Jornalistas Livres

Tag: Histórias

  • Seu Davino, de 110 anos, sobreviveu à gripe espanhola e à covid-19

    Seu Davino, de 110 anos, sobreviveu à gripe espanhola e à covid-19

    Seu Davino, de 110 anos e morador de Campos-RJ, saiu do hospital no dia 07 de junho, recuperado da Covid-19. A equipe do hospital comemorou. Foram 18 dias de internação e, apesar de ter chegado em estado grave, ele não chegou a ficar internado na UTI. Quando perguntado sobre o que fez para viver tantos anos, Davino diz que não se lembra. São histórias como as dele que nos ensinam sobre a força da vida.

    Texto e fotos: Jean Barreto

    Foto: Jean Barreto

    Há cerca de quatro meses, o mundo enfrenta a pandemia da Covid-19 e em Campos a situação não é diferente. Até o dia 26 de julho, o município contabiliza 2.766 casos confirmados, destes casos, 177 vieram a óbito, segundo a prefeitura.

    Histórias de superação estão ai todos os dias

    A mais recente é de Davino Cordeiro, de 110 anos, que recebeu alta no dia 6 de julho do Centro de Controle e Combate ao Coronavírus de Campos – CCC. Seu Davino é o primeiro idoso a vencer a doença no Norte Fluminense e segundo no estado do Rio de Janeiro.

    O primeiro paciente é de Niterói e também centenário, com 110 anos.
    Ele deu entrada no centro, dia 18 de junho com 109 anos, em estado grave, como relata as profissionais que cuidaram do Davino. A saída do paciente de 110 anos foi comemorada pela equipe do Centro de Controle e Combate ao Coronavírus de Campos.

    Foto: Jean Barreto

    “prestar cuidados ao paciente Davino foi um marco muito grande na minha vida profissional, né?! pq receber um paciente que entrou no hospital com 109 anos e ele fez aniversário aqui de 110 anos, é muito gratificante pra gente – falou Daniela Muniz, enfermeira do CCC.”

    Ele ficou internado durante 18 dias na enfermaria da unidade exclusiva para tratamento de pacientes com o novo corona vírus. Ele não chegou a dar entrada na UTI e, agora segue para casa com a família de sete filhos, 11 netos e 18 bisnetos. O filho Damião, alerta sobre a doença e já planeja o Aniversário de 111 anos.

    “Eu acho que isso aí é coisa séria, não é uma gripezinha. Você vê, o mundo todo tá se contaminado. Graças a Deus, meu pai se recuperou, vamos agradecer e pedir que ele chegue aos 111 anos dele, para a gente festejar – Afirmou Senhor Damião esperançoso

    Foto: Jean Barreto

    Gripe Espanhola

    Davino nasceu em 1910 e depois da luta contra o Covid 19, relembra momentos marcantes da sua vida e do desenvolvimento da cidade, como quando a gripe espanhola matou milhares de pessoas no Brasil. A gripe espanhola foi o nome que recebeu uma pandemia de vírus influenza que se espalhou pelo mundo entre 1918 e 1919. A doença chegou no Brasil por volta de setembro de 1818 e espalhou-se por grandes centros, sobretudo por Salvador, São Paulo e Rio de Janeiro.

    Trabalho

    Seu Davino, começou a trabalhar aos 9 anos de idade como cortador de cana de açúcar. Já mais velho, foi trabalhar na estrada de ferro em Campos; depois, trabalhou durante muito tempo na extração de areia do rio Paraíba do Sul. “À época ainda nem havia o cais da Lapa”, lembra ele, inaugurado em março de 1958. Seu Davino ainda trabalhou na construção da Ponte Saturnino de Brito, mais conhecida como Ponte da Lapa, que foi inaugurada em 17 de outubro de 1964.

    “Já trabalhei em muita coisa, já trabalhei em linha férrea; trabalhei na usina, aí depois sai e fui trabalhar na leopoldina uns tempos, mas depois deixei, morava muito longe; trabalhei com cavalo e carro de boi, uma porção de coisa. Eu não tenho mais saudade de nada (risos)… a gente lembra daqueles tempo da gente, a gente era novo, fazia tudo.”

    Ao ser perguntado,sobre a sua longevidade e lucidez, Seu Davino ri e responde: “Nem me lembro mais”, entre risos.
    São histórias de vida como essa que nos ensinam sobre a força da vida, tornando a história de Davino um símbolo de esperança para dias melhores.

    Foto: Jean Barreto

  • Que histórias capturam você?

    Que histórias capturam você?

    As histórias, não importa se imaginárias ou não, determinam as ações, as opiniões, os apoios, as discordâncias e muito mais. Determinam em quem se vota, quais leis se quer ver aprovadas. Tornam certos crimes naturais e crimes certos fatos naturais. George Monbiot, colunista do jornal The Guardian, chega a afirmar que “aqueles que contam as histórias dominam pelo mundo.”

    O poder das narrativas, até mesmo daquelas que são frutos puros da imaginação, tem ficado ainda mais evidente nesses tempos de intensa atividade nas redes sociais virtuais. Falsas ou verdadeiras, certas narrativas pessoais conseguem repercussões e alcances antes restritos aos meios de comunicação de massa, que, por vezes, também publicavam, e ainda publicam, suas versões infundadas.

    Em seu novo livro, Out of the Wreckage: A New Politics for an Age of Crisis (Para fora do naufrágio: Uma nova política para uma era de crise), George Monbiot discute, exatamente, esse atributo das narrativas.

    Em sua visão:

    “Você não pode tirar a história de alguém sem lhe dar uma nova. Não basta desafiar uma narrativa antiga, por mais desatualizada e desacreditada que seja. A mudança ocorre apenas quando você a substitui por outra. Quando desenvolvemos a história correta e aprendemos a contá-la, ela contagiará as mentes das pessoas por todo o espectro político.”

    Ele acredita que adquirimos e mantemos nossas crenças através das histórias que nos são contadas e que internalizamos. “Histórias são os meios pelos quais navegamos pelo mundo. Elas nos permitem interpretar seus sinais complexos e contraditórios. Todos nós possuímos um instinto narrativo: uma disposição inata para darmos conta de quem somos e onde estamos”, pondera.

    Como, então, tentar convencer as pessoas de nossas ideias? Uma vez incutidas, as crenças serão imutáveis para cada um? Monbiot sublinha que “a única coisa que pode deslocar uma história é uma história. Histórias efetivas tendem a possuir uma série de elementos comuns. Eles são fáceis de entender. Eles podem ser resumidos e rapidamente memorizados. Eles são internamente consistentes. Eles dizem respeito a personagens ou grupos particulares. Existe uma conexão direta entre causa e efeito. Eles descrevem um progresso – desde o início, passando pelo meio e chegando até o fim. O final resolve a situação encontrada no início, com uma conclusão positiva e inspiradora.”

    Voltando seu olhar para a política, Monbiot assegura que “na política, há uma história recorrente que capta nossa atenção. É assim que funciona: a desordem aflige a terra, causada por forças poderosas e nefastas que trabalham contra os interesses da humanidade. O herói – que pode ser uma pessoa ou um grupo de pessoas – revolta-se contra esta desordem, combate as forças nefastas, supera-as apesar de grandes chances contrárias e restaura a ordem”.

    Ele prossegue com duas histórias sobre a conduta adotada pelos países na economia. Em primeiro lugar aborda sua visão da história social-democrata que prevaleceu da Grande Depressão de 1929 até o final dos anos 1970.

    “A história social-democrata explica que o mundo caiu em desordem – caracterizada pela Grande Depressão – por causa do comportamento egocêntrico de uma elite incontida. A captura, pela elite, tanto da riqueza mundial quanto do sistema político, resultou no empobrecimento e na insegurança dos trabalhadores. Ao se unirem para defender seus interesses comuns, as pessoas do mundo poderiam derrubar o poder desta elite, desapossá-los de ganhos ilícitos e reunir a riqueza resultante para o bem de todos. A ordem e a segurança serão restauradas sob a forma de um estado protetor e paternalista, investindo em projetos públicos para o bem público, gerando riqueza que garanta um futuro próspero para todos. As pessoas comuns da terra – os heróis da história – triunfariam sobre aqueles que as oprimiam.”

    Em seguida descreve a história neoliberal que prepondera, desde o final dos anos 1970, até hoje.

    “A história neoliberal explica que o mundo caiu em desordem como resultado das tendências coletivistas do estado supermoderno, exemplificado pelas monstruosidades do estalinismo e nazismo, mas evidente em todas as formas de planejamento estatal e todas as tentativas de construir resultados sociais. O coletivismo esmaga a liberdade, o individualismo e a oportunidade. Empresários heroicos, mobilizando o poder redentor do mercado, combateriam essa conformidade forçada, liberando a sociedade da escravidão do estado. A ordem seria restaurada sob a forma de mercados livres, oferecendo riqueza e oportunidade, garantindo um futuro próspero para todos. As pessoas comuns da terra, lançadas pelos heróis da história (os empresários que buscam a liberdade) triunfariam sobre aqueles que os oprimiam.”

    Fatos, evidências, valores, crenças são subjugadas por histórias, pontua Monbiot. Por quais histórias você está capturado? Qual será nossa capacidade de formular uma nova história?

  • A morte é um vento

    A morte é um vento

    Por Luís Osete especial para os Jornalistas Livres

     

    No 11 de agosto deste ano a bandeira nacional amanheceu a meio mastro em frente à prefeitura de Cardeal da Silva, distante 150 quilômetros da capital Salvador (BA). Na véspera, a mais antiga moradora do município, Izaura Maria da Conceição, mais conhecida como dona Lourença (por ter nascido no dia de São Lourenço – 10 de agosto), morreu de insuficiência respiratória aos 122 anos. As coincidências entre o seu nascimento e morte, como se revelassem o fechamento de um ciclo natural da vida ou um renascimento para a eternidade, foi talvez o último ensinamento deixado por aquela senhora de modos raros.

    Entre as tradições de antanho que carregara ao século 21 em seu baú de memórias corporais, estava o costume de sempre deixar um restinho da bebida. E as paredes de sua casa, borradas de doses de café pela baixa acuidade visual que lhe acompanhou nos últimos anos, registravam a cerimônia cotidiana, sempre acompanhada de outro rito: o agradecimento pela refeição. Fazia questão de sustentar seu corpo centenário em um cajado para louvar aos céus o prazer de sorver, na ausência de dentes, os alimentos pastosos que recebia diariamente pelas mãos de vizinhos e parentes de criação.

    Afinal, não deixou descendentes. Seu único irmão morreu solteiro aos 20 anos e a filha que teria com seu esposo Zé Grande foi abortada quando dona Lourença caiu de um pé de jaca. Sentiu ao mesmo tempo as dores de uma perna quebrada e de uma filha nascida morta. “Nasceu, morreu”, recordava-se, na única síntese possível. Curiosamente, foi uma das principais responsáveis por povoar o município, tendo se dedicado com afinco ao ofício de parteira. “Nossa Senhora do Parto veio me ensinar aqui dentro de casa. Se estivesse chovendo, eu entrava debaixo da chuva e ia. Quando chegava, fazia o pelo sinal [sinal-da-cruz] e pegava a mulher. Se ela tivesse de mau jeito, eu ia ajeitando. Graças a Deus, nenhum [bebê] nunca morreu, nem mulher”, orgulhava-se.

    Na ausência de um celular com câmera que pudesse transmitir ao vivo o primeiro choro de um recém-nascido, os pais dos tempos áureos da parteira Lourença anunciavam os nascimentos dos seus filhos soltando foguetes e distribuindo a Meladinha, bebida preparada à base de cachaça, mel, alho e folhas, e servida para celebrar ocasiões especiais. A propósito, não faltavam ocasiões especiais a celebrar. O som de um pandeiro feito com couro de raposa misturava-se às palmas em um samba ritmado pelo encontro do sagrado e do profano. Era um refrigério para os dias de intenso trabalho na lavoura, em um tempo distante do atual modelo de produção agrícola que faz a monocultura em larga escala de eucalipto avançar sobre as tradições produtivas locais e empurrar os nativos da mata atlântica para as áreas urbanas.

    “Viva Deus que eu já cheguei no lugar onde eu queria. Me abra a porta que eu morro, não abra que eu já morri. Não me faça eu perder arma, que eu a vida já perdi”, cantava dona Lourença, com sua “voz de bambu rachado tinindo, esganiçada, linda, polindo o cristal”² do tempo, como se a cantiga tivesse sido entoada no dia anterior. “Quando queria fazer um samba, a gente fazia. Amanhecia o dia cantando e dançando, sambando. Ali não tinha barulho, zoada. Hoje só tem putaria”, afirmava, saudosa de quando dançava equilibrando uma garrafa na cabeça e desgostosa das músicas que embalam os festejos atuais.

    Em um século, duas décadas e dois anos de vida, revelou que só fez um mal: passou casca de Maturi, a castanha do caju ainda verde, no corpo de um rapaz, queimando-lhe a pele. “Minha mãe foi pro rio mariscar. Quando foi perto de meio-dia, ele chegou lá em casa cantando e me chamou pra nhanhar. Aí eu disse: ‘Que diacho é nhanhar?’ Aí ele disse: ‘Pra foder’. ‘Perainda corno, eu vou dizer a minha mãe’. Aí cheguei, peguei ele, amarrei, panhei cascas de Maturi e passei nele todo. O mal que eu fiz no Brasil foi esse e mais nada, nunca briguei mais ninguém, nunca discuti”, revelou. Sempre seguiu os preceitos deixados pela mãe Bernardina Maria da Conceição: “Minha fia, faça como sua mãe: Não sei, não vi; não vi, não sei. Nunca pegue em nada dos outros, sua mãe lhe criou com caranguejo e peixe do rio”.

    As lembranças sobre sua mãe e seus avós maternos, João Pereira dos Santos e Josefa Maria da Conceição, faziam dona Lourença remontar ao maior conflito armado da América do Sul, a Guerra do Paraguai (1864-1870). Segundo ela, seus antepassados vieram correndo da Guerra até se assentar no Riacho da Areia, localidade que pertence atualmente à comunidade do Campo Grande. Por serem negros, provavelmente ocuparam a linha de frente das tropas brasileiras e, após a contenda, foram se refugiar nas áreas mais reclusas do interior. “Quem venceu a Guerra do Paraguá foi nós no Riacho da Areia”, contava, altiva e vaidosa.

    Além de sobreviver à Guerra do Paraguai e à travessia do Atlântico, já que a presença dos chamados Negros da Costa era, assim como o de italianos e portugueses, eventos recentes da ocupação naquelas glebas, a família Conceição entregou ao mundo uma das suas mais longevas moradoras um ano antes do início do Massacre de Belo Monte. O Santo Conselheiro, como dona Lourença se referia, teve uma especial predileção pelas peregrinações nas profundezas do território que envolve a região nordeste da Bahia e sudoeste de Sergipe e os seus fiéis seguidores tinham o DNA daquele povo que abriu as janelas de suas casas para ouvir seus conselhos. Um desses foi Mané Basílio, pai de dona Lourença.

    Os conselhos, pregações e premonições do Santo Conselheiro são tão famosos quanto os cemitérios e igrejas que ele reformou ou edificou em municípios como Entre Rios, Esplanada, Crisópolis, Cristinápolis, Olindina, Itapicuru, Aporá, entre outras localidades do entorno. A experiência sociorreligiosa de Belo Monte era bombardeada pelas tropas militares da recém-proclamada República enquanto a menina Lourença aprendia as primeiras palavras. Não demoraria a se dar conta de que o estudo reservado para ela era o manejo da foice e da enxada, as “professoras” do lugar.

    De lá pra cá, sobreviveu aos exaustivos trabalhos na semeadura do fumo, herdando até os cento e tantos anos o tradicional hábito de fumar ou mascar o fumo de corda, atravessou incólume duas grandes guerras, passou desapercebida por alguns golpes de estado e planos econômicos frustrados, políticas de eugenia e mitos de democracia racial se sucederam como palimpsesto na paisagem intelectual brasileira e dona Lourença, já mulher feita, ainda teve de se proteger das indesejadas visitas do casal Lampião e Maria Bonita. “Quando Lampião aparecia por aqui eu ia me esconder no mato. Eu de longe abaixadinha vendo ele, mas ele nunca chegou de junto de mim. Meu pai dizia que ele matava gente, e era mesmo”, recordou, como se vislumbrasse o vulto do cangaceiro. “Agora, Maria Bonita era bonita mesmo”.

    Superou tudo, na ginga, no samba, na roda, no drible. Aos poucos, foi personificando em sua pele negra, em sua memória flamejante e em sua permanência no meio da mata a mais autêntica e representativa imagem da resistência, reunindo, se assim podemos dizer, as características da imortalidade: uma contemplação respeitosa do universo, uma harmonia entre as necessidades e os desejos, um humor amoroso que abraça tudo, um senso aguçado capaz de distinguir o que é realmente permanente e transitório.

    Equilibrando-se na linha tênue entre a vida e a morte, com os mais ambivalentes sentimentos que acompanham a arte de botar gente no mundo, dona Lourença ensinava que para viver bem, além de não pegar no que é dos outros, como recomendava a sua mãe, era preciso seguir outros preceitos básicos: “chamar por Deus, trabalhar e se alimpar”. “E a morte, é o quê?”, perguntei a ela, no dia de seus 120 anos, 10 de agosto de 2015. “A morte? A morte é um vento… sabe? É um vento… Bateu no cachaço, morreu. Comeu uma coisa, fez má, inchou, morreu”, afirmou, encolhendo o cachaço, como quem sopra uma brisa suave após ensinar uma simples e definitiva lição.

     

    Luis Osete é natural de Cardeal da Silva (BA) e radicado há 12 anos em Juazeiro (BA) e Petrolina (PE). É jornalista, psicólogo, ator, mestre em Educação, Cultura e Territórios Semiáridos e colaborador do projeto “Memória e história cultural da cidade de Juazeiro (BA): Preservação do acervo Professora Maria Franca Pires e acessibilidade à informação”.