowers (o vazamento ilegal de informações demonstrando corrupção por parte de autoridades) é de importância vital para o bom funcionamento das instituições. São esses os princípios que norteiam o trabalho do Intercept e nossas reportagens sobre esse arquivo (leia nosso editorial e entenda).
Procurada por nós, a força tarefa disse que “não teve acesso aos materiais citados pelo site e, por isso, tem prejudicada sua possibilidade de avaliar a veracidade e o contexto dos supostos diálogos. Os integrantes da Força Tarefa pautam suas ações pessoais e profissionais pela ética e pela legalidade.”
Não importa o que Deltan, Moro e seus colegas digam sobre isso hoje. Eles estão apenas virando a mesa para defender seus próprios interesses. Isso não anula ou diminui a validade dos princípios fundamentais nos quais acreditamos – os mesmos defendidos por eles no passado e que, hoje, querem destruir.
Dependemos do apoio de leitores como você para continuar fazendo jornalismo independente e investigativo. Junte-se a nós
Nota dos Jornalistas Livres: Não é coincidência a estratégia montada por Moro e a equipe da Lava Jato, com apoio total do bolsonarismo. Nessa estratégia, o crime é a publicação da verdade. “As instituições” devem ser preservadas a qualquer preço. O importante não é um juiz agir politicamente em conluio com o MP para tirar ilegalmente do páreo o principal candidato a presidente do país e, portanto, ajudando a eleger quem lhe promete um ministério e uma vaga no STF. O crime, de uma hora pra outra, passa a ser o jornalista publicar como isso aconteceu! Da mesa do Senado vemos um ministro da justiça, ex-juiz federal, afirmando, sem provas, que há “um grupo de criminosos em conluio com um jornalista sensacionalista contra a Justiça e a Presidência do Brasil”. E, num instante, temos manifestações pela deportação do jornalista, ameaças de morte contra o marido e os filhos do jornalista, fake news sobre compra de mandato parlamentar do marido do jornalista ditas EM PLENÁRIO pelo senador filho do presidente e articulações nas redes por manifestações em favor do ministro que rasgou a Constituição e contra o jornalista que provou isso. Detalhe: o jornalista (Gleen Greenward) é simplesmente um dos melhores de nossa geração, com prêmios e reconhecimento mundial. Mais premiado que ele, talvez, somente o John Pilger, que está na profissão desde antes de Gleen nascer. Mas, como disse acima, não é coincidência a linha de defesa escolhida por Sérgio Moro. Os nomes de jornalistas e veículos de comunicação citados na entrevista poderiam ser facilmente trocados por nomes locais. Pilger tem denunciado isso há anos com a perseguição de Julian Assange. Nessa reportagem recentemente traduzida para o português e publicada pelo site Outras Palavras, Pilger mostra os perigos para as democracias da criminalização do jornalismo. Respirem fundo, leiam, reflitam e repassem.
Publicado originalmente em 18/06/2019 às 21:09 – Atualizado 18/06/2019 às 21:16
O cineasta John Pilger, cujo trabalho é afiado e digno de prêmios como o Oscar e o Emmy, é reverenciado e celebrado por jornalistas e editores em todo o mundo. Quando ainda estava em seus vinte anos, Pilger se tornou o jornalista mais jovem a receber o principal prêmio britânico da categoria, o “Jornalista do Ano”, o qual também foi o primeiro a ganhá-lo duas vezes. Após se mudar para os Estados Unidos, relatou as revoltas do final dos anos 1960 e dos 1970. Pilger estava na sala no momento em que Robert Kennedy, então candidato presidencial, foi assassinado em junho de 1968.
Sua reportagem sobre o sudeste asiático e o documentário que veio depois, Ano Zero: A Morte Silenciosa do Camboja, levantou quase 50 milhões de dólares (193 mil reais) para as pessoas daquele país atingido. De maneira semelhante, seu documentário de 1994 e o relatório de despachos do Timor Leste, para onde viajou secretamente, ajudou a estimular apoio aos timorenses, cujo território estava então ocupado pela Indonésia. Na Grã-Bretanha, sua investigação de quatro anos em nome de um grupo de crianças debilitadas ao nascer pela droga Talidomida, e deixadas de fora do acordo com a farmacêutica, teve, como resultado, um acordo especial. Em 2009, foi agraciado com o prêmio de direitos humanos da Austrália, o Sydney Peace Prize. Recebeu títulos de doutorado honorários de universidades no Reino Unido e outros países. Em 2017, a Biblioteca Britânica anunciou um Arquivo John Pilger de todos os seus trabalhos em texto e filme.
Nessa entrevista com Dennis J. Bernstein e Randy Credico, Pilger fala sobre o que está acontecendo com seu amigo e colega Julian Assange, fundador e editor do WikiLeaks, e como sua perseguição pode ser o começo do fim da reportagem investigativa moderna como a conhecemos. Desde sua alardeada encarceramento em prisão de segurança máxima, jornalistas e whistleblowers [indivíduos que denunciam más condutas de governos e instituições] têm sido perseguidos, presos e seus documentos e discos rígidos apreendidos em países como os EUA, França, Grã Bretanha e Austrália.
Bernstein: É bom falar com você de novo, John. Obrigado por conversar conosco. Isso que está acontecendo — não apenas com Julian Assange — mas com o futuro do jornalismo, é perturbador. Agora, temos visto ataques a jornalistas na Austrália, França e aqui nos EUA em São Francisco, onde a polícia algemou um repórter enquanto vasculhava sua casa e apreendia seu HD. Sabemos que Julian Assange está em uma prisão de segurança máxima e Chelsea Manning também está encarcerado. São tempos terríveis para o fluxo livre de informação.
Pilger: Bem, isso agora está acontecendo em todo o mundo, inclusive em toda a parte daquele mundo que se gaba de ser “iluminado”. Estamos presenciando a represália aos whistleblowers e jornalistas que se atrevem a dizer a verdade. Há uma guerra global contra o jornalismo. Mais do que isso, há uma guerra global contra os dissidentes. A velocidade com que esses eventos acontecem está bem acentuada desde 11 de abril, quando Julian Assange foi arrastado pela polícia para fora da embaixada equatoriana em Londres. Desde então, a polícia tem se voltado contra jornalistas nos Estados Unidas, na Austrália e, de maneira mais espetacular, na América Latina. É como se tivesse sido acionado um sinal verde para eles.
Credico: Eu achava que a essa altura Assange já estaria solto. Você também não pensou que chegaria um momento em ele estaria livre da situação terrível que estava quando o vi, há dois anos atrás?
Pilger: Estou relutante em fazer futurologia. Realmente pensei que um acordo político teria sido feito. Olhando para trás, isso era extremamente ingênuo porque o extremo oposto tinha sido planejado para Julian Assange. Há um “precedente Assange” funcionando em todo o mundo. Na Austrália, houve um ataque a uma emissora pública, a Australian Broadcasting Corporation, onde a polícia federal entrou com mandados, um dos quais os dava permissão para deletar, alterar e se apropriar do material de jornalistas. Foi um dos ataques mais estrondosos à liberdade jornalística e inclusive à liberdade de expressão de que tenho lembrança. Vimos até a News Corporation de Rupert Murdoch ser atacada.
A editora de política de um dos jornais de Murdoch, o The Sunday Telegraph, viu sua casa ser saqueada e seus pertences pessoais, íntimos, pilhados. Ela havia feito uma reportagem sobre a extensão da espionagem oficial dos australianos realizada por seu governo. Algo similar aconteceu na França, onde a polícia do [presidente Emmanuel] Macron moveu uma ação contra jornalistas da revista Disclose.
Assange previu isso enquanto estava sofrendo acusações e abusos. Ele dizia que o mundo estava mudando e que as chamadas democracias liberais estavam se tornando autocracias. Uma democracia que põe sua polícia contra jornalistas e confisca suas notas e computadores, simplesmente porque revelaram algo que o governo não queria que o povo soubesse, não é uma democracia.
Credico: Sabe, John, alguns representantes da mídia empresarial aqui nos EUA e, acredito, no Reino Unido, agora que perceberam que o tiro, possivelmente, saiu pela culatra, subitamente saíram em defesa de Assange, particularmente quanto ao uso do Ato de Espionagem e ao recolhimento de informação. Não quero denunciá-los por terem esperado tanto tempo, mas porque eles esperaram tanto e que tipo de ajuda podem oferecer a essa altura? E o que eles deveriam fazer, já que também estão na mira?
Pilger: Vamos ver quem está realmente na mira. O WikiLeaks copublicou os registros das guerras do Afeganistão e do Iraque em 2010, em colaboração com várias organizações de mídia: Der Spiegel na Alemanha, The New York Times nos EUA, The Guardian no Reino Unido e Espresso na Itália. Quem mais publicou o material do Iraque foram Al Jazeera, Le Monde, o Bureau of Investigative Journalism de Londres, o programa Dispatches do Channel 4 em Londres, o projeto britânico Iraq Body Count, o RUF (Islândia), o SVT (Suécia) e por aí vai.
Existe uma lista de jornalistas que relataram esses fatos e trabalharam com Assange. Isso fez seu trabalho ecoar; eram colaboradores no sentido literal. Estou com uma lista agora mesmo: no The New York Times tem Mark Mazzetti, Jane Perlez, Eric Schmitt, Andrew W. Lehren, C. J. Chivers, Carlotta Gall, Jacob Harris, Alan McLean. Do The Guardian são Nick Davies, David Leigh, Declan Walsh, Simon Tisdal… e a lista continua. Todos esses jornalistas estão na mira. Eu não acredito que muitos vão acabar entrando em apuros como Julian Assange porque não representam um perigo ao sistema que reagiu contra Assange e Chelsea Manning; mas eles, prima facie, cometeram os mesmos “crimes”. Em outras palavras, são tão “culpados” quanto Assange de cometer jornalismo.
Isso se aplica a centenas, se não milhares, de jornalistas ao redor do mundo. As divulgações do WikiLeaks, se não copublicadas, foram ignorados por jornais, revistas e programas investigativos de televisão em todas as partes. Isso faz com que todos os jornalistas estejam envolvidos, todos os produtores, todos os apresentadores, todos eles são cúmplices. E, é claro, a perseguição de Assange e a intimidação de alguns outros representa um escárnio à Primeira Emenda da Constituição dos Estados Unidos, que diz que você tem todo o direito de publicar; você tem todo o direito de “publicar e ser amaldiçoado”. É um dos mais nobres e demonstráveis princípios da constituição norte-americana que está sendo jogado no lixo. E a ironia é que os jornalistas que olharam de forma enviesada para Assange, ainda alegando que ele não era jornalista, estão agora correndo para cobrir, não porque ele é um jornalista da mais alta grandeza, mas porque ele é um jornalista com mais consciência do que muitos deles mesmos. Ele — e os outros em sua sombra — estava fazendo um trabalho básico do jornalismo. É por isso que chamo isso de guerra global contra o jornalismo — e o precedente aberto por Julian Assange não se parece em nada com o que vimos antes.
Bernstein: John, quero pegar o ponto de onde você estava, na pergunta de Randy, e esmiuçar e aprofundar o entendimento das pessoas sobre quem exatamente é Julian Assange e, se me permite, o ritmo que ele escolheu para seu trabalho. Como você descreve esse ritmo de Julian Assange e as pessoas que escolheu para trabalhar com ele?
Pilger: Quando conheci Julian Assange, perguntei a ele: “De que se trata, afinal, o WikiLeaks, e o que você está fazendo aqui?”. Ele descreveu muito claramente o princípio da transparência. Na verdade, estava descrevendo o princípio da liberdade de expressão: que temos o direito de saber. Temos o direito de ter conhecimento sobre o que nossos governos estão fazendo em nosso nome. Ele não estava dizendo que há um direito de pôr as pessoas em perigo. Estava dizendo que no jogo normal das democracias liberais temos o direito de saber o que o governo está fazendo por nós, às vezes até conspirando contra nós e em nosso nome. Temos o direito de saber a verdade sobre o que eles dizem em privado, o que tão frequentemente é traduzido em inverdades em público. Essa transparência, ele disse, era um princípio moral. Essa é a “razão” do WikiLeaks. Ele acredita nisso fervorosamente e, claro, isso deveria tocar em todos os jornalistas autênticos, porque é isso que nós todos deveríamos acreditar.
O que o caso Assange nos mostrou é que essa guerra contra o jornalismo, essa guerra contra o dissidente, ainda tem que entrar na corrente sanguínea da política. Nenhum dos candidatos que concorre à presidência dos Estados Unidos chegou a mencionar o assunto. Nenhum dos Democratas proferiu uma palavra. Não esperamos que a gangue de Trump fale sobre princípios como esses, mas há alguns ingênuos que acreditam que talvez alguns dos democratas deva fazer. Nenhum deles fez.
Bernstein: [O que significa quando] Julian Assange e Chealsea Manning, um editor e um dos mais importantes whistleblowers militares de nosso tempo, estão na prisão e encarcerados?
Julian Assange
Pilger: Eles querem pôr suas mãos em Julian Assange porque ele protegeu sua fonte e eles querem pôr as mãos em Chelsea Manning porque ela, sendo a fonte, se recusou a mentir sobre Julian Assange. Ela recusou-se a implicá-lo. Recusou-se a dizer que há uma conspiração entre eles. Esses dois exemplificam o que é a mais pura alegação da verdade na era moderna. Fomos desprovidos de duas pessoas como Assange e Chelsea Manning.
Sim, houve excelentes reportagens investigativas e revelações, mas temos que voltar ao nível de Daniel Ellsberg [militar que, em 1971, forneceu ao The New York Times o Pentagon Papers] para apreciar o que Chelsea e Julian, essas duas figuras heroicas, o que elas nos deram, e por que estão sendo perseguidas.
Se permitimos essas perseguições, tudo está perdido… A intimidação e a supressão vão agir em toda nossa vida. Na mídia que outrora abusou de Assange, eu vejo medo. Você lê alguns desses editoriais escritos por aqueles que uma vez atacaram Julian Assange e acusaram-no, tais como o The Guardian, e você os percebe temendo ser os próximos. Você lê colunistas famosos como Katie Benner, no The New York Times, que atacou Assange e agora vê uma ameaça de seus algozes a todos os jornalistas. O mesmo é verdade para David Corn [da Mother Jones], que agora vê a ameaça para todo o jornalismo. E eles têm razão em estarem assustados.
Credico: Qual era o medo que se tinha de Assange? Que ele continuaria a trabalhar em novos métodos de exposição? Por que estão tão assustados com Assange?
A Polícia Federal australiana em sua incursão ao escritório da ABC, em Sidney
Pilger: Bem, acredito que estavam preocupados — estão preocupados — que entre os dois milhões de pessoas nos EUA que têm uma autorização de segurança nacional estejam entre aqueles que Assange chamou de “objetores conscienciosos”. Uma vez pedi a ele para descrever as pessoas que estavam usando o WikiLeaks para liberar informações importantes. Ele os comparou aos objetores conscienciosos nos tempos de guerra, pessoas de princípios e de paz, e eu acho que é uma descrição bem apropriada. As autoridades estão preocupadas com a possibilidade de que haja algumas outras Chelseas por aí. Talvez não tão corajosas ou ousadas como Chelsea, mas que podem começar a soltar informações que enfraqueçam todo o sistema da máquina de guerra.
Credico: Sim, falei com Julian sobre isso mais ou menos um ano atrás, quando estava em Londres, sobre tentar fazer uma comparação com o sul norte-americano na guerra de secessão e jornalistas como Elijah Lovejoy e David Walker, que foram assassinados por expôr a brutalidade e o destino da escravidão. Eu disse: “Sabe, nós precisamos começar a te mostrar desse ponto de vista”, ao que ele respondeu: “há uma grande diferença, Randy”. Ele disse isso: “veja, aqueles homens só tiveram que lidar com um dos lados, e foi isso; as pessoas no sul e algumas de suas colaboradoras em Nova York, que foram parte dos negócios de transporte de algodão. Mas o resto do norte estavam praticamente todo do lado dos abolicionistas. Eu expus crimes de guerra e isso fez com que os conservadores se irritassem. E então expus o mal comportamento e a prevaricação no Partido Democrata. Então, todos eram meu alvo, eu não poupo ninguém, então isso não se aplica a mim”.
E foi isso que aconteceu aqui. Você enxerga isso pelo reduzido número de protestos em seu nome. Eu fui a uma manifestação outro dia, um pequeno protesto por Assange em frente à embaixada britânica, e apenas meia dúzia de pessoas estavam lá, um pouco mais do que na semana anterior. Ele não está gerando esse tipo de interesse até agora. E você via pessoas que passavam por lá e diziam “Assange é um traidor”. Quer dizer, estão tão desinformadas, e agora tenho que usar a citação que você usou, de Vandana Shiva, em seu livro Freedom Next Time, que trata da “insurreição do conhecimento subjugado”. Você pode falar sobre isso?
Vandana Shiva
Pilger: Vandana Shiva é uma grande ambientalista e ativista política indiana, cujos livros sobre a ameaça da monocultura são referência, especialmente a ameaça de empresas multinacionais de agroenergia que se impõe em sociedades vulneráveis e rurais como a Índia. Ela descreve uma “insurreição do conhecimento subjugado”. É um ótimo truísmo. Eu por muito tempo acreditei que a verdade reside em um mundo metaforicamente subterrâneo e sobre isso está todo o ruído: o ruído dos políticos credenciados, o ruído da mídia credenciada, aqueles que parecem estar falando por quem está abaixo deles. De vez em quando, contadores de verdade emergem de baixo. Pegue, por exemplo, o correspondente de guerra australiano, Wilfred Burchett, que foi o primeiro a ir a Hiroshima depois do bombardeio atômico. Seus relatos foram capa de seu jornal The Daily Express, em Londres, nos quais dizia “eu escrevo isso como um alerta ao mundo”. Estava alertando sobre armas nucleares. Tudo foi jogado contra Burchett para acusá-lo e desacreditá-lo. O correspondente do New York Times liderava esse movimento: a mesma pessoa que negou que as pessoas estavam sofrendo efeitos da radioatividade: que pessoas tinham morrido apenas na explosão. Depois, descobriu-se que ele estava mancomunado com autoridades norte-americanas. Wilfred Burchett sofreu acusações ao longo de toda sua carreira. Todos os whistleblowers passam por isso — aqueles que são afrontados pela indecência de algo que descobrem, talvez em uma empresa para a qual trabalham ou dentro de um governo — eles acreditam que o público tem o direito de saber a verdade.
O Guardian, que atacou Julian Assange com tanta crueldade, tendo sido um dos parceiros de mídia do WikiLeaks, nos anos 1980 publicou documentos de um oficial do Ministério das Relações Exteriores que relatava planos dos EUA de instalarem mísseis de cruzeiro de médio alcance ao longo da Europa. O Guardian publicou isso e foi devidamente elogiado em um documento de divulgação e princípio. Mas quando o governo foi à justiça e um juiz exigiu que o jornal entregasse os documentos que revelariam quem era o denunciante — ao invés do editor fazer o que editores devem fazer, defender os princípios e dizer “não, não vou revelar minha fonte” — o jornal traiu sua fonte. Seu nome é Sarah Tisdall e ela acabou presa. Então, whistleblowers tem que ser pessoas extraordinariamente corajosas e heroicas. Quando você olha para tipos como Julian Assange e Chelsea Manning é como se toda a força da segurança de Estado nacional norte-americana, apoiada por seus chamados aliados, tenha sido imposta a eles. Julian representa um exemplo de que eles têm que fazê-lo, porque se não transformá-lo em um exemplo, jornalistas podem ser encorajados a fazer seu trabalho, e esse trabalho significa contar ao público o que ele tem direito de saber.
Credico: Muito bem dito. No prefácio ou introdução de seu livro, Freedom Next Time, você também cita Harold Pinter e seu discurso vencedor do Prêmio Nobel, no qual ele fala sobre a vasta tapeçaria de mentiras que alimentamos, e ele segue adiante e diz que os crimes norte-americanos foram superficialmente registrados, que dirá documentados, que dirá conhecidos. Julian Assange quebrou essa conduta pra valer, expôs crimes de guerra cometidos pelos EUA e todo tipo de travessuras que o Departamento de Estado tenha perpetrado. Você fala de Harold Pinter, da grande influência que ele foi.
Pilger: Sim, eu recomendo aos seus ouvintes o discurso de recebimento do Prêmio Nobel de Harold Pinter. Acredito que foi em 2015. Foi um testamento eloquente e magnífico sobre como e porque a verdade precisa ser contada e também por quê não deveríamos mais tolerar a hipocrisia dos políticos de duas caras.
Harold Pinter fez um paralelo entre nossa visão sobre a União Soviética e os crimes de Stalin, comparada com a dos crimes dos Estados Unidos; ele disse que a maior diferença é que nós temos ciência da magnitude dos crimes de Stálin, mas que sabemos muito pouco sobre os crimes de Washington. Ele comentava que o ensurdecedor silêncio que envolve nossos crimes — quando digo “nossos”, me refiro àqueles dos Estados Unidos — significam, como ele disse memoravelmente: “estes crimes nunca ocorreram, não aconteceram nem quando estavam ocorrendo, eles não são de interesse público e não têm a menor importância”.
Nos livramos desse duplo padrão, com certeza. Acabamos de ter uma celebração escorregadia do 6 de junho, o Dia-D. Essa foi uma invasão extraordinária na qual muitos soldados tomaram parte e deram suas vidas, mas isso não fez com que a guerra fosse vencida. A União Soviética na verdade ganhou a guerra, mas os russos não eram nem representados, não eram nem convidados a falar sobre isso. Isso não aconteceu, como Pinter costumava dizer. Isso não importou. Mas Donald Trump estava lá, palestrando ao mundo sobre guerra e paz. É uma sátira horrível. Esse silêncio, essas omissões, correm em todos os nossos jornais, como se fosse mesmo uma aparência de verdade, e não é.
Bernstein: Quero voltar ao ponto de Wilfred Burchett e a enorme responsabilidade que esses grandes jornalistas têm de permitir que coisas terríveis continuem acontecendo sem serem noticiadas, baseados em questões de patriotismo e alegações de segurança nacional. Estou pensando, tiveram que calar Wilfred Burchett porque aquilo poderia ter aberto a porta toda de como são perigosas as armas nucleares e o poder nuclear, detonando o mito da paz atômica.
Pilger: Isso é totalmente verdade, Dennis, e isso também mina os planos morais da “Guerra Boa”, a Segunda Guerra Mundial que acabou com esses dois grandes crimes: o bombardeio atômico de Hiroshima e de Nagasaki em um momento em que o Japão não representava nenhuma ameaça. Historiadores confiáveis agora não nos contam os contos de fadas de que essas bombas atômicas eram necessárias no fim da guerra. Então, isso destruiu em muitos aspectos a grande missão moral da guerra.
Não apenas fez isso, como declarou no bombardeio atômico que uma nova guerra estava começando, uma “Guerra Fria”, apesar da possibilidade de se tornar rapidamente uma “guerra quente” com a União Soviética. E com isso estava dizendo que “nós” — ou seja, os Estados Unidos e aliados como os britânicos — temos armas nucleares e estamos prontos para usá-las. Essa é a chave: estamos preparados para usá-las. E os Estados Unidos foram os únicos que já chegaram a usá-las contra outro país.
Claro que, depois, isto foi testado nos Territórios de Confiança da ONU. Era para ser mantido em confiança pela ONU nas Ilhas Marshall e acabou dando início a várias Hiroshimas ao longo de 12 anos. Naquele tempo, nós não sabíamos nada disso. Mas e quanto sabemos sobre as ogivas nucleares (tipo de míssil) que o Presidente Obama solicitou e que comprometeram cerca de um trilhão de dólares? — às quais, certamente, o presidente Trump deu continuidade.
E aqueles tratados que ofereciam uma defesa precária contra um holocausto nuclear, tratados com a União Soviética, como o de armas de médio alcance, que foi rasgado por esta administração? Uma coisa leva à outra. Isto é contar a verdade.
Bernstein: quero voltar e lembrar as pessoas que tipo de estrutura Julian Assange criou com o WikiLeaks para proteger whistleblowers. Esse é um ponto crucial porque temos visto agora outros jornalistas sendo mais cuidadosos e vemos fontes sendo rastreadas, presas, e enfrentando grandes tempos de cadeia. E acredito que foi assim que Julian Assange honrou os whistleblowers, protegê-los é uma parte crucial de quem ele é e o que ele fez.
Pilger: Ele inventou um sistema através do qual é impossível dizer quem foi a fonte e isso permitiu pessoas usarem algo como um buraco de caixa de correio para vazar materiais sem terem sua identidade divulgada. É provavelmente isso que enraiveceu aqueles que estão perseguindo Assange. Significa que pessoas de consciência dentro dos governos, dentro de sistemas, que ficam incomodadas como Chelsea Manning, que ficou profundamente perturbada com o que viu, tenham a oportunidade de contar ao mundo, sem temer que tenham sua identidade exposta. Infelizmente, Chelsea revelou sua identidade a alguém que a traiu. É um meio sem precedentes de descobrir a verdade.
Bernstein: John, conte-nos sobre sua visita recente a Assange no presídio de segurança máxima de Belmarch, na Grã-Bretanha. Como ele está?
Pilger: Eu gostaria de dizer uma coisa sobre Julian, pessoalmente. Eu vi Julian na prisão de Belmarsh e eu tive uma sensação vívida do que ele tem que suportar. Eu vi a resiliência e coragem que conheço há tantos anos, mas agora ele está indisposto. A pressão sobre ele é inimaginável, a maior parte de nós teria se curvado diante disso. Mas há uma questão aqui de justiça por esse homem e o que ele teve que enfrentar; não apenas as mentiras que foram contadas sobre ele na embaixada e as grandes farsas que buscavam assassinar sua reputação. A chamada mídia respeitável, do New York Times ao The Guardian, todos caíram na lama e a jogaram nele; e hoje ele está muito vulnerável e eu vou dizer isso aos ouvintes: ele precisa de nosso apoio e solidariedade. Mais importante, ele merece.
Bernstein: Fale um pouco mais sobre as condições do lugar e por que é tão significativo que o deixem por um ano numa prisão como essa.
Pilger: Bom, eu suponho que por causa da ameaça que ele significa. Mesmo com Julian preso, o WikiLeaks segue. Essa é uma prisão de segurança máxima. Qualquer um preso por infração de fiança, antes de mais nada, não teria sido condenado a 50 semanas, como ele foi. Poderiam receber uma multa ou um mês, no pior dos casos. Mas é claro que isto, agora, significou uma extradição, um caso com todos esses encargos ridículos vindos de uma acusação na Virgínia. Mas Julian, como indivíduo, o que sempre me chocou, é que ele é exatamente o oposto da imagem que seus detratores relatam. Ele tem um intelecto aguçado, então é muito inteligente, evidentemente.
Ele é muito engraçado e divertido. Sempre dou risadas com ele. Nós, inclusive, conseguimos rir da última vez em que o vi na embaixada, quando tinha um monte de câmeras na sala, e trocamos anotações em que tínhamos que cobrir o que aquilo que estávamos escrevendo.
Ele deu um jeito de rir disso. Então ali você tem um tipo de humor seco, quase humor negro, ao mesmo tempo em que ele é uma pessoa muito apaixonada; mas sua resiliência é o que sempre me deslumbrou. Já tentei me imaginar no lugar dele, e não consegui. Quando o vi na cadeia, e tivemos que nos sentar na frente um do outro, eu estava com mais um casal. Um de nós deu a volta ao redor da mesa, só para ficar mais perto dele, quando foi impedido pelos seguranças. Esse tipo de situação é o que uma pessoa que não cometeu nenhum crime — sim, ele cometeu o crime do jornalismo — tem que aturar.
O falecimento do jornalista, professor e pesquisador José Marques de Melo (1943-2018) no ano passado trouxe um vácuo ao ensino do jornalismo no Brasil, sentimento comparado à perda de um pai. Desde lá, vem a memória nomes que mantém a dignidade de um ofício tão lindo; e tão criticado atualmente.
Esta constante angústia foi intensificada quando recebemos a notícia do problema de saúde de um outro ícone do jornalismo brasileiro: o professor Manuel Carlos Chaparro.
Junto com minha amiga, a também jornalista e professora Márcia Avanza, fomos visitá-lo no hospital São Camilo, no bairro da Pompéia, em São Paulo.
Memórias de uma aula infinita
A emoção do encontro logo foi substituída pela recordação da minha primeira aula como aluno de doutorado no Programa de Pós-graduação em Ciências da Comunicação (PPGCOM) na Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (USP), em 1999, quando o professor Chaparro adentrou à sala de aula e grifou na lousa: O QUE É JORNALISMO?
O debate foi intenso, com a aula sendo prolongada por mais de duas horas após o término. Um dos alunos perguntou se a publicação de uma imagem sem texto seria jornalismo. Após longa discussão fomentada pelo professor, aprendemos algo simples, mas formidável (e olha que ninguém falava em fake News e Pós-Verdade): “nem tudo o que está publicado em um jornal é jornalismo.”
Tempos depois, reencontrei esse mesmo professor no corredor do Departamento de Jornalismo e Editoração da ECA-USP. Nesse encontro, voltei a ser aluno e fiquei em silêncio prestando atenção nos ensinamentos do velho mestre. Naquele dia, ele revelou o jornalismo “como o espaço dos conflitos e das ideias”, antecipando uma já visível “revolução das fontes” e, assim, uma mudança no universo da notícia e, por conseguinte, do jornalismo – fato que observamos constantemente com o avanço do digital.
A eterna pergunta
Aqueles momentos estavam tão presentes durante a visita no hospital que até fiz um diagnóstico: “a doença daquele homem era ensinar”. Antes de nos despedirmos, ele me confidenciou que estava iniciando uma pesquisa que possibilitava encontrar os problemas do jornalismo atual. Lembrei até do clássico livro “O problema da imprensa” (Edusp/Com Arte, 1988) de Barbosa Lima Sobrinho. Fiquei triste pois não houve tempo para ouvi-lo.
Esses dias, recebi uma foto dele, por intermédio de sua filha Cristina, no WhatsApp. A legenda revelava a recuperação e a alegria por estar tomando um café expresso. E como eu gostaria de estar presente para compartilhar de mais uma conversa. Assim, teria a honra de fazer minha última e constante pergunta, que já me incomoda há 20 anos, desde quando entrei naquela sala de aula junto com meu amigo e colega de curso de graduação na Universidade Estadual de Londrina e também no PPGCOM-USP, Álvaro Emídio Ferreira: “Professor Manuel Carlos Chaparro, O QUE É JORNALISMO?”
Nota dos Jornalistas Livres: Jornalista desde 1957, o Prof. Chaparro é doutor em ciências da Comunicação, professor de jornalismo da ECA/USP e já conquistou quatro Prêmios Esso de Jornalismo.
Em agosto de 2016, Dilma Rousseff tinha seu mandato impedido após votação em plenária no Senado Federal. Polêmico e controverso, o processo de impeachment de Dilma contou com ampla cobertura midiática e forte repercussão nas redes sociais. Com vistas à investigação da atuação da mídia no processo de impedimento da ex-presidente, a Editora Insular, em parceria com a Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade de Brasília (UnB), lançou essa terça-feira (3) o sexto volume da série Jornalismo e Sociedade, a obra Desconstruindo uma queda: a mídia e o impeachment de Dilma Rousseff, organizada pelos professores Liziane Guazina (UnB), Helder Prior (PPGCOM UFMS) e Bruno Araújo (UFMT).
Nos oito estudos reunidos no livro, os autores e autoras, pesquisadores de diversas universidades do país, investigam o cenário que permite compreender a derrubada de Dilma Rousseff do poder – e seus desdobramentos político-econômicos a partir de pesquisas centradas na observação empírica e na análise sobre a atuação dos meios de comunicação tradicionais e das mídias sociais em diferentes dimensões do processo político-midiático. Segundo os organizadores, os estudos mostram vários “mecanismos de construção midiática” que influenciaram a da queda de Dilma Rousseff. Eles sustentam que a mídia agiu na “construção de um cenário de opinião favorável ao impedimento e, ao mesmo tempo, de desconstrução da imagem pública do Partido dos Trabalhadores, do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e da própria presidenta eleita”.
Para a Profa. Rousiley Maia, doutora em Ciência Política pela University of Nottingham e titular do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), a obra é uma competente análise sobre a produção jornalística nacional e internacional e sobre as manifestações dos cidadãos nas redes sociais a respeito do impedimento: “Este livro reúne sofisticadas análises sobre essas questões, a partir de uma ampla e diversificada base de dados. O escopo e a magnitude desta obra são o resultado do esforço colaborativo empreendido por pesquisadores das mais destacadas universidades brasileiras.”
O livro conta com pesquisas dos autores Anita Hoffmann (Cásper Líbero), Antonio Fausto Neto (Unisinos), Carla Cândida Rizzotto (UFPR), Eurico Matos (UFBA), Heitor Costa Lima da Rocha (UFPE), José Luiz Aidar Prado (PUC-SP), Kelly Prudêncio (UFPR), Laís Cristine Ferreira Cardoso (UFPE), Pedro Mesquita (UFBA), Tatiana Dourado (UFBA), Vinicius Prates (UPM), além dos também organizadores Liziane Guazina (UnB), Hélder Prior (Universidade Autônoma de Lisboa – UAL) e Bruno Araújo (UFMT). A obra está disponível para a venda no site da Editora Insular. A obra será lançada oficialmente durante o 8º Congresso da Associação Nacional dos Pesquisadores em Comunicação e Política – COMPOLÍTICA, de 15 a 17 de maio, na Universidade de Brasília.
SOBRE A SÉRIE
A Série Jornalismo e Sociedade, do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade de Brasília, uma parceria com a Editora Insular, situa o jornalismo como construção social e prática sociodiscursiva, que participa da constituição de horizontes de referência sobre o mundo. Contempla a divulgação de estudos empíricos e esforços de teorização que buscam construir/discutir/fazer avançar uma Teoria do Jornalismo e da Notícia, bem como discussões sobre o jornalismo como práxis, as formas de (auto)regulação da profissão e seu papel na promoção da democracia e da cidadania no contexto brasileiro e em comparação com outros países. A Série tem um categorizado Conselho Editorial formado por professores, doutores e pesquisadores do nosso e de outros países.
SOBRE OS ORGANIZADORES
Liziane Guazina é professora e vice-diretora da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília. Doutora em Comunicação, membro do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UnB. Líder do Grupo Cultura, Mídia e Política e pesquisadora do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política (NEMP/CEAM), ambos da Universidade de Brasília.
Bruno Araújo é professor na Faculdade de Comunicação e Artes da Universidade Federal de Mato Grosso. Doutor em Comunicação, pesquisador do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política (NEMP/CEAM) e do Grupo de Pesquisa Cultura, Mídia e Política. Pesquisador colaborador do Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX, da Universidade de Coimbra.
Hélder Prior é doutor em Ciências da Comunicação pela Faculdade de Artes e Letras da Universidade da Beira Interior (2013). Realizou estágio de pós-doutorado na Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília (PNPD/CAPES) entre 2014 e 2015. Investigador Integrado do LabCom.IFP da Universidade da Beira Interior e investigador colaborador no Observatorio Iberoamericano de La Comunicación da Universidade Autônoma de Barcelona. É professor do Departamento de Ciências da Comunicação da Universidade Autónoma de Lisboa.
Às 14h30 desta quarta-feira, em São Paulo, a presidenta cassada do Conselho Curador da EBC – extinto em 2016 por uma Medida Provisória de Michel Temer -, Rita Freire será ouvida pela Polícia Federal, no escritório da Avenida Paulista, em São Paulo em razão de denuncia feita pela EBC contra o site de memória do colegiado.
O site conselhocurador.ciranda.net foi criado por iniciativa de conselheiros(as) cassados(as) pela medida e também por antigos integrantes do Conselho Curador, reproduzindo o acervo das atividades da participação social no projeto da EBC e também as manifestações da sociedade civil e denúncias do desmonte da empresa de comunicação pública, promovida após o impeachment da presidenta Dilma Rousseff.
A EBC tenta responsabilizar a gestão da Ciranda, rede mantida por jornalistas desde 2001, pelos conteúdos, acusando as responsáveis pelo domínio ciranda.net de uso não autorizado de conteúdos e imagens. O objetivo, no entanto, é visto como o de intimidar os integrantes do Conselho Curador cassado, que não deixaram de acompanhar e denunciar desmandos na empresa pública, ao lado de movimentos da sociedade civil que defendem o direito do povo brasileiro a uma comunicação pública não controlada pelo governo de plantão.
O advogado Fernando Amaral, que acompanha o inquérito, diz que a denúncia não se sustenta uma vez que os conteúdos do Conselho da EBC, publicados no site de memória, são de livre reprodução e que não há uso indevido da marca ou materiais.
Para integrantes do extinto Conselho, trata-se de uma denúncia de motivação política, de criminalização das lutas e manifestações sociais e tentativa de apagamento da memória da participação social – um requisito fundamental da comunicação pública que hoje não existe mais na EBC. Conforme era temido por conselheiros(as), a empresa escondeu, em seu próprio site, o acervo que era alimentado pelo Conselho, desfigurando sua apresentação gráfica e cujos conteúdos agora só podem ser localizados através de links do site de memória à lista de títulos.
O Conselho Curador repudia mais essa tentativa de criminalizar e silenciar a luta pelo cumprimento da Constituição Federal de 1988 que assegura o lugar da comunicação pública entre as mídias privadas e as estatais no Brasil.
São Paulo, 27 de fevereiro de 2019
Integrantes não governamentais do Conselho Curador
Ver assinaturas no site conselhocurador.ciranda.net
Se você mora na cidade de São Paulo e, ontem, por volta das 17h ou 18h, circulou pelas regiões atendidas pela av. 23 de Maio, você com certeza enfrentou um trânsito fora do comum, mesmo para os padrões congestionadíssimos da grande Metrópole. Muito provavelmente, você não sabe por que ficou parado um tempão a mais no trânsito. Já abrimos o spoiler: o que congestionou mais ainda a cidade foi a greve dos servidores municipais. “Como?” Olha aí… você nem sabia que os servidores estavam em greve.
Mas o que isso tem com mídia? Bom, se você não é servidor ou muito próximo de um, mesmo que seja atendido quase diariamente por eles, direta ou indiretamente, você está sem saber da greve porque o movimento dos funcionários públicos municipais tem sido apagado de toda a grande mídia. Desde o dia 4 de fevereiro, várias categorias (professores municipais, servidores da saúde, serviço funerário, etc. pararam o trabalho. Trata-se de um protesto contra a Reforma da Previdência que o prefeito Bruno Covas quer impor goela abaixo dos funcionários.
Agora responda: quantas vezes isso apareceu em algum grande jornal impresso, ou no jornal matinal e noturno que você vê, ou no rádio que te informa sobre o trânsito?
Ontem, alguns milhares de servidores saíram da Prefeitura e passaram mais de duas horas em caminhada, saindo da Praça do Patriarca, passando pela 23 de Maio e terminando na av. Paulista. As multidões em movimento mereceriam pelo menos alguns takes de um Globocop. Quem sabe você tenha ouvido algum rápido comentário, meio atrapalho e balbuciado, mas nada que passasse de parcos segundos. Sem imagens, com certeza.
Como pode isso? Existe um conceito que pode nos ajudar a entender. Trata-se da “Agenda Setting”, ou “agendamento”, que é o estabelecimento de uma agenda temática e discursiva comum entre diferentes veículos da imprensa.
Opa! Opa! Pera lá… Isso só pode ser teoria desses esquerdistas conspiracionistas, dirá o leitor desconfiado. Como podem os vários veículos, que competem entre si, montarem um cartel editorial e, em conjunto, evitar ou trabalhar uma mesma pauta?” É uma pergunta muito justa… Vamos enfrentá-la.
As grandes empresas de jornalismo, que hoje são conglomerados, são poucas. As marcas, os nomes que usam, podem até dar a impressão de que não é tão reduzido assim, mas olhem o exemplo: só as Organizações Globo detêm algumas emissoras de rádio, com nomes diferentes, mas pertencentes à mesma empresa. As Organizações Globo têm TVs, têm jornais, têm revistas, têm internet, financiam filmes e peças de teatro. Todos esses “negócios” obedecendo ao mesmo grupo de acionistas. Há, no Brasil, poucos grupos de acionistas que controlam a mídia toda… A Editora Abril, Folha de S.Paulo, Estadão, TV do Bispo Edir Macedo, de Silvio Santos, a Band e o grupo RBS, para ficar nos mais importantes. Poucas empresas para um país de dimensões continentais, como é o Brasil.
Um dos maiores estudiosos de mídia, Francisco Fonseca, aponta em seu clássico “O Consenso Forjado: A grande Imprensa e a Formação da agenda ultraliberal no Brasil” que as empresas de mídia são, antes de tudo, empresas.
“Impressiona a ausência de vozes discordantes nos jornais, seja nas coberturas seja sobretudo nos argumentos que a opinião editorial esgrima (quanto a esta, representa a síntese de um periódico, pois orienta e influencia toda a cobertura jornalística e poderia, no mínimo, discutir os diversos argumentos disponíveis). Tudo se passa como se a grande imprensa estivesse invariavelmente do ‘lado certo’, da ‘verdade’.”
A discussão entorno da Reforma da Previdência, como temos visto, tem uma única narrativa veiculada em todos os grandes jornais brasileiros: ela é emergencial! Se não for feita imediatamente, o País vai à falência! A Reforma da Previdência é o caminho da Modernidade! E por aí vai.
Tudo mentira. Como grandes empresas que são as empresas de comunicação, em geral devedoras da previdência, essa reforma lhes interessa. Isso explica, por exemplo, o silêncio sepulcral sobre a greve dos servidores, que luta contra a reforma da previdência municipal.
Esse é um exemplo de como a concentração midiática gera, como tem sido o caso desta greve, casos de censura velada. O silêncio, por parte da imprensa é uma forma de auto-censura, para que não seja discutida a pauta colocada em vias públicas, pelos grevistas. O papel social da comunicação é o de trazer e aprofundar as discussões sobre assuntos que explodem na epiderme social. E como pode um silêncio desse, quando milhares de pessoas param uma das principais avenidas da cidade? É a defesa do próprio interesse desses grandes conglomerados de mídia.
Mas podemos entrar em vários aspectos de como esse cartel midiático molda o debate público.
Um dos casos mais batidos, e não menos importante: o jovem e o traficante. Quantas manchetes já não vimos falando sobre um indivíduo que foi preso na posse de alguma quantidade de droga. Se é um jovem negro e pobre, a manchete grita “Traficante”. Mas, se o implicado for um jovem branco, morador de um bairro rico, o texto o designará apenas como “Usuário”.
São alguns exemplos. Mas, chegamos aos finalmentes, o que isso tem com democratização da mídia? Esse esses vícios jornalísticos se constituíram em um ambiente de concentração entre veículos; poucos são os que tem alcance nacional. A internet nos trouxe algum alento. Surgiram essas que são as mídias independentes… “Opa! Essas mídias independentes são panfletárias, têm pouca credibilidade, são todas militantes!”, dirá um leitor apaixonado pela velha mídia.
Sobre a acusação de militante: as mídias independentes não vacilam ao se assumir como defensoras de um lado da disputa narrativa. O problema é esse verniz da imparcialidade que a grande mídia tenta lançar sobre si, quando seu papel como militante político é total. Suas escolhas e o próprio jornalismo que temos hoje no país são construídos de acordo com uma fórmula padrão que visa a esconder a natureza política da comunicação e do próprio jornalismo. Essas escolhas de pautas, histórias, entrevistados, vocábulos têm um fundo político. Mas envernizado.
Nos resta, menos do que mudar esse jornalismo padrão (que tem sua importância) fortalecer as mídias independentes. Que o melhor ganhe. O jornalismo abertamente politizado ou o dissimulado.