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  • Lula e o sítio de Atibaia: a saga da justiça seletiva continua

    Lula e o sítio de Atibaia: a saga da justiça seletiva continua

    Texto e fotos por Viviane Ávila, especial para o Jornalistas Livres

    Apesar de aparentemente tranquilo, o clima na manhã de 14 de novembro de 2018, uma quarta-feira cinzenta na porta da Polícia Federal em Curitiba, era de apreensão e resistência onde o ex-presidente Lula está preso desde o dia 7 de abril deste ano cumprindo pena de 12 anos referente ao “tríplex no Guarujá”. Em frente, a vigília Lula Livre, movimento que é a favor da justiça e da liberdade do ex-presidente desde o primeiro dia de sua prisão, protestava, cantava e vibrava energia positiva pelo companheiro e grande líder. Foi a primeira vez que ele saiu do prédio da Polícia Federal desde sua prisão. O motivo: prestar depoimento na Justiça Federal em mais uma ação de acusação, desta vez, se é dono ou não do “sítio em Atibaia” que frequentou no interior de São Paulo.

    O candidato a presidência nas eleições pelo PT, Fernando Haddad, que passou a manhã com o ex-presidente para prestar solidariedade e saber se ele estava bem, afirmou que “ele tinha lido todos os depoimentos das testemunhas e estava muito tranquilo quanto ao que ia relatar para a juíza no seu depoimento. Achei ele muito preparado e tranquilo”.

    A polícia federal fez uma segurança ostensiva do prédio. Fotos: Viviane Ávila, especial para o Jornalistas Livres

    Lula chegou na Justiça Federal de carro da PF, escoltado por outros seis carros, mais cerca de 20 motocicletas, um caminhão do BOPE e um grupo de atiradores de elite, que ficaram do lado de fora fazendo a segurança do prédio. A audiência teve início às 14h, pela juíza Gabriela Hardt, substituta do juiz Sérgio Moro, responsável pela “Lava Jato”. Na ocasião, ele entrou de férias do cargo de juiz, mas já cumprindo agenda como Ministro da Justiça do governo Jair Bolsonaro em reuniões de transição com outros ministros e assessores em Brasília.

    Fotos: Viviane Ávila, especial para o Jornalistas Livres

    Segundo lideranças do PT, essa manobra é inconstitucional, e a distribuição do processo deveria ter sido feita por sorteio, e não por indicação e substituição. Na última sexta-feira, 16, dois dias depois do depoimento, Moro pediu a exoneração do magistrado no Judiciário. O PT já deu entrada em ação de anulação da exoneração.

    Do lado de fora, a militância se manifestava pacificamente em frente ao prédio da Justiça Federal, e era constantemente munida de informações sobre o processo, expectativas do depoimento, esperança e senso de justiça por lideranças do PT, como a presidenta do Partido dos Trabalhadores e senadora PT-PR Gleisi Hoffmann, que explicou que Moro deveria ter se exonerado do cargo assim que aceitou ser ministro, para que o processo de Lula fosse redistribuído sem indicação de magistrado. Moro tirou férias para que a amiga dele pudesse continuar o julgamento e seguir o seu roteiro que é condenar o presidente Lula”, afirmou.

    Questionada sobre a expectativa em relação à substituta, Gleisi declarou: “Nenhuma. Porque é uma juíza que é a sequência do que o juiz Sérgio Moro quer.” Mais tarde, ainda em frente à sede da Justiça Federal, ela questionou o processo e afirmou que Lula é inocente. “Qual é o crime que Lula cometeu? Corrupção passiva precisa de um ato de ofício. Lavagem de dinheiro também. Lavou dinheiro de quem e onde? O sítio não é dele, ele não sabia das reformas, não pediu as reformas, todas as testemunhas falaram que não tem nada a ver com recurso da Petrobrás e mesmo assim o juiz embarcou de novo na tese do Ministério Público sobre as convicções, dizendo que Lula deveria saber e tem responsabilidade”. Ela classificou o depoimento de hoje como “mais uma peça teatral desse processo”.

    Em pleno acordo com a presidenta do partido, Paulo Pimenta PT-RS explicou que “não existe, na legislação brasileira, a figura do juiz de férias que faz política. Juiz não faz política. Isso está no conselho federal, na lei orgânica da magistratura, isso está no código de ética. Esta figura, juiz de férias fazendo política, nunca existiu, porque ela é ilegal”, disse.

    O senador Lingbergh Farias PT-RJ também mandou seu recado à militância. “Nós temos a tarefa de resistir. Já que não tem mais a separação dos poderes, é uma farsa o que está acontecendo com o país. Daqui 30, 40 anos, vamos sentir muito orgulho de estar junto de Luiz Inácio Lula da Silva!”, disse, indignado, referindo-se ao fato de Moro estar ocupando dois cargos ao mesmo tempo, um do Poder Judiciário e outro do Poder Executivo, comprovando portanto, o golpe político que vem sendo denunciado desde 2015, do impeachment da ex-presidenta Dilma Rousseff, até a prisão de Lula.

    Participaram também o deputado Enio Verri PT-PR, o presidente da CUT Nacional Vagner Freitas, Roberto Baggio, um dos coordenadores da Vigília Lula Livre e coordenador do MST-PR, e a candidata a vice-governadora nas últimas eleições pelo estado do Paraná, Ana Terra.   O advogado petista, Wadih Damous, advogado de Lula durante anos, principalmente na época da Ditadura, comparou as ações e constatou o mesmo erro: a falta de provas. “São dois processos diferentes do ponto de vista do objeto, mas são processos parecidos. Da mesma forma como no caso do tríplex, atribuiu-se a propriedade e a responsabilidade ao presidente Lula de um imóvel (o sítio) que não é dele”, afirmou Damous.

    Enquanto isso, na sala da (in) “Justiça”…

    Questionada por Lula se quem o acusa de ser dono do sítio em Atibaia havia conseguido juntar as provas, afinal, o ônus da prova é de quem acusa, a juíza foi incisiva ao calar o ex-presidente afirmando que somente ela poderia perguntar, e ele somente responder as perguntas que ela fizesse. Lula ainda tentou explicar que na audiência com Moro havia sido diferente, que apesar das acusações, o juiz o permitia perguntar quando havia dúvida sobre o processo ou sobre a pergunta, mas a juíza foi irredutível. Disse que não permitiria ser interrogada pelo ex-presidente. E prosseguiu com o interrogatório de 2 horas e 38 minutos, com interrupções em tom de censura e intimidação.

    Segundo a denúncia feita pelo Ministério Público Federal (MPF) embora esteja em nome de amigos da família de Lula, ele seria o dono de fato do sítio e teria pedido que as empreiteiras OAS e Odebrecht realizassem melhorias avaliadas em cerca de R$ 700 mil. No total, entre a reforma e a aquisição de móveis e equipamentos, o petista teria recebido R$ 1,02 milhão em propina. Em troca, teria facilitado o acesso das empresas a contratos na Petrobras.

     

    Em depoimento, Lula contou que começou a frequentar o “sítio em Atibaia”, de propriedade de Jonas Suassuna e Fernando Bittar, filho de Jacob Bittar, em 15 de janeiro de 2011, quando ele já não era mais presidente. Chegava a ficar hospedado lá vários dias com sua família: dona Marisa, filhas e filhos, genros e noras, netas e netos, bisneto e seguranças, e com a família Bittar, de quem são amigos desde 1975. Os laços fortes de amizade e ideais foram construídos durante todos esses anos numa parceria de luta política com a fundação do PT, dos sindicatos, formação de base da militância, greves e campanhas juntos.

    Para Lula, tudo isso já seria suficiente para ambas as famílias terem a intimidade de passarem os finais de semana também juntos. A família Bittar dava carta branca para o amigo Lula frequentar o sítio, inclusive, o direito dele e família terem pertences pessoais no local, de dona Marisa presentear o sítio com lona de cobertura de piscina para proteção dos netos, e com barquinho e pedalinho para as horas de lazer no lago, já que eram uma grande família. Devido a um câncer na laringe, a partir de 27 de outubro daquele mesmo ano, 2011, Lula passou a ir com menos frequência ao sítio, onde já não dormia mais, nem jogava buraco e mexe-mexe com a família Bittar.

    Para o Ministério Público, desconfiado dessa amizade e intimidade, o ex-presidente vira réu mais uma vez por corrupção passiva e lavagem de dinheiro numa possível, mas não comprovada, compra do sítio de Atibaia. No interrogatório, Lula disse, ao falar sobre o sítio de Atibaia: “Eu na verdade pensei em comprar o sitio para agradar a Marisa em 2016. Eu tive pensando porque se eu quisesse comprar o sitio eu tinha dinheiro para comprar o sitio. Acontece que o Jacó Bittar não pensava em vender o sítio, o Jacob Bittar tinha aquilo como patrimônio”.

    Questionado pela juíza, de acordo com declaração de Bunlai, sobre dona Marisa ter feito a reforma da cozinha ou tenha interesse em comprar o sítio, Lula respondeu: “Não acredito que dona Marisa tenha feito nem a reforma na cozinha, nem a compra do sítio, porque não existe nenhum documento assinado por mim ou por ela que prove qualquer movimentação a compra do sítio. Simples assim”.

    Lula nunca se negou a prestar qualquer esclarecimento a nenhum órgão de Justiça, mas teve prisão coercitiva até a Polícia Federal do Aeroporto de Congonhas, em São Paulo, no caso do tríplex, para criar espetacularização. Na mesma semana, teve apreensão de mais de 40 computadores e documentos no Instituto Lula. E teve condenação por ser dono do apartamento no Guarujá também por meio de corrupção passiva e lavagem de dinheiro. Sem provas, nem escritura em nome de laranja, já que a propriedade nunca deixou de ser da construtora OAS.

    Nesse processo consta uma reforma de 1,2 milhão de reais que nunca ocorreu no apartamento, conforme o vídeo feito pelo Povo Sem Medo, em abril desse ano. Por essa condenação, Lula já está preso há sete meses. Com processo sem trânsito em julgado, sem cumprir seu direito por presunção de inocência até o julgamento em última instância, no STF, fato que ainda não ocorreu. Sobre este direito, o advogado de Lula, Cristiano Zanin, questionou a juíza Gabriela, que imediatamente concordou com ele. Basta saber quando e se será cumprido.

    Texto e fotos: Viviane Ávila, especial para o Jornalistas Livres

    Em nota, a defesa de Lula, representada pelo advogado Cristiano Zanin, disse que o seu cliente “jamais praticou qualquer ato na condição de Presidente da República para beneficiar empreiteiras e que Lula é vítima de “lawfare”, que é o mau uso e abuso das leis para fins de perseguição política”. Leia a nota na íntegra:

     

    “O ex-presidente Lula rebateu ponto a ponto as infundadas acusações do Ministério Público em seu depoimento, reforçando que durante seu governo foram tomadas inúmeras providências voltadas ao combate à corrupção e ao controle da gestão pública e que nenhum ato de corrupção ocorrido na Petrobras foi detectado e levado ao seu conhecimento. Embora o Ministério Público Federam tenha distribuído a ação penal à Lava Jato de Curitiba sob a afirmação de que 9 contratos específicos da Petrobras e subsidiárias teriam gerado vantagens indevidas, nenhuma pergunta foi dirigida a Lula pelos Procuradores da República presentes à audiência. A situação confirma que a referência a tais contratos da Petrobras na denúncia foi um reprovável pretexto criado pela Lava Jato para submeter Lula a processos arbitrários perante a Justiça Federal de Curitiba. O Supremo Tribunal Federal já definiu que somente os casos em que haja clara e comprovada vinculação com desvios na Petrobras podem ser direcionados à 13ª Vara Federal de Curitiba (Inq. 4.130/QO). Lula também apresentou em seu depoimento a perplexidade de estar sendo acusado pelo recebimento de reformas em um sítio situado em Atibaia que, na verdade, não tem qualquer vínculo com a Petrobras e que pertence de fato e de direito à família Bittar, conforme farta documentação constante no processo. O depoimento prestado pelo ex-presidente Lula também reforçou sua indignação por estar preso sem ter cometido qualquer crime e por estar sofrendo uma perseguição judicial por motivação política materializada em diversas acusações ofensivas e despropositadas para alguém que governou atendendo exclusivamente aos interesses do País.”

  • “Cabe aos acusados provarem inocência na Justiça”

    “Cabe aos acusados provarem inocência na Justiça”

    Polícia Civil do Rio de Janeiro, em inacreditável ato falho de hoje, admitiu com todas as letras que vivemos em um Estado de Exceção. Em tuíte de resposta a jornalista que questionava se os 159 presos durante a operação contra as milícias em um show na Zona Oeste do Rio faziam parte da estatística de milicianos presos desde de 2008, revelada pelo G1, a instituição declarou: “Os dados são referentes às prisões efetuadas pelas polícias e não sobre condenações na Justiça.[…] Cabe aos acusados provarem a inocência na Justiça, direito amplamente garantido pelo Estado Democrático de Direito”. Isso está ERRADO! A base do Estado Democrático de Direito, desde os romanos, apregoa que os acusadores é que devem provar a culpa dos acusados e não esses a sua inocência! Apenas nos regimes autoritários, ou seja, em um Estado de Exceção, é que os acusados têm de provar sua inocência.

    Mas, infelizmente, isso é o que tem acontecido no Brasil desde o julgamento do chamado Mensalão, em que a ministra Rosa Weber, na época assessorada pelo juiz Sérgio Moro, com base na teoria do ‘domínio de fato’, levantada pelo então ministro e atual talvez pré-candidato a presidente da República Joaquim Barbosa (nunca usada antes nem depois no Judiciário brasileiro, portanto, ela própria de exceção) condenou o ex-ministro José Dirceu mesmo admitindo que não existiam provas cabais “porque a literatura jurídica me permite”. O caso de Rafael Braga, preso em 2014, portando, uma garrafa de desinfetante mas qualificada pela polícia como “material com potencial explosivo” é mais um exemplo. A surreal condenação de Lula por ter um apartamento “atribuído” a ele é outro, ainda que os advogados tenham provado a propriedade e o uso do imóvel, como garantia de dívidas com bancos, pela construtora.

    Seis horas depois da mensagem original, vendo sua divulgação nos portais e redes sociais, a Assessoria de Imprensa da Polícia Civil do Rio de Janeiro emitiu nota pedindo desculpas pelo “equívoco”, e afirmou que o conteúdo da mensagem “não representa o posicionamento da PCERJ, foi publicado sem a autorização da mesma” e apagou o tuíte original.

    A operação contra as milícias no Rio de Janeiro, que resultou nas prisões citadas está cheia de falhas. Mas as autoridades, há mais de duas semanas, se recusam a rever as injustiças cometidas e apenas um detido conseguiu até agora um habeas corpus para “responder ao processo em liberdade”. Todos os demais seguem no presídio de Bangu 9, para desespero das famílias. Para mais informações sobre esse caso, acesse as reportagens dos Jornalistas Livres em https://jornalistaslivres.org/2018/04/milicia-e-show-de-injusticas/https://jornalistaslivres.org/2018/04/nao-foi-operacao-medusa-foi-operacao-medonha/ 

  • Lula fala ao povo: quando o discurso funda a História

    Lula fala ao povo: quando o discurso funda a História

    Por Rosane Borges***, especial para os Jornalistas Livres

     

    Dos discursos e seus ecos

    Seja pela vocação que têm para suscitar outros/novos modos de existência, seja por instituírem novas configurações da política, seja por inventarem novas bússolas para a travessia de nossas vidas, alguns discursos se consagraram na História como prenúncio ou advento de um “novo tempo, apesar dos perigos”.

    Num amplo arco, recordemos, entre tantas, algumas falas de repercussão sísmica, como o audacioso discurso “E eu não sou uma mulher”?, da estadunidense Sojourner Truth, ex-escravizada que demoliu a Women’s Rights Convention, em Ohio. Na ocasião, 1851, Truth questionou porque as mulheres brancas eram privilegiadas e as mulheres negras vistas como inferiores, intelectual e fisicamente, úteis somente para o trabalho braçal.

    Menção obrigatória deve ser feita também ao discurso de posse de Nelson Mandela (“Nosso maior medo não é sermos inadequados. Nosso maior medo é que nós somos poderosos além do que podemos imaginar. É nossa luz, não nossa escuridão, que mais incomoda…”). No mesmo diapasão, está o discurso memorável de Martin Luther King (“Eu tenho um sonho”).

    O celebrado “Saio da vida para entrar na História”, redigido na última linha da carta-testamento de Getúlio Varga endereçada ao povo brasileiro, é outro fragmento discursivo com desdobramentos importantes, especialmente para o próprio presidente, que escreveu o documento horas antes de se matar, em 24 de agosto de 1954.

    Com a missiva, Getúlio refunda a História, opera um movimento no sentido anti-horário em sua biografia, tonifica a memória sobre ele, convertendo significantes negativos em signos que favoreceram a reprojeção da imagem, então ameaçada, de estadista.

    Na atmosfera do golpe, compõe a galeria de exemplos a defesa da presidenta Dilma Rousseff em agosto de 2016, no Senado Federal. Embora Dilma não tenha proferido necessariamente um discurso, mas elaborado argumentos e contra-argumentos para sua defesa, pode-se destacar da sabatina a sua coragem em cair de pé, num jogo que já estava jogado. A presidenta não foi convencer as “Suas Excelências” de que era inocente, mas dizer a eles e ao povo brasileiro que tinha dignidade para olhar frontalmente em quem não tinha estatura, nem elementos, para efetuar sua condenação. Com a defesa, Dilma preparou uma memória futura para uma história que se encerraria de maneira infausta para ela.

     

    “A partir de agora minhas ideias vão se misturar com as ideias de vocês”

     

    Eis que em mais uma volta do parafuso do golpe de 2016, Moro decreta, em velocidade inédita, a prisão do presidente Lula logo depois de o recurso do habeas corpus ter sido negado pelo STF, na última quinta-feira, 5.

    Reafirmando que é dono do seu destino, Lula definiu, com altivez e serenidade, o momento de sua apresentação, deixando frustrada a turma de Curitiba, a mídia hegemônica (a Globo teve que engolir a única possibilidade de transmitir os acontecimentos pelas imagens da TVT) e os paulistanos agressores de panelas, no crepúsculo desta sexta-feira, 6. Em suma, colocou todos eles no bolso. Coisa de gênio!

    Mas o ponto alto da mobilização no Sindicato dos Metalúrgicos em São Bernardo do Campo, que recebeu um mar de gente nestes dois dias (foi tudo muito lindo, há que se dizer), foi o discurso antológico de Lula, que pode ser comparado a um rio com múltiplos afluentes, por ser indutor de esperanças várias. Lula provocou estímulos inabarcavelmente amplos. De sua fala surgiram vários rebentos de maternidade/paternidade coletiva: assim como Luther King ele também sonhou (e realizou), falou do que assusta os inimigos, como mencionou Mandela, e não se curvou na derradeira hora, seguindo a atitude exemplar de Dilma Rousseff.

    O pronunciamento de Lula guarda semelhanças com a carta-testamento de Getúlio. Ambos nos ensinaram, a partir de ângulos diferentes, que é o discurso que funda a História e não o contrário. Tema espinhoso que habita os arredores da filosofia da linguagem, das teorias do discurso e da enunciação, o par discurso X história é próprio da luta política. Manejá-lo bem, é saber estabelecer parâmetros precedentes para o que se diz e, pela fala, restaurar a história e o movimento do mundo.

    A psicanálise nos ensinou que a realidade é o discurso, que o seu habitat natural é a linguagem. Mas os discursos e, portanto, as realidades que fundam e definem, não são quaisquer coisas: são articulações (relações) determinadas, estruturam o mundo histórico-social e são por ele estruturadas. Além disso, são passíveis de transformações e têm funções.

    Pode-se insistir, com razão, que ao contrário de Getúlio Vargas, Lula não opera um movimento anti-horário para dignificar o seu passado. Não. Ele não precisa disso. O seu pronunciamento exerce uma função indispensável num presente que prepara dias cada vez mais difíceis para todos nós: ele possibilita que voltemos a sonhar com um futuro em que prosperidade, justiça e igualdade sejam cimentos para a edificação de um outro país.

    Num mundo e num país poliperspectivamente partido, quando Moro anuncia que “já era” para Lula, eis que ele inverte, com o pronunciamento, os elementos dessa equação e anuncia que na verdade tudo só está começando. “A partir de agora minhas ideias vão se misturar com as ideias de vocês.”

    Vindo de onde veio, é um homem forte, audacioso que, na condição de prisioneiro político, coloca o judiciário brasileiro no subsolo da História, ao passo que o pé direito de sua edificação política ficou mais alto (mas as mãos que a construíram seguiram certamente à esquerda). Lula mitou again!

     

    veia neste link a transcrição, na íntegra, do discurso de Lula

    #LulaLivre

     

    ***Rosane Borges, 42 anos, é jornalista, professora universitária e autora de diversos livros, entre eles “Esboços de um tempo presente” (2016), “Mídia e racismo” (2012) e “Espelho infiel: o negro no jornalismo brasileiro” (2004).

  • FRENTE FAVELA BRASIL EM PROL DA JUSTIÇA

    FRENTE FAVELA BRASIL EM PROL DA JUSTIÇA

    Esta semana o Frente Favela Brasil lançou uma nota se posicionando no episodio do julgamento do presidente Lula, dia 24 de janeiro no TRF-4, em Porto Alegre.

    Antes de falar sobre a nota oficial, acreditamos ser importante explicar para nossos leitores e leitoras um pouco sobre quais são as motivações, objetivos e quem compõe a base do Frente Favela Brasil. Para isso conversamos com o Ederaldo Nascimento, o Deco, e o Luiz de Jesus, vice-presidente da nacional, do Frente, Algo que de pronto eles sempre pretendem lembrar é que todos e todas são voluntários(as).

    Seus ativistas e militantes sempre enfatizam que o Frente ainda busca assinaturas para se tornar um partido, como diz um dos seus colaboradores, o Deco, E completou informando que jovens sempre serão mais assistidos por se entender que são a parte mais vulnerável da população.

    Já Luís de Jesus esclarece (ou enegrece, no vocabulário preto) algumas dúvidas que ainda pairem sobre que partido pretendem formar no que toca seus valores e objetivos:

    “O Frente Favela Brasil é um partido “pós-ideológico”, de vocação popular e com um viés democrático, que se dedica a produzir os meios para que o estado brasileiro reconheça a falta de negras e negros, moradores das favelas, de periferias nos espaços de poder e nas esferas de representação política.

    Diferente do que alguns dizem, não somos um partido só para pretas e pretos, e sim, um partido que está sendo formado por todas as pessoas da sociedade brasileira que desejam um Brasil mais justo e com oportunidades de igualdade. Ou seja, defendemos que moradores de favelas, em sua maioria negras e negros, possam ter a possibilidade de olhar para a política de uma forma mais inclusiva. Que se vejam dentro da política, representados por ela. Sendo assim, é natural que o protagonismo sejam de negras e negros, dentro do partido.

    A nossa proposta é construir uma plataforma em que as negras e os negros favelados não somente votem, mas que principalmente sejam votados.

    Cansamos de ficar passando pires. As cotas são matéria vencida. Hoje nós queremos o poder, pois sabemos que somos maioria da população brasileira e não nos vemos representados nas esferas de poder municipal, estadual e federal. Sem contar o judiciário.

    Mas não queremos o poder pelo poder e sim desejamos ter a real possibilidade de mudar a vida de uma população historicamente excluída: preta e favelada. Entendemos que houve avanços, porém ainda carecemos de um modelo político que nos contemple por inteiro.

    O partido é feito por voluntários, que na sua grande maioria não vieram de partidos políticos, A ideia é que nos transformemos num movimento que nasce do desejo de defender e representar uma pauta. Um recorte específico. E para isso precisamos estar na mesa que é de quem decide, ou seja, termos voz.

    Já nascemos, no Frente, com representatividade real, pois a mulher tem 50% em todos os cargos. É uma forma de manter a paridade na prática. Outro fator importante é salientar que reservamos 50% das cadeiras para menores de 35 anos, ou seja, metade das nossas candidaturas será de mulheres jovens e negras. Isso é uma revolução.

    E a nossa diversidade não para por aí. Na copresidência do partido estão Patrícia Alencar, do Morro do Papagaio, em Belo Horizonte, educadora e candomblecista, e Wanderson Maia, cientista político, católico, homossexual, criado nos subúrbios do Rio. Os vice-presidentes são uma indígena do Pelourinho, no centro de Salvador, e um pastor evangélico da favela de Vila Clara, em São Paulo (Eu).

    Por fim, nós enquanto negras e negros sempre estivermos nos bastidores da política e por isso entendemos que chegou a hora de subirmos ao palco e contarmos a nossa própria história.”

    Não percam em breve uma entrevista com Celso Athayde, idealizador do Frente Favela Brasil. Abaixo, a nota oficial do futuro partido, sobre a participação do ex-presidente Lula nas Eleições 2018.

    “QUEM É VÍTIMA DA DESIGUALDADE NÃO SERÁ CÚMPLICE DA INJUSTIÇA!

    Vivemos em um país desigual. Crescemos vendo os filhos dos negros e favelados tendo que se esforçar muito mais do que um branco para chegar no mesmo lugar. Ser senhor do próprio destino não é uma tarefa fácil no Brasil!

    Aqueles que, desde a escravidão mandam em nosso país, fazem de tudo para garantir seus privilégios. Primeiro tentaram impedir o voto universal. Quando a democracia se tornou inevitável, criaram currais eleitorais e passaram a usar da corrupção e da compra de votos para se manterem no poder. Do alto de suas coberturas, de dentro de seus clubes privados, onde mulheres negras só entram servindo e vestidas de branco, os verdadeiros beneficiados de nossa desigualdade acreditam que só eles, que se consideram os mais preparados e instruídos, devem decidir os rumos da nação. No fundo, acreditam que o voto direto nada mais é do que a representação política daquela velha máxima de “entregar os anéis para não perder os dedos”. Um mal necessário, para dar ao povo uma ilusão de poder.

    Em nossa batalha diária em busca de igualdade de oportunidades, conquistamos a constituição de 88 e consolidamos um modelo democrático que garante, ao menos no dia da eleição, que brancos e negros tenham igual direito de decidir por quem devem ser governados.

    De lá pra cá, acertamos e erramos, mas pagamos com nosso suor e nossos impostos cada um dos nossos erros. Até nisso o Brasil foi desigual. Sabemos que quando se rouba do Estado são os mais pobres que pagam a conta.

    O Frente Favela Brasil acredita que na democracia o maior juiz é o povo! Somos as maiores vítimas dos escandalosos desvios feitos por lideranças de praticamente todos os partidos mas acreditamos que só o povo, e ninguém mais, pode decidir quem será o próximo presidente da República.

    Impedir a candidatura do Ex- Presidente Lula, de um migrante nordestino que é líder absoluto em todas as pesquisas, é hoje o maior risco para nossa democracia.

    O Frente Favela Brasil surgiu para romper com a crise de representatividade que vivemos. Exatamente por isso, não iremos retroceder no princípio fundamental da nossa Carta Magna que é explícita em afirmar que “Todo o poder emana do povo”.

    Quem sempre foi vítima de preconceito, quem deu o sangue para garantir o direito de votar e decidir o seu próprio destino, quem acredita que só o voto pode romper com o abismo que existe entre governantes e governados, não pode ser cúmplice de nenhuma tentativa de ganhar uma eleição no ‘tapetão’.

    Temos várias críticas ao Lula e ao PT e por isso criamos nosso movimento para romper com as velhas práticas da política tradicional, mas acreditamos que o direito do povo escolher seus governantes não se trata de uma batalha entre a esquerda e a direita. É uma luta entre a civilização democrática e a barbárie autoritária, que finge mudar para permanecer como está.

    Frente Favela Brasil ??. 21 / janeiro / 2018

  • O FOTÓGRAFO CONDENADO

    O FOTÓGRAFO CONDENADO

    Sérgio Silva nasceu no dia 22 de outubro de 1980, teve uma infância humilde e sofrida e, embora seja o mais velho seis irmãos, sempre recebeu o mesmo cuidado e carinho da D. Carlinda, sua mãe, uma senhora baiana, de pele enrugada, sofrida, mas de fala e olhar doce, que não mediu esforços para criar em carreira solo, esse time de filhos, na baixada do Ipiranga, em São Paulo.

    O pouco ou quase nenhum dinheiro não travou Sérgio. Ele se esforçou e, logo no início da adolescência, tratou de se interessar pela arte, pelos livros e daí, para se interessar pela fotografia foi um pulo. Mas a caminhada não foi fácil. Muita ralação misturada com muito apoio e carinho de sua mãe e mais tarde de sua família, formada em seu primeiro casamento, deram forças para que ele se tornasse o que é hoje, um fotógrafo talentosíssimo e que, através de suas imagens, faz com que a gente se transporte para dentro das realidades que as mídias tradicionais não mostram. As realidades são duras e muito parecidas com a que ele vive agora. Sérgio está condenado.

    Hoje, em mais um julgamento no Tribunal de Justiça de São Paulo, espaço de privilégios de magistrados que em suas togas causam uma impressão de imponência, confiança e autoridade e que têm em suas mãos o poder de decidir se interrompem o curso normal ou a justiça sob a vida dessa ou daquela pessoa. Sérgio perdeu tudo.

    O fotógrafo não só teve a indenização pedida no processo contra o Estado negada, como também ouviu durante a audiência que não há provas que uma bala de borracha o atingiu no olho esquerdo, naquela noite violenta do tão conhecido 13 de junho de 2013.

    O Estado presente na audiência é caótico, atrasado e completamente alheio à realidade da vida do povo. Certamente por isso, a cada caso parecido com o de Sérgio, que envolva provas claras de “nasce” que mais uma vítima da violência do Estado, esse mesmo Estado representado pelos homens de toga, só consiga provar, ironicamente, que não tem nenhuma habilidade para decidir nesses casos. Os homens de toga se auto absolvem e condenam a vítima.

    O Estado condena hoje, mais uma vez, Sérgio e certamente sua mãe que está viva e jamais imaginou que esse pudesse ser o destino de nenhum de seus seis filhos que criou com tanto carinho. A mãe de Sérgio também está condenada.

    As filhas do fotógrafo, duas meninas de 11 e 17 anos, presentes no Tribunal de Justiça e que presenciaram toda audiência e fatalmente a atroz decisão, também foram hoje condenadas. São mulheres que já traçam a partir de agora, um caminho de forte descrença num Estado falido, cruel e vergonhoso. E embora as duas meninas estejam desde o seu nascimento, traçando um caminho de melhores condições financeiras e de formação, do que na época em que o pai era criança, as meninas têm muita história e bastante realidade para contar pelo resto de suas vidas sobre o significado do Estado em suas vidas. Elas não se calarão.

    Como pode um indivíduo investido de importante autoridade, um juiz, um promotor, ser cego à realidade do que é agora a vida de Sérgio sem um olho? Como imaginar o que se passa na mente de alguém com poder para julgar e mandar na vida de outro indivíduo?

    Queremos repetir aqui um convite que Sérgio fez para todos quando perdeu olho e entrou com o processo contra o Estado, só que desta vez, o convite é direcionado somente para aqueles que tiveram hoje o poder de decidir pela condenação de Sérgio: os magistrados.

    Os senhores já experimentaram tapar o olho esquerdo com a mão e fazer as atividades cotidianas? Se não, tentem, por favor. E pensem que esse olho foi perdido quando se trabalhava, quando se exercia o direito de ser cidadão, para conquistar melhores condições de vida para a família. Um milhão de reais não paga um olho e o trauma que a perda trouxe para ele, as filhas, e a mãe que sofre desde quando colocou Sérgio no mundo e a maior certeza que podemos ter é que o valor não tira os privilégios que uma Casa tão imponente oferece aos senhores. Então, revejam essa decisão.