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  • O Grande Inquisidor em várias vestes e as muitas faces do silêncio

    O Grande Inquisidor em várias vestes e as muitas faces do silêncio

    A peça teatral “O Grande Inquisidor”, de Fiódor Dostoiévski, com apresentação de Celso Frateschi, é um pequeno, mas denso, eloquente e contundente capítulo do último romance de Fiódor Dostoiévski: “Os Irmãos Karamazov”.

    Por Gilvander Moreira[1]


    O filósofo Platão nos alerta que estamos em uma caverna, onde se vê sombra e se pensa que é a realidade, mas é difícil ver a luz do sol, que, como a verdade, pode doer, mas liberta. O Grande Inquisidor não esteve presente apenas nos anos de chumbo da mais cruel Inquisição, mas esteve sempre presenta ao longo da história e atualmente, muitas vezes mascarados. Muitos Grandes Inquisidores usam a fogueira da caverna alegando que é a luz do sol, a verdade. José Saramago, em Ensaio sobre a Cegueira, analisa a sociedade atual que mais fura os olhos das pessoas do que faz ver. No Evangelho de Marcos, na Bíblia, os maiores “cegos” e ignorantes são os apóstolos e os discípulos de Jesus. Para o evangelista Marcos, as pessoas violentadas nos seus direitos compreendem melhor o ensinamento e o projeto testemunhado por Jesus de Nazaré.

    Em uma sociedade capitalista estruturalmente desigual, só fazer solidariedade não emancipa e nem liberta, mas reproduz a superexploração. Solidariedade S.A de grandes empresas é propaganda e verniz e não é compromisso com a superação das causas das injustiças e violências. Dá-se algo momentaneamente no varejo e furta-se no atacado constantemente. Para a gente se libertar dos inquisidores não basta libertações individuais, é preciso conquistarmos condições materiais objetivas que viabilizem a liberdade. Por exemplo, em uma pequena cidade do sertão da Paraíba, em julho de 1988, enquanto fazia missão e visitava o povo de casa em casa, ao ficar sabendo que Mônica estava casada há apenas seis meses, brinquei: “Se pudesse voltar atrás, você casaria de novo?” Ela engasgou e não me respondeu. O marido se atreveu e me respondeu: “Casaria, sim”. Vi na hora que tinha feito uma pergunta incômoda e em momento inoportuno. No outro dia, Mônica foi à casa paroquial e, chorando, me disse: “Frei, vim para lhe dizer que eu não casaria de novo”. Comovido com as lágrimas dela, perguntei: “Por quê?” Mônica me disse: “Ele me bate todos os dias, bate minha cabeça contra a parede, mas não posso me separar dele, porque se eu me separar, terei que voltar a passar fome na zona rural aqui do sertão paraibano, serei tratada como adúltera e ainda serei excluída da participação na comunidade religiosa. Logo, muito ruim com ele, mas pior sem ele”. Essa violência inominável acontecia, porque havia condições materiais objetivas que viabilizavam esse machismo e esse patriarcalismo execrável, pois os jovens migravam quase todos para Recife ou São Paulo em busca de emprego. Ficavam apenas alguns jovens na cidade, que podiam se dar ao luxo de namorar com quantas e quais moças quisessem e tripudiar em cima delas. Havia condições objetivas que viabilizavam a reprodução do machismo e do patriarcalismo.

    O poder opressor do Grande Inquisidor não está só nos chefes de instituições religiosas, mas está incrustado nos podres poderes da política, da economia, no mundo jurídico e em outras instituições da sociedade capitalista. Não apenas o cardeal/instituições religiosas foi e continua sendo Grande Inquisidor, mas também os patrões, os políticos profissionais – coisa nojenta e execrável -, os juízes que garantem juridicamente a reprodução das relações sociais de superexploração, entre outros. Muitos encarnam o cardeal Grande Inquisidor de Dostoiévski. Como Ulisses amarrado ao mastro do navio, no Canto 12 da Odisseia de Homero, os executivos e chefes das grandes (trans)nacionais cumprem o papel de Grande Inquisidor o tempo todo, muitas vezes com a fachada de bondade, de filantropia e de solidariedade. O Grande Inquisidor é apresentado como um herói, um messias, um salvador da pátria, como alguém com missão boa e necessária, mas é cruel inquisidor.

    A ideia de pecado, dependendo de como é compreendida, pode ser arma de dominação das consciências e de fortalecimento de um poder religioso inquisidor. Eloquente e interpelante é o silêncio revolucionário de Jesus sob a inquisição de O Grande Inquisidor. O silêncio de Jesus grita, brada, irrita O Grande Inquisidor, mas Jesus não foi um pacifista ingênuo como um Gandhi adocicado da não violência. Jesus também encarou seus inquisidores. Segundo o quarto evangelho da Bíblia, Jesus diante do sumo sacerdote Anás, O Grande Inquisidor do poder religioso, assim se manifestou: “Eu falei às claras para o mundo. Eu sempre ensinei nas sinagogas e no templo, onde todos os judeus se reúnem. Não falei nada escondido. Por que você me interroga? Pergunte aos que ouviram o que eu lhes falei. Eles sabem o que eu disse. […]. Se falei mal, mostre o que falei de mal. Mas se falei bem, por que você bate em mim?” (João 18,20-23).

    Ao longo da história e atualmente em nossa sociedade capitalista, extremamente desigual, há vários tipos de silêncios: a) parte do povo é silenciado de mil formas. Em muitas periferias se diz: “Aqui ninguém vê nada, não ouve nada e nem fala nada. Se ver, ouvir e falar, morre no mesmo dia”. É o terror do Grande Inquisidor do tráfico protegido pela classe dominante e política que acumula capital com o genocídio de mais de 30 mil jovens por ano; b) grande parte da classe trabalhadora é obrigada a se silenciar, porque se falar o que sente e reivindicar seus direitos é sumariamente demitida e jogada no olho da rua. Nas capitais, os metrôs e os ônibus coletivos superlotados se transformaram em lugares para se desabafar as repreensões sofridas durante os dias de trabalho exaustivo sob pressão de metas, com trabalho degradante e chefes que pressionam o tempo todo; c) há também o silêncio dos omissos que para tentar salvar a própria pele se tornam cúmplices e coniventes de tantos Grandes Inquisidores; d) Há o silêncio imposto pelos fundamentalistas religiosos e moralistas que ao defender abstratamente Deus, família e bons costumes, colocam na fogueira quem se rebela diante das mediocridades, puritanismo, cretinice e hipocrisia. Tantos são os silenciados! E o pior, o silêncio, a surdez e a cegueira diante das atrocidades do Inquisidor Mor no Brasil, instalado no Palácio do Planalto, estão nos levando à destruição irreversível. Calar, jamais! A postura de Jesus de Nazaré, segundo o Evangelho de João, foi de encarar os Grandes Inquisidores e não abaixar a cabeça diante das torturas.

    No Brasil atual, Bolsonaro encarna o Grande Inquisidor Mor, e como dragão do Apocalipse, cavaleiro da morte e exterminador do futuro, tem transformado o Brasil em uma grande fogueira, onde ardem em chamas os biomas da Amazônia, do Pantanal, do Cerrado etc. Negacionista que odeia a vida e a verdade, adepto de torturador, parceiro de milicianos, ignorante, medíocre, autoritário etc. O Grande Inquisidor fala de três forças – milagre, mistério e autoridade. No Brasil há uma trilogia inquisitorial também que perpassa os 520 anos de Estado violentador: escravidão, ditadura e tortura. Sob o chicote do Inquisidor Mor, escoltado por milhares de militares e com uma legião de coronéis e generais do desgoverno federal, seguem sendo supliciados os povos indígenas, os quilombolas, todos os povos tradicionais e os biomas. É primavera em chamas no Pantanal e em todo o Brasil! Nas ruas das grandes cidades brasileiras, os irmãos e irmãs em situação de rua já são quase 300 mil e são forçados a dormir com um olho aberto, pois os Grandes Inquisidores podem lhes jogar gasolina e fogo ou envenenar sua comida com chumbinho de forma sorrateira. Grandes Inquisidores com a roupa de latifundiários, de grileiros, de madeireiros, de garimpeiros ou de agentes do agronegócio seguem invadindo os territórios indígenas e dos povos tradicionais, tirando-lhes o sono e impondo terror com jagunços, milicianos e com a cumplicidade do aparelho repressor do Estado. Enfim, no Brasil, O Grande Inquisidor tem muitas faces e vestes.

    23/10/2020.

    [1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente da CPT, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH e de Teologia bíblica no Serviço de Animação Bíblica (SAB), em Belo Horizonte, MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br      –       www.twitter.com/gilvanderluis        –    Facebook: Gilvander Moreira III

     Obs.: Os vídeos nos links e o áudio, abaixo, ilustram o assunto tratado acima.

    1 – Normal absurdo. Quem define o que é normal? Normal que é arma de morte, que reproduz desigualdade?

    2 – Greg News: Eleições Municipais. O que está em jogo nas eleições de 2020? Poder do prefeito. 09/10/20

    3 – Grande Live em defesa do Rio São Francisco: contra barragem de Formoso e usina nuclear – 05/10/2020

    4 – Contra todas as cercas: Homenagem a Pedro Casaldáliga. Por CPT, MST, MAM, CIMI, MAB etc. – 08/9/2020

    5 – Pantanal Vivo! Artistas em defesa do Pantanal. Música: João Ba. Chamado em defesa da vida -29/9/2020

    6 – Pantanal pede socorro(Solos) – Canção do Presente (Anderson Zottis – Crítica 21) – 19/9/2020

    7 – Fome no Brasil volta a subir e atinge mais de 10 milhões de brasileiros, diz IBGE – JN -18/9/2020

    8 – Toneladas de mercúrio entram clandestinamente no país para abastecer garimpo de ouro – 30/8/2020

  • A fogueira do Grande Inquisidor

    A fogueira do Grande Inquisidor

    Ao escrever O Grande Inquisidor, um pequeno, mas denso, eloquente e contundente capítulo do último romance “Os Irmãos Karamazov”, Fiódor Dostoiévski, em 1879, parece que estava revelando a Inquisição em pleno vapor no Brasil, em 2020, sob o arbítrio de muitos Grandes Inquisidores, disfarçados.

    Por Gilvander Moreira[1]


    Lobos em pele de ovelhas, com sede de sangue, continuam atiçando a fogueira da fome, na qual o estômago de mais de 10 milhões de irmãs e irmãos nossos ronca e faz o corpo tremer como se estivesse sendo eletrocutado por fios elétricos de tortura. Mães e avós muitas vezes têm que reprimir as lágrimas para não chorar na presença de filhos/as e netos/as implorando por um pedaço de pão. Centenas de agrotóxicos, que não são defensivos agrícolas, mas produtos tóxicos, injetam arma química no prato do povo brasileiro que, ao comer, está contraindo câncer, obedecendo cegamente os ditames de um mercado idolatrado. Agronegociantes com exagero de agrotóxico mandam para a fogueira do câncer mais de 700 mil pessoas por ano. Por ano, mais de 250 mil pessoas estão sendo mortas na fogueira da inquisição do câncer, epidemia causada principalmente pelo exagero de agrotóxicos e produtos enlatados. “Leite na caixinha é veneno puro”, me disse um trabalhador que trabalhou 18 anos em um laticínio de uma transnacional. Além disso, o agronegócio e seus executivos como Grandes Inquisidores seguem desertificando os territórios e empurrando os camponeses para as periferias das grandes cidades e jogando-os no meio de uma guerra civil não declarada. Agronegócio, um Grande Inquisidor, exterminador do futuro da humanidade.

    O Grande Inquisidor, em outras vestes e em faces metamorfoseadas no Brasil, também está instalado nas grandes mineradoras que como dragão do Apocalipse, de forma cruel e bárbara, seguem planejando e cometendo crimes/tragédias com requintes de crueldade, arrasando territórios, apunhalando as montanhas, exterminando as fontes de água e sacrificando rios e povos. Só em Minas Gerais, com mais de 300 anos de superexploração minerária, as empresas de mineração controlando o Estado deixaram um rastro de milhares de mortos, soterrados vivos ou morrendo um pouco a cada dia de silicose, depressão ou outras várias doenças contraídas em trabalhos extenuantes. Não podemos esquecer que dia 25 de janeiro de 2019, às 12h28, a mineradora Vale, assassina contumaz e reincidente, “sepultou vivos 272 filhas e filhos nossos”, clamam os parentes que sobrevivem vertendo lágrimas. Foi um crime/tragédia da mineradora Vale em conluio com o Estado, em Brumadinho, MG. Esse crime continua e cresce todos os dias. “Todo dia é dia 25” se tornou lema dos milhares de vítimas do Grande Inquisidor também instalado nos grandes projetos de mineração que tritura a mãe terra, superexplora a dignidade da pessoa humana e apunhala mortalmente a dignidade de todos os seres vivos.

    A Campanha Permanente de combate ao Trabalho Escravo, da CPT, desde 1997, demonstra que mais de 30 mil trabalhadores continuam anualmente submetidos à situação análoga à de escravidão. O pelourinho, o chicote e o tronco continuam violentando a dignidade humana em monoculturas da cana, do eucalipto, do café, de grandes projetos de mineração, na construção civil, na produção de roupas e calçados, em telemarketing etc.

    Por integrar uma das dez Comissões do CNDH[1] sei que são ameaçados de morte no nosso país milhares de militantes que lutam por justiça social e direitos humanos fundamentais. Perseguir, ameaçar e tentar tirar a paz e o sono de quem luta por justiça social são tarefas macabras cumpridas por jagunços, milícias armadas com a cumplicidade de um Estado que aplica o direito penal máximo para os empobrecidos e o direito civil/empresarial benevolente para as grandes empresas. Desde 1985, a CPT publica anualmente um grande livro intitulado Conflitos no Campo Brasil, que demonstra que nos últimos 46 anos, mais de 3.000 lideranças camponesas foram assassinadas pelo Grande Inquisidor latifúndio-latifundiário-agronegócio de várias formas: por degola, enforcamento, metralhados, fuzilados, em emboscadas, pelas costas, da garupa de um motoqueiro cúmplice etc. E, pior, há impunidade em demasia para os jagunços e principalmente para os mandantes. E há punição em demasia para os pobres, negros e juventude de periferia.

    Precisamos recordar uma característica fundamental dos Evangelhos da Bíblia, principalmente dos sinóticos (Mateus, Marcos e Lucas): na primeira parte dos evangelhos sinóticos – 1ª fase da missão de Jesus Cristo -, a característica básica é a SOLIDARIEDADE, com ternura, compaixão e misericórdia. Entretanto, no meio da missão acontece uma “crise galilaica”: Jesus faz análise de conjuntura e descobre que está sendo ingênuo, pois mesmo fazendo os milagres no varejo, via processo de solidariedade, está aumentando o número de famintos, de paralisados, de cegados, de excluídos. Jesus percebe que precisa dar uma guinada no rumo da missão e passar a denunciar os podres poderes da religião, da política e da economia e quem reproduz estes poderes. Por isso, na segunda parte dos evangelhos sinóticos – 2ª fase da missão pública de Jesus -, a característica básica passa a ser LUTA POR JUSTIÇA. Jesus Cristo foi condenado à morte não apenas porque era solidário, mas principalmente porque lutou por justiça e, por isso, incomodou os podres poderes da religião, da política e da economia.

    A lógica de democracia formal e representativa é outro Grande Inquisidor do povo ao vender a ideia mentirosa de que basta votar em eleições com regras que beneficiam “os de cima” para se chegar à democracia real, econômica e social. Cruel ilusão, pois entra eleição e sai eleição e o tal de fulano ainda é pior …

    O sistema capitalista, máquina de moer vidas, é O Grande Inquisidor Mor, pois sequestra a terra no campo e na cidade em propriedade privada capitalista como base para promover o capital superexplorando a dignidade da pessoa humana, da classe trabalhadora e da classe camponesa. A manutenção da latifundiarização no campo brasileiro e da especulação imobiliária nas cidades são bases materiais objetivas – Um Grande Inquisidor Mor – que reproduz a inquisição, a repressão, a violência e o enforcamento do povo cotidianamente, de muitas formas.

    Na sociedade capitalista O Grande Inquisidor inquire, tortura, faz guerra e mata em nome de Deus. Eis um exemplo: um cozinheiro dos freis carmelitas, em Houston, descendente de latino-americanos, foi soldado dos Estados Unidos na Guerra do Vietnã. Em julho de 1997, todo piedoso, com camiseta de Nossa Senhora de Guadalupe e escapulário no pescoço, toda vez que me via, pedia para eu o abençoar. Devoto piedoso, um dia me disse: “Na Guerra do Vietnã, eu era soldado paraquedista. A gente pulava do avião e já caía no meio de uma comunidade e eu, com a metralhadora na mão disparava à vontade. Só eu matei mais de 500 vietnamitas”. Quando o cozinheiro piedoso me disse isso, estarrecido, eu perguntei a ele: “Você não se arrepende de ter matado tanta gente?” Ele, altaneiro, me disse: “De jeito nenhum. Estávamos lá no Vietnã em nome de Deus, éramos os defensores de Deus. Guerreávamos contra os comunistas ateus e filhos do demônio.” O cozinheiro piedoso meteu a mão no bolso e me mostrou uma nota de dólar onde estava a inscrição “we trust in God” (Nós acreditamos em Deus). E acrescentou: “Se não fôssemos nós lá na guerra contra os vietnamitas, o demônio teria tomado conta do mundo, pois para eles “a religião é ópio do povo.” Naquele momento, percebi que os capitalistas se dizem pessoas religiosas, mas na prática são grandes inquisidores cotidianamente, abstratamente dizem que acreditam em Deus, na prática são idólatras, pois matam irmãos como Caim.

    Entretanto, a história demonstra que o Grande Inquisidor não tem a última palavra. Os Grandes Inquisidores são jogados na lata de lixo da história e quem faz e entra para a história são os torturados e matados pelo Grande Inquisidor. Nessa linha, o germe da revolução que superará o capitalismo, essa máquina feroz de moer vidas, está inoculado em Assentamentos para milhares de famílias acampadas na luta pela reforma agrária, está nas Comunidades Indígenas, Quilombolas e muitos outros Povos Tradicionais que enfrentam O Grande Inquisidor cotidianamente. Só em Belo Horizonte, nos últimos 13 anos, 30 mil famílias se libertaram da cruz do aluguel ou da humilhação que é sobreviver de favor construindo 30 mil casas em 119 ocupações, enfrentando o Tribunal, jagunços, tropa de choque, resistindo a despejos e construindo “debaixo pra cima e de dentro pra fora” uma cidade que caiba todas e todos. Assim como Jesus ressuscitou ao terceiro dia, todos/as que são submetidos a processos inquisitoriais também ressurgem, combatendo o bom combate e construindo esperança e lutas inspiradoras pelo bem comum. Sigamos na luta como discípulos/as de todos/as que foram vítimas do Grande Inquisidor, seja no poder religioso, político ou econômico

    22/10/2020

    [1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente da CPT, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH e de Teologia bíblica no SAB, em Belo Horizonte, MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br      –       www.twitter.com/gilvanderluis        –    Facebook: Gilvander Moreira III

    [2] Conselho Nacional dos Direitos Humanos.

    Obs.: Os vídeos nos links e o áudio, abaixo, ilustram o assunto tratado acima.

    1 – Francisco de Assis nos inspira e nos interpela – Por frei Gilvander – 20/10/2020

    2 – Soberania Alimentar com Vandana Shiva. Agronegócio e agrotóxicos matam! Dia da alimentação. 16/10/2020

    3 – Dimensão social do Evangelho de Jesus e o lugar social do CEBI: LUTA POR JUSTIÇA. Por Frei Gilvander

    4 – Grande Live em defesa do Rio São Francisco: contra barragem de Formoso e usina nuclear – 05/10/2020

    5 – Contra todas as cercas: Homenagem a Pedro Casaldáliga. Por CPT, MST, MAM, CIMI, MAB etc. – 08/9/2020

    6 – Lagoa da Prata/MG: Águas secadas, monocultura e agrotóxicos/XXI Romaria/Águas/Terra/MG/3a parte/9/18

    7 – Não jogue agrotóxicos na terra/agricultura familiar/agroindústria. Assentamento Padre Jésus. Vídeo 6

    8 – O que as mineradoras estão causando em Minas Gerais? Por Frei Gilvander, em Live, da ADUENF – 23/7/20


  • DEUTERONÔMIO: NÃO à idolatria, ao trabalho escravo e à agiotagem

    DEUTERONÔMIO: NÃO à idolatria, ao trabalho escravo e à agiotagem

    Religião alienada das questões sociais escraviza o povo, hoje e no passado. Quando tendências religiosas intimistas, espiritualistas, amputadoras da dimensão social do Evangelho de Jesus Cristo e desencarnadoras da fé cristã são alardeadas por líderes religiosos, sem pastores, padres ou leigos/as, levam as pessoas a cruzar os braços e apenas orar pedindo que Deus resolva de forma mágica as injustiças sociais, o que só piora a situação de injustiças reinantes.

    Gilvander Moreira[1]


    Assim, sem perceber, as pessoas alienadas religiosamente se tornam cúmplices dos processos de opressão do povo. Ao contrário, quando tendências religiosas que animam o povo a buscar na luta coletiva e comunitária a superação dos dramas e das injustiças que se abatem sobre o povo injustiçado, as lutas populares libertárias são potencializadas, pois o povo descobre que só na luta coletiva pode conquistar seus direitos. Valorizando a dimensão social do Evangelho de Jesus Cristo e a opção de Javé pelos oprimidos, a fé cristã mobiliza para lutas libertárias. Do contrário, de fato, certos tipos de expressões religiosas se transformam em ópio do povo.

    O livro de Deuteronômio não tolera idolatria, uso indevido do nome de Deus. “Não pronuncie em vão o nome de Javé seu Deus” (Dt 5,11), exortam de modo enfático os levitas, animadores das comunidades, que não podiam ter terra para não adquirir poder. O problema não está simplesmente em pronunciar o nome de Deus em vão, mas em usar para fins escusos o nome de Deus, pois, invocar o nome de Deus induz as pessoas a acreditar que quem o invoca é de fato um enviado de Deus. Sabemos que em um país com povo eminentemente religioso, nas eleições, quem se pronuncia como ateu perde voto e quem se apresenta como religioso ganha um grande volume de votos. Portanto, no Brasil, se apresentar como pessoa religiosa tornou-se uma estratégia eleitoral. Trata-se de um tipo de assédio religioso para fisgar as pessoas e induzi-las a acreditar que, pelo simples fato de alguém usar linguagem religiosa e ter aparência piedosa, já é digno de confiança. Ledo engano. A realidade demonstra que isso não é verdade.

    Os estragos aos direitos trabalhistas, previdenciários e ambientais foram aprovados no Congresso Nacional com os votos da Bancada da Bíblia – mais de cem pastores que se tornaram deputados federais – atuando junto com as Bancadas do Boi (Bancada dos latifundiários e do agronegócio) e da Bala (os que absolutizam o direito à propriedade só para eles mesmos e mentem afirmando que é com repressão que se resolverão problemas sociais). Portanto, cuidado com os que falam muito o nome de Deus, mas não cultivam atitudes coerentes com o Deus Libertador. As primeiras Comunidades cristãs, segundo o Evangelho de Mateus, já alertavam sobre as falsas promessas e para a necessidade de prática libertadora: “Cuidado com os falsos profetas: eles vêm a vocês vestidos em peles de ovelha, mas por dentro são lobos ferozes” (Mateus 7,15). “Nem todo aquele que me diz ‘Senhor, Senhor”, entrará no reino do Céu. Só entrará aquele que põe em prática a vontade do meu Pai, que está no céu” (Mateus 7,21).

    Trabalhar, sim, mas repousar no sábado. E honrar a memória dos ancestrais. O livro de Deuteronômio repudia trabalhar como escravo. “Não faça trabalho algum no sábado…” (Dt 5,12-13). Muito eloquente o modo como o livro de Deuteronômio enfatiza e alerta a todos/as, com detalhes, para não trabalhar todos os dias e nem de forma extenuante. Ninguém da família deve trabalhar no sábado, nem pessoas escravizadas e nem algum animal. Para que deixar de trabalhar todos os dias? – indagam os exploradores do trabalho alheio. “Que todos repousem no sábado, como você” é a resposta do deuteronomista em Dt 5,14.  Um princípio básico da Constituição do povo de Deus é garantir o direito ao repouso e ao ócio, o que é algo tremendamente anticapitalista, pois quanto mais se desenvolve o sistema capitalista mais se superexplora o trabalho por metas de produção e pela intensificação de exigências, impondo trabalho extenuante. A experiência histórica da escravidão no Egito, sob o Império dos Faraós, e das opressões ao longo da história da humanidade jamais pode ser esquecida. Jamais a história lida sob a perspectiva dos violentados pode ser encoberta ou apagada. Os novos opressores sempre insistem em apagar a história alegando mentirosamente que “não houve escravidão”, “não houve ditadura”, “não houve tortura”, porque tramam reinventar novas escravidões e novas ditaduras sangrentas.

    O livro do Deuteronômio prescreve também: honrarmos os nossos ancestrais. “Honre seu pai e sua mãe…” (Dt 5,16) não se refere apenas ao nosso pai e à nossa mãe, mas refere-se a todos/as nossos/as ancestrais e antepassados/as. Honrar “pai e mãe” implica honrar todos os profetas e as profetisas da Bíblia, todos/as os/as mártires de todos os tempos, todas as pessoas que contribuíram para que fôssemos quem somos e tivéssemos acesso ao que temos. Tudo o que existe: direitos individuais e sociais, bem como grandes descobertas e cultura em geral, é obra dos/as nossos/as antepassados/as.

    Verdadeira Constituição dos Povos de Deus da Bíblia, o Decálogo, que está em Êxodo 20,1-17 e em Deuteronômio 5,6-22, é formado de princípios que visam assegurar a construção de uma sociedade que não mate, não roube, não adultere, não calunie e nem desrespeite os direitos das mulheres e nem invada terras que são, por origem, do povo, pois “a terra pertence a Deus”. Ozorino Pires, camponês de 75 anos, atualmente assentado no Assentamento Dom Luciano Mendes, em Salto da Divisa, MG, gosta de dizer, evocando sua motivação de fé em Deus para estar na luta pela terra: “A Escritura diz que a terra foi criada por Deus sem cerca e sem porteira para todo mundo viver dela. Pelo que eu sei, Deus quando fez a terra não passou escritura para ninguém não. Somos filhos da terra e filhos de Deus”.

    No meio do livro do Deuteronômio, em Dt 15,1-23, temos o núcleo das relações sociais defendidas pelos Deuteronomistas: “Não deve haver pobre entre vocês, porque Javé vai abençoar você na terra que Javé seu Deus dará a você, para que a possua como herança” (Dt 15,4). Ou seja: Deuteronômio defende a construção de uma sociedade sem explorados e sem exploradores, com todos tendo acesso à terra “como herança”, uma sociedade justa economicamente e com sustentabilidade ecológica. Aqui os autores do Deuteronômio defendem três aspectos imprescindíveis das relações sociais: a) Não pode haver na sociedade relações sociais que empobreçam as pessoas; b) Todos terão acesso à posse da terra. Não se permite concentração da terra em poucas mãos; c) Ninguém será proprietário de terra. Somente o usufruto da terra, “como herança” dada por Deus, é defendido pelo Deuteronômio.

    Ao defender relações sociais que não gerem desigualdade social, o livro de Deuteronômio está em sintonia com o livro de Levítico, que prescreve a realização do Ano do Jubileu, de 50 em 50 anos (Lv 25,8-17): revolução geral da sociedade, com a terra sendo devolvida aos seus antigos possuidores e herdeiros (Lv 25, 10.13) ao defender que a “terra pertence a Deus” (Lv 25,23) e com I Reis que prescreve que a “terra é herança de Deus” (1 Rs 21,3), não sendo passível de ser comprada e nem vendida. Ninguém deve se considerar proprietário de terra, mas apenas posseiro, com direito ao usufruto.

    Ao prescrever relações sociais que não causem empobrecimento de ninguém, acesso à terra para todos/as e proibição de se transformar a terra em mercadoria, privatizando-a, o livro de Deuteronômio está sugerindo que de fato a causa matriz da desigualdade social é a apropriação da terra em processos de grilagem ou em propriedade privada capitalista. A grilagem e a latifundiarização dos territórios se tornam a âncora que sustenta todas as engrenagens de exploração que se desenvolvem em uma sociedade capitalista.

    As Comunidades que estão por trás do Deuteronômio, por experiência própria e pelas lições da história, sabem que não bastam leis justas, mas que é preciso cultivar relações de solidariedade libertadora permanentemente. Isso é defendido em Dt 15,7-11. Estejamos sempre atentos e dispostos a acolher quem por um motivo ou outro se tornou vulnerável. Porém, a solidariedade não pode ser assistencialista e nem gerar dependência. Precisa ser solidariedade aliada à luta pela justiça no seu sentido mais profundo. No caso de políticas públicas, não apenas políticas compensatórias ou de quotas, mas também políticas re-estruturadoras das bases da sociedade.

    De sete em sete anos se deve fazer um Ano Sabático, durante o qual as dívidas deverão ser perdoadas. “Todo credor que tenha emprestado alguma coisa a seu próximo, perdoará o que tiver emprestado. Não explorará seu próximo, nem seu irmão, porque terá sido proclamado um perdão geral em honra de Javé” (Dt 15,2). Esta utopia está sendo buscada pela comunidade dos povos que fizeram Aliança com Javé, Deus solidário e libertador. Isso implica que a sociedade que Deus quer não pode ter espaço para agiotagem, nem de banqueiros, nem de empresas e nem de pessoas que preferem viver sem trabalhar e só emprestando dinheiro.

    Enfim, por tudo exposto acima, percebemos que o livro de Deuteronômio pugna pela vivência da Aliança de Javé, Deus solidário e libertador, com seu povo escravizado, mas adverte: Se aparecerem empobrecidos na sociedade, é o SINAL: a ALIANÇA com JAVÉ está sendo rompida…

    Belo Horizonte, MG, 22/9/2020

    [1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; assessor da CPT, CEBI, SAB e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br      –       www.twitter.com/gilvanderluis        –    Facebook: Gilvander Moreira III

     Obs.: Os vídeos nos links, abaixo, ilustram o assunto tratado acima.

    1 – Frei Carlos Mesters fala sobre o Livro do Deuteronômio em entrevista a frei Gilvander – 15/01/2020

    2 – Cartilha do mês da Bíblia de 2020 do CEBI/MG: livro do Deuteronômio. Por Julieta Amaral – 18/6/2020

    3 – Livro do Deuteronômio, Levitas Resgatando ideais do Êxodo em plena Monarquia – CEBI/MG – Parte I

    4 – Livro do Deuteronômio, a pregação dos Levitas. Por Frei Gilvander, Julieta e Irmã Marysa – Parte II

    5 – Livro do Deuteronômio – chaves de leitura – Mês da Bíblia de 2020 – por Rafael, do CEBI. Vídeo 1

    5 – Deuteronômio/Mês da Bíblia 2020/Chaves de Leitura por Rafael Rodrigues, do CEBI/Vídeo 2 – 02/2/2020

    6 – Livro do Deuteronômio – Mês da Bíblia/2020: Pistas para uma leitura sensata e libertadora, por Rafael Rodrigues – Entrevista completa

    7 – Live – CEBI-MG lança Mês da Bíblia de 2020 sobre o livro de DEUTERONÔMIO, UM GRITO POR JUSTIÇA – 31/8/2020

    8 – Live – Deuteronômio, um grito por justiça: resgate de ideais do Êxodo em tempos de monarquia

    9 – Deuteronômio 1 parte (Por Sandro Galazzi)

    10 – Deuteronômio 2 a redação profética (Por Sandro Galazzi)

    11 – Deuteronômio 3 a redação de Josias (Por Sandro Galazzi)

    12 – Deuteronômio 4 a história deuteronomista (Por Sandro Galazzi)

  • 152 bispos profetas encaram o desgoverno federal

    152 bispos profetas encaram o desgoverno federal

    Em postura corajosa e profética, 152 bispos da Igreja Católica assinaram Carta ao Povo de Deus, divulgada dia 26/7/2020 na Coluna de Mônica Bergamo, na Folha de São Paulo, se posicionando contra os desmandos do atual desgoverno federal chefiado por Jair Bolsonaro. Outros 150 bispos poderão assinar esta Carta em breve, pois mais de 70% dos bispos e dos padres não apoiam o atual presidente que comanda política autoritária, criminosa, genocida e ecocida.

    Por Gilvander Moreira[1]

    Na Carta, os 152 bispos dizem em alto e bom tom: “Nesta sociedade estruturalmente desigual, injusta e violenta. Essa realidade não comporta indiferença. […] Temos clareza de que a proposta do Evangelho não consiste só numa relação pessoal com Deus. A nossa reposta de amor não deveria ser entendida como uma mera soma de pequenos gestos pessoais a favor de alguns indivíduos necessitados […], uma série de ações destinadas apenas a tranquilizar a própria consciência.”

    Os bispos alertam que o Brasil atravessa um dos períodos mais difíceis de sua história com “a combinação de uma crise de saúde sem precedentes, com um avassalador colapso da economia e com a tensão que se abate sobre os fundamentos da República, provocada em grande medida pelo Presidente da República e outros setores da sociedade, resultando numa profunda crise política e de governança.” “Não cabe omissão, inércia e nem conivência diante dos desmandos do Governo Federal”, pontuam os bispos.  Todos devem “combater as mazelas que se abateram sobre o povo brasileiro e a Casa Comum, ameaçada constantemente pela ação inescrupulosa de madeireiros, garimpeiros, mineradores, latifundiários e outros defensores de um desenvolvimento que despreza os direitos humanos e os da mãe terra.” Os 152 bispos denunciam também “a liberação do uso de agrotóxicos antes proibidos e o afrouxamento do controle de desmatamentos.” “Não podemos pretender ser saudáveis num mundo que está doente. As feridas causadas à nossa mãe terra sangram também a nós”” (Papa Francisco, Carta ao Presidente da Colômbia por ocasião do Dia Mundial do Meio Ambiente, 05/6/2020).”

    Com a ira santa de Jesus Cristo diante dos vendilhões do templo, lugar sagrado, os 152 bispos denunciam: “Assistimos, sistematicamente, a discursos anticientíficos, que tentam naturalizar ou normalizar o flagelo dos milhares de mortes pela COVID-19, tratando-o como fruto do acaso ou do castigo divino, o caos socioeconômico que se avizinha, com o desemprego e a carestia que são projetados para os próximos meses, e os conchavos políticos que visam à manutenção do poder a qualquer preço. Esse discurso não se baseia nos princípios éticos e morais, tampouco suporta ser confrontado com a Tradição e a Doutrina Social da Igreja, no seguimento Àquele que veio “para que todos tenham vida e a tenham em abundância” (Jo 10,10). […] As reformas trabalhista e previdenciária, tidas como para melhorarem a vida dos mais pobres, mostraram-se como armadilhas que precarizaram ainda mais a vida do povo.”

    Profetizam os bispos: “É insustentável uma economia que insiste no neoliberalismo, que privilegia o monopólio de pequenos grupos poderosos em detrimento da grande maioria da população”. Como bons pastores que não apenas cuidam das ovelhas feridas, mas enfrentam os lobos vorazes, os 152 bispos denunciam: “O sistema do atual governo não coloca no centro a pessoa humana e o bem de todos, mas a defesa intransigente dos interesses de uma “economia que mata” (Alegria do Evangelho, 53), centrada no mercado e no lucro a qualquer preço. Convivemos, assim, com a incapacidade e a incompetência do Governo Federal, para coordenar suas ações, agravadas pelo fato de ele se colocar contra a ciência, contra estados e municípios, contra poderes da República; por se aproximar do totalitarismo e utilizar de expedientes condenáveis, como o apoio e o estímulo a atos contra a democracia, a flexibilização das leis de trânsito e do uso de armas de fogo pela população, e o recurso à prática de suspeitas ações de comunicação, como as notícias falsas, que mobilizam uma massa de seguidores radicais.”

    De forma lapidar e com precisão cirúrgica, os 152 bispos põem o dedo nos desmandos do desgoverno federal: “O desprezo pela educação, cultura, saúde e pela diplomacia também nos estarrece. Esse desprezo é visível nas demonstrações de raiva pela educação pública; no apelo a ideias obscurantistas; na escolha da educação como inimiga; nos sucessivos e grosseiros erros na escolha dos ministros da educação e do meio ambiente e do secretário da cultura; no desconhecimento e depreciação de processos pedagógicos e de importantes pensadores do Brasil; na repugnância pela consciência crítica e pela liberdade de pensamento e de imprensa; na desqualificação das relações diplomáticas com vários países; na indiferença pelo fato de o Brasil ocupar um dos primeiros lugares em número de infectados e mortos pela pandemia sem, sequer, ter um ministro titular no Ministério da Saúde; na desnecessária tensão com os outros entes da República na coordenação do enfrentamento da pandemia; na falta de sensibilidade para com os familiares dos mortos pelo novo coronavírus e pelos profissionais da saúde, que estão adoecendo nos esforços para salvar vidas.”

    A idolatria do mercado é denunciada com veemência também pelos 152 bispos: “No plano econômico, o ministro da economia desdenha dos pequenos empresários, responsáveis pela maioria dos empregos no País, privilegiando apenas grandes grupos econômicos, concentradores de renda e os grupos financeiros que nada produzem. A recessão que nos assombra pode fazer o número de desempregados ultrapassar 20 milhões de brasileiros. Há uma brutal descontinuidade da destinação de recursos para as políticas públicas no campo da alimentação, educação, moradia e geração de renda.”

    Com veemência profética, continuam os 152 bispos: “Fechando os olhos aos apelos de entidades nacionais e internacionais, o Governo Federal demonstra omissão, apatia e rechaço pelos mais pobres e vulneráveis da sociedade, quais sejam: as comunidades indígenas, quilombolas, ribeirinhas, as populações das periferias urbanas, dos cortiços e o povo que sobrevive nas ruas, aos milhares, em todo o Brasil. […] O Presidente da República, há poucos dias, no Plano Emergencial para Enfrentamento à COVID-19, aprovado no legislativo federal, sob o argumento de não haver previsão orçamentária, dentre outros pontos, vetou o acesso a água potável, material de higiene, oferta de leitos hospitalares e de terapia intensiva, ventiladores e máquinas de oxigenação sanguínea, nos territórios indígenas, quilombolas e de comunidades tradicionais” (Cf. Presidência da CNBB, Carta Aberta ao Congresso Nacional, 13/07/2020).

    Os 152 bispos interpelam nossa consciência: “Como não ficarmos indignados diante do uso do nome de Deus e de sua Santa Palavra, misturados a falas e posturas preconceituosas, que incitam ao ódio, ao invés de pregar o amor, para legitimar práticas que não condizem com o Reino de Deus e sua justiça?” Cientes que mudança emancipadora só vem de baixo para cima, a partir dos explorados, os 152 conclamam a todas as pessoas de boa vontade: “Despertemo-nos, portanto, do sono que nos imobiliza e nos faz meros espectadores da realidade de milhares de mortes e da violência que nos assolam. Com o apóstolo São Paulo, alertamos que “a noite vai avançada e o dia se aproxima; rejeitemos as obras das trevas e vistamos a armadura da luz”” (Romanos 13,12).

    Esta Carta ao Povo de Deus é tão contundente e profética como os Documentos divulgados por bispos da Igreja Católica nos anos de chumbo da ditadura militar-civil-empresarial iniciada em 31 de março de 1964. Dia 6 de maio de 1973 – ano do milagre econômico -, 18 bispos e superiores religiosos do regional Nordeste II da CNBB lançaram o documento Eu ouvi os clamores do meu povo, que denunciava as práticas assistencialistas da Igreja, pois eram mancomunadas com os dominadores (Eu ouvi os clamores, 1973, p. 10).  Nesse Documento, os bispos do Nordeste analisavam e propunham revisão de postura. Diziam os bispos do Nordeste: “A Igreja tem feito o jogo dos opressores, tem favorecido aos poderosos do dinheiro e da política contra o bem comum. […] À luz, portanto, de nossa Fé e com a consciência da injustiça que caracteriza as estruturas econômica e social de nosso país, entregamo-nos a uma profunda revisão de nossa atitude de amor pelos oprimidos, cuja pobreza é a outra face da riqueza de seus opressores” (Eu ouvi os clamores, 1973, p. 27).

    Seis bispos do Centro-Oeste, da parte mais violentada da Amazônia, também lançaram no mesmo dia, 6 de maio de 1973, o documento Marginalização de um povo – grito das Igrejas, onde se afirmava: “Precisamos apoiar a organização de todos os trabalhadores. Sem isto, eles não se libertarão nunca” (Marginalização de um povo, 1973, p. 42).  Os bispos denunciavam a exploração a que era submetido o povo trabalhador nas contradições do capitalismo: “[…] é um povo que luta e labuta, diário, num trabalho que, se não tira da pobreza os que trabalham, serve para enricar mais ainda os que já são ricos. […] O latifúndio está crescendo, fica mais poderoso. E tem apoio das autoridades. […] O sistema capitalista é a fonte de todos os males que assolam a vida do povo” (Marginalização de um povo, 1973, p. 9 e 14). E, mesmo confundindo dinheiro com capital, os bispos do Centro-Oeste compreendiam as contradições do capital e anunciavam uma utopia: “Queremos um mundo onde os frutos do trabalho sejam de todos. Queremos um mundo em que se trabalhe não para enriquecer, mas para que todos tenham o necessário para viver: comida, zelo com saúde, casa, estudos, roupa, calçados, água e luz. Queremos um mundo em que o dinheiro esteja a serviço dos homens e não os homens a serviço do dinheiro” (Marginalização de um povo, 1973, p. 43).

    Os bispos e missionários da causa indígena lançaram também em 25 de dezembro de 1973 a declaração Y-juca-pirama – o índio: aquele que deve morrer, que era “documento de urgência”. Nesse se repudiava ‘civilizar’ os indígenas e defendia o reconhecimento das culturas indígenas. Nesse sentido afirmavam: “O objetivo do nosso trabalho não será ‘civilizar’ os índios. […] Urgente necessidade de reconhecer e publicar certos valores que são mais humanos, e assim, mais evangélicos do que os nossos ‘civilizados’ e constituem uma verdadeira contestação à nossa sociedade” (Y-Juca-Pirama, 1973, p. 21).

    Esses documentos assinados por vários bispos deixavam patente a necessidade de uma mudança radical na atuação pastoral da Igreja. No livro O poder do atraso: ensaios de Sociologia da História Lenta, José de Souza Martins aponta a revolução que esses Documentos de vários bispos provocavam: “Esses documentos anunciavam uma verdadeira revolução no trabalho pastoral, e constatavam que, de fato, o capitalismo subdesenvolvido e tributário não levaria à emancipação dos pobres. Ao contrário, o desenvolvimento econômico, que o Estado e o capital levavam adiante, no País, semeava fome, violência, destruição e morte” (MARTINS, 1999, p. 137).

    A Igreja muda para contribuir com o processo de emancipação humana da classe trabalhadora e do campesinato ao abraçar a opção pelos pobres, que “é uma opção preferencial pela des-ordem que desata, desordenando, os vínculos de coerção e esmagamento que tornam a sociedade mais rica e a humanidade mais pobre. E ao desatar, liberta” (MARTINS, 1989, p. 57).  Deus levanta os líderes da Igreja para denunciar o mal e anunciar que seu povo e toda a criação devem ser tratados com respeito e justiça, e conclamar a ações libertadoras, transformadoras .  “Ele te declarou, ó homem, o que é bom e que é o que o Senhor pede de ti: que pratiques a justiça, e ames a misericórdia, e andes humildemente com o teu Deus” (Miquéias 6,8). Com o monge Marcelo Barros saudamos “a volta da profecia na voz dos cuidadores do povo de Deus” e esperamos que estas denúncias claras contra o desgoverno federal que nos assola possam continuar por posicionamento claro destes bispos sobre os setores da nossa própria Igreja que apoiam esta iniquidade ou simplesmente ao se omitirem nesta hora a legitimam. Quem tiver ouvidos, ouça o que os 152 bispos dizem e enxergue o caminho que apontam.

    Referências.

    MARTINS, José de Souza. O poder do atraso: ensaios de Sociologia da História Lenta. 2ª edição. São Paulo: HUCITEC, 1999.

    MARTINS, José de Souza. Caminhada no chão da noite: emancipação política e libertação nos movimentos sociais do campo. São Paulo: HUCITEC, 1989.

    Documento de Bispos e Superiores Religiosos do Nordeste – Eu Ouvi os Clamores do Meu Povo. Salvador, Editora Beneditina, 1973; Marginalização de um Povo – o Grito das Igrejas, Goiânia, 1973; Y-Juca-Pirama – o Índio Aquele que Deve morrer (Documento de urgência de Bispos e Missionários), s.e., s.l., 1973.

    28/7/2020.

    Obs.: Os vídeos nos links, abaixo, ilustram o assunto tratado acima.

    1 – 3ª Live do Movimento Inter-Religioso do Vale do Aço, MG: Fora, Bolsonaro? – Debate Inter-Religioso.

    2 – Live – Fora Bolsonaro e o (des)governo federal? – Debate interreligioso

    3 – Live CRISTÃOS TAMBÉM GRITAM: “FORA BOLSONARO”!!! – Frei Gilvander Moreira, Pastor Daniel Elias (Frente de Evangélicos/PT), Renata Miranda (Frente de Evangélicos/MG), Sara Suzan (PJ) e Paulo Amaral.

    4 – Padre Nelito Dornelas: Debate Inter-Religioso “Fora, Bolsonaro e o (des)governo federal?”- 26/7/2020

    5 – Dom Vicente Ferreira na Live “Fora, Bolsonaro e o (des)governo federal?” – Debate Inter-Religioso, dia 12/7/2020.

    6 – Irmã Claudicéa Ribeiro na Live “Fora, Bolsonaro e o (des)governo federal?” – Debate Inter-Religioso – 12/7/2020.

    7 – Padre Ronan: “Fora, Bolsonaro e esse governo de morte!” Eloquência e Profetismo – 12/7/2020

    https://www.youtube.com/watch?v=3DEzWkp_7f4

    8 – A voz profética de dom Mauro Morelli: Por que “Fora, Bolsonaro”? – 12/7/2020

    9 – Padre Edson, de Artur Nogueira/SP reafirma denúncias das opressões causadas por Bolsonaro. 05/7/2020

    10 – Frei Gilvander e Dom Mauro Morelli na Live “Fora, Bolsonaro e o (des)governo federal?” – Parte I

    11 – Frei Gilvander na Live Cristãos também gritam “FORA BOLSONARO e todo desgoverno federal!”- 28/6/2020

    12 – Padre José Ailton: Faz carreata contra Quarentena quem não se preocupa com a vida dos trabalhadores


    [1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; assessor da CPT, CEBI, SAB e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br      –       www.twitter.com/gilvanderluis        –    Facebook: Gilvander Moreira III

  • Luta pela terra é também espiritual e profética

    Luta pela terra é também espiritual e profética

    ARTIGO

    Gilvander Moreira1

    Assim como há ciências, há também teologias que sistematizam a luta pelo bem comum a partir de uma fé emancipatória – fé no Deus da vida e no Evangelho de Jesus Cristo. Na realidade conflituosa e contraditória da sociedade capitalista em que vivemos, marcada por uma das maiores concentrações fundiárias do mundo e por um povo religioso, torna-se necessário analisar a luta pela terra também sob o ponto de vista da teologia bíblica. Em inúmeras passagens bíblicas, as profetisas e os profetas bradam, em nome do Deus da vida: “Queremos a justiça e o direito”! Isso não se mendiga, conquista-se na luta coletiva e organizada.

    Há na Bíblia muitos textos de denúncia da grilagem de terras como, por exemplo: “Não removerás os marcos de teu próximo do lugar em que os puseram teus pais para delimitar a herança familiar, no país que o Senhor teu Deus te dará em posse” (Deuteronômio 19,14); “Maldito aquele que remover os marcos da herança do seu próximo” (Deuteronômio 27,17); “Os maus removem os marcos dos terrenos” (Jó 24,2). Na Bíblia a terra aparece como sendo herança de Deus, algo que deve passar de pai para filha/filho, não pode ser vendida, pois não é mercadoria.

    Para os povos indígenas “a terra é sagrada, nela se baseia a organização tribal. Entre os tapirapé, os mortos são enterrados dentro das casas em que viveram e onde continuam vivendo os seus parentes” (MARTINS, 1983, p. 117). No livro Os Camponeses e a Política no Brasil: as lutas sociais no campo e seu lugar no processo político, José de Souza Martins recorda: “A um tapirapé a ideia de sepultar o morto fora da casa em que viveu causa o mesmo terror que causaria a nós a ideia de enterrar os nossos mortos dentro de casa. Seria sinal de abandono do morto por seus parentes, motivo para que viesse assombrá-los. Por isso, a troca ou venda da terra não faria nenhum sentido para um tapirapé, porque significaria, entre outras coisas, o abandono de seus parentes mortos e a quebra dos eixos de sustentação da sua sociedade” (MARTINS, 1983, p. 118).

    Na luta pela terra estão envolvidas não apenas questões políticas e econômicas, mas também questões religiosas. Exemplo disso foi que o Estado, por meio da Polícia Militar, assassinou o monge José Maria em 22 de outubro de 1912. Após sua morte, a guerra do Contestado cresceu muito e se alongou até 1916.

    As mulheres parteiras do Egito – a Bíblia registra os nomes de duas: Séfora e Fuá (Êxodo 1,8-22) -, diante de uma “medida provisória” de um faraó (semelhante a um Decreto-Lei) que mandava matar no momento do nascimento as crianças do sexo masculino, organizaram-se e fizeram greve e desobediência civil, política e religiosa. “Não vamos respeitar uma lei autoritária do império dos faraós. O Deus da vida quer respeito à dignidade da pessoa humana e não concorda com a matança de crianças e com nenhuma opressão”, devem ter dito em seus corações as Mulheres do ‘sistema de saúde’ sob o imperialismo egípcio. Diz a Bíblia: “Deus estava com as parteiras. O povo se tornou numeroso e muito poderoso” (Êxodo 1,20), isto é, crescia em quantidade e em qualidade.

    Em meados do século IX antes da era cristã, época do profeta Elias, intransigente defensor dos camponeses, a monarquia reinante na Palestina estava reforçando a latifundiarização do país. As pequenas propriedades estavam sendo expropriadas pelos grandes proprietários, entre os quais os detentores do poder político monárquico. Nesse contexto, a Bíblia narra um episódio exemplar. O rei Acab e sua esposa Jezabel cometeram crime de usurpação investindo para açambarcar a pequena propriedade de um posseiro chamado Nabot, nome que significa, em hebraico, aquele que (se) doa. Nabot rejeitou trair os valores dos camponeses da época: “Javé me livre de ceder-te a herança dos meus pais!” (I Reis 21,3).

    O rei Acab se irritou com a resistência de Nabot. Jezabel, rainha adepta do ídolo Baal – deus da chuva e da fertilidade -, manipulou a religião e a justiça para roubar a terra do posseiro. Caluniou, criminalizou e demonizou Nabot que, com o beneplácito do sistema judiciário da época, foi condenado à pena de morte por apedrejamento. Porém, como a expropriação dos camponeses e o sangue dos mártires suscitam a atuação veemente de profetas, ao ouvir que o rei Acab estava invadindo a pequena gleba do posseiro Nabot, após tê-lo matado, apareceu o profeta Elias e, em alto e bom som, profetizou: “Você matou, e ainda por cima está roubando? Por isso, assim diz Javé (Deus solidário e libertador): No mesmo lugar em que os cães lamberam o sangue de Nabot, lamberão também o seu. Farei cair sobre você a desgraça” (I Reis 21,19.21).

    O profeta Elias foi veemente na condenação da ação do chefe da monarquia (I Reis 21,17-26). A compreensão da terra como pertencente a Deus permeia e perpassa toda a Bíblia. Por exemplo, no livro de Levítico se afirma: “Assim disse Javé, o Deus da Vida: A terra não será vendida, pois que a terra me pertence” (Levítico 25,23).

    O profeta Miqueias nasceu no interior de Judá, sul da Palestina, e atuou entre os anos 725 e 696 antes da era cristã. Miqueias foi provavelmente um camponês empobrecido, marginalizado e vítima de processo de expropriação pela falta de apoio à agricultura camponesa. Miqueias denunciou a cobiça e as injustiças sociais que os dirigentes políticos e religiosos estavam cometendo sobre o campesinato da época. Ele condena a riqueza como fruto da exploração.

    Profeta dos sem terra, Miqueias defendeu a partilha e a socialização da terra. Vindo do campo, ao chegar à capital Jerusalém, ele se defronta com os enriquecidos – políticos profissionais, especuladores e religiosos funcionários do sagrado -, denuncia a exploração e a expropriação dos camponeses do sul da Palestina. Miqueias, de forma intrépida e contundente, profetiza: “Ai daqueles que, deitados em seus leitos de marfim, ficam planejando a injustiça e tramando o mal! É só o dia amanhecer, já o executam, porque têm o poder em suas mãos. Cobiçam campos, e os roubam. Tomam as casas do povo, oprimem o homem, sua família e sua comunidade; roubam a herança deles, a perspectiva de futuro” (Miqueias 2,1-2).

    Para Miqueias, ‘a herança deles’ é a terra, que é roubada. Com o dedo em riste, o profeta acusa os exploradores: “São vocês os inimigos do meu povo: de quem está sem o manto, vocês exigem a veste” (Miqueias 2,8). “Vocês expulsam da felicidade de seus lares as mulheres do meu povo” (Miqueias, 2,9a). “Vocês tiram dos filhos a liberdade que eu lhes tinha dado para sempre” (Miqueias 2,9b). Ele ameaça e condena Israel (o reino do norte da Palestina) e seus chefes exploradores como “aqueles que comeram a carne do povo, arrancaram-lhe a pele…” (Miqueias 3,1-3) e aponta como culpados os militares, os falsos profetas, os chefes, os comandantes, os juízes, os sacerdotes; enfim, a classe dominante da época. Denuncia ainda o profeta Miqueias: “Essa gente tem mãos habilidosas para praticar o mal: o príncipe exige, o juiz se deixa comprar, o grande mostra a sua ambição. E assim distorcem tudo. O melhor deles é como espinheiro, o mais correto deles parece uma cerca de espinhos! O dia anunciado pela sentinela, o dia do castigo chegou: agora é a ruína deles” (Miqueias 7,3-4).

    Apesar da opressão e das injustiças contra os camponeses, o profeta Miqueias (e/ou suas/seus discípulas/discípulos), não perde a esperança e anuncia também a utopia que está sendo produzida nas entranhas da luta coletiva pelo bem comum: “Em um campo em ruínas, na Samaria, uma plantação de vinhas – lavouras – será feita.” (Miqueias 1,6). “De suas espadas vão fazer enxadas, e de suas lanças farão foices” (Miqueias, 4,3).2 Como herdeiro da fina flor libertária da caminhada dos povos da Bíblia, passando pela sabedoria do povo – “Os pobres possuirão a terra” (Salmo 37,11) -, Jesus Cristo ecoa no discurso da montanha a utopia da terra partilhada e socializada com quem precisa: “Felizes os humildes, porque herdarão a terra” (Mateus 5,4). Portanto, a luta pela terra não é apenas uma questão política, mas também uma questão de fé, espiritual e profética. Feliz quem dela participa3.

    Referências

    MARTINS, José de Souza. Os Camponeses e a Política no Brasil: as lutas sociais no campo e seu lugar no processo político. 2ª edição. Petrópolis: Vozes, 1983.

    MOREIRA, Gilvander Luís. Profeta Miqueias, um camponês que clama por Justiça (Mq 1-3). p. 37-42. In: AMARAL DA COSTA, Julieta (Org.). Em tempos difíceis, o profeta Miqueias aponta saídas: uma leitura do livro de Miqueias feita pelo CEBI-MG. São Leopoldo/RS: CEBI, 2016.

    07/7/2020.

    Obs.: Os vídeos nos links, abaixo, ilustram o assunto tratado acima.

    1 – Acampamento Dênis Gonçalves, do MST, em Goianá, MG – luta pela terra. Frei Gilvander – 26/8/2010.

    https://www.youtube.com/watch?v=vKJpT-dC5fo

    2 – Acampamento Eloy Ferreira, do MST, Engenheiro Navarro/MG: luta pela terra. Frei Gilvander. 02/9/2010

    https://www.youtube.com/watch?v=YeuMetz-Sqk

    3 – MST na luta pela terra no sul de MG – Grito dos Excluídos – Frei Gilvander/luta por direitos/07/9/10

    https://www.youtube.com/watch?v=cT553hUQaeU

    4 – Palavra Ética: Luta pela terra e por moradia em Pirapora e em Santa Luzia, MG. E Leonardo Boff.

    https://www.youtube.com/watch?v=8xIZIw_-m3I

    5 – 160 famílias na luta pela terra em Pirapora, MG, há 20 anos. Despejar é injusto/violência. 17/2/2020

    https://www.youtube.com/watch?v=PkrCA8VV48Q

    6 – CEBs na luta pela terra com o MTC em Córrego Danta, MG: Fé e luta por direitos. Vídeo 3 – 16/8/2019

    https://www.youtube.com/watch?v=p2agyVkQq9U

    1  Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; assessor da CPT, CEBI, SAB e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br      –       www.twitter.com/gilvanderluis        –     Facebook: Gilvander Moreira III

    2 Cf. também MOREIRA, Gilvander Luís. Profeta Miqueias, um camponês que clama por Justiça (Mq 1-3). p. 37-42. In: AMARAL DA COSTA, Julieta (Org.). Em tempos difíceis, o profeta Miqueias aponta saídas: uma leitura do livro de Miqueias feita pelo CEBI-MG. São Leopoldo/RS: CEBI, 2016.

    3 Gratidão à Carmem Imaculada de Brito, doutora em Sociologia Política pela UENF, que fez a revisão deste texto.

  • Em Nome de Jesus

    Em Nome de Jesus

    Por José Barbosa Junior*
    Em nome de Jesus, o exilado (levado por seus pais ao exílio, no Egito), relembramos os milhares de brasileiros que tiveram que deixar o seu país às pressas por conta de um regime autocrático, violento e perverso;
    Em nome de Jesus, o periférico, rechaçamos essa política classista que ignora as periferias, jogando-as ao esquecimento público e entregando-as aos poderes do tráfico, das milícias e de alguns religiosos que aumentam a exploração e falta de dignidade humana;
    Em nome de Jesus, o pobre, repudiamos a Reforma da Previdência acachapante e vilipendiadora dos direitos dos mais pobres, que mais uma vez retira de quem não tem para continuar agradando aos poderosos e ricos que dominam o país desde sua invasão;
    Em nome de Jesus, o não branco, denunciamos o genocídio da juventude negra e o racismo estrutural que coisifica o jovem negro, e como “coisa”, o elimina como se não fizesse parte da nossa humanidade; também o genocídio das tribos indígenas, cada vez mais à mercê dos latifundiários e grileiros que roubam suas terras e assassinam nossos índios, verdadeiros donos e cuidadores de nossa terra;
    Em nome de Jesus, amigo dos excluídos, gritamos com os nossos irmãos e irmãs LGBT’s contra a LGBTFobia que mata e exclui gays, lésbicas, bissexuais, transexuais, intersexos e os relega a uma vida de “segunda categoria”, reféns de um sistema heteronormativo que, em nome de deus, os trata como malditos e, por isso, merecedores da morte;
    Em nome de Jesus, que reconhece a voz e a força das mulheres, nos juntamos à luta contra o feminicídio e o machismo, também estruturais e estruturantes de nossa sociedade, que reduz a mulher à subserviência e que tem como grande objetivo de vida “servir ao homem e aos filhos”, retirando delas a proeminência, protagonismo e poder, a elas inerentes e justos;
    Em nome de Jesus, o preso político, torturado e morto, com o aval do Império e do deus fundamentalista da religião opressora, condenamos, rejeitamos e desprezamos quaisquer movimentos que queiram relembrar a terrível e cruel ditadura que vivemos recentemente, e que não reconhecemos como legítimas as palavras de apoio de líderes religiosos a tais atos. São falsos líderes, mercenários da fé, que há muito já venderam suas almas ao que existe de mais perverso neste sistema. Relembramos e reverenciamos a memória de tantos irmãos e irmãs que tombaram nos “anos de chumbo”, como Frei Tito e Paulo Wright, e tantos outros que sobreviveram aos porões e às torturas desse período. Com estes, o Cristo se identifica em suas dores e temores.
    Em nome de Jesus, o que experimenta a ressurreição, reivindicamos a esperança e o encorajamento para a luta; o ânimo que, contra tudo e todos, nos preenche; a vida que insiste em não se entregar à morte e a força para recomeçar, resistir e avançar.
    Não vamos retroceder!
    Em nome de Jesus!
    * José Barbosa Junior é teólogo e pastor da Comunidade Batista do Caminho em Belo Horizonte-MG.