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  • Como é o atendimento aos migrantes venezuelanos durante a pandemia?

    Como é o atendimento aos migrantes venezuelanos durante a pandemia?

    O aeroporto de Boa Vista recebe voos em apenas dois horários, durante a madrugada ou ao meio-dia. Enquanto em São Paulo o voo partia em uma alvorada fria, chegava-se ao estado nortista com a marca de 37º. Havia um grande contraste de temperatura no mês de março. A viagem por avião e a rápida mudança de clima, no entanto, não eram a realidade da maioria das pessoas que entravam no estado de Roraima naquele momento. A maioria doa imigrantes venezuelanos realizava o caminho a pé ou em automóveis. A cidade fronteiriça do lado brasileiro, Pacaraima, era o reduto de alguns deles. Outros caminhavam, pediam carona, pegavam ônibus ou táxis até a capital Boa Vista, que fica a 214 km e, aproximadamente, 4h30 de distância de carro.
    Por Martha Raquel e Michele de Mello, do Brasil de Fato | Boa Vista (RR) e Caracas (Venezuela) 
    O aeroporto internacional de Boa Vista é um dos únicos do país que mantém um posto fixo da Defesa Civil com agentes sanitários. / Michele de Mello

    A reportagem do Brasil de Fato acompanhou por 18 dias a situação de Roraima, entre o momento da chegada à capital do estado até o fechamento da fronteira terrestre com o país vizinho, motivado pela pandemia da covid-19, em março.

    Segundo os últimos dados do Comitê Nacional para os Refugiados (Conare), existem cerca de 45 mil venezuelanos no Brasil que solicitaram o pedido de refúgio. Destes, mais de 33 mil residem em Roraima, seguido do Amazonas, com cerca de 8,4 mil pessoas.

    A crise econômica aprofundada pelo bloqueio econômico imposto pelos Estados Unidos desde 2015 à Venezuela, assim como a crise do mercado petroleiro, foram os principais fatores que levaram à precarização da vida da população do país vizinho. O boom dos pedidos de refúgio aconteceu em 2018, quando o Conare avaliou que havia uma situação “grave e generalizada de violação de direitos humanos” na Venezuela, facilitando a entrada e documentação dos imigrantes.

    Caminhar por Boa Vista ao longo do mês de março era como estar em uma cidade venezuelana. Pelas ruas do Centro da cidade, o idioma predominante era o espanhol e as calçadas eram preenchidas com centenas de barracas, mesas, toalhas no chão ou pequenas estruturas para venda de produtos. Abridores de latas, canetas, pirulitos, bombons, pentes de cabelo, sabonetes, desodorantes, panos de prato, espigas de milho, frutas, água. Era possível comprar tudo direto das mãos dos imigrantes venezuelanos.

    Boa Vista é uma capital com clima de interior, que tem um quarto de seu território demarcado como área indígena. A cidade também é a segunda com maior número de venezuelanos no país, ficando atrás apenas de Pacaraima, que faz divisa com Santa Elena de Uairén, na Venezuela.

    Em ambas as cidades, havia venezuelanos que moravam em casas alugadas ou compradas, outros viviam em abrigos e uma boa parte dormia nas ruas, por exemplo, as do entorno da rodoviária de Boa Vista, por onde também chegavam diariamente centenas de imigrantes.

    Uma das ocupações independentes que servem de abrigo aos venezuelanos é a Ka Ubanoko, “lugar de morada” na língua indígena Warao. Esta é uma é uma das 11 casas independentes e autogestionadas de Boa Vista. Com regras rígidas de organização, a ocupação sobrevive há quase um ano e meio em um terreno público que já foi a tentativa de construção de um clube de trabalhadores, obra que nunca foi terminada.

     

    Uma das construções da ocupação Ka Ubanoko, que abriga indígenas venezuelanos em Boa Vista (RR) / Martha Raquel/Brasil de Fato

    No mês de março, o local abrigava cerca de 850 pessoas, que dividiam cinco áreas, entre espaços reaproveitados da construção do parque, casinhas de madeira, barracas e redes. Eram povos crioulos e indígenas de quatro etnias diferentes: Warao, Enepà, Karina e Pemon. A maioria falava espanhol, mas outros se comunicavam apenas na língua originária. Não havia estrutura de banheiros e cozinha para todas as famílias. Uma mesma torneira era usada para tomar água, banho de balde, cozinhar, além de lavar roupas e utensílios.

    Muitos dos indígenas que ali estavam foram parar na ocupação por falta de vaga nos abrigos da Operação Acolhida do Exército brasileiro, mas hoje valorizam a autonomia que conquistaram no espaço. Lá, eles continuam mantendo seus costumes e sua cultura, por meio de suas línguas originárias, músicas e cultos.

    Também atuante em solo roraimense, a Agência de Refugiados das Nações Unidas (Acnur) gerencia outros 13 abrigos temporários e um espaço emergencial, onde viviam, em março, cerca de 6 mil pessoas, entre refugiados e migrantes. Esses espaços são administrados pela Acnur junto à Força-Tarefa do Exército brasileiro. A reportagem do Brasil de Fato esteve em dois dos abrigos da Operação Acolhida.

    Composto por casinhas compartilhadas por duas famílias cada, mais espaço de banheiros, mesas para refeições, bicicletário, horta comunitária e estrutura para aulas de português para imigrantes, o abrigo São Vicente 2 é um dos mantidos pela Operação.

    Josiah Okal K’Okal, da ordem dos Missionários da Consolata, é oriundo do Quênia e já trabalhou por 22 anos na Venezuela, sendo nove deles acompanhando o povo Warao. Atualmente, cursa mestrado em Antropologia na Faculdade Latino-americana de Ciências Sociais (Flacso), em Quito, Equador. Os estudos acadêmicos o motivaram a passar dois meses no Abrigo Pintolândia, organizado pelo Exército brasileiro em Boa Vista, para pesquisar o processo migratório dessa etnia. Além disso, fez visitas ao Abrigo Janokoida, em Pacaraima.

    “Nos dois abrigos que estive, os moradores são todos indígenas, Warao e Enepá. A primeira coisa que me impressionou foi o número de atores na administração do abrigo. Posso classificar em grupos aqueles que administram o abrigo: os que estão fisicamente presentes todo o tempo – a Fraternidade Internacional e o Exército –, e os que tomam decisões e quase nunca estão presentes no espaço do abrigo – outros órgãos estatais, governo regional, governo municipal, ACNUR, OIM [Organização Internacional para as Migrações]”, afirma.

    K’Okal também lista outras agências que, segundo ele, estão em alguns momentos, como o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), Médicos Sem Fronteiras, entre outros.

    Segundo o missionário, há críticas dos migrantes quanto à ausência física de acompanhamento, o que acarreta em problemas cotidianos. “A comida servida vem de fora do abrigo, já embalada em marmitas. Geralmente, o menu consiste em carne com salada crua e arroz, acompanhado de uma bebida industrial, suco. A comida é a mesma para todos, até para crianças recém-nascidas. A carne é frequentemente frita e sempre muito seca. Às vezes, eles comem frango ou peixe, mas é bem raro isso acontecer”, relata o pesquisador.

    O Exército é o responsável pela contratação de quem fornece a alimentação dos abrigos, mas a administração diária é incumbência da Fraternidade Internacional. A rotina diária, além da distribuição dos alimentos, envolve horários rígidos para despertar, café da manhã, almoço e jantar, bem como horários para entrada e saída do local. Todas as pessoas devem portar um documento com foto e o cartão com o código de barras do abrigo ao qual pertencem. Não é permitida a entrada de terceiros nem de moradores que estejam alcoolizados.

    “Em geral, no abrigo, há uma atmosfera de alegria, mas também de angústia. Os indígenas são sempre pessoas muito gratas e não exigem muito. Pintolândia tem mais características de comunidade do que de um campo de refugiados. Observei que a equipe da Fraternidade tenta fazê-los sentir que o abrigo é o lar deles. Há muita flexibilidade, muita proximidade, muita irmandade. Mas, seu contexto lhes tira a alegria às vezes”, conta K’Okal.

    Abrigo oficial do Exército São Vicente 2, no bairro São Vicente, em Boa Vista (RR) / Martha Raquel/Brasil de Fato

    O plano da reportagem do Brasil de Fato era conhecer todos os 13 abrigos e o centro de acolhida emergencial da Operação Acolhida, mas não houve tempo. O Estado brasileiro tinha cinco casos suspeitos de coronavírus já em 13 de março, mesmo dia em que o governo brasileiro anunciou que avaliaria o fechamento da fronteira terrestre com a Venezuela.

    Segundo o presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, a medida teria como estratégia conter o avanço do coronavírus no Brasil. No entanto, do lado venezuelano, no estado de Bolívar, nenhum caso havia sido registrado sequer como suspeito até então.

    A solicitação para o fechamento da fronteira do Brasil com a Venezuela e com a Guiana havia sido feito dois dias antes, em 11 de março, pelo governador de Roraima, Antonio Denarium. Na ocasião, o ministro da Saúde à época, Luiz Henrique Mandetta, disse que a fronteira com a Venezuela era “a única que realmente dava preocupação ao governo brasileiro”.

    Ao jornal O Estado de S.Paulo, Denarium disse que o grau de preocupação com a fronteira era “muito grande”. “Em Roraima estão entrando de 500 a 700 venezuelanos todos os dias. Se tiver um foco de novo coronavírus na Venezuela, e com essa migração desordenada, pode se tornar uma epidemia”, afirmou o governador no dia 12 de março. O fechamento da fronteira foi decretado na manhã do dia 18 de março.

    Àquela altura, o temor já estava generalizado pelo Brasil. Na capital de Roraima já não era mais possível encontrar máscaras, luvas ou álcool em gel nas farmácias. Em Pacaraima, apenas um lugar vendia máscaras. A unidade que, antes da pandemia, custava R$ 0,35, agora custava R$ 2. Um cartaz de oferta divulgava a caixa com cem máscaras por R$ 180,00.

    Proporcionalmente, Roraima possui a maior população indígena do Brasil, quase 50 mil pessoas, que também habitam a região próxima à fronteira / Michele de Mello

    No paço fronteiriço, por volta das 8:30 da manhã, venezuelanos foram impedidos de entrar no Brasil. Já os venezuelanos que estivessem em solo brasileiro poderiam voltar ao seu país de origem. Carregadores do país vizinho que viviam em Roraima e trabalhavam levando produtos de um lado a outro da fronteira não puderam retornar às suas casas.

    Um desses trabalhadores impedidos de retornar ao Brasil contou à reportagem que não sabia o que fazer. Pai de duas filhas, ele havia acabado de cruzar a fronteira para fazer uma entrega e estava impedido de retornar para a sua família. Junto a ele haviam pelo menos mais 30 carregadores na mesma situação.

    Ao Brasil de Fato, pedindo para não ser identificado, ele declarou que fazia mais de quatro horas que ele e outros carregadores estavam sob um sol de 34º, sem comida ou água. “Trabalhamos do lado brasileiro e, assim, sustentamos a família. A situação vai ficar pior do que está. A maioria de nós trabalha para nossas famílias, se não nos deixam passar, não trabalhamos nem comemos”, disse.

    Do lado brasileiro, havia barreiras da Força Nacional, da Polícia Federal e do Exército. Já do lado venezuelano, havia uma Brigada Itinerante de Prevenção à Contaminação pelo coronavírus, que contava com representantes da Milícia Nacional, do Exército, da Guarda Nacional, da Polícia do Estado Gran Sabana, além de médicos venezuelanos e estudantes de medicina brasileiros que fazem a graduação na Venezuela.

    A fronteira estava fechada apenas do lado brasileiro aos venezuelanos. Brasileiros tinham livre circulação. Um único agente da Polícia Federal checava a nacionalidade e liberava a passagem.

    Com o passar dos meses, o decreto inicial que estabelecia 15 dias de fechamento da fronteira terrestre foi alterado algumas vezes. A situação dos imigrantes venezuelanos, tanto os que vivem nas ocupações independentes quanto os que estão nos abrigos oficiais da Operação Acolhida, também mudou durante a pandemia.

    Os moradores da Ka Ubanoko estão recebendo visitas diárias de profissionais do Médicos Sem Fronteiras. Porém, ainda falta infraestrutura, com reclamações de dificuldades para exames, testagem e atendimentos especializados.

    Segundo a Acnur, houve a instalação de oito pias com água para os imigrantes que vivem em assentamentos espontâneos realizarem a higienização constante, além disso, o órgão afirma que distribuiu 7,3 mil kits de higiene e limpeza, colchões, redes, fraldas e roupas de ajuda emergencial.

    A ONU também investiu na construção de um hospital de campanha em Boa Vista, com capacidade para 1,2 mil leitos. A Área de Proteção e Cuidados (APC) deverá atender até 2,2 mil pessoas.

    Após ter o funcionamento adiado cinco vezes, o Hospital de Campanha de Roraima foi inaugurado no dia 19 de junho, três meses após o fechamento inicial da fronteira. O atraso foi devido ao não cumprimento, por parte do governo estadual, da compra de equipamentos e contratação de funcionários.O funcionamento será custeado através da união dos governos municipal e estadual.

    Para atender aos refugiados que perderam seus empregos durante a pandemia, a Agência assegura que ampliou seu programa de assistência financeira. Para a Irmã Telma Lage, advogada e coordenadora do Centro de Migração e Direitos Humanos da Diocese de Roraima, o esforço feito ainda é insuficiente diante da situação precária em que vivem os imigrantes venezuelanos no estado brasileiro.

    “A gente tem um número grande de invisíveis, pessoas que estão fora do radar, principalmente das agências da ONU e da Força-Tarefa. São as pessoas que estão pagando aluguel ou em situação de rua. Essa tem sido nossa maior preocupação durante a pandemia da covid-19, porque estes são os vulneráveis dentro dos vulneráveis, já que a maioria está na periferia da cidade”, conta.

    O último centro da Operação Acolhida em Pacaraima (RR) tem capacidade para atender cerca de duas mil pessoas, no entanto abriga apenas 50 venezuelanos. / Michele de Mello

    Atualmente, Roraima tem aproximadamente 22 mil casos confirmados com o novo coronavírus. Boa Vista tem a grande maioria das confirmações, mais de 16,4 mil. Pacaraima, cidade que faz fronteira com a Venezuela, é a segunda do estado, com mais de 900 casos confirmados. O estado registrou 396 mortes. Os dados são da Secretaria de Estado da Saúde de Roraima, desta sexta-feira (10).A reportagem buscou contato com o governo estadual para um panorama da situação do estado, mas não obteve retorno até a publicação desta matéria.

    Como último estado do Brasil a confirmar casos de infecção pela covid-19, Roraima recebeu o vírus não pela fronteira com a Venezuela, espaço de grande preocupação de mandatários brasileiros, mas por duas pessoas contaminadas oriundas de São Paulo, no dia 21 de março. Naquela data, segundo dados do Ministério da Saúde, o Brasil contava com 1.128 casos confirmados de coronavírus e 18 mortes (três no Rio de Janeiro e 15 em São Paulo). Na Venezuela, de acordo com dados oficiais, o país registrava 70 casos em todo o território nacional; a primeira morte só veio a acontecer no dia 26 de março.

    Fronteira entre Brasil e Venezuela, no dia 18 de março de 2020 / Martha Raquel/Brasil de Fato

    Do lado de lá da fronteira: Venezuela 

    As bandeiras entre os dois países são o último símbolo que marca o limite invisível da fronteira entre Brasil e Venezuela. No lado tupiniquim, um agente da Polícia Federal, com seu telefone celular, fotografa os caminhões e cidadãos que tentam cruzar o passo fronteiriço. Este é o último rastro do Estado brasileiro. A sede do órgão está fechada para atendimentos presenciais por conta da pandemia. Tampouco existe qualquer equipe de saúde realizando controle sanitário.

    Dois passos adiante, numa tenda instalada a céu aberto, soldados da Força Armada Nacional Bolivariana (Fanb) solicitam documentos e fazem a primeira entrevista ao viajante. Em seguida, militares transportam malas e passageiros na caçamba de camionetes para evitar o contato até o próximo posto de controle.

    Chegando à primeira estrutura dos Pontos de Atenção Social Integral (Pasi), todos são desinfectados com uma solução de água e hipoclorito de cloro. Em seguida, equipes de médicos, muitos deles cubanos, novamente entrevistam os recém-chegados e realizam os testes rápidos, do tipo PCR (sigla em inglês para “reação em cadeia de polímeros”).

    Os militares que fiscalizam a fronteira e condutores de caminhões que transportam mercadorias entre o território brasileiro e venezuelano também são submetidos diariamente a exames.

    Aqueles que testam positivo são imediatamente afastados. Entre as sete pessoas presentes naquela tarde do dia 29 de maio, quatro estavam infectadas, o que corrobora com o dado oficial de que cerca de 78% dos casos registrados na Venezuela são importados e, muitos deles, chegam pelas fronteiras terrestres com a Colômbia e o Brasil, ou pelos voos humanitários que aterrissam em Caracas.

    No estado de Bolívar, divisa com Roraima, 992 venezuelanos permaneciam nas instalações do Pasi de Santa Elena de Uairén, até o dia 10 de junho, parte sendo tratada nos hospitais de campanha e outra cumprindo a quarentena obrigatória de 14 dias nos alojamentos do Estado, em pousadas e hotéis alugados. Depois de passar por novos testes, os venezuelanos são levados às suas regiões de origem em ônibus fretados pelo governo nacional.

     

    A Venezuela foi o primeiro país do continente americano a decretar quarentena em nível nacional e o fechamento de fronteiras. Desde março até junho, 59 mil cidadãos retornaram ao país pelos corredores humanitários terrestres e aéreos organizados pelo Estado. Desse total, 3.626 regressaram do território brasileiro, e, entre eles, 441 estavam contaminados.

    Em Caracas, capital do país, foram recebidos ao menos 36 voos com cerca de 1,8 mil venezuelanos. Para atender os cidadãos em regresso e a população local, foi criada uma equipe de resposta imediata sentinela, que faz quatro processos: desinfecção; mapa dos contágios positivos, conversas de reeducação, onde foram registrados casos positivos; além de um cerco epidemiológico para evitar o contágio de vizinhos.

    Existem quatro protocolos para o atendimento da população venezuelana. Um deles é a atenção de casa em casa para poder verificar se existem pessoas com sintomas. Tal medida é apoiada pelos questionários da Plataforma Pátria, que atende mais de 8 milhões de habitantes, com isso o Estado busca realizar um procedimento massivo para descartar a possibilidade de transmissão.

    Em seguida, são realizados testes rápidos nos pacientes suspeitos, aqueles que dão positivo são atendidos em algum dos 46 hospitais de referência instalados no país.

    “Na Venezuela ninguém vai morrer por negligência ou por falta de atenção médica”, assegura Jessica Lalana, coordenadora da força-tarefa do Partido Socialista Unido da Venezuela (PSUV), em Caracas.

    O país mantém uma média de 45.258 testes de diagnósticos para cada 1 milhão de habitantes, chegando a um total de 1.257.732 milhão de exames realizados. Já no Brasil a proporção é de 22.800 para cada milhão.

    O Brasil é o segundo país em número de mortos e infectados com a covid-19 em todo o mundo, concentra mais de 50% dos casos registrados na América Latina. Alegando a situação de crise sanitária e o colapso do Sistema Único de Saúde (SUS), os imigrantes têm relatado dificuldades para ser atendidos nos hospitais.

    Em novembro do ano passado, a Câmara de Vereadores de Boa Vista aprovou o projeto de lei 452/2019, que limitava em 50% o atendimento de estrangeiros na rede pública da capital. A proposta de autoria do vereador Júlio Medeiros (PTN) culpava “o aumento desenfreado de migrantes no estado de Roraima, o que veio a impactar em diversos setores na vida da população local, tais como saúde, educação e segurança”. A lei entrou em vigor em janeiro deste ano.

    Por ferir o princípio de acesso universal ao SUS previsto na legislação e violar o direito de igualdade garantido ao migrante, a medida foi considerada inconstitucional pelo Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1), que derrubou a lei em fevereiro de 2020.

    “Quando os compatriotas passam para o lado venezuelano e recebem atendimento médico eles manifestam que do lado brasileiro, nos municípios próximos, Pacaraima, Boa Vista, não lhes prestam atendimento para descartar se estão com covid-19”, confirma Maria Abad, militante da Frente Francisco Miranda, no estado de Bolívar. A frente é um dos movimentos populares que apoia nas comissões multidisciplinares do corredor sanitário da fronteira.

    Brigada Itinerante de Prevenção à Contaminação pelo Coronavírus do Estado venezuelano na fronteira com o Brasil / Martha Raquel/Brasil de Fato

    A realidade novamente confirma os dados. Um dos jovens que testou positivo ao chegar no território venezuelano, no dia 29 de maio, relatou à reportagem do Brasil de Fato que decidiu retornar pela falta de emprego e porque não foi atendido pelo SUS, em Boa Vista. Viajou 210 km com o pé fraturado.

    “Muitos desses companheiros vieram com a esperança de que na Venezuela possam ser atendidos com todos esses protocolos. Tanto atenção médica, como hospitalização e hospedagem de maneira totalmente gratuita”, assegura Jessica Lalana, coordenadora de grandes missões do PSUV em Caracas.

    Em maio, María Teresa Belandria, que responde como embaixadora venezuelana no Brasil nomeada pelo autodeclarado presidente Juan Guaidó, também deputado venezuelano, afirmou que existiam “mais de 280 mil venezuelanos” em território brasileiro, e pediu ajuda financeira às vésperas da Conferência Nacional de Doadores, realizada em 26 de maio.

    Mesmo sendo reconhecida pelo presidente Jair Bolsonaro, Belandria não tem autoridade para emitir documentos, vistos e, segundo relatos de venezuelanos no Brasil, os enviados de Guaidó tampouco oferecem algum tipo de suporte econômico para quem chega, apesar dos anúncios constantes de “ajuda humanitária” recebida do exterior.

    Já no território venezuelano, apesar do bloqueio, o país se apoia na cooperação internacional para combater a pandemia. Até o momento, receberam seis aviões com mais de 200 toneladas de produtos da China, além de receber insumos da Rússia, do Irã e uma brigada médica com 130 especialistas cubanos.

    “A nossa pátria e o nosso governo revolucionário estão dispostos a seguir recebendo esses compatriotas com amor, com uma atenção de primeira e todos os elementos necessários para garantir o direito à vida. Porque a Revolução Bolivariana se propôs desde o dia zero da pandemia a garantia da vida ao ser humano, ao nosso povo. Acredito que essa é uma das posturas mais heróicas que se apresentaram nesse período, porque isso não acontece no Brasil, Colômbia, Chile ou Equador”, assegura Jessica Lalana, membro do PSUV.

    O presidente venezuelano, Nicolás Maduro, assegura que a Venezuela é um dos únicos países que está sofrendo “migração reversa” durante a pandemia da covid-19, considerando os números do programa social Vuelta a la Patria (De Volta à Pátria).

    Para entender o retorno

    Apesar de os dados, desde 2018, terem parado de subir, a oposição regional ao governo de Nicolás Maduro aponta uma crise migratória e acusa o país de ser uma ameaça para a América Latina.

    Uma reunião no dia 2 de fevereiro de 2018, convocada pelo Conselho de Relações Exteriores dos Estados Unidos, foi o primeiro espaço a levantar o tema do refúgio para os venezuelanos. Em seguida, foram disparadas medidas adotadas pelos governos do chamado Grupo de Lima para facilitar a imigração venezuelana. Apenas nove dias depois da reunião em Washington, o então presidente Michel Temer viajou até a fronteira afirmando que “não faltariam recursos para os venezuelanos que fogem”.

    Nesse mesmo ano, foi lançada a Força Tarefa Logística do Exército, incentivada pela administração Trump. Em visita ao Brasil, em junho de 2018, o vice-presidente estadunidense, Mike Pence, visitou os abrigos da Operação Acolhida em Manaus (AM), quando afirmou que doaria US$ 1 milhão para apoiar o governo do então presidente brasileiro Michel Temer.

    Em abril daquele mesmo ano, a Casa Branca já havia anunciado o envio de US$ 16 milhões ao Brasil e à Colômbia para apoiar a imigração venezuelana.

    Em abril de 2018, depois de um evento intitulado “Crise migratória da Venezuela”, do grupo Dialogue – composto por figuras como o ex-presidente brasileiro Fernando Henrique Cardoso, além de ONGs e think tanks regionais –, foi anunciado que haviam sido arrecadados US$ 46 milhões para atender a situação da migração venezuelana. Os Estados Unidos haviam contribuído com US$ 2,5 milhões.

    Em uma reportagem investigativa, o canal multiestatal Telesur confirmou que venezuelanos eram incentivados a pedir refúgio ou asilo político pelos agentes da Acnur quando chegavam no território brasileiro. Nos primeiros meses de 2018, a Agência “estimava” que a migração venezuelana chegaria a 1,7 milhão de pessoas. Com as facilidades aprovadas em 2018 pelo governo Temer, os pedidos aumentaram cerca de 40%.

    Na metade de 2019, a Acnur já assegurava que 4 milhões de venezuelanos haviam deixado o país. O representante da Acnur para a região dos Estados Unidos e Caribe, Matthew Reynolds, afirmou que “a qualificação de crise era necessária para receber mais fundos do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional”.

    Para a politóloga Martha Ortega, o discurso de crise migratória foi uma forma que os governos conservadores na América Latina encontraram para receber financiamento de organismos internacionais. “A resposta à pergunta ‘por que voltam?’ é muito simples e contundente: um refugiado ou um perseguido político não retorna, um imigrante econômico, sim”, defende Ortega, que realizou longa pesquisa sobre o tema.

    Também para Jessica Lalana, o discurso de crise migratória faz parte de uma guerra híbrida contra a Venezuela e também parte do bloqueio midiático internacional contra o seu país.

    “Na Venezuela, os direitos humanos são garantidos. Apesar do bloqueio ideológico, financeiro, naval, de toda a tergiversação de informações divulgadas no mundo sobre a Venezuela, este é um país que garante os direitos humanos, garante a recepção de homens e mulheres que se foram com esperança, talvez com alguma situação econômica, mas que hoje regressam. E nós vamos recebê-los como povo e como revolução, de braços abertos”, finaliza a coordenadora do grupo que recepciona os imigrantes na capital do país.

    Edição: Vivian Fernandes

    VEJA TAMBÉM: EUA apertam bloqueio econômico contra Venezuela, mas o país segue como exemplo no combate ao coronavírus

  • Samba, agoniza mas não morre

    Samba, agoniza mas não morre

    Por Patrícia de Matos

    Namur chegou com um pandeiro na mão e um cigarro na boca. Parecia se contentar com o cenário escolhido para a primeira entrevista desta reportagem: a escadaria situada na rua Treze de Maio, um dos lugares mais emblemáticos do tradicionalíssimo bairro do Bixiga, cravado no centro de São Paulo. Devagar, como quem comemora e, ao mesmo tempo, lamenta a rotina de quem tem horas de batuque pela frente, sobe os degraus para as primeiras fotos e se queixa: “o Bixiga mudou muito. Você saía aqui nas ruas e tinha casas noturnas, de samba tinham várias — Teleco-Teco, Igrejinha, Catedral do Samba, Boca da Noite. Cresci vendo Benito Di Paula iniciando carreira, trombando com Osvaldinho da Cuíca…”

    Namur Scaldaferri, líder do grupo Madeira de Lei, na escadaria da Treze de Maio. Foto Patrícia de Matos

    O saudoso é nada mais, nada menos, do que o responsável pela composição do samba-enredo que deu o primeiro título de escola campeã para a icônica Vai-Vai, em 1978. De lá para cá, foram 15 vitórias, das quais 7 são filhas diretas das inspirações musicais do filho de italianos. Os mais de 45 anos de samba de Namur Scaldaferri renderam um dos maiores suspiros boêmios e musicais da Bela Vista de hoje, o grupo Madeira de Lei. Formado por amigos que corriam pelas ruas quando meninos enquanto davam seus primeiros passos na música, o grupo realiza, há 11 anos, todas as sextas-feiras, o “Samba da Treze”, uma roda de samba de rua instalada na esquina da Conselheiro Carrão com a Treze de Maio.

    O som toca com uma técnica precária, acompanhado por uma multidão que canta alto, mal distribuída de forma caótica em uma rua disputada palmo a palmo por pessoas e automóveis. Jovens de classe média sedentos por uma dose de tradição se misturam a frequentadores da Vai-Vai e personagens como o Sol, que tem uma canção só para ele. Do outro lado da rua, há uma loja com focaccias e o seu letreiro é escrito em italiano. Pode-se ver a igreja da Achiropita, também, cujo padre se tornou um dos protagonistas de uma briga pelo fim da festa.

     

     

     

    Namur jovem na escadaria da Treze de Maio, o segundo da esquerda para a direita. Foto: arquivo pessoal

    O SAMBA CONTINUA?

    Foi de uns quatro anos para cá, segundo Carla Borges, a produtora do grupo, que o samba estremeceu. No dia 7 de julho de 2018, durante um dos inúmeros diálogos do Madeira de Lei com os órgãos públicos — no caso, a subprefeitura da Sé —, a organizadora conheceu um inquérito civil com reclamações sobre a atividade de todas as sextas. Nele, há denúncias de perturbação do sossego, uso de drogas, entre outras ocorrências.

    Carla Borges, produtora do Samba da Treze, minutos antes do batuque começar. Créditos: Patrícia de Matos

    A ação foi produto de um movimento composto pela igreja da Achiropita, a Associação Viva Treze e a Coordenadoria Estadual de Conselhos Comunitários (CONSEG). Esse foi o estopim de um embate de vários capítulos que envolvem o samba, o poder público e os comércios da região. Em um dos episódios, Carla chegou a ser multada em 20 mil reais pela realização do evento. Em outro, a Polícia Militar foi enviada para impedir a realização da festa que já tinha centenas de confirmados no Facebook.

    Há cerca de dois anos, Flávia March, Comandante do 11º Batalhão da Política Militar, começou a participar das reuniões junto ao Ministério Público a fim de, segundo ela, “buscar solução para o conflito, discutir o tema de forma pacífica, pois o diálogo e a mediação são a melhor solução.”

    Em uma das conversas com integrantes do Madeira de Lei, a policial teria advertido sobre “a necessidade de comunicação do organizador do evento junto aos órgãos públicos, no sentido de obter autorizações.” Alega, ainda, que o barulho se perpetua na rua após a apresentação do grupo, causando reclamações devido à “perturbação do sossego público (…), venda de bebidas alcoólicas a menores, uso de entorpecentes, golpes da máquina de cartão, furtos de celulares, entre outros.”

    O Samba da Treze não é a única atividade realizada no famoso quarteirão do Bixiga. Há, também, a festa da paróquia italiana que tem, entre seus patrocinadores, a rede Globo. Durante os dias de festividade, dezenas de barracas se misturam ao público do samba. As ruas são fechadas e as músicas e orações podem ser ouvidas a certa distância através de caixas de som instaladas no alto dos postes de luz.

    A presidente da coordenadoria, Patrícia Navarro, defende que “as duas festas (a da paróquia e a do samba) são distintas, mesmo porque a Achiropita acontece apenas uma vez no ano durante, aproximadamente, 10 dias.” A capitã Flávia diz que “não há qualquer distinção quanto ao tratamento, seja qual for o pleito junto à Polícia Militar. O que ocorre é que a Festa da Achiropita encontra-se no calendário da prefeitura.”

    Descendente de italianos, Namur costumava, ao longo de seus 60 anos de vida, frequentar a igreja da Achiropita, onde também foi batizado. Declara-se favorável à festa, mas questiona que “as barracas ficam na rua o mês inteiro, fecha todo o quarteirão. Aí pode. Não sei se é porque é uma festa italiana e a nossa é negra. A gente começa a pensar, porque a nossa festa é popular, de origem negra e de participação dos menos favorecidos. Aqui não importa se você chega de Mercedes ou de chinelo de dedo.”

    Músicos do grupo Madeira de Lei, no auge da apresentação. Créditos: Patrícia de Matos

    ESCRAVIDÃO, SEDE E FOME NO DNA DO BIXIGA

    Com 75 ruas — onde estão 860 imóveis tombados — e 1,5 quilômetros de diâmetro, o Bixiga é uma cidade interiorana, daquelas que você cruza de uma ponta a outra cumprimentando padeiros e vizinhos. Apesar da moda de prédios cada vez mais altos, uma parte do bairro parece ser uma fotografia de uma São Paulo que, no século 20, foi três — um vilarejo, uma grande cidade e uma metrópole.

    Hoje, o Rio Saracura corre embaixo de uma importante avenida do bairro — a 9 de julho. Em uma de suas extremidades, onde atualmente fica o Anhangabaú, vendiam-se escravos. Apesar de não ver mais o céu, o rio é testemunha dos que fugiam seguindo sua margem até onde fica a região da 14 Bis e da Vai-Vai. O lugar se configurou em um quilombo, pólo da cultura africana que fez do Bixiga uma das poucas zonas da época em que se viam, mais livremente, jogos de capoeira, ritmos africanos e, claro, o samba.

    Em uma São Paulo composta majoritariamente por negros — a cada três pessoas negras, uma era branca — o pano de fundo do projeto racista de branqueamento se conjugou com a nascente indústria que, por sua vez, provocou a substituição da força de trabalho escrava pela dos imigrantes italianos.

    Quem revela essa história é Paulo Santiago, fotógrafo e fundador do Museu do Bixiga. Ele conta que “os italianos começaram a se misturar com os negros, tanto que dos quinze títulos que a Vai-Vai ganhou, sete foram de sambas-enredo compostos pelo Namur, líder do Madeira de Lei e filho de italianos. Essa ligação dos negros com os italianos se deu de cara. São grupos barulhentos, muito musicais, muita coisa de comida.” Depois, vieram os nordestinos, resultando na composição social do bairro que conhecemos hoje. “Os negros fugiam da escravidão, os italianos fugiam da fome e os nordestinos, da seca”, fundamenta.

    Paulo Santiago, fundador do Museu do Bixiga. Créditos: Patrícia de Matos

    Na visão de Santiago, o bairro precisa de união. “A sociedade brasileira está dividida. Qualquer coisa vira uma guerra. Aí entra o MP e piora tudo (…) não adianta criar rivalidades, que não vai levar a nada. Nessa guerra, todos perdem.”

    SAMBA, O PATRIMÔNIO

    Em defesa do Samba da Treze, Namur diz que a festa segue o que a lei manda. “Antes da meia noite,  o samba acaba”, afirma. Neste horário, já estão a postos dezenas de ambulantes, dispostos a saciar a sede de milhares de baladeiros sedentos por diversão. É aí que a festa continua.

    Logo, outros bares, um do lado do outro, recebem o insaciável público do samba recém encerrado. Estes se somam aos que vão chegando de outros lugares e, de repente, a rua Treze de Maio vira um point mais parecido com a configuração de um bloco de carnaval.

    Paulo concorda com Namur. “Esse é um problema do psiu (a lei que determina limite de decibéis de acordo com o horário). Disseram que o psiu só trabalha até 22h porque não tem verba. Bem, eu acho que se tem esse problema, ele é do psiu, não dá para jogar em cima do Madeira de Lei.”

    Em meados de julho deste ano, o grupo deu um passo adiante na luta pela continuidade do show musical. Lançou um abaixo-assinado. Nele, dizem: “nós, moradores, comerciantes e frequentadores do Samba da Treze assinamos o presente abaixo-assinado no sentido de que a manifestação cultural praticada pelo Grupo Madeira de Lei (…) não oferece perturbação do sossego, degradação da rua (…) tão pouco algazarra e brigas, portanto, não nos opomos à continuidade do mesmo.”

    A movimentação política rendeu, entre outras manifestações de apoio, um Projeto de Lei, já em fase final de tramitação na Câmara Municipal de São Paulo, que torna o Samba da Treze Patrimônio Imaterial de capital paulistana. O projeto foi elaborado pelo vereador Toninho Vespoli (PSOL-SP). Em suas palavras, as “manifestações contrárias à festa se demonstraram um tanto preconceituosas.” O parlamentar diz que foi à roda de samba e que vê “o contrário do que afirmam: ali as pessoas transitam. Quando mais gente ocupando os espaços públicos, melhor. Fica muito mais perigoso quando a zona fica morta. O esvaziamento da cidade cria um ambiente propício para o perigo.”

    O vereador quer criar um ambiente de diálogo que estimule o consenso na região e enxerga na proposta, “além da garantia do reconhecimento de uma cultura do samba em São Paulo, que já é patrimônio imaterial do Brasil (…) o fomento ao turismo”. Ele acredita que a ação do Ministério Público foi autoritária, na medida em que “parece que, logo no começo, o MP já tomou um lado. O órgão poderia ser o espaço para esse diálogo, mas infelizmente não senti essa disposição deles.” Para ele, “falta a prefeitura assumir a sua responsabilidade em implementar políticas culturais voltadas para a região.”

    Em um cenário que parece um retrato de um tempo que se foi, as inúmeras disputas a céu aberto na esquina da Treze de Maio com a Conselheiro Carrão não deixam a desejar a nenhum roteiro da mais dramática novela das oito. Uma vez, o padre da igreja, depois de se envolver em brigas com bares vizinhos, chegou a ser ferido com uma faca.

    Ninguém parece querer falar baixo enquanto o samba toca, “sem arredar o pé”, como diz Namur. Camadas de história, afeto e ressentimento podem ser encontradas ali, na mesma esquina de sempre. A vida, naquele lugar, tem ritmo negro e cheiro de focaccia. Enquanto leis tramitam, cantineiros se revoltam e o poder público se contorce diante do nó cultural, oito cadeiras e um som precário são suficientes para puxar os milhares que, todas as sextas-feiras, esperam o início do primeiro batuque para espantar os fantasmas da semana. Namur profetiza: “É tradição, o samba continua.”

  • Copa dos Refugiados e Imigrantes: Futebol e união para além da terra

    Copa dos Refugiados e Imigrantes: Futebol e união para além da terra

    Ocorreu ontem (20) no Estádio Municipal Paulo Machado de Carvalho, também conhecido como Estádio do Pacaembu, em São Paulo, a Grande Final da Copa dos Refugiados e Imigrantes – etapa São Paulo. O evento é organizado anualmente pela ONG África do Coração em parceria com a ACNUR – Agência de Refugiados da ONU, a OIM – Organização Internacional para as Migrações, a Caritas Arquidiocesana de São Paulo – CASP, a Prefeitura de São Paulo e outros apoiadores públicos e privados.

    As primeiras fases da Copa iniciaram em agosto nas cidades de Brasília, Porto Alegre, Rio de Janeiro, Recife, Curitiba e São Paulo. A competição envolveu, ao todo, aproximadamente 1.120 atletas, organizados em 46 seleções que agregaram pessoas de 39 nacionalidades em situação de refúgio (solicitantes de refúgio e refugiados reconhecidos) e imigrantes. A final foi disputada entre os times da República Democrática do Congo (RDC) e Níger.

    Dessa vez, quem levou a taça de primeiro lugar foi a República Democrática do Congo (RDC) vencendo o Níger, que havia sido campeão na edição anterior do evento, em 2018. O time vencedor ainda irá participar de etapa nacional no Maracanã, no Rio de Janeiro, em novembro deste ano.

    Etapa Final da Copa dos Refugiados e Imigrantes no Estádio do Pacaembu | Foto: Lucas Martins (Jornalistas Livres)

    Entrevistamos três refugiados e imigrantes que estiveram envolvidos na organização e participação na Copa dos Refugiados e Imigrantes de diferentes maneiras.

    Nosso primeiro entrevistado foi Abdulbaset Jarour, refugiado sírio, vice-presidente da ONG África do Coração e Coordenador-Geral da Copa dos Refugiados e Imigrantes.

    – Como surgiu a ideia da Copa dos Refugiados e Imigrantes?

    A Copa dos Refugiados e Imigrantes surgiu em 2014 com o propósito de chamar atenção da mídia e ajudar na integração dos imigrantes na sociedade brasileira. A ideia de usarmos o futebol foi proposta por um dos imigrantes e acabou sendo apoiada pela ACNUR e pela Caritas de São Paulo. E assim surgiu a ideia, cujo objetivo principal é, primeiramente, realizar integração entre os povos refugiados e imigrantes, mas também integrar os refugiados e imigrantes com o povo da sociedade brasileira, para quebrar todo o olhar preconceituoso e xenofóbico que aumentou muito nos últimos tempos. Também buscamos chamar atenção do setor público para dar protagonismo às nossas falas para ver se conseguimos mudar as leis. Nós também convidamos autoridades para falarmos sobre a nossa situação. Por isso a Copa dos Refugiados não é para refugiados, nem com refugiados, mas dos refugiados e imigrantes. O nosso outro objetivo é chamar atenção do setor privado para superar uma das maiores dificuldades dos migrantes que chegaram aqui no Brasil: muitos deles são formados e vieram para cá com muita vontade de abraçar uma oportunidade para se sensibilizar mais pela causa. O que menos importa é o resultado. Todo mundo sai ganhando e sai feliz daqui. O nosso objetivo é maior do que isso.

    – Você acredita que o esporte cria uma relação entre os povos que facilita a sua integração?

    O esporte e o lazer são coisas que realizam a integração em todo o mundo. Há vários tipos de esportes que dão esse ânimo e que ajudam a realizar a integração. Usamos o futebol porque é o “rei dos esportes”, o futebol é uma linguagem universal, pelo qual as pessoas se unem. Nele, todo mundo se abraça. Torcedores, pobres, ricos, todas as raças, todas as cores. Por isso o futebol é uma linguagem universal, e por isso usamos essa linguagem. Ainda mais porque que estamos no Brasil, lugar onde o futebol é sagrado e que funciona como uma “escola de futebol”, sendo o país que mais exporta jogadores do mundo. E também, como sempre falo, acredito que há duas coisas que tocam o coração humano: o amor e o futebol. Por isso usamos essa linguagem e graças a essa luta e resistência conseguimos realizar esses objetivos e estamos aqui com esse projeto que cresceu muito depois da sua criação em 2014.

    – Conte um pouco sobre a trajetória da Copa dos Refugiados e Imigrantes desde a sua criação.

    A Copa foi criada em 2014, e em 2016 ela foi realizada pela primeira vez fora do Estado de São Paulo, indo para Porto Alegre. O jogo aconteceu no dia 26 de março, dia do aniversário da cidade de Porto Alegre, e foi realizado na Arena Histórica do Grêmio. Em 2018, a Copa foi para três Estados: Rio de Janeiro, Porto Alegre e São Paulo. E, esse ano, a Copa chegou a seis lugares diferentes: Distrito Federal, Recife, Curitiba, Porto Alegre, Rio de Janeiro e São Paulo. Ano que vem, nosso plano é fazer com que a Copa vá para nove Estados brasileiros: Santa Catarina, Minas Gerais e Mato Grosso. A Copa não é um crescimento só nacional, mas internacional, porque quem carrega o título não é de dinheiro, nem taça de ouro, mas um título humano, de pessoas que deixaram sua terra e recomeçaram com uma nova vida aqui no Brasil.

     

    Abdulbaset Jarour, coordenador-geral da Copa dos Refugiados e Imigrantes, no Estádio do Pacaembu | Foto: Lucas Martins (Jornalistas Livres)

    – Como refugiado, o que um evento como esse significa para você?

    Como refugiado, estou aqui muito feliz de fazer parte dessa história porque essa Copa não é apenas um campeonato, é mais do que um jogo de futebol. Para mim é uma felicidade conseguir trazer os refugiados e imigrantes para pisar em grandes estádios aqui no Brasil. Um dos jogadores, em seu país de origem, era jogador de futebol de carreira, e é muito gratificante trazer de volta esse sorriso de uma pessoa que se sente como um órfão da terra. Isso, para mim, é algo que me deixa muito feliz, de fazer parte dessa história e também de ser um dos organizadores, ser liderança ativista e defensor pela causa dos refugiados e imigrantes.

    – Você gostaria de deixar alguma mensagem, como refugiado, para o povo brasileiro?

    Minha religião é o amor, minha raça é a humanidade, minha pátria é o mundo. Sou cidadão do mundo e somos todos filhos de uma mesma terra. Então, reserve um minuto para ouvir uma pessoa que teve que deixar a sua terra – seja pela desigualdade social, pelas perseguições, pela violência ou pela guerra. E vamos apoiar. Se não vai ajudar, também não vá atrapalhar. Então apoie nossa causa porque é uma causa que merece o nosso apoio. Deus criou este planeta sem fronteiras, criou a diversidade entre nós, como seres humanos. Também precisamos lembrar que o povo brasileiro é formado por pessoas que fugiram da fome, de guerras, da escravidão e também devem ter respeito com os povos indígenas da terra brasileira. Por isso essa causa tem tudo a ver com o povo brasileiro que deve acolhê-la, assim como o nosso projeto.

     

     

    Nosso próximo entrevistado foi Matuka David, que está no Brasil há 5 anos e jogou na Copa dos Refugiados e Imigrantes como goleiro do time da República Democrática do Congo (RDC) – seleção vencedora da edição de 2019. 

    Matuka David recebendo a medalha de campeão como goleiro da seleção da República Democrática do Congo | Foto: Lucas Martins (Jornalistas Livres)

    – Como está sendo participar da Copa?

    Estou muito feliz de estar aqui. Se a gente veio foi pra ganhar, né? A gente ganhou esse jogo de 2×0.

    – Como foi a sua preparação para os jogos da Copa?

    A preparação foi difícil. Quando estávamos nos preparando a Copa, a gente estava sempre aprendendo. A gente até perdeu alguns jogos na preparação, mas falamos pra nós mesmos: “Agora a gente pode perder, mas na hora da Copa a gente não pode não!”

    – Você acha que esse evento facilita a sua integração com outros refugiados e com o povo brasileiro?

    Sim! Graças a Deus, né. Está ajudando bastante. 

    – Há quanto tempo você joga futebol?

    Eu jogo futebol há 4/5 anos, desde que cheguei no Brasil.

    – Quem é o seu goleiro favorito?

    Eu gosto muito do Cássio, goleiro do Corinthians.

    – Você gostaria de deixar alguma mensagem para o povo brasileiro?

    Gostaria de agradecer muito o povo brasileiro. Estamos muito bem aqui, fomos bem recebidos.

     

    Nosso terceiro entrevistado, Yacouba Conde, está no Brasil há dois anos e meio e é capitão da seleção da Gâmbia.

    – Como está sendo participar da Copa para você?

    A Copa está sendo uma grande oportunidade para nós mostrarmos que nós também podemos jogar com qualidade e podemos trazer nossas habilidades para o campeonato brasileiro. Mas, infelizmente, eles não dão essas oportunidades para nós. Então essa Copa dos Refugiados representa um campeonato para a gente.

    – Você tem vontade de seguir uma carreira no futebol aqui no Brasil?

    Yacouba Conde, capitão da seleção da Gâmbia | Foto: Lucas Martins (Jornalistas Livres)

    Claro que tenho. No ano passado eu fui eleito o melhor jogador da Copa dos Refugiados e aí eu tive a oportunidade de ser chamado para jogar no time de futebol do Corinthians. Mas, infelizmente, por questões de documentação, eu não consegui assinar o contrato e perdi a vaga. Até hoje estou correndo atrás disso para ir atrás do meu sonho.

    – Desde quando você joga futebol?

    Desde que eu nasci. Eu cresci jogando futebol. Eu sou jogador polivalente: jogo tanto de zagueiro, como na lateral, e outras posições.

    – Como que foi a sua preparação como capitão do time?

    Não foi fácil não, porque tem alguns jogadores que moram longe e às vezes temos que pagar as passagens deles. E também para vir treinar nós temos que pagar o campo.. Aí não foi fácil, mas graças a Deus deu tudo certo.

    – Como refugiado, o que um evento como esse significa para você?

    Significa muito para mim. Eu acho que é o único evento que nós temos para nos expressar, para encontrar os nossos amigos, porque nós não temos mais lugar para nos encontrarmos e trocarmos uma ideia. 

    – Você acha que um evento como esse ajuda na sua integração com os outros refugiados e imigrantes?

    É exatamente isso.

    – Você gostaria de deixar alguma mensagem para o povo brasileiro?

    Não julguem o livro pela capa. Temos que abrir o livro e ler para conhecer. Não é porque nós somos pretos, ou sei lá o que, não significa que não temos qualidade para mostrar e oferecer. Acho que a gente precisa só é de oportunidade.

     

    Nosso quarto e último entrevistado foi Azuka Okoru, de 24 anos, jogador da seleção do Níger que já está no Brasil há 4 anos e 7 meses. Foi campeão da edição de 2018 da Copa dos Refugiados e Imigrantes e vice-campeão em 2019.

    – O que você sentiu ao participar da Copa?

    Nós já participamos da Copa no ano passado e fomos campeões. Mas esse ano a gente chegou no final mas não ganhou. Mas tudo bem, é assim mesmo. Só Deus sabe o porquê. Nós jogamos muito bem, mas o outro time tem que ganhar porque eles jogam melhor do que a gente. Quem joga melhor é que ganha.

    Azuka, jogador da seleção do Níger | Foto: Lucas Martins (Jornalistas Livres)

    – Como é jogar no Pacaembu, um estádio histórico?

    É muito bom jogar aqui. O estádio é grande e quando a gente joga aqui, a gente descobre se sabe ou não jogar bola. Porque quando a gente joga em um campo pequeno, você sente que sabe jogar muito, porque o campo é pequeno. Mas quando a gente chega aqui, você some. Mas é muito bom, o Pacaembu é muito bom pra jogar bola.

    – Você acha que, aqui no Brasil, o esporte pode facilitar sua integração com os outros refugiados e imigrantes?

    Sim, sim, sim. É muito bom. Esporte é bom e o Brasil é o país do esporte. É por isso que eu estou aqui, e gosto muito do Brasil. Meu sonho era vir aqui pro Brasil pra jogar bola.

    – Como refugiado, o que essa Copa significa para você?

    Essa Copa significa uma oportunidade para conhecer outras pessoas de vários países. É muito bom, todo mundo gosta para jogar. Todo mundo gosta porque estamos conhecendo outras pessoas, que você nunca tinha visto antes.

    Etapa Final da Copa dos Refugiados e Imigrantes no Estádio do Pacaembu | Foto: Lucas Martins (Jornalistas Livres)
  • “DIGA PARA AS CRIANÇAS QUE ELAS NÃO PODEM SE ABRAÇAR!”

    “DIGA PARA AS CRIANÇAS QUE ELAS NÃO PODEM SE ABRAÇAR!”

    Estão programadas mais de 700 manifestações pelos Estados Unidos para esse sábado 30/06 contra a política de “humanidade zero” da administração Trump, segundo o site commondreams.org.

    Mais de duas mil crianças foram separadas de seus pais após a adoção, pela administração Trump, da política de “tolerância zero” em abril deste ano. A política transformou em crime a tentativa de entrar no país sem autorização.

    Falamos com o brasileiro que denunciou maus-tratos em centro de detenção de filhos de imigrantes presos. Antar Davidson fala português com sotaque: mora desde pequeno nos Estados Unidos. Seu pai é mestre de capoeira. O apelido de Antar na capoeira é instrutor Aranha. E foi pela capoeira que foi trabalhar nesse centro de detenção de crianças em Tucson, Arizona.

    Três irmãos brasileiros detidas, isolados da mães, choravam e se protegiam abraçados quando Antar se revoltou ao receber a ordem de dizer, em português, que eles não podiam se abraçar.

    Veja a íntegra da entrevista de Antar com Carla Locatelli para os Jornalistas Livres.

  • Imigrantes fazem greve em Buenos Aires contra decreto de Macri

    Imigrantes fazem greve em Buenos Aires contra decreto de Macri

    Por Coletivo Passarinho, direto de Buenos Aires, especial para os Jornalistas Livres

     

    Mais de 600 imigrantes participaram, na tarde desta quinta-feira (30/03), da Greve Geral de Imigrantes, contra medidas xenófobas do governo do presidente Mauricio Macri. Os manifestantes se concentraram na Praça do Congresso e seguiu em marcha até a Praça de Maio, na capital.

    A pauta central do ato é o repúdio ao Decreto de Necessidade e Urgência (DNU) 70/2017, publicado em 30 de janeiro deste ano, que quer estabelecer no país uma política anti-imigratória e inconstitucional – já que modifica a Lei de Imigrações 25.871, a Lei de Procedimento Administrativo, o Código Penas e o Código Processual Penal.

    A medida amplia a lista de pressupostos que permite a proibição da entrada no país ou deportação quando a pessoa tem antecedentes criminais. Agora todos os crimes do Código Penal são contemplados, inclusive o exercício de atividades informais como camelô, ocupação de moradia e obstrução da via pública. Isso significa que todo imigrante que já tem documento regularizado pode ser considerado passível de expulsão porque ele está dentro do sistema penal. Além disso, o DNU diminui a chance de defesa do imigrante no processo de deportação, já que ele tem três dias para tal e o juíz decide a questão também num período de três dias.

    A Argentina, que nas últimas décadas se tornou um país exemplar em políticas migratórias, agora é palco de propostas como o DNU 70/2017 e o Centro de Detenção Migrante, discriminando, criminalizando, excluindo e tolhendo direitos da coletividade imigrante.

    Os manifestantes acusam o governo Macri de usá-los como “bode expiatório” para suas políticas e econômicas impopulares de ajuste. “Estamos em greve porque nos afirmamos como trabalhadores que migraram para se tornar parte do crescimento deste país, porque migrar não é um crime, é um direito humano”, diz o manifesto dos organizadores.

    Houve faixas de “Nenhum ser humano é ilegal”, “Todos somos imigrantes” e, é claro, “Fora Temer”.
  • “Crise migratória” e seus (ir)responsáveis

    “Crise migratória” e seus (ir)responsáveis

    A espiral decadente na tragédia humana e global que a mídia convencional escolheu denominar “crise migratória” é composta de muitos matizes e de responsáveis deliberadamente postos à sombra. Não é nova a incapacidade ou indisposição crônica dos meios de comunicação para a análise dos grandes desafios enfrentados pela humanidade, nem sua parcela de responsabilidade no simplismo e na xenofobia que sustentam as “políticas migratórias” daqueles que tentam fechar suas portas a milhões de refugiados

    Uma campanha pede a órgãos midiáticos tradicionais como a britânica BBC honestidade na política do denominar. Suas notícias por vezes recheadas do termo “crise migratória” são falaciosas, simplistas e insensíveis às causas que levam famílias inteiras a fugir de suas casas, lançarem-se à sorte e ao risco, para tentarem se salvar. São refugiados buscando escapatória de “crises” frequentemente abastecidas por esses mesmos “paraísos” para onde se dirigem.

    Mas essa tendência tem mudado ligeiramente. As imagens são demasiado chocantes e a narrativa tem sido cada vez mais dramática, embora ainda contaminada pela abordagem a uma “ameaça” ou um “problema” migratório, traga ele o histórico que trouxer. Corpos negros e árabes jogados ao mar ou nas praias têm chegado aos noticiários no Brasil, onde começamos a entender — ainda insuficientemente — nosso próprio desafio para lidar com a migração com base no respeito aos direitos humanos mais básicos — inclusive o direito de migrar e buscar refúgio.

    Desde o início do ano, mais de 160.000 pessoas já chegaram à Grécia, a grande maioria atravessando o Mar Egeu. Foto: Stephen Ryan (Fotos Públicas)

    Exemplo foi a imagem do menino sírio cujo pequeno corpo foi fotografado e avistado pelo mundo em uma praia turca. Para humanizá-lo, descobriu-se seu nome e sua trajetória: Aylan Kurdi tinha três anos de idade e foi carregado pela família, até que sua mãe, Rehan, e seu irmão, Ghalib, de cinco anos, também se afogassem. A história é contada ao “New York Times” pelo pai, Abdullah Kurdi, agora solitário na fatídica jornada de volta, para enterrar sua família, que deixara Damasco e, antes disso, Kobani, uma resistente cidade curda brutalmente atacada pelo autodenominado “Estado Islâmico”.

    As imagens de corpos nas praias ou de moribundos resgatados ao mar, principalmente vindos da África e do Oriente Médio, têm um contexto e dizem muito sobre a atual conjuntura geopolítica mundial. Conflitos perpetuados somam-se às crises sistêmicas do capitalismo para impor a determinadas populações riscos tamanhos que a solução se lhes apresenta como o deslocamento ou o refúgio.

    Neste périplo de agonias, mais de 2.300 pessoas já morreram em 2015 tentando cruzar o Mediterrâneo, principalmente da Eritréia, do Mali, da Síria e do Afeganistão. No ano passado, foram mais de 3.200 mortes na mesma travessia e 307 outras vidas perderam-se na fronteira do México com os Estados Unidos. Desde 2000, mais de 22 mil migrantes morreram tentando alcançar a Europa. Os dados são do mais recente relatório da Organização Internacional para a Migração, “Jornadas Fatais” (Fatal Journeys).

    Os refugiados trazem apenas o que podem levar. Não é uma viagem segura Foto: Stephen Ryan (Fotos Públicas)

    O professor espanhol de Ciências Políticas Sami Naïr conclui, num artigo para o diário “El País” desta quinta-feira (3): “Acreditou-se que se podia conter, para sempre, um problema estrutural de natureza demográfica e geoeconômica unicamente com medidas policiais; isso é o que hoje explode no rosto da União [Europeia!]”. Ele critica o esgotamento de uma política migratória elaborada pelo bloco a partir de 1985, desde que assinados os Acordos de Schengen, que construíram “uma autêntica barreira de ferro contra os de fora”.

    A ilha italiana de Lampedusa ou o porto francês de Calais refletem esse drama. Na primeira, sobreviventes de algum conturbado resgate denunciam perseguições em alto mar e tratamento criminal, e algumas mulheres acusam oficiais italianos de grave abuso sexual. Para outros, o destino é a prisão, enquanto sua “situação” burocrática é avaliada ou enquanto corre o processo de deportação. Calais, um porto francês que faz conexão com o Reino Unido, é outro dos cenários em que graves abusos dos direitos humanos são frequentemente denunciados. Os casos são por vezes narrados pelos meios domésticos como uma iminente invasão que deve ser ali contida.

    Além da estreiteza na formulação de políticas que se dediquem mais à “segurança humana” do que à segurança seletiva, paliativa e militarizada, há também uma persistente insuficiência na análise das causas e das responsabilidades pela mais recente “crise migratória”. Além dos impactos da crise internacional, os conflitos acumulam-se à medida em que os países que os gerem ou abastecem, fieis a suas políticas imperialistas ou neocolonialistas, gastam mais recursos na guerra do que na mitigação dos seus efeitos sobre as populações atingidas.

    Desde a ofensiva de tratados de “livre-comércio” ou políticas de militarização no retrógrado “combate ao narcotráfico”, que derramam suas consequências pelas fronteiras entre México e Estados Unidos, até a manipulação de grupos armados da população descontente ou mercenários estrangeiros para a derrubada de governos, a geopolítica mundial está dominada por inúmeros conflitos e tensões sociais.

    Foto: Stephen Ryan (Fotos Públicas)

    A Escola de Cultura de Paz da Universidade Autônoma de Barcelona estimou em pelo menos 36 conflitos armados ativos no final de 2014–13 na África, 12 na Ásia, seis no Oriente Médio, quatro na Europa e um na América Latina. Na Síria, o número de deslocados internos — que não chegam a cruzar a fronteira — é hoje de 11 milhões de pessoas. Os que atravessam a fronteira procuram botes infláveis, caminhões frigoríficos e outros meios inseguros e precários para sobreviver à jornada, por vezes também feita à pé.

    O acúmulo de necessidades sobrecarrega os sistemas de apoio humanitário e a perpetuidade dos conflitos afoga as populações na violência. Enquanto isso, mantendo sua política de ingerência belicosa, os EUA gastam em média US$ 68 mil por hora para voos e ataques aéreos na Síria e no Iraque, mas a ONU recebeu apenas metade do recurso necessário para prestar assistência à população cujo país tem sido lapidado, diz Yacoub el Hillo, oficial das Nações Unidas na Síria. Já os recursos destinados aos grupos armados ou a mercenários e regimes aliados das grandes potências são inestimáveis.

    A era do intervencionismo militar — direto ou indireto — politicamente motivado, mas trajado de benevolência superior pelos meios de comunicação, integra o cenário da grande tragédia humanitária vivida atualmente. O mesmo se passa com as políticas migratórias xenófobas, ainda assim insuficientes para lidar com os resultados de políticas externas imperialistas e neocolonialistas, de um sistema de iniquidades fadado à perpetuação e à repetição das grandes crises, ou das grandes tragédias, cada vez menos detidas pelas fronteiras.

    Moara Crivelente é cientista política (doutoranda em Política Internacional e Resolução de Conflitos) e jornalista (mestre em Comunicação dos Conflitos Armados e Sociais), interessada nas questões de conflito e paz, militarização, resistências populares e participação política.