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  • Qual será o lugar de Aras na história da crise democrática brasileira?

    Qual será o lugar de Aras na história da crise democrática brasileira?

    ARTIGO

    Rodrigo Perez Oliveira, professor de Teoria da História na Universidade Federal da Bahia

     

    Não é nenhuma novidade ver profissionais do Direito ocupando posição de grande influência política no Brasil. É algo tão antigo quanto a própria existência nacional. Basta lembrar de Joaquim Nabuco, que no final do século XIX disse que as “faculdades de Direito são a antessala da Câmara dos Deputados”.

    Mas algo mudou no perfil da atuação política dos profissionais do Direito. Empoderados pela Constituição de 1988, eles não se contentam mais em serem apenas bacharéis eleitos que se locupletam com cargos políticos e gordos salários. Pretendem interferir na realidade nacional, participar ativamente do debate público. Têm seus próprios projetos de nação. Estão convencidos de que podem mesmo salvar o país.

    Vários são os nomes: começando por Joaquim Barbosa e chegando até Sérgio Moro, passando por Deltan Dallagnol, Luís Roberto Barroso e tantos outros. Aqui, neste ensaio, quero tratar de um personagem específico, alguém que vem constantemente frequentando o noticiário político: Augusto Aras, Procurador Geral da República.

    Aras representa bem a complexidade da crise democrática brasileira.

    Membro do Ministério Público Federal desde 1987, Aras está longe de ser “bolsonarista raiz”, tampouco é “terrivelmente evangélico”. Na campanha para a PGR, Aras até piscou para os conservadores, falou em “ideologia de gênero”, criticou a criminalização da homofobia. Estava interessado no emprego.

    Bastam dois cliques no Google para descobrir que o jurista baiano não tem compromisso de longa data com a agenda conservadora nos costumes. Bem pelo contrário, pois Aras chegou a oferecer, em 2013, uma festa em homenagem ao ex-deputado petista Emiliano José. Zé Dirceu e Rui Falcão estavam entre os convivas. Por muito menos, o Bolsonarismo já colou o selo de “comunista” na testa de outros.

    Jair Bolsonaro, que de bobo não tem nada, sabe que o PGR é estratégico para a sobrevivência política do presidente da República. Bolsonaro acompanhou de perto, de dentro da Câmara dos Deputados, o que Rodrigo Janot fez com Michel Temer. Duas denúncias em exercício de mandado, o que acabou consumindo todo o capital político de Temer, que não fez mais nada a não ser se defender.

    Fica, então, a pergunta: por que Bolsonaro escolheu um não alinhado para posição tão decisiva? Certamente, havia outros candidatos mais palatáveis à ala ideológica do governo. Difícil saber o que passa na cabeça do presidente. Resta apenas tatear a crônica e sugerir algumas hipóteses. Vamos lá.

    Aras foi indicado por Bolsonaro em 5 de setembro de 2019. Naquela altura, as relações de Bolsonaro com Moro já estavam um tanto estremecidas. COAF, Juízes de garantia e a disputa pelo controle da Polícia Federal. Não eram poucos os pontos de tensão.

    Estava claro para todos que bolsonarismo e lava-jatismo não eram aliados orgânicos.

    A Lava Jato foi determinante para pavimentar a chegada de Bolsonaro no Palácio do Planalto, mas jamais deixou de ter seu próprio projeto de poder. Esse projeto tem nome, sobrenome e horizonte cronológico: Sérgio Moro, 2022. No horizonte lava-jatista, Bolsonaro sempre foi visto como um momento de transição.

    Bolsonaro, escaldado, precisava de alguém no comando do Ministério Público que fosse capaz de agir como contraponto à Lava Jato. Sob todos os aspectos, Aras era o nome ideal. Crítico histórico da Lava Jata, Augusto Aras foi o principal antagonista de Rodrigo Janot, o PGR que entre 2015 e 2017 atuou como fiador dos menudos de Curitiba.

    Para além de rivalidades, vaidades e projetos pessoais de poder, entre Janot e Aras há uma clara diferença naquilo que se refere ao conceito de Ministério Público. Desde a década de 1990 que Janot defende um Ministério Público ativo politicamente, cuja função seria “representar os interesses da sociedade civil, que ainda não é capaz de se fazer representar pelo voto”, como disse em conferência ministrada no congresso anual da OAB em 1996.

    Na época, Janot era o presidente da Associação Nacional dos Procuradores da República, a ANPR. Na lógica de Janot, o despreparo da sociedade civil faz com que o voto seja manipulado por políticos profissionais inescrupulosos, cabendo ao Ministério Público a missão de tutelar o povo.

    Já Augusto Aras defende um MP contido e respeitador do sistema político-partidário. Em sua produção intelectual, Aras se mostra muito preocupado com a fragilização dos partidos políticos, o que seria o principal fator de enfraquecimento da democracia representativa brasileira. Nas palavras do próprio Aras:

    “Os partidos políticos são relevantes para a sociedade brasileira, em especial porque despersonalizam o poder político institucionalizado. Todas as vezes que nós temos os salvadores da pátria e aventureiros do poder político, nós corremos o risco de mitificações que geraram ditaduras, como as de Mussolini (Itália) e Hitler (Alemanha) e, no Brasil, com os coronéis da região Nordeste e os caudilhos do sul.”

    Tal como Janot, Aras também vê certo despreparo do povo, que ainda não teria se interessado em fiscalizar a fidelidade partidária dos seus eleitos. Mas enquanto Janot vê a solução no Ministério Público ativista, Aras argumenta que saída passa pela própria política institucional, pelo fortalecimento dos partidos, cabendo ao poder judiciário apenas criar jurisprudência para coibir a infidelidade partidária.

    “Temos de evitar aventureiros”, afirmou Augusto Aras em entrevista ao Jornal “A Tarde” publicada em 19 de junho de 2016.

    Hoje, Aras é subordinado leal de Jair Bolsonaro, que trocou de partidos diversas vezes e que, neste exato momento, é um presidente sem partido. O mundo não gira. O mundo capota.

    O que estou querendo dizer é que a jornada que Augusto Aras está movendo contra a Lava Jato não é apenas estratégia para agradar o chefe e faturar a indicação para o STF. É produto de convicção política, é questão conceitual. Para Aras, o MP não pode aceitar que uma de suas forças tarefas conspire para a destruição do sistema político/partidário.

    Seria superestimar demais Bolsonaro e sua equipe imaginar que eles, conhecendo as convicções teóricas de Aras, sabiam que o procurador baiano é o homem ideal para colocar freios na Lava Jato? Ou será que o governo da décima maior economia do mundo se deixou levar pelo papinho da ideologia de gênero que Aras lançou durante a corrida à PGR e escolheu o chefe do MP baseado apenas nisso?

    Fato mesmo é que Aras está fazendo dois trabalhos. É o protetor dos milicianos fascistas que ocupam o Palácio do Planalto. Mas é também o inimigo mais perigoso que a Operação Lava jato já teve.

    Muitos já tentaram, mas ninguém conseguiu acuar a Lava Jato com a eficiência de Augusto Aras. Os operadores sentiram o golpe e colocaram os pés pelas mãos, numa tentativa desesperada de alargar o apoio na opinião pública ao bater, com pelo menos cinco anos de atraso, na porta de José Serra. Aconteceu no último 3 de julho.

    A Lava Jato tenta, desesperadamente, tirar o nariz da água.

    Retomo a pergunta inicial: qual será o lugar de Augusto Aras na história da crise democrática brasileira?

    Depende da avaliação. O que é pior para o Brasil?

    Se acharmos que é Bolsonaro e sua quadrilha, colocaremos Augusto Aras na lata de lixo da história, junto com outros colaboracionistas. Se acharmos que é a Lava Jato, talvez o jurista baiano tenha alguma chance de sair disso tudo com alguma menção honrosa na biografia.

    E você? O que acha?

     

  • Como é o atendimento aos migrantes venezuelanos durante a pandemia?

    Como é o atendimento aos migrantes venezuelanos durante a pandemia?

    O aeroporto de Boa Vista recebe voos em apenas dois horários, durante a madrugada ou ao meio-dia. Enquanto em São Paulo o voo partia em uma alvorada fria, chegava-se ao estado nortista com a marca de 37º. Havia um grande contraste de temperatura no mês de março. A viagem por avião e a rápida mudança de clima, no entanto, não eram a realidade da maioria das pessoas que entravam no estado de Roraima naquele momento. A maioria doa imigrantes venezuelanos realizava o caminho a pé ou em automóveis. A cidade fronteiriça do lado brasileiro, Pacaraima, era o reduto de alguns deles. Outros caminhavam, pediam carona, pegavam ônibus ou táxis até a capital Boa Vista, que fica a 214 km e, aproximadamente, 4h30 de distância de carro.
    Por Martha Raquel e Michele de Mello, do Brasil de Fato | Boa Vista (RR) e Caracas (Venezuela) 
    O aeroporto internacional de Boa Vista é um dos únicos do país que mantém um posto fixo da Defesa Civil com agentes sanitários. / Michele de Mello

    A reportagem do Brasil de Fato acompanhou por 18 dias a situação de Roraima, entre o momento da chegada à capital do estado até o fechamento da fronteira terrestre com o país vizinho, motivado pela pandemia da covid-19, em março.

    Segundo os últimos dados do Comitê Nacional para os Refugiados (Conare), existem cerca de 45 mil venezuelanos no Brasil que solicitaram o pedido de refúgio. Destes, mais de 33 mil residem em Roraima, seguido do Amazonas, com cerca de 8,4 mil pessoas.

    A crise econômica aprofundada pelo bloqueio econômico imposto pelos Estados Unidos desde 2015 à Venezuela, assim como a crise do mercado petroleiro, foram os principais fatores que levaram à precarização da vida da população do país vizinho. O boom dos pedidos de refúgio aconteceu em 2018, quando o Conare avaliou que havia uma situação “grave e generalizada de violação de direitos humanos” na Venezuela, facilitando a entrada e documentação dos imigrantes.

    Caminhar por Boa Vista ao longo do mês de março era como estar em uma cidade venezuelana. Pelas ruas do Centro da cidade, o idioma predominante era o espanhol e as calçadas eram preenchidas com centenas de barracas, mesas, toalhas no chão ou pequenas estruturas para venda de produtos. Abridores de latas, canetas, pirulitos, bombons, pentes de cabelo, sabonetes, desodorantes, panos de prato, espigas de milho, frutas, água. Era possível comprar tudo direto das mãos dos imigrantes venezuelanos.

    Boa Vista é uma capital com clima de interior, que tem um quarto de seu território demarcado como área indígena. A cidade também é a segunda com maior número de venezuelanos no país, ficando atrás apenas de Pacaraima, que faz divisa com Santa Elena de Uairén, na Venezuela.

    Em ambas as cidades, havia venezuelanos que moravam em casas alugadas ou compradas, outros viviam em abrigos e uma boa parte dormia nas ruas, por exemplo, as do entorno da rodoviária de Boa Vista, por onde também chegavam diariamente centenas de imigrantes.

    Uma das ocupações independentes que servem de abrigo aos venezuelanos é a Ka Ubanoko, “lugar de morada” na língua indígena Warao. Esta é uma é uma das 11 casas independentes e autogestionadas de Boa Vista. Com regras rígidas de organização, a ocupação sobrevive há quase um ano e meio em um terreno público que já foi a tentativa de construção de um clube de trabalhadores, obra que nunca foi terminada.

     

    Uma das construções da ocupação Ka Ubanoko, que abriga indígenas venezuelanos em Boa Vista (RR) / Martha Raquel/Brasil de Fato

    No mês de março, o local abrigava cerca de 850 pessoas, que dividiam cinco áreas, entre espaços reaproveitados da construção do parque, casinhas de madeira, barracas e redes. Eram povos crioulos e indígenas de quatro etnias diferentes: Warao, Enepà, Karina e Pemon. A maioria falava espanhol, mas outros se comunicavam apenas na língua originária. Não havia estrutura de banheiros e cozinha para todas as famílias. Uma mesma torneira era usada para tomar água, banho de balde, cozinhar, além de lavar roupas e utensílios.

    Muitos dos indígenas que ali estavam foram parar na ocupação por falta de vaga nos abrigos da Operação Acolhida do Exército brasileiro, mas hoje valorizam a autonomia que conquistaram no espaço. Lá, eles continuam mantendo seus costumes e sua cultura, por meio de suas línguas originárias, músicas e cultos.

    Também atuante em solo roraimense, a Agência de Refugiados das Nações Unidas (Acnur) gerencia outros 13 abrigos temporários e um espaço emergencial, onde viviam, em março, cerca de 6 mil pessoas, entre refugiados e migrantes. Esses espaços são administrados pela Acnur junto à Força-Tarefa do Exército brasileiro. A reportagem do Brasil de Fato esteve em dois dos abrigos da Operação Acolhida.

    Composto por casinhas compartilhadas por duas famílias cada, mais espaço de banheiros, mesas para refeições, bicicletário, horta comunitária e estrutura para aulas de português para imigrantes, o abrigo São Vicente 2 é um dos mantidos pela Operação.

    Josiah Okal K’Okal, da ordem dos Missionários da Consolata, é oriundo do Quênia e já trabalhou por 22 anos na Venezuela, sendo nove deles acompanhando o povo Warao. Atualmente, cursa mestrado em Antropologia na Faculdade Latino-americana de Ciências Sociais (Flacso), em Quito, Equador. Os estudos acadêmicos o motivaram a passar dois meses no Abrigo Pintolândia, organizado pelo Exército brasileiro em Boa Vista, para pesquisar o processo migratório dessa etnia. Além disso, fez visitas ao Abrigo Janokoida, em Pacaraima.

    “Nos dois abrigos que estive, os moradores são todos indígenas, Warao e Enepá. A primeira coisa que me impressionou foi o número de atores na administração do abrigo. Posso classificar em grupos aqueles que administram o abrigo: os que estão fisicamente presentes todo o tempo – a Fraternidade Internacional e o Exército –, e os que tomam decisões e quase nunca estão presentes no espaço do abrigo – outros órgãos estatais, governo regional, governo municipal, ACNUR, OIM [Organização Internacional para as Migrações]”, afirma.

    K’Okal também lista outras agências que, segundo ele, estão em alguns momentos, como o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), Médicos Sem Fronteiras, entre outros.

    Segundo o missionário, há críticas dos migrantes quanto à ausência física de acompanhamento, o que acarreta em problemas cotidianos. “A comida servida vem de fora do abrigo, já embalada em marmitas. Geralmente, o menu consiste em carne com salada crua e arroz, acompanhado de uma bebida industrial, suco. A comida é a mesma para todos, até para crianças recém-nascidas. A carne é frequentemente frita e sempre muito seca. Às vezes, eles comem frango ou peixe, mas é bem raro isso acontecer”, relata o pesquisador.

    O Exército é o responsável pela contratação de quem fornece a alimentação dos abrigos, mas a administração diária é incumbência da Fraternidade Internacional. A rotina diária, além da distribuição dos alimentos, envolve horários rígidos para despertar, café da manhã, almoço e jantar, bem como horários para entrada e saída do local. Todas as pessoas devem portar um documento com foto e o cartão com o código de barras do abrigo ao qual pertencem. Não é permitida a entrada de terceiros nem de moradores que estejam alcoolizados.

    “Em geral, no abrigo, há uma atmosfera de alegria, mas também de angústia. Os indígenas são sempre pessoas muito gratas e não exigem muito. Pintolândia tem mais características de comunidade do que de um campo de refugiados. Observei que a equipe da Fraternidade tenta fazê-los sentir que o abrigo é o lar deles. Há muita flexibilidade, muita proximidade, muita irmandade. Mas, seu contexto lhes tira a alegria às vezes”, conta K’Okal.

    Abrigo oficial do Exército São Vicente 2, no bairro São Vicente, em Boa Vista (RR) / Martha Raquel/Brasil de Fato

    O plano da reportagem do Brasil de Fato era conhecer todos os 13 abrigos e o centro de acolhida emergencial da Operação Acolhida, mas não houve tempo. O Estado brasileiro tinha cinco casos suspeitos de coronavírus já em 13 de março, mesmo dia em que o governo brasileiro anunciou que avaliaria o fechamento da fronteira terrestre com a Venezuela.

    Segundo o presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, a medida teria como estratégia conter o avanço do coronavírus no Brasil. No entanto, do lado venezuelano, no estado de Bolívar, nenhum caso havia sido registrado sequer como suspeito até então.

    A solicitação para o fechamento da fronteira do Brasil com a Venezuela e com a Guiana havia sido feito dois dias antes, em 11 de março, pelo governador de Roraima, Antonio Denarium. Na ocasião, o ministro da Saúde à época, Luiz Henrique Mandetta, disse que a fronteira com a Venezuela era “a única que realmente dava preocupação ao governo brasileiro”.

    Ao jornal O Estado de S.Paulo, Denarium disse que o grau de preocupação com a fronteira era “muito grande”. “Em Roraima estão entrando de 500 a 700 venezuelanos todos os dias. Se tiver um foco de novo coronavírus na Venezuela, e com essa migração desordenada, pode se tornar uma epidemia”, afirmou o governador no dia 12 de março. O fechamento da fronteira foi decretado na manhã do dia 18 de março.

    Àquela altura, o temor já estava generalizado pelo Brasil. Na capital de Roraima já não era mais possível encontrar máscaras, luvas ou álcool em gel nas farmácias. Em Pacaraima, apenas um lugar vendia máscaras. A unidade que, antes da pandemia, custava R$ 0,35, agora custava R$ 2. Um cartaz de oferta divulgava a caixa com cem máscaras por R$ 180,00.

    Proporcionalmente, Roraima possui a maior população indígena do Brasil, quase 50 mil pessoas, que também habitam a região próxima à fronteira / Michele de Mello

    No paço fronteiriço, por volta das 8:30 da manhã, venezuelanos foram impedidos de entrar no Brasil. Já os venezuelanos que estivessem em solo brasileiro poderiam voltar ao seu país de origem. Carregadores do país vizinho que viviam em Roraima e trabalhavam levando produtos de um lado a outro da fronteira não puderam retornar às suas casas.

    Um desses trabalhadores impedidos de retornar ao Brasil contou à reportagem que não sabia o que fazer. Pai de duas filhas, ele havia acabado de cruzar a fronteira para fazer uma entrega e estava impedido de retornar para a sua família. Junto a ele haviam pelo menos mais 30 carregadores na mesma situação.

    Ao Brasil de Fato, pedindo para não ser identificado, ele declarou que fazia mais de quatro horas que ele e outros carregadores estavam sob um sol de 34º, sem comida ou água. “Trabalhamos do lado brasileiro e, assim, sustentamos a família. A situação vai ficar pior do que está. A maioria de nós trabalha para nossas famílias, se não nos deixam passar, não trabalhamos nem comemos”, disse.

    Do lado brasileiro, havia barreiras da Força Nacional, da Polícia Federal e do Exército. Já do lado venezuelano, havia uma Brigada Itinerante de Prevenção à Contaminação pelo coronavírus, que contava com representantes da Milícia Nacional, do Exército, da Guarda Nacional, da Polícia do Estado Gran Sabana, além de médicos venezuelanos e estudantes de medicina brasileiros que fazem a graduação na Venezuela.

    A fronteira estava fechada apenas do lado brasileiro aos venezuelanos. Brasileiros tinham livre circulação. Um único agente da Polícia Federal checava a nacionalidade e liberava a passagem.

    Com o passar dos meses, o decreto inicial que estabelecia 15 dias de fechamento da fronteira terrestre foi alterado algumas vezes. A situação dos imigrantes venezuelanos, tanto os que vivem nas ocupações independentes quanto os que estão nos abrigos oficiais da Operação Acolhida, também mudou durante a pandemia.

    Os moradores da Ka Ubanoko estão recebendo visitas diárias de profissionais do Médicos Sem Fronteiras. Porém, ainda falta infraestrutura, com reclamações de dificuldades para exames, testagem e atendimentos especializados.

    Segundo a Acnur, houve a instalação de oito pias com água para os imigrantes que vivem em assentamentos espontâneos realizarem a higienização constante, além disso, o órgão afirma que distribuiu 7,3 mil kits de higiene e limpeza, colchões, redes, fraldas e roupas de ajuda emergencial.

    A ONU também investiu na construção de um hospital de campanha em Boa Vista, com capacidade para 1,2 mil leitos. A Área de Proteção e Cuidados (APC) deverá atender até 2,2 mil pessoas.

    Após ter o funcionamento adiado cinco vezes, o Hospital de Campanha de Roraima foi inaugurado no dia 19 de junho, três meses após o fechamento inicial da fronteira. O atraso foi devido ao não cumprimento, por parte do governo estadual, da compra de equipamentos e contratação de funcionários.O funcionamento será custeado através da união dos governos municipal e estadual.

    Para atender aos refugiados que perderam seus empregos durante a pandemia, a Agência assegura que ampliou seu programa de assistência financeira. Para a Irmã Telma Lage, advogada e coordenadora do Centro de Migração e Direitos Humanos da Diocese de Roraima, o esforço feito ainda é insuficiente diante da situação precária em que vivem os imigrantes venezuelanos no estado brasileiro.

    “A gente tem um número grande de invisíveis, pessoas que estão fora do radar, principalmente das agências da ONU e da Força-Tarefa. São as pessoas que estão pagando aluguel ou em situação de rua. Essa tem sido nossa maior preocupação durante a pandemia da covid-19, porque estes são os vulneráveis dentro dos vulneráveis, já que a maioria está na periferia da cidade”, conta.

    O último centro da Operação Acolhida em Pacaraima (RR) tem capacidade para atender cerca de duas mil pessoas, no entanto abriga apenas 50 venezuelanos. / Michele de Mello

    Atualmente, Roraima tem aproximadamente 22 mil casos confirmados com o novo coronavírus. Boa Vista tem a grande maioria das confirmações, mais de 16,4 mil. Pacaraima, cidade que faz fronteira com a Venezuela, é a segunda do estado, com mais de 900 casos confirmados. O estado registrou 396 mortes. Os dados são da Secretaria de Estado da Saúde de Roraima, desta sexta-feira (10).A reportagem buscou contato com o governo estadual para um panorama da situação do estado, mas não obteve retorno até a publicação desta matéria.

    Como último estado do Brasil a confirmar casos de infecção pela covid-19, Roraima recebeu o vírus não pela fronteira com a Venezuela, espaço de grande preocupação de mandatários brasileiros, mas por duas pessoas contaminadas oriundas de São Paulo, no dia 21 de março. Naquela data, segundo dados do Ministério da Saúde, o Brasil contava com 1.128 casos confirmados de coronavírus e 18 mortes (três no Rio de Janeiro e 15 em São Paulo). Na Venezuela, de acordo com dados oficiais, o país registrava 70 casos em todo o território nacional; a primeira morte só veio a acontecer no dia 26 de março.

    Fronteira entre Brasil e Venezuela, no dia 18 de março de 2020 / Martha Raquel/Brasil de Fato

    Do lado de lá da fronteira: Venezuela 

    As bandeiras entre os dois países são o último símbolo que marca o limite invisível da fronteira entre Brasil e Venezuela. No lado tupiniquim, um agente da Polícia Federal, com seu telefone celular, fotografa os caminhões e cidadãos que tentam cruzar o passo fronteiriço. Este é o último rastro do Estado brasileiro. A sede do órgão está fechada para atendimentos presenciais por conta da pandemia. Tampouco existe qualquer equipe de saúde realizando controle sanitário.

    Dois passos adiante, numa tenda instalada a céu aberto, soldados da Força Armada Nacional Bolivariana (Fanb) solicitam documentos e fazem a primeira entrevista ao viajante. Em seguida, militares transportam malas e passageiros na caçamba de camionetes para evitar o contato até o próximo posto de controle.

    Chegando à primeira estrutura dos Pontos de Atenção Social Integral (Pasi), todos são desinfectados com uma solução de água e hipoclorito de cloro. Em seguida, equipes de médicos, muitos deles cubanos, novamente entrevistam os recém-chegados e realizam os testes rápidos, do tipo PCR (sigla em inglês para “reação em cadeia de polímeros”).

    Os militares que fiscalizam a fronteira e condutores de caminhões que transportam mercadorias entre o território brasileiro e venezuelano também são submetidos diariamente a exames.

    Aqueles que testam positivo são imediatamente afastados. Entre as sete pessoas presentes naquela tarde do dia 29 de maio, quatro estavam infectadas, o que corrobora com o dado oficial de que cerca de 78% dos casos registrados na Venezuela são importados e, muitos deles, chegam pelas fronteiras terrestres com a Colômbia e o Brasil, ou pelos voos humanitários que aterrissam em Caracas.

    No estado de Bolívar, divisa com Roraima, 992 venezuelanos permaneciam nas instalações do Pasi de Santa Elena de Uairén, até o dia 10 de junho, parte sendo tratada nos hospitais de campanha e outra cumprindo a quarentena obrigatória de 14 dias nos alojamentos do Estado, em pousadas e hotéis alugados. Depois de passar por novos testes, os venezuelanos são levados às suas regiões de origem em ônibus fretados pelo governo nacional.

     

    A Venezuela foi o primeiro país do continente americano a decretar quarentena em nível nacional e o fechamento de fronteiras. Desde março até junho, 59 mil cidadãos retornaram ao país pelos corredores humanitários terrestres e aéreos organizados pelo Estado. Desse total, 3.626 regressaram do território brasileiro, e, entre eles, 441 estavam contaminados.

    Em Caracas, capital do país, foram recebidos ao menos 36 voos com cerca de 1,8 mil venezuelanos. Para atender os cidadãos em regresso e a população local, foi criada uma equipe de resposta imediata sentinela, que faz quatro processos: desinfecção; mapa dos contágios positivos, conversas de reeducação, onde foram registrados casos positivos; além de um cerco epidemiológico para evitar o contágio de vizinhos.

    Existem quatro protocolos para o atendimento da população venezuelana. Um deles é a atenção de casa em casa para poder verificar se existem pessoas com sintomas. Tal medida é apoiada pelos questionários da Plataforma Pátria, que atende mais de 8 milhões de habitantes, com isso o Estado busca realizar um procedimento massivo para descartar a possibilidade de transmissão.

    Em seguida, são realizados testes rápidos nos pacientes suspeitos, aqueles que dão positivo são atendidos em algum dos 46 hospitais de referência instalados no país.

    “Na Venezuela ninguém vai morrer por negligência ou por falta de atenção médica”, assegura Jessica Lalana, coordenadora da força-tarefa do Partido Socialista Unido da Venezuela (PSUV), em Caracas.

    O país mantém uma média de 45.258 testes de diagnósticos para cada 1 milhão de habitantes, chegando a um total de 1.257.732 milhão de exames realizados. Já no Brasil a proporção é de 22.800 para cada milhão.

    O Brasil é o segundo país em número de mortos e infectados com a covid-19 em todo o mundo, concentra mais de 50% dos casos registrados na América Latina. Alegando a situação de crise sanitária e o colapso do Sistema Único de Saúde (SUS), os imigrantes têm relatado dificuldades para ser atendidos nos hospitais.

    Em novembro do ano passado, a Câmara de Vereadores de Boa Vista aprovou o projeto de lei 452/2019, que limitava em 50% o atendimento de estrangeiros na rede pública da capital. A proposta de autoria do vereador Júlio Medeiros (PTN) culpava “o aumento desenfreado de migrantes no estado de Roraima, o que veio a impactar em diversos setores na vida da população local, tais como saúde, educação e segurança”. A lei entrou em vigor em janeiro deste ano.

    Por ferir o princípio de acesso universal ao SUS previsto na legislação e violar o direito de igualdade garantido ao migrante, a medida foi considerada inconstitucional pelo Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1), que derrubou a lei em fevereiro de 2020.

    “Quando os compatriotas passam para o lado venezuelano e recebem atendimento médico eles manifestam que do lado brasileiro, nos municípios próximos, Pacaraima, Boa Vista, não lhes prestam atendimento para descartar se estão com covid-19”, confirma Maria Abad, militante da Frente Francisco Miranda, no estado de Bolívar. A frente é um dos movimentos populares que apoia nas comissões multidisciplinares do corredor sanitário da fronteira.

    Brigada Itinerante de Prevenção à Contaminação pelo Coronavírus do Estado venezuelano na fronteira com o Brasil / Martha Raquel/Brasil de Fato

    A realidade novamente confirma os dados. Um dos jovens que testou positivo ao chegar no território venezuelano, no dia 29 de maio, relatou à reportagem do Brasil de Fato que decidiu retornar pela falta de emprego e porque não foi atendido pelo SUS, em Boa Vista. Viajou 210 km com o pé fraturado.

    “Muitos desses companheiros vieram com a esperança de que na Venezuela possam ser atendidos com todos esses protocolos. Tanto atenção médica, como hospitalização e hospedagem de maneira totalmente gratuita”, assegura Jessica Lalana, coordenadora de grandes missões do PSUV em Caracas.

    Em maio, María Teresa Belandria, que responde como embaixadora venezuelana no Brasil nomeada pelo autodeclarado presidente Juan Guaidó, também deputado venezuelano, afirmou que existiam “mais de 280 mil venezuelanos” em território brasileiro, e pediu ajuda financeira às vésperas da Conferência Nacional de Doadores, realizada em 26 de maio.

    Mesmo sendo reconhecida pelo presidente Jair Bolsonaro, Belandria não tem autoridade para emitir documentos, vistos e, segundo relatos de venezuelanos no Brasil, os enviados de Guaidó tampouco oferecem algum tipo de suporte econômico para quem chega, apesar dos anúncios constantes de “ajuda humanitária” recebida do exterior.

    Já no território venezuelano, apesar do bloqueio, o país se apoia na cooperação internacional para combater a pandemia. Até o momento, receberam seis aviões com mais de 200 toneladas de produtos da China, além de receber insumos da Rússia, do Irã e uma brigada médica com 130 especialistas cubanos.

    “A nossa pátria e o nosso governo revolucionário estão dispostos a seguir recebendo esses compatriotas com amor, com uma atenção de primeira e todos os elementos necessários para garantir o direito à vida. Porque a Revolução Bolivariana se propôs desde o dia zero da pandemia a garantia da vida ao ser humano, ao nosso povo. Acredito que essa é uma das posturas mais heróicas que se apresentaram nesse período, porque isso não acontece no Brasil, Colômbia, Chile ou Equador”, assegura Jessica Lalana, membro do PSUV.

    O presidente venezuelano, Nicolás Maduro, assegura que a Venezuela é um dos únicos países que está sofrendo “migração reversa” durante a pandemia da covid-19, considerando os números do programa social Vuelta a la Patria (De Volta à Pátria).

    Para entender o retorno

    Apesar de os dados, desde 2018, terem parado de subir, a oposição regional ao governo de Nicolás Maduro aponta uma crise migratória e acusa o país de ser uma ameaça para a América Latina.

    Uma reunião no dia 2 de fevereiro de 2018, convocada pelo Conselho de Relações Exteriores dos Estados Unidos, foi o primeiro espaço a levantar o tema do refúgio para os venezuelanos. Em seguida, foram disparadas medidas adotadas pelos governos do chamado Grupo de Lima para facilitar a imigração venezuelana. Apenas nove dias depois da reunião em Washington, o então presidente Michel Temer viajou até a fronteira afirmando que “não faltariam recursos para os venezuelanos que fogem”.

    Nesse mesmo ano, foi lançada a Força Tarefa Logística do Exército, incentivada pela administração Trump. Em visita ao Brasil, em junho de 2018, o vice-presidente estadunidense, Mike Pence, visitou os abrigos da Operação Acolhida em Manaus (AM), quando afirmou que doaria US$ 1 milhão para apoiar o governo do então presidente brasileiro Michel Temer.

    Em abril daquele mesmo ano, a Casa Branca já havia anunciado o envio de US$ 16 milhões ao Brasil e à Colômbia para apoiar a imigração venezuelana.

    Em abril de 2018, depois de um evento intitulado “Crise migratória da Venezuela”, do grupo Dialogue – composto por figuras como o ex-presidente brasileiro Fernando Henrique Cardoso, além de ONGs e think tanks regionais –, foi anunciado que haviam sido arrecadados US$ 46 milhões para atender a situação da migração venezuelana. Os Estados Unidos haviam contribuído com US$ 2,5 milhões.

    Em uma reportagem investigativa, o canal multiestatal Telesur confirmou que venezuelanos eram incentivados a pedir refúgio ou asilo político pelos agentes da Acnur quando chegavam no território brasileiro. Nos primeiros meses de 2018, a Agência “estimava” que a migração venezuelana chegaria a 1,7 milhão de pessoas. Com as facilidades aprovadas em 2018 pelo governo Temer, os pedidos aumentaram cerca de 40%.

    Na metade de 2019, a Acnur já assegurava que 4 milhões de venezuelanos haviam deixado o país. O representante da Acnur para a região dos Estados Unidos e Caribe, Matthew Reynolds, afirmou que “a qualificação de crise era necessária para receber mais fundos do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional”.

    Para a politóloga Martha Ortega, o discurso de crise migratória foi uma forma que os governos conservadores na América Latina encontraram para receber financiamento de organismos internacionais. “A resposta à pergunta ‘por que voltam?’ é muito simples e contundente: um refugiado ou um perseguido político não retorna, um imigrante econômico, sim”, defende Ortega, que realizou longa pesquisa sobre o tema.

    Também para Jessica Lalana, o discurso de crise migratória faz parte de uma guerra híbrida contra a Venezuela e também parte do bloqueio midiático internacional contra o seu país.

    “Na Venezuela, os direitos humanos são garantidos. Apesar do bloqueio ideológico, financeiro, naval, de toda a tergiversação de informações divulgadas no mundo sobre a Venezuela, este é um país que garante os direitos humanos, garante a recepção de homens e mulheres que se foram com esperança, talvez com alguma situação econômica, mas que hoje regressam. E nós vamos recebê-los como povo e como revolução, de braços abertos”, finaliza a coordenadora do grupo que recepciona os imigrantes na capital do país.

    Edição: Vivian Fernandes

    VEJA TAMBÉM: EUA apertam bloqueio econômico contra Venezuela, mas o país segue como exemplo no combate ao coronavírus

  • Por que insistimos em subestimar Bolsonaro?

    Por que insistimos em subestimar Bolsonaro?

     

    ARTIGO

    Rodrigo Perez Oliveira, professor de Teoria da História na Universidade Federal da Bahia

     

    Faço a pergunta olhando no espelho.

    Por que nós, a bolha letrada progressista, insistimos em subestimar Bolsonaro? As respostas dizem muito sobre o que somos, esclarecem as causas do derretimento de nossa credibilidade pública, mostram como nos desconectamos do restante da sociedade.

    Este não é um texto sobre Jair Bolsonaro. Ė um texto sobre a miséria da bolha letrada progressista brasileira. Se quiserem, podem chamar de autocrítica.

    Começando pelo início, explorando cada momento da ascensão política de Bolsonaro e lembrando as narrativas que mobilizamos para subestimá-lo, para negar o que estava acontecendo. Somos ótimos negacionistas!

    Ato 1) Jair Bolsonaro ganhou projeção nacional em 2014, quando os primeiros efeitos do colapso do sistema político foram verbalizados pelas urnas. Na ocasião, Bolsonaro foi reeleito deputado Federal pelo Rio de Janeiro, com um crescimento de 385% em relação à votação que tinha tido em 2010. Em 30 de outubro, assim que acabaram as eleições, Bolsonaro concedeu entrevista ao “Estado de São Paulo”, farejando um sentimento coletivo de revolta que Marina Silva e Aécio Neves não seriam capazes de se apropriar. Bolsonaro começou, então, a pré-campanha. Foram quatro anos viajando pelo país, sendo aplaudido nos aeroportos, carregado pela multidão. Dizíamos que daria em nada não. Aquele homem tosco, deputado de baixo-clero, com histórico de declarações preconceituosas nas costas. Como se elegeria presidente em um país onde 54% da população se declara parda ou preta? Como Bolsonaro venceria as eleições, sendo que as mulheres representam 51,6% da população?

    Ato 2) Ficou claro desde o início da campanha presidencial de 2018 que Bolsonaro seria candidato relevante. Mas poucos apostavam na real possibilidade de sua vitória. Com pouquíssimo tempo de propaganda na TV, em partido pequeno, sem palanque nos municípios. Como Bolsonaro venceria?? Impossível. Os negros e as mulheres rejeitariam Bolsonaro. Óbvio! Lembro de Breno Altman, quadro intelectual importante dentro do Partido dos Trabalhadores, dizendo que Bolsonaro era o “candidato dos sonhos” no segundo turno.

    Em 29 de setembro, ainda no primeiro turno, explodiu o “#elenão” nos 26 Estados da federação. Participei em Salvador, onde moro desde 2017. Daniela Mercury puxou a multidão. Foi o maior ato de rua que já presenciei. Parecia Carnaval. O balde de água fria não demorou a chegar. Já em 1º de outubro, o Ibope divulgou pesquisa cujo campo havia sido feito nos dias 29 e 30 de setembro, ou seja, já captando os efeitos do “#elenão”. Bolsonaro cresceu três pontos, saindo dos 36% verificados na pesquisa publicada em 26 de setembro e chegando a 39%. Entre o eleitorado feminino, o crescimento foi ainda mais acentuado. Bolsonaro cresceu 6 pontos, saindo de 18% e chegando a 24%.

    O bolsonarismo mobiliza identidades hegemônicas na sociedade patriarcal brasileira e se beneficiou do clima de guerra comportamental que foi uma das características da corrida presidencial. Não digo que essa tenha sido a única razão de sua vitória. Digo que foi uma das razões.

    Se Bolsonaro pudesse escolher um tema para pautar eternamente as eleições brasileiras, escolheria o tema dos costumes. Aborto, discussão de gênero nas escolas, direitos civis da população LGBT. Aqui, nesse campo, Bolsonaro domina a narrativa, vence de goleada. Na noite de 9 de outubro, as urnas mostraram Bolsonaro com impressionantes 46,03% dos votos. Por muito pouco não venceu no primeiro turno.

    Ato 3) Desde que Bolsonaro começou a governar que alimentamos a expectativa de que a realidade, por si só, garantirá sua derrocada. Afinal, ele é burro, incompetente, tosco, não sabe o que faz. Enquanto isso, Bolsonaro, deliberadamente, escolheu se comportar como agitador fascista, e dia após dia conspira contra as instituições da República, investindo na organização de uma força miliciana armada. O histórico da legislação de flexibilização do comércio de armas de fogo sob o governo de Jair Bolsonaro é algo assustador.

    No começo da pandemia da covid-19, em meados de março, Bolsonaro minimizou a doença, boicotou as medidas de isolamento, se apresentando como o defensor da liberdade e da economia. No começo parecia loucura, suicídio político mesmo. Luiz Henrique Mandetta ostentava mais de 70% de popularidade. Prefeitos e governadores também. Cem dias depois, Mandetta virou comentarista da Globo. A popularidade de prefeitos e governadores desce ladeira abaixo.

    A sociedade não aguenta mais o isolamento social e está disposta a se arriscar para voltar à “vida normal”. A crise econômica e o desemprego já oprimem as famílias. Justamente nesse momento, no dia 7 de julho para ser exato, Bolsonaro aparece com um exame positivo para a covid-19. Não sei se o presidente está mesmo contaminado. Isso é até um tanto irrelevante. Mais importante é o uso político da questão: Bolsonaro vem a público com aparência saudável, risonho, dizendo que está se sentindo bem depois de tomar cloroquina. Bolsonaro está performando com o próprio corpo a narrativa da gripezinha.

    O Brasil é muito grande. A sociedade está acostumada com graves problemas de saúde pública. A maioria dos brasileiros não tem vítima da covid no seu círculo íntimo de relações. Todos, absolutamente todos, estão insatisfeitos com a quarentena e com a crise econômica. Bolsonaro está fazendo política, com alguma habilidade e sem nenhum escrúpulo. De burro, não tem nada. É carismático e conhece bem o país que governa. Definitivamente, a realidade, por si só, não irá pará-lo.

    Por que ainda insistimos em subestimar Bolsonaro, mesmo depois de tudo que aconteceu nesse país nos últimos dois anos?

    Tenho duas hipóteses, elaboradas a partir de conversas com amigos, colegas de trabalho, alunos. A partir daquilo que ouço, que sinto. É que vivo dentro da bolha. Não gosto muito não. Mas reconheço que é melhor do que viver fora dela.

    Primeiro, a bolha alimenta o velho sonho de uma sociedade civil organizada e capaz de impor suas agendas ao Estado e se rebelar contra governos autoritários. É o fetiche com as multidões bebido em um marxismo de anteontem que nunca fez muito sentido em um país como o Brasil. Aí, a bolha espera com ansiedade que o “Black lives matter” leve multidões às ruas para desestabilizar o governo de Bolsonaro, não sem antes derrubar os monumentos escravocratas. Se acontece nos EUA por que não haveria de acontecer aqui também?

    Bolsonaro está intacto, assim como os monumentos que glorificam a escravidão. O povão não atendeu ao chamado da bolha, outra vez.

    Não tenho dúvidas de que o racismo e o machismo são problemas estruturais no Brasil. Também não tenho dúvidas de que quando transformados em agenda política, essas pautas têm pouco potencial de mobilização, não são prioridades para a maioria da população.

    A bolha progressista dorme sonhando com maio de 1968 e acorda em um país que ainda não universalizou o ensino médio e o saneamento básico.

    A segunda hipótese nos remete à estética. Temos naturalizada em nosso imaginário certas representações do que seria uma pessoa inteligente. Numa versão já um tanto datada, inteligente seria o homem branco, usando terno e gravata e falando com perfeição o idioma de Machado de Assis e Guimarães Rosa. Em versão mais atual, seria o intelectual decolonial, representado pela pessoa indígena, pela mulher negra, perfeitamente capaz de entender, e denunciar, os dilemas estruturais da sociedade brasileira.

    Bolsonaro não é uma coisa nem outra. É grotesco, feio, esteticamente repulsivo. Lembra aquele tio tosco que todos temos. Como alguém assim pode ter alguma inteligência?

    Vamos projetando, então, nossos desejos na realidade, à revelia da própria realidade. E continuamos subestimando Bolsonaro, esperando sua derrocada na próxima esquina, na próxima pesquisa de popularidade.

    Se for reeleito em 2022, Bolsonaro terá escolhido quatro ministros do STF até 2026, mais de 1/3 da corte. Hoje, o STF é o grande freio contra o avanço bolsonarismo. Do jeito que vai, Bolsonaro talvez nem precise de golpe de Estado. É só ter paciência e ocupar as instituições por dentro, sempre legitimado pelas urnas.

    Ainda assim, se isso acontecer, continuaremos subestimando, combinando tacitamente uns com os outros de ver na realidade apenas o que queremos ver.

     

  • NÃO É POSSÍVEL NEGOCIAR COM BOLSONARO!

    NÃO É POSSÍVEL NEGOCIAR COM BOLSONARO!

    ARTIGO

    Rodrigo Perez Oliveira, professor de Teoria da História na Universidade Federal da Bahia

     

    Dia 29 de junho, o presidente Jair Bolsonaro sanciona a “Lei Aldir Blanc”, que regulamenta auxílio financeiro para profissionais da cultura nesses tempos de pandemia. Essa é uma das dimensões mais tristes dessa doença maldita: a morte da arte. Não existe arte sem aglomeração. Tomara que passe logo. A vida humana não pode ser apenas fenômeno biológico.

    30 de junho, Carlos Alberto Decotelli se demite da chefia do Ministério da Educação depois de virem a público notícias de que ele fraudou currículo acadêmico. Doutorado falso na Argentina, trabalho docente na Fundação Getúlio Vargas desmentido pela instituição, plágio em dissertação de mestrado. Decotelli foi-se antes de chegar.

    Primeiro, Bolsonaro sanciona lei que ajuda profissionais da cultura, categoria que sempre desprezou, chamava de “vagabundos”, alimentando todo tipo de mentiras para jogar a população contra a Lei Rouanet. Depois, correu com um ministro que “apenas” mentiu no currículo.

    Vamos combinar, né? Num governo em que os ministros ameaçam prender juízes do STF, que dizem sem nenhum pudor que aproveitarão a pandemia para derrubar legislação ambiental, o que é mentir no currículo Lattes? O governo diz que procura um “técnico” para comandar a pasta da educação, o que sugere que o novo indicado não será alinhado à guerra cultural olavista.

    Algo está diferente. Já há umas duas semanas que o tigrão tá meio tchuchuca, com comportamento mais próximo do que se espera de um presidente da República, que por dever de ofício é obrigado a respeitar os ritos da democracia liberal.

    Por quê? O que está acontecendo?

    Em texto publicado na Folha de São Paulo em 15 de junho, Arthur Lyra, cacique do “Centrão”, disse que o governo está “amadurecendo”. Prova dessa maturidade seria a aproximação com o próprio Centrão, que ao tirar o governo de extrema-direita golpista e trazê-lo ao plano da sobriedade institucional estaria colaborando para a defesa da própria democracia brasileira.

    Conte outra!

    De centrão, o Centrão tem muito pouco. Historicamente quase sempre esteve inclinado à direita, ainda que por pragmatismo fisiológico tenha se mostrado capaz de apoiar agendas progressistas.

    Além do mais, carece de ser muito ingênuo para achar que a moderação no tom é resultado de amadurecimento. O problema do presidente nunca foi imaturidade, falta de experiência política. Bolsonaro passou quase 30 anos no Congresso Nacional. É impossível ficar tanto tempo no Parlamento e não aprender alguma coisa. Bolsonaro não é bobo. Tolo é quem continuar achando que ele é idiota.

    Bolsonaro é ideológico e está convencido de que lidera revolução destinada a sanear o Brasil e construir futuro melhor. Não é cortina de fumaça. Não é hipocrisia. É ideologia mesmo, sincera como toda ideologia.

    É crença. É utopia, o que torna Bolsonaro tipo político especialmente perigoso. Não há acordo possível com quem está convencido de que é responsável por acelerar a marcha da história rumo ao progresso.

    Na lógica da revolução bolsonarista, o contrato social da redemocratização formalizado na Constituição de 1988 é o antigo regime, o sistema corrupto que assaltou os cofres públicos e maculou os valores família cristã brasileira ao estimular na sociedade hábitos licenciosos.

    O futuro idealizado pelo bolsonarismo é uma sociedade dominada por proprietários armados e senhores da vida e da morte dentro de seus domínios, representados diretamente pelo chefe do Executivo, sem mediação institucional. Na utopia bolsonarista, o Estado é mínimo e a casa é grande.

    O bolsonarismo também opera com certo conceito de “democracia”, que é palavrinha elástica o suficiente para permitir os mais diversos usos. “Democracia” é conceito que está sempre sendo disputado. Parte da imprensa liberal comemorou a pesquisa DataFolha publicada em 29 de junho que aponta 75% da população brasileira se dizendo defensora da “democracia”. A comemoração é otimista demais. Cabe muita coisa no guarda-chuva da “democracia”. Por isso, o substantivo precisa tanto de adjetivo.

    Qual a democracia a sociedade brasileira apoia tanto?

    Não há tirano que se diga tirano. Acho mesmo que não há tirano que se considere tirano, que acorde pela manhã e pense “Hoje vou matar, torturar, reprimir só porque sou malvadão”. Os tiranos acreditam estar agindo em nome do “bem comum”, da “justiça”, do “progresso”, da “vontade de Deus”.

    Na auto-representação todos somos virtuosos, até mesmo os tiranos, até mesmo os fascistas.

    A prisão de Queiroz coloca uma bomba no colo do presidente da República. É muito difícil imaginar que a mulher e as filhas de Queiroz, ou os outros funcionários dos gabinetes dos Bolsonaro, ficarão calados, que não vão assinar acordo de delação com o MP em algum momento.

    Para além dos generais palacianos, as Forças Armadas não responderam à convocação golpista. E vejam que Bolsonaro tentou, tentou muito.

    A construção de uma rede miliciana junto às PMs é operação complexa. Demanda tempo para doutrinar a tropa. Diante do cerco institucional liderado por Alexandre de Moraes e Celso de Melo, Bolsonaro se viu obrigado a recuar. O bolsonarismo sabe que ainda não está pronto para a batalha final.

    Que as instituições não se iludam achando que é possível disciplinar Bolsonaro. Não é. O recuo é tático e não ideológico.

    Um Bolsonaro “moderado” é ainda mais perigoso do que o Bolsonaro virulento. O Bolsonaro virulento tensiona, agita, nos obriga a ficar em constante vigilância. Um Bolsonaro “soft” que sanciona lei para ajudar artista, que procura “ministro técnico” para a educação, nos faz achar que a situação voltou à normalidade.

    Não voltou!

    Não devemos dormir tranquilos enquanto Bolsonaro for o presidente. Bolsonaro é a encarnação do caos. Não é o resultado do caos. É o caos em si.

    Pior do que o Bolsonaro agitador, ameaçando a nação com golpe de Estado, é o Bolsonaro “paz e amor”. Assim, ganha-se tempo para organizar o projeto golpista. A ruptura será sempre o horizonte do bolsonarismo.

    Bolsonaro se enxerga como revolucionário e não vai parar. Será sempre ameaça à democracia. Se for reeleito em 2022, indicará quatro ministros para o STF até 2026. É mais de 1/3 da corte.

    Ou a democracia derruba Bolsonaro ou Bolsonaro derrubará a democracia, nem que seja aos poucos, ocupando por dentro as instituições da República.

    Não é possível negociar com Bolsonaro. Não é possível conviver com Bolsonaro.

  • A história do encontro de um presidente fake e um vírus real

    A história do encontro de um presidente fake e um vírus real

    ARTIGO  

    Mateus Pereira, Mayra Marques e Valdei Araujo*

     

     

    Cento e cinquenta dias se passaram, após um início recheado de perguntas: Como a pandemia afeta o destino das democracias liberais? Como as direitas, em especial, a extrema-direita e a Alt Right, estão lidando com a revalorização da ciência e da curadoria jornalística? Quem herdará as estruturas de vigilância que estão se constituindo? Quem será mais capaz de combater a pandemia: as ditaduras ou as democracias? Por que demoramos tanto a aceitar que seríamos atingidos pela pandemia? O que o governo Bolsonaro ganha e perde com a pandemia?

    Foram essas as perguntas que ocuparam o nosso tempo e as nossas preocupações quando decidimos publicar nossas sensações e reflexões sobre a pandemia. O que começou como um diário tomou a forma mais aberta e plural de um almanaque, cuja materialização se realiza a partir dos acontecimentos. Outras questões e análises foram sendo incorporadas ao texto, já que a pandemia, somada à performance de Bolsonaro e do bolsonarismo, estabeleceu um jogo dinâmico, para nós, brasileiros, entre previsibilidade e imprevisibilidade, que nos fez tomar direções, muitas vezes distintas das previstas nos primeiros esboços do livro.

    O leitor também perceberá que, na nossa escrita, algumas vezes podemos passar a sensação de que está acontecendo tudo-ao-mesmo-tempo-agora, e talvez possa se sentir desnorteado com o fluxo de informações que nem sempre têm relação entre si. No entanto, como mostraremos, sentir-se sufocado pelas cascatas de informações parece ser uma experiência própria do nosso tempo epidêmico, bem como de sua infodemia.

    Pois bem, a nossa tentativa foi uma escrita, de forma bastante livre, do registro dos eventos a que assistimos e ou vivenciamos, tendo como referência  as perguntas que nos nortearam. Foram com esses elementos que pensamos em fazer uma espécie de diário dos 150 dias da pandemia, desde que a China informou à Organização Mundial de Saúde (OMS) sobre o novo vírus, no dia 31 de dezembro de 2019. Ao longo desse tempo, acabamos por alternar e misturar três gêneros de escrita: o diário, a cronologia e a crônica, que reunidos formam o Almanaque. O nosso laboratório-base foi, o tempo todo, o grupo de WhatsApp chamado “Atualismo”, com o qual, desde 2015, produzimos reflexões e debates.   

    Boa parte do que escrevemos foi publicado, em primeira mão, e em português, pelo site Jornalistas Livres, e, em inglês, pelo site Brazil Solidarity Initiative. Inicialmente, a nossa escrita foi impulsionada pela ideia de que um esforço de parada reflexiva é, em nosso tempo, necessário para evitar sermos devorados pelas atualizações constantes, fragmentárias e cada vez mais imprecisas e disputadas. A nova direita e a extrema-direita global têm se utilizado da agitação das notícias, provocadas pelo fluxo de atualizações, e pelas chamadas fake news, para reforçar o seu poder. Como acreditamos que o caminho progressista precisa seguir em outra direção, o nosso trabalho tem, assim, a intenção de nos levar a um engajamento que busque outras alternativas ao que nos apresentam as direitas mundiais.

    A escolha pela forma de almanaque foi reforçada pelo clima apocalíptico que temos vivido. Além do noticiário diário, dos canais de streaming, dos filmes sobre epidemias, como Outbreak (Wolfgang Petersen, 1995), etc, reforçam essa sensação de uma contagem progressiva em direção ao inevitável. No fim de março, nos perguntávamos quando chegaria entre nós o pico da epidemia e quão severas seriam as suas consequências, que haviam se agravado pela imagem da segunda onda representada pelo colapso econômico. No filme de 1995, a origem do surto está em alguma república de bananas; em nossa história real ele se origina em uma cidade de 11 milhões de habitantes, na segunda maior economia do mundo.

    A principal história que acabamos por contar no livro foi a de como o vírus SARS-CoV-2 e a doença a ele associada, a COVID-19, infiltrou-se em nossas vidas. Ao mesmo tempo, o livro apresenta o paradoxo de um presidente fake, ou seja, que não reconhece e trabalha para destruir o sistema democrático no qual foi eleito – ser desafiado pela realidade incontornável de um vírus e a doença que ele provoca.

    Nosso objetivo foi apresentar uma modesta e fragmentária compreensão cronológica, entrecruzando subjetividade e objetividade, dessa triste e catastrófica experiência histórica que estamos vivendo. Procuramos pensar para além da agitação atualista, a fim de analisar as possibilidades do nosso futuro próximo, durante e após essa emergência. Mas, também, refletimos sobre o nosso presente imediato, sobre a catástrofe vivida, em especial, no Brasil, já que aqui o poder simbólico e real do vírus foi potencializado pela presença do presidente Bolsonaro.

    A esse tempo agitado e confuso em que a informação nos entretém sem nos orientar, chamamos de “atualismo”. A capacidade de agitar, sem orientar ou desvelar, desse fluxo de notícias tem sido bem explorado pelas direitas globais. A explosão de notícias em fluxo contínuo, em que o valor de verdade parece ser confundido com o valor de novidade ou atualização da informação recebida, impede a cidadania de tomar consciência de seus reais interesses e formar um senso compartilhado de realidade que permita a ação política emancipadora. Essa estrutura, impede, muitas vezes, que o passado, mesmo o mais recente, seja trazido à reflexão. Por isso, políticos atualistas como Trump, Boris Johnson e Bolsonaro, em geral, não admitem erros, mas, simplesmente atualizam suas narrativas e afirmações quando as anteriores se tornam insustentáveis. Muitas vezes, os seus discursos mudam em função da conveniência da atualidade, sem a mínima necessidade de se prestar conta da negação da realidade do dia anterior. Fato que contribui para a dispersão e distração que se fantasiam com as roupas do jornalismo. Esses líderes se assemelham a apresentadores de shows de variedades, só que, nesse caso, os shows apresentados são perversos e sombrios. São shows de horrores.

    O passado e o futuro são mobilizados, muitas vezes, nesses discursos e práticas, como dispositivos para a agitação política. Mas isso não significa que não existam projetos de passado e futuro nos movimentos políticos atualistas, representados tão bem por esses líderes. O caos é apenas uma cortina de fumaça, assentada numa complicada realidade do passado histórico, muitas vezes idealizado. Uma de suas consequências é a mobilização política em prol de presentes-passados, passados-presentes e presentes-futuros autoritários, na maioria das vezes, incitada pela negação, pela nostalgia e pelo ressentimento. E, talvez, o principal projeto de futuro desses movimentos seja a destruição ou, pelo menos, o enfraquecimento das bases da Democracia e do Estado Liberal.

    Por tudo isso, o almanaque, uma das formas mais tradicionais de organização do passado, volta a ter uma função crítica importante. Nesse exercício de história imediata, os primeiros 150 dias da pandemia estão organizados por quinzena, acompanhando um dos tempos que organiza o ritmo da crise, já que o vírus pode levar até duas semanas para se manifestar. Na segunda parte do livro, apresentamos nossa leitura reflexiva, mais verticalizada e em forma de crônica, de alguns fatos que ocorreram durante o encontro do presidente fake com o vírus real. E, na terceira parte, abrimos e destacamos alguns dos assuntos mais recorrentes do período, que podem ser lidos de forma isolada ou podem ser entendidos como aprofundamento informativo, como hiperlinks, de temas tratados nas duas primeiras partes.

    Ao navegar por esse almanaque, acreditamos que você, leitor ou leitora, poderá reviver e pensar sobre os momentos em que a pandemia, causada pelo coronavírus, deixava a sua condição latente para se tornar o evento reorganizador de nossas vidas em sua articulação com a crise das democracias liberais.

    Queremos entender como dois grandes países, no caso, o Brasil e os Estados Unidos, divergiram da OMS e, mesmo assim, os seus líderes continuaram no poder de forma mais ou menos estável. Se não estáveis, apoiados por pelo menos um terço de sua população. Como entender esse escândalo?

    Ao final dessa jornada, vemos a evolução catastrófica da pandemia no Brasil e nos EUA, com a perspectiva crescente do número de mortos e consequências sociais devastadoras para os grupos minorizados. Quem acompanhar nossa narrativa poderá perceber como o governo brasileiro se alinhou com alguns outros poucos países em que a política pública divergiu programaticamente daquilo traçado pela OMS. Ainda assim, a popularidade de Jair Bolsonaro não foi, até agora, substancialmente atingida. Ficamos com a sensação de que estamos contando a história de como o regime de verdade, que sustentava as democracias ocidentais, foi severamente comprometido nesses países.

    A nossa hipótese é a de que, em certas dimensões da temporalidade atualista em que vivemos, a verdade que mais importa é aquela que nos chega na forma de notícia, de news. A maior parte das pessoas formam opinião orientadas por um ambiente de notícias em fluxo contínuo, consumido como entretenimento, embaladas pela crença de que quanto mais recente e atual é a notícia, mais relevante se torna para nossas vidas. Controlar a produção incessante das news – pouco importa se verdadeiras ou simuladas (fakes) – tornou-se a mais importante fonte de poder político, até mais relevante do que partidos e outros sujeitos políticos tradicionais. Esse universo paralelo, da simulação da notícia como arma política, com seus agentes e estruturas, é o fato mais relevante para compreendermos a história da COVID-19. Ele é o hospedeiro em que o bolsonarismo, e também o trumpismo, parasita em simbiose. Mas, como se verá, os níveis de insanidade do bolsonarismo e de Bolsonaro parecem ser insuperáveis.

    Ao longo desse período, escrever foi para nós uma forma de lidar com a pandemia e com a crise política e econômica. Um ato de resistência e de conhecimento. Procuramos, assim, trabalhar com as dimensões positivas do atualismo, que em nosso livro, Atualismo 1.0, só estavam anunciadas. A atualização, em sentido próprio, se apresenta aqui como uma possibilidade de lidar de forma ativa e não reativa frente os acontecimentos e as notícias que vêm à tona. Portanto, ao invés de só repercutir, alargar e repetir incessantemente, fazendo reverberar ainda mais a agitação, propomos deslocar os eventos e as notícias com a força do passado e do futuro. Dessa maneira, esperamos que esse gesto contribua, a seu modo, para a construção de um outro tempo.

    (*) Mateus Pereira e Valdei Araujo são professores de História na Universidade Federal de Ouro Preto em Mariana. São autores do livro Atualismo 1.0: como a ideia de atualização mudou o século XXI e organizadores de Do Fake ao Fato: (des)atualizando Bolsonaro, com Bruna Klem, e Mayra Marques é doutoranda em História na mesma instituição.

  • O BAIXO CLERO NO PODER

    O BAIXO CLERO NO PODER

     

    ARTIGO

    Rodrigo Perez Oliveira, professor de Teoria da História na Universidade Federal da Bahia

     

     

    Dezoito de junho de 2020, o dia em que Fabrício Queiroz, o personagem mais folclórico da crônica política brasileira contemporânea, foi preso, alimentando toda a sorte de memes e piadinhas. O brasileiro tem capacidade única de gracejar no caos. Deve ser uma qualidade.

    Queiroz é personagem social típico do Rio de Janeiro. Se Moacyr Luz estava certo quando disse que o Rio de Janeiro é a cara do Brasil, o retrato 3 X 4 que sintetiza o corpo nacional, poderíamos dizer que Queiroz é também um tipo ideal brasileiro que, diferente do weberiano, existe em carne e osso.

    Quem foi criado no subúrbio carioca, na Baixada Fluminense ou ali por São Gonçalo e Niterói, já conheceu pelo menos um Queiroz na vida. PM corrupto, violento, envolvido com milícias. Mas também carismático, com aparência de ser gente boa. Bom de churrasco, corrente de São Jorge no pescoço, safo na resenha futebolística, com ginga pra sacolejar bonitinho ao som de uma boa roda de samba. Sorriso largo. É perfeitamente possível simpatizar com Queiroz.

    Bandido de baixo clero, rouba no esqueminha, no rolo, no varejo. O Brasil, hoje, é governado por uma quadrilha de bandidos de baixo clero. Bolsonaro sempre foi corrupto, mas como era ladrão miúdo, passou batido pelo tribunal moral lava-jatista que pauta a política brasileira desde 2014. Bolsonaro roubava na rachadinha, superfaturando nota do posto de gasolina. Qual delegado da PF, qual procurador do MP tem interesse em investigar ladrão de galinha? Não dá capa de jornal, não dá mídia.

    Foi justamente essa mediocridade que permitiu a Bolsonaro performar o honesto no processo de radicalização da crise democrática. Até hoje, há quem considere os crimes da família Bolsonaro como sendo de menor potencial ofensivo. O brasileiro médio, cidadão de bem, não tolera o crime de colarinho branco, mas lida bem com o esqueminha, com o rolo. Uma questão de identidade mesmo. Bolsonaro e Queiroz representam muito bem o brasileiro médio.

    Queiroz ficou um ano encarcerado em Atibaia, norte de São Paulo. Não estava escondido não. Estava preso mesmo, sob controle. Era isso ou a vala. Mandar Queiroz para o plano espiritual não seria tão fácil. O cara era muito conhecido, não podia amanhecer morto assim, sem mais nem menos. Para dar fim em Queiroz teria que dar fim também na esposa e nas filhas. Operação complexa. Não excluo também o fato de os Bolsonaro gostarem mesmo de Queiroz, de existir vínculo afetivo sincero entre eles. Os brutos também amam.

    Queiroz foi preso numa casa onde tinha um quadro velho do AI-5 e um bonequinho de Tony Montana, personagem vivido por Al Pacino em filme de máfia. O covil de Queiroz renderia um ensaio de interpretação do Brasil.

    Quem delatou Queiroz foi a filha do Olavo de Carvalho!!!! A filha do guru do bolsonarismo, rompida com o pai, delatou Queiroz. Que roteirista é esse?

    Queiroz foi encontrado na casa de Frederick Waseff, advogado da família Bolsonaro. Na década de 1990, Wassef era membro de seita satanista, chegou a ser acusado de ter matado criança num ritual macabro em Guaratuba, no Paraná. O cara é advogado da família do presidente da República!! Desse aí não tem como gostar não. Não deve ter sido fácil para o Queiroz conviver um ano com esse sujeito barra pesada.

    A prisão de Queiroz sugere o enfraquecimento político do presidente Jair Bolsonaro. Já há mais de um ano que o esquema das rachadinhas coordenado por Queiroz no gabinete de Flávio Bolsonaro é de conhecimento público. Durante esse tempo todo, a Justiça fez vista grossa, deixando o caso Queiroz em banho maria. Agora, exatamente quando as instituições da República dobram a aposta no confronto ao governo, Queiroz foi preso.

    Queiroz, seus filhos, sua esposa, os ex-funcionários de Flávio Bolsonaro nos tempos da ALERJ. Essas pontas não ficarão juntas por muito tempo. Em breve, alguém dará com a língua nos dentes. Flavio não é exceção, não é a ovelha negra da família. Flávio não inventou o esquema. Aprendeu com o pai. As investigações chegarão no gabinete do próprio Jair Bolsonaro. É tão óbvio quanto a existência do sol.

    Os generais palacianos sabem perfeitamente disso. Diferente do que vinha acontecendo já há algum tempo, eles não saíram em defesa do presidente Bolsonaro. Simplesmente silenciaram, num gesto que sugere constrangimento e inclinação ao desembarque. Ao ingressar no governo de Bolsonaro, as Forças Armadas se envolveram na pior encrenca de sua história. Sairão sujas dessa aventura, contaminadas pela corrupção rasteira do baixo clero bolsonarista, com mais de 200 mil mortos da covi1-19 nas costas. O Exército brasileiro é responsável direto pelo Ministério da Saúde. Em algum momento, essas pessoas serão responsabilizadas, moral e penalmente. Para a reputação dos militares, Bolsonaro será mais danoso do que foi a ditadura.

    A ditadura deixou algum legado de desenvolvimento e infraestrutura. Bolsonaro só deixará cinzas, corpos e escândalos de corrupção.

    O caso Queiroz praticamente sepulta a possibilidade de um autogolpe apoiado pelas Forças Armadas. É difícil imaginar que um número grande de oficiais da ativa apoiariam um golpe sem projeto, sem nenhum fundamento ideológico. Seria um golpe tão somente pretoriano com o único objetivo de salvar os parentes e amigos de Bolsonaro das garras da justiça.

    Por outro lado, é prudente não dar Inês como morta antes da hora. O golpe militar clássico apoiado pelas Forças Armadas não é a única carta que Bolsonaro tem na manga. Há também o projeto do golpe miliciano sustentado pelas PMs estaduais. Esse projeto está em curso. Enquanto escrevo este texto, enquanto o leitor me lê, há gente nos batalhões das PMs tentando doutrinar a tropa.

    A PM fluminense já é bolsonarista. São Paulo começa a perder o controle sobre a sua corporação. É difícil saber como está a situação nos outros estados. Fato é que a Presidência da República, hoje, é o único trunfo de Bolsonaro, é questão de sobrevivência. O tom ameno dos últimos dias não é uma trégua, tampouco intensão sincera de reconciliação com os outros poderes. É estratégia para ganhar tempo visando a mobilização e a formação ideológica das PMs estaduais.

    Assim que as condições políticas ficarem plenamente satisfatórias, as instituições da República precisam agir, de forma rápida e eficiente. O caso Queiroz tem potencial para ser a bala de prata já tantas vezes anunciada. Carece de saber usar.

    Seria irônico se Bolsonaro caísse por causa de Queiroz, bandido de baixo clero. Seria coerente também. São feitos do mesmo barro.