Jornalistas Livres

Tag: Guerra às Drogas

  • O que é a Expocannabis, a exposição da maconha

    O que é a Expocannabis, a exposição da maconha

     

     

    Por Leide Jacob e Lina Marinelli, dos Jornalistas Livres

     

    Enquanto engatinhamos nos processos para a legalização da maconha –nesta semana, a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) aprovou o registro e produção de remédios à base de cannabis–, no Uruguai, de 6 a 8 de dezembro, será realizada em Montevidéu a sexta edição da Expocannabis, uma das feiras mais importantes do setor.

    Mercedes Ponce de León, 35 anos, idealizadora e responsável pelo evento, esteve em São Paulo e, em meio a vários compromissos, concedeu uma entrevista exclusiva para os Jornalistas Livres. Ativista em Direitos Humanos, Mercedes contou não apenas detalhes sobre a feira, como surgiu, e sua importância, mas também como funciona a regulamentação da cannabis no Uruguai.

    Desde 2013, é possível comprar maconha em farmácias, plantar em casa ou participar de clubes que se encarregam de cultivar para os sócios. Mercedes explicou questões técnicas, como os compostos químicos, efeitos e aplicações terapêuticas da maconha.

    Você sabe o que é CBD e THC?

    Mercedes também falou da história do proibicionismo e suas origens racistas, do preconceito, da participação das mulheres e, claro, do narcotráfico que, com a regulamentação, perdeu negócios. Afinal, a quem interessa manter esse proibicionismo? No Brasil usar maconha ainda é crime, o que significa dizer que quem fatura é o narcotráfico.

    Considerando apenas o uso medicinal, a projeção é que o mercado represente 6,5% do total da indústria farmacêutica (R$ 76 bilhões em 2017), segundo estudos da Green Hub. Com a decisão desta semana da Anvisa, a medicação à base de maconha poderá ser comprada na farmácia mediante apresentação de receita médica. Até agora, era necessário uma autorização especial para importar esses remédios, em um processo caro e burocrático.

    Ainda temos muito o que aprender, inclusive no entendimento quanto ao uso completo, terapêutico da planta, afinal, é melhor fumar um cigarro de maconha antes de dormir ou tomar remédio tarja preta toda noite à vida toda? Não é à toa que os brasileiros são os maiores frequentadores da Expocannabis, 45% do total do último evento, mais que os próprios uruguaios. E também não é à toa que a Mercedes passou por aqui com a agenda lotada. Mas, para nossa sorte, ela encontrou um tempinho para compartilhar suas experiências.

     

  • Vamos internar o Doria?

    Vamos internar o Doria?

    Vamos Internar o Doria?

    Alguns vão dizer que, para idade que eu tenho e outros fatores pessoais da minha vida, começar um texto com tal título é pura imaturidade, falta de senso, pedido por atenção, falta de entendimento e/ou de esclarecimento.

    Mas, falando sério, eu pergunto se não falta entendimento e esclarecimento exatamente ao prefeito João Doria Jr. Só assim para ele ser capaz de tomar medidas tão brutais na Cracolândia, com sua política de exclusão social amparada na ignorância do que seja uma cidade real (não um jogo de Lego) e toda a diversidade de gente que ela abriga. Esse tipo de conhecimento, diga-se nenhuma escola burguesa consegue dar.

    Vamos internar Doria, sim!

    “O viciado em exterminar a minoria, e resolver os problemas varrendo para debaixo do tapete.”

     

    O lixo, os assessores e Doria

    É assustador saber que ainda no ano de 2017 tantas pessoas acreditem que a droga seja a única responsável pela “destruição” de vidas e famílias, como afirma a grande mídia, a polícia e os médicos interessados em lotar suas clínicas particulares. Essa fala preconceituosa, embora pareça ok, impede-nos de lidar com os problemas que vemos à frente. Me explica como é possível ajudar os dependentes químicos, tratando-os com nojo, como se não fossem humanos?

    Tenho certeza de que Doria não deve tratar os animais dele de estimação quebrando a casinha deles. Mas fazer isso com seres-humanos, como ele fez na Cracolândia, derrubando uma pensão com os moradores dentro, tudo bem — “aliás eles já estão fodidos na vida mesmo”.

    Gentrificação é o nome que se dá aos processos de valorização imobiliária de uma região ou bairro, o que pode ocorrer pela construção de um museu, de um shopping center ou de novos edifícios, expulsando a população local de baixa renda. Guarde essa palavra, porque ela expressa muito bem as perspectivas do governo Doria para a cidade de São Paulo em geral, e para a Cracolândia em particular.

    Sim, porque é gentrificação a expulsão brutal dos moradores da Luz (usuários de crack entre eles) com 0 discurso de que é necessário prestar-lhes atendimento, por intermédio da internação compulsória. Isso nada mais é do que uma estratégia para encobrir um novo empreendimento imobiliário, que trará benefício para os grande proprietários e capitalistas que especulam com o terreno urbano.

    A faxina social que Doria vem fazendo, na tentativa de criar uma cidade em que todos os moradores pareçam ter saído de um comercial de margarina, nada mais é do que a demonstração máxima de que este prefeito não se encontra preparado para administrar São Paulo. Sim, porque a obrigação de um prefeito é cuidar dos seus sem olhar a quem.

    A situação fica ainda pior porque nossa Justiça ainda hoje é racista, machista e lgbtfóbica. É explícito que, ao contrário da sonhada “justiça cega”, a que temos criminaliza, diminui, e tenta expor ao ridículo a situação das pessoas que vivem na Cracolândia.

    Vamos internar o Doria, sim!

    “O viciado em ridicularizar pessoas pra ganhar status social.”
    O improviso do projeto Redenção, que seria a base das ações do prefeito na Cracolândia, é tal, que Doria informou antes mesmo da confirmação que o médico Drauzio Varella estaria apoiando internar dependentes químicos sem a  autorização deles ou de pessoa da família, passando por cima de leis. Mas o próprio Varella disse em seu site pessoal:

    “Hoje fui surpreendido com as notícias divulgadas pela imprensa de que os dois colegas a que me referi e eu fazíamos parte de um ‘Comitê Superior de Saúde contra a dependência química’, encarregado de ‘acompanhar e auditar as ações governamentais na Cracolândia. Não recebi convite formal para fazer parte de um comitê com essas funções. Caso recebesse, não aceitaria: não tenho preparo técnico nem tempo livre para um trabalho dessa natureza.”

    Vamos internar o Dória, sim!

    “O viciado em oficializar convites, sem de fato tê-los feito, apenas para conseguir aprovação do povo.”
    Carl Hart. Nasceu em Miami, nos Estados Unidos. Tendo crescido em um bairro periférico parecido com a periferia das grandes cidades brasileiras, onde o crime e as drogas sempre foram de fácil acesso, Hart relata que foi se questionando por que essa realidade era tão comum entre os seus amigos e a população de seu bairro. Após servir na Força Aérea dos Estados Unidos, Hart voltou-se ao ensino superior. Sua experiência prévia despertou-lhe interesse em se especializar em neurociência e demais estudos voltados a drogas. Atualmente, é professor de psicologia e de psiquiatria da Universidade de Columbia, e há muito tempo vem estudando os efeitos do crack. Em entrevista com o dr. Drauzio Varella, Hart pontua:
    “Depois de duas décadas, ficou claro que o uso de crack era mero sintoma de problemas maiores como as dificuldades econômicas, a falta de oportunidade e de educação. O Brasil está repetindo os erros dos EUA.”

    Uma cena que sempre esteve muito presente para a população negra — seja aqui no Brasil ou nos Estados Unidos — é a nossa falta de oportunidade. E quando as perspectivas de vida que temos são sempre negativas, não é incomum que busquemos nas drogas a tão sonhada felicidade que o capitalismo e a sociedade burguesa ainda tentam nos vender. É errado? Mas qualquer pessoa que vive dentro da nossa sociedade capitalista busca prazeres, seja por meio de drogas lícitas, ilícitas, relacionamentos, dinheiro poder. E apenas digo que é HIPOCRISIA ouvir da população burguesa que todas as sextas-feiras se encontra no bar para afogar as mágoas, que são os usuários de crack que estão se viciando, e se matando.

    Vamos internar o Dória, sim!

    “O viciado em achar a solução dos seus problemas, colocando a culpa nos outros.”

    Bem que minha mãe sempre disse que enquanto você aponta um dedo para alguém, haverá quatro dedos apontando para você. Temos como prefeito da nossa cidade um mau ator, que tentar se apropriar cinicamente de símbolos dos trabalhadores que vivem nas situações mais precárias de vida, como os garis. Mas em vez de pelo menos tentar viver como um pobre, Doria faz a glamourização da pobreza, o que é indecente. Ele vem cheiroso, banho recém-tomado, vestindo uniforme de gari devidamente costurado e ajustado por um alfaiate chique. Tudo marketing.

    Se, de fato, Doria se preocupa tanto com a população da Cracolândia, que tal se preocupar com as estruturas que levam as pessoas até lá?
    Doria já conversou com algum usuário de crack que mora na Cracolândia? Já viu qual é a situação deles? Vou te dar uma ajudinha. Aproximadamente 60% dos usuários de crack e cocaína se encontram morando em casas bem organizadas, trabalhando e estudando. Portanto, a maioria dos usuários de crack não está na Cracolândia.
    Quem está usando drogas na Cracolândia é apenas a franja mais vulnerável, mais frágil da sociedade, aquela que mais precisa de respeito e de ajuda, na forma de saúde, educação, formação e trabalho.

    Enfim,

    Vamos internar o Doria, sim!

    “O viciado em fingir que sabe cuidar de uma cidade.”

  • O criminoso na Cracolândia é o Doria. Não é o nóia

    O criminoso na Cracolândia é o Doria. Não é o nóia

    Por Paulo Faria, diretor da Cia Pessoal do Faroeste, especial para os Jornalistas Livres

    “O criminoso na Cracolândia é o Doria. Não é o nóia.” Foi isso o que ouvi em coro quando cheguei à Cracolândia para ver e entender o que está acontecendo ali. São famílias pobres que pedem escola, habitação, segurança, limpeza e água, que Doria mandou tirar do Braços Abertos, para que os usuários não tenham água pra beber.

    É vil demais.

    Passei o final de semana fora e voltei ontem à noite. Após a manhã no Faroeste em reunião, fui em seguida até a Cracolândia. Presenciei mais uma cena inescrupulosa, criminosa e doentia do prefeito. Doria foi até a Rua Dino Bueno, na hora do almoço, acompanhado de uma caravana de bombeiros, polícia – com um caminhão cheio de cães farejadores. Em alguns momentos, os cachorros eram chutados pelos próprios policiais. Ah, havia ainda caminhões de construtoras.

    Não sei se Doria foi vestido de bombeiro, ou de polícia americana, como ele foi no domingo. Mas estava com seu cabelo acaju, que teve ter pintado em NY, para onde viajou em companhia do deputado Rocha Loures, do PMDB-PR –aquele que recebeu a mala de R$ 500 mil da JBS, e foi afastado do Congresso Nacional.

    Doria derrubou uma parede de um casarão histórico, acompanhado da Rede Globo, que não usa mais em seus equipamentos a logomarca da empresa, mas somente um jaleco azul em que se lê “imprensa”.

    Quando ele foi filmado, inaugurando a quebradeira que iniciou, a escavadeira derrubou uma parede. Atrás dela, famílias de um cortiço, que moram ali há mais de 30 anos, receberam sobre suas cabeças, em sua morada, em sua cama, os entulhos. Logo, Doria foi escorraçado pela população. Encaminharam-se os seres humanos feridos para um hospital.

    Quando cheguei, essa cena já tinha sido filmada e passada na Globo. Um ao vivo à custa de mortos. Estavam na rua a ouvidora, a defensoria, o conselho tutelar e militantes de direitos humanos. Havia rumores que ainda tinha gente no prédio que começou a ser demolido. Mas o corpo de bombeiro não permitiu que ninguém, nem a defensoria, nem a ouvidoria e nem o conselho tutelar, entrasse ali. Disse que não tinha ninguém, e que o prédio estava em risco de desabar.

    Parte dos moradores queria entrar para tirar seus parcos pertences, que Doria chama de “lixo”. A mãe da rua Lucia Freire Moreau me levou pra ver o seu quarto num cortiço ao lado que também deve ser demolido. Ela queria me mostrar o painel que estava construindo. Entrei. Fiquei parado em lágrimas diante do que ela criou. Havia ali algo de religioso. Aquela obra deveria ser preservada e estar num museu de humanidades. Uma cartografia construída, um resumo dos seus 30 anos vivendo na Cracolândia. Imagens fortes e genialmente enredadas. Tudo ali. Tudo.

    Ao sair de lá, vi que três casarões do inicio do século, que eram cortiços, foram incendiados pelo prefeito. Um art déco e dois neoclássicos. Todo o entorno do Largo Sagrado Coração de Jesus é histórico. Um dos poucos conjuntos arquitetônicos dessa época preservado. E é isso o que está por trás da ação que pretende comover a plateia bestial com a derrubada da cracolândia pra construir o projeto Nova Luz, seu e de todos os vampiros desta cidade, incluindo o governador não menos monstruoso, Geraldo Alckmin.

    Doria não pode destruir aqueles prédios. É a história da cidade.

    No domingo, a assessoria do prefeito, ligou pra Rede Globo, às 4 da manhã para informar que às 6h haveria a ação criminosa. E a Globo foi. A TV agora tem comunicação direta com o prefeito, pois assim ele fica na mídia nacional, pra alavancar seu nome à presidência do País.

    Globo criminosa

    Não à toa, Doria fez isso durante a Virada Cultural, pra ocupar mais o espaço na mídia. Perdeu e a decência e a dignidade.

    Saio dali e vou até a praça Princesa Isabel, onde fica a estátua do Duque de Caxias. Bem no meio, vejo uma roda com 500 usuários. Em volta, muita polícia. Wellington, um morador do entorno, me fala que eles vão atacar os usuários a qualquer momento. A PM diz que ali concentram-se armas e traficantes. A polícia persiste com essa mentira para justificar os ataques. Wellington me fala que desde domingo todos estão em pânico. O comércio abre a meia porta e fecha antes das seis. E ninguém sai de casa depois.

    Wellington já fez as compras para hoje e amanhã, pois não sabe o que vai acontecer, se ficará sitiado novamente em sua casa. Cada vez mais helicópteros sobrevoam a área e a avenida já está com trânsito parado. Vou andando até em casa e perguntando a todos o que acham. Pela primeira vez, ouvi de todos e todas, que o Doria é um louco, que essa ação foi desastrosa. A avaliação é compartilhada mesmo por pessoas que votaram nele. Ninguém quer uma Cracolândia aqui, mas todos querem ajudar a resolver a questão que é humana e de saúde. Nunca ouvi isso antes ali. Todos estavam contra o prefeito, que nunca foi à região antes e mandou a polícia pra cuidar dos doentes com bombas. Alguns eram seus eleitores arrependidos.

    Doria é um criminoso, um fascista, e São Paulo não pode permitir que esse monstro continue à frente da cidade. A Câmara tem que fazer alguma coisa. O Ministério Público tem que fazer algo. A Defensoria tem que defender o povo. Ele está matando os munícipes da cidade. Seja quando ele volta com a velocidade alta nas marginais, o que aumentou o número de mortos em desastres e atropelamentos. Temos gravada na nossa retina a cena dele jogando a flor da gentil mulher que foi pedir em nome das vidas que se perderam.

    Ao derrubar todo o nosso bairro, ele está matando os pobres que aqui vivem. Que tanto já sofreram. Excluídos dos direitos básicos garantidos na Constituição. Cinquenta milhões de brasileiros quase escolheram o Aécio Neves pra presidência. Não acreditando em todas as provas que o envolveram em roubos, tráfico de drogas e assassinatos. E agora, a maioria da cidade de São Paulo escolheu outro criminoso pra administrar essa cidade tão linda e tão acolhedora, com um povo deslumbrante, feito de todas as partes do mundo.

    Eu clamo aqui pra que nos revoltemos com o prefeito e que peçamos a quem possa nos salvar que tire esse verme da prefeitura. Dória não pode seguir à frente da cidade. E nem seguir seu objetivo de chegar a presidência do Brasil.

    São Paulo não pode permitir. A cidade é mais do que ele. Somos todos nós. O criminoso é o Doria, não é o nóia.

     

  • RAFAEL BRAGA: QUANDO A JUSTIÇA MATA A JUSTIÇA!

    RAFAEL BRAGA: QUANDO A JUSTIÇA MATA A JUSTIÇA!

      O Judiciário do Estado do Rio de Janeiro, na pessoa do magistrado Ricardo Coronha Pinheiro, condenou Rafael Braga a 11 anos e três meses de reclusão e ao pagamento de R$ 1.687 (mil seiscentos e oitenta e sete reais) por tráfico de drogas e associação para o tráfico. A sentença foi publicada no dia 20 de Abril de 2017, mas ainda não transitou em julgado (ainda está no prazo para apresentação de recurso contra a sentença condenatória), ou seja, não vamos tratar Rafael como culpado, conforme nos garante a Constituição Federal em seu artigo 5º, inciso LVII (cinquenta e sete), que afirma que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória“. As circunstâncias e algum senso de “justiça” nos permitirão manter esta postura, ainda que a condenação seja confirmada, conforme se pretende afirmar neste texto.

      A leitura da sentença penal fornece os elementos de sua própria contradição. Por isso, citaremos aqui alguns trechos da decisão do juiz. A análise será feita em três partes (a Terra, o Homem e a Luta), em franca alusão ao livro “Os Sertões” de Euclides da Cunha. Mais uma vez leremos sobre o conflito entre forças de repressão e gente que só deseja viver a vida sem fazer ou sofrer mal.

    A TERRA

      Brasil. Estado do Rio de Janeiro. Cidade do Rio de Janeiro. Bairro da Penha. Comunidade da Vila Cruzeiro. Rua 29. Local conhecido como “Sem Terra”. Vai ficando menos turístico conforme se aprofunda na geografia do local: o país é menos “tropical” e a “cidade é menos maravilhosa” naquele canto em que Rafael Braga foi torturado e preso por policiais militares.

      “Sem Terra” é uma denominação que não conhecemos a origem, mas representa dois fatos de máxima importância para compreender a relevância da condenação de Braga.

                – O direito interno é inerente ao território. A isto chamamos jurisdição. Não se pode falar em Estado e aplicação de leis estatais sem a delimitação de um território. Não se pode aplicar (via de regra) leis brasileiras fora do Brasil. Um hipotético lugar “sem terra” é um lugar “sem lei” que possa ser aplicada.

                – Ser “sem terra” é ser desprovido de propriedade privada. A opressão de classe se dá sobre aqueles que são despossuídos. O capitalismo impôs a confusão entre propriedade e riqueza.

      Em suma, não é de se estranhar que este lugar – SEM TERRA – seja cenário de [I] aplicação de medidas de exceção como as que ocorreram com Braga (tortura; acusação falsa; racismo institucionalizado) que, assim como os moradores da região [II], é um pobre sem propriedade que lhe garanta alguma riqueza. Ali, no “Sem Terra”, o direito se revela tão somente como instrumento de opressão de classe [e raça].

      Na sentença, a questão do local foi levantada mais de uma vez como “fundamento” para que o juiz pudesse condenar Rafael Braga, conforme se pode ler:

     

    Registre-se que a localidade em que se deu a apreensão do material entorpecente de fls. 12 e 13 (vide laudo de exame de entorpecente às fls. 99/100), mais precisamente na região conhecida como “sem terra”, no interior da Comunidade Vila Cruzeiro, no Bairro da Penha, nesta cidade, é dominada pela facção criminosa “Comando Vermelho”, conhecida organização criminosa voltada a narcotraficância.

    (…) segundo relato dos policiais que efetuaram a prisão do réu e a apreensão do material entorpecente, o local é conhecido como ponto de venda de drogas. (grifo nosso).

               

     

       

     

      Em outras palavras, o que o juiz diz é: se não estivesse na região “sem terra”, não teria sofrido a condenação por tráfico de drogas. Rafael Braga não foi acusado por ter sido flagrado comercializando maconha ou cocaína, mas por estar no local – vizinhança de sua casa – que se atribui à traficância, e não à existência de homens e mulheres que por ali transitam no caminho de casa, trabalho, estudo ou lazer.

      Não se aceita que o acusado estivesse lá para comprar pães na padaria (conforme versão de Rafael) e não para vender drogas (conforme versão dos PMs e do MP). Nenhuma outra forma de comércio poderia ser reconhecida pelo juíz. Todo mundo “sabe” da suposta existência do Comando Vermelho na região, mas ninguém fez nada contra a organização em si. Melhor ir para cima de pequenos traficantes do que tentar desmantelar um esquema que corrompe desde policiais a políticos.

    O HOMEM

      Um juiz: Ricardo Coronha Pinheiro. Quatro testemunhas de acusação: Policiais Militares Pablo Vinicius Cabral, Victor Hugo Lago, Farley Alves de Figueiredo e Fernando de Souza Pimentel. Um morador sem nome ou existência comprovada. Um réu: Rafael Braga.

      Dentre tantos casos de injustiças cometidas pelo aparato penal brasileiro, vale lembrar o porquê do nome de Braga se destacar: ele foi o único condenado por supostos crimes cometidos por manifestantes durante os atos de 2013. À época foi acusado de portar explosivos, que na verdade eram produtos de limpeza. Uma acusação tão absurda quanto a afirmação que você pode explodir sua casa enquanto limpa a privada do seu banheiro.

      O homem em questão (velho conhecido da repressão política e social do Rio de Janeiro) é negro e também pobre, e sofre como negro e pobre. É muito mais que experimentar a opressão cotidiana do racismo e a desigualdade de classe. Ele sofre algo que eu e a maior parte daqueles que nunca foram acusados de crimes que não cometeram jamais sofremos. O sentimento de injustiça é acompanhado de consequências objetivas: perda da liberdade e condenação a pagamento de multa.

      Outro homem, o Juiz, fundamenta quase toda a sua decisão apenas em testemunho de policiais militares. Desconsidera o que foi dito pela testemunha da defesa, como se fosse mentira:

     

    Embora a testemunha Evelyn Barbara (fl. 194) tenha afirmado em seu depoimento que o réu RAFAEL BRAGA foi vítima de agressão por parte dos policiais militares que o abordaram, fato este também sustentado pelo acusado quando interrogado neste Juízo (fl. 250), o exame de integridade física a que se submeteu o réu RAFAEL BRAGA VIEIRA não constatou “vestígios de lesões filiáveis ao evento alegado”, consoante laudo de fl. 136.

       

     

     

     

      Talvez, o senhor Coronha, que hoje é juiz, quando universitário deva ter faltado às aulas de criminalística para saber que a tortura nem sempre deixa vestígios. Evelyn, por ser quem é (moradora do “Sem terra”), talvez não tenha a abstrata investidura de “verdade” conferida ficcionalmente a agentes estatais, como se estes não tivessem ideologias, preconceitos e interesses materiais.

      Devemos nos perguntar sobre mais um homem, que talvez não seja um homem, mas tão somente o deus ex machina de um teatro de mentiras montado para incriminar um sujeito: o “morador“. Sem nome, é aquele que supostamente indicou os policiais até o ponto de traficância que, por sua vez, era conhecido pelos policiais.

     

    Narrou a testemunha policial militar Pablo Vinicius Cabral (fl. 195) que estavam em patrulhamento de rotina, com intuito de garantir a segurança de trabalhadores que implantavam blindagem no posto policial, na Comunidade da Vila Cruzeiro, quando um “morador” foi até a guarnição policial informar que havia um grupo de pessoas comercializando drogas nas proximidades.

               

     

      E já que falamos da imputação de crime de associação para o tráfico, onde estão os associados? Quais indícios de autoria para a associação com este fim? Segundo o juiz, o conteúdo da embalagem supostamente encontrada com o acusado e as pessoas que teriam corrido quando os policiais chegaram dão conta desta acusação… Nada mais vago!

     

    No caso presente a posse do material entorpecente (maconha e cocaína) embalado em saco plástico (vide laudo de exame de entorpecente de fls. 99/100), fracionado, inclusive, contendo inscrições “CV”, que sabidamente destinava-se à venda, evidencia a estabilidade do vínculo associativo com a facção criminosa “COMANDO VERMELHO” que controla a venda de drogas no local dos fatos.

        Ademais, com o réu houve a apreensão de um rojão (fl. 17), sendo certo que no momento da prisão em flagrante do réu RAFAEL BRAGA, conforme relato dos próprios policiais neste Juízo, havia inúmeros elementos que se evadiram.

        Dessa forma, restou inequívoca a estabilidade do vínculo associativo para a prática do nefasto comércio de drogas, sendo certo que a facção criminosa “Comando Vermelho” é quem domina a prática do tráfico na localidade conhecida como “sem terra”, em que o réu foi preso, situada no interior da Vila Cruzeiro.

        Por outro lado, a regra de experiência comum permite concluir que a ninguém é oportunizado traficar em comunidade sem integrar a facção criminosa que ali pratica o nefasto comércio de drogas, sob pena de pagar com a própria vida.

        Portanto, não poderia o réu atuar como traficante no interior da Comunidade Vila Cruzeiro, sem que estivesse vinculado à facção criminosa “Comando Vermelho” daquela localidade.

                           

     

     

     

      Pelo visto, o juiz tem perícia nas “leis anti-estatais de regulação de comércio de drogas”.

    A LUTA

      “O problema é antigo”.

      Assim começa a terceira parte d’Os Sertões, de Euclides da Cunha. A guerra às drogas e o encarceramento em massa de negros é um problema antigo no Brasil!

      Aqui não pretendo fazer mais nenhuma análise dos vícios de um processo que visa “coibir” o venda de entorpecentes para viciados. A “guerra às drogas”, que é a paz de grandes empresários do ramo de drogas e “segurança”, e uma afronta a direitos fundamentais neste país é absurda por si mesma. Enquanto se atribuir à questão das drogas à questão da segurança e não da saúde pública, milhões continuarão sendo acusados e mortos. Mas quem tem poder para mudar, simplesmente não se importa.

      Mais injusto que o processo é a legislação que lhe dá base no direito material: vender drogas enquanto conduta criminosa. Ainda que o juiz fosse exímio cumpridor da lei, uma injustiça teria sido cometida. Ainda que Rafael fosse o traficante que disseram que ele é, uma injustiça ainda assim teria sido feita.  Em 1842, o governo da Renânia, aprovou a “Lei da Repressão ao Roubo de Lenha” que impedia trabalhadores pobres, sujeitos ao frio extremo, de recolherem lenhas e gravetos caídos no chão, uma tradição nunca antes contestada. Supomos que Rafael Braga tivesse vivido naquela época e local, e tivesse sido acusado de apanhar lenha. Não importa se acusação era verdadeira ou não, ou se o juiz aplicou direito o Direito: a injustiça existia pela própria criminalização da conduta. Ou seja, o crime muda, mas o criminoso tem sempre a mesma cara: a de quem a justiça tem — interesse  —  em prender.

      Por hoje defendemos Rafael Braga, mas mantenhamos nossa posição pelo fim da, genocida e repressiva, Guerra às Drogas.