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  • E SE GEORGE FLOYD FOSSE BRASILEIRO?

    E SE GEORGE FLOYD FOSSE BRASILEIRO?

     

    ARTIGO

    Abner F. Sótenos, doutorando da University California San Diego, e Daniel Pinha, professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro

     

    George Floyd foi morto no último 25 de maio após detenção policial na cidade americana de Minneapolis no estado de Minnesota. Floyd era um homem negro de 46 anos, asfixiado por quase oito minutos após ter sido algemado e imobilizado pela polícia local. Um dos policiais, que é branco, ajoelhou sobre o pescoço de Floyd e, com as mãos nos bolsos, posava para as câmaras de celular que filmavam Floyd agonizando e implorando pela mãe e por ar. As últimas palavras de Floyd foram: “Eu não consigo respirar!”. Esta frase estampou cartazes e se tornou um dos lemas dos protestos antirracistas que varrem o país até hoje. Ao público brasileiro que acompanha este caso, surge a incômoda pergunta: se caso semelhante ocorresse no Brasil, como seria a repercussão e mobilização social?
    O caso Floyd nos abre a possibilidade de pensar que o lema “Vida Negras Importam” não seja exclusivo dos negros. Nas ruas norte-americanas se observa a formação de uma frente multiétnica. Mais do que isso. Há o reconhecimento do privilégio branco a serviço da luta antirracista: mulheres brancas formaram cinturões humanos para proteger negros da ação policial nas manifestações. Importante lembrar, neste sentido, o papel dos movimentos sociais e black scholars na educação da população, na contínua mobilização de brancos e negros, após a frustração do resultado eleitoral de 2016. Este processo de formação fez com que a população não entendesse as lutas antirracistas atuais como separatistas ou supremacistas.
    No Brasil, não identificamos ainda uma associação direta entre racismo e privilégio, ou seja, não há o reconhecimento de que brancos se beneficiam do racismo estrutural. Isso dificulta a formação de uma frente racial por aqui e o racismo é entendido como problema dos negros e marca de seu vitimismo. Negros são atingidos pelo racismo, mas não os causadores do racismo e não devem ser os únicos responsáveis por seu combate.
    Racismo à brasileira
    O racismo brasileiro é entendido geralmente como uma ação de indivíduos isolados considerados às vezes ignorantes, às vezes perversos, mas quase nunca inseridos numa lógica social. A violência do Estado contra pessoas negras e indígenas mobiliza muito pouco a opinião pública brasileira. Muitas vezes tais violências não são percebidas como racismo, ainda que sejam praticadas sistematicamente contra grupos específicos, negros e indígenas. O exemplo disso é a letalidade policial. A polícia mata quase que exclusivamente a população preta – negros e pardos. De acordo com o Instituto de Segurança Pública (ISP), no primeiro semestre 2019, cerca de 80 % das vítimas policiais no Rio de Janeiro eram pretas. Dados mais recentes, apontam que, entre janeiro e abril de 2020, houve aumento significativo no Brasil de assassinatos cometidos por policiais civis e militares. Somente em abril, em pleno período de quarentena, houve estados em que a letalidade policial aumentou mais de 53% quando comparado ao ano anterior. Ao mesmo tempo, estudos apontam que jovens negros são os alvos preferencias dos homicídios cometidos no país.
    O racismo no caso brasileiro deve ser visto como ele funciona, operado pelas instituições públicas e privadas. Muitos casos ganharam dimensão nacional, mas não dispararam grandes mobilizações de rua, somente alguns atos na localidade em que a pessoa foi assassinada. Os assassinatos praticados entre 2019 e 2020 superam em muito os ocorridos nos Estados Unidos. Os exemplos se multiplicam, neste sentido.
    O caso do músico Evaldo Rosa, assassinado no Rio de Janeiro com 80 tiros disparados pelas forças interventoras do Exército brasileiro na cidade. Já a menina Ágatha Félix, de 8 anos, também assassinada por forças policiais em 2019 na cidade do Rio de Janeiro. As investigações apontaram que Ágatha foi assassinada pela Polícia Militar, que atirou a esmo num motociclista desarmado; a bala atingiu a menina dentro do transporte onde ela estava junto com a mãe. O assassinato do adolescente João Pedro, morto pela PM em casa, em meio à pandemia, embora tenha causado muita revolta não parou o país. Agora, no último dia 24 de abril, o jovem David Nascimento dos Santos, de 23 anos, foi sequestrado pela PM paulista e encontrado morto tempos depois. David, que morava numa favela em Jaguaré, Zona Oeste de São Paulo, esperava seu lanche chegar depois de um pedido feito pelo aplicativo iFood. As imagens captadas por uma câmera da rua revelaram o sequestro. As circunstâncias da morte do jovem negro Pedro Henrique Gonzaga, em fevereiro de 2019, são ainda mais tragicamente próximas as de George Floyd: asfixiado até a morte por um golpe de “mata-leão”, realizado por um segurança da rede de supermercados Extra, no Rio de Janeiro, na presença da mãe e sob lentes filmadoras.
    No Brasil, assassinar negros e negras virou algo cotidiano e naturalizado. O caso Floyd parece ter mobilizado mais a imprensa brasileira do que casos ocorridos aqui. A distância parece trazer uma espécie de conforto e a segurança de que a cobertura não incitará maiores riscos sociais ou uma espécie de chamado às ruas. Grosso modo, a imprensa tem apoiado não só a causa, mas as manifestações. O caso Floyd trouxe à tona a necessidade de negros conduzirem o debate sobre racismo na TV. Exemplo emblemático neste sentido foi a postura do canal de TV por assinatura Globo News que, após receber uma série de críticas nas redes sociais, trocou uma bancada de comentaristas formada por jornalistas brancos, por outra formada por negros, para tratar do caso. Ou seja, a própria forma de contar se tornou um fato digno de nota, mostrando o quanto a perspectiva anterior revelava o ponto de vista branco pretensamente universal.
    De orientação liberal, a abordagem da grande imprensa evita relacionar racismo estrutural e capitalismo. Reformas liberais, como a previdenciária, trabalhista e a PEC do Teto dos Gastos, amplamente endossadas pela grande imprensa, atacaram diretamente direitos dos trabalhadores. Sobretudo os negros, submetidos às condições de maior vulnerabilidade social. Exemplo disto ocorre no contexto da pandemia de Covid-19, em que negros ocupam as ruas a trabalho, fazendo entregas, transportando pessoas, vendendo máscaras, dentre outras atividades que põem suas vidas em risco.
    A morte trágica do menino Miguel evidenciou estas condições vulneráveis do trabalho negro em meio à pandemia: sua mãe, dona Mirtes, trabalhadora doméstica, não teve a “escolha” de aderir à campanha do “Fique em casa”. E se dona Mirtes descuidasse do filho da patroa branca, quais não teriam sido as consequências para ela?
    Floyd em meio ao racismo-neofascista
    A luta antirracista no Brasil é histórica, mas encontra no contexto atual obstáculos ainda maiores. O processo de “fascistização de setores sociais” torna as circunstâncias de reprodução do racismo ainda mais perversas. Em primeiro lugar, discursos em defesa da ação violenta da polícia são amplamente aceitos e aplaudidos por parcelas significativas da sociedade que, nas últimas eleições de 2018, elegeram não apenas um presidente com histórico de declarações racistas, mas também governadores e parlamentares que se vangloriavam de discursos em defesa do “homem de bem” branco. Será que, por exemplo, o discurso em defesa do porte de armas imagina que negros possam utilizá-las para defesa de incursões policiais em suas residências?
    Em segundo lugar, há o que podemos chamar de “negacionismo do racismo”. Não se trata apenas de disseminar o falso discurso de igualdade e democracia racial, tentando impor o esquecimento do trauma da escravidão. Mas agora esta modalidade negacionista é mais contundente. Ataca símbolos das lutas do movimento negro, aponta dimensões positivas da escravidão, reduz o problema estrutural do racismo ao chamado “mimimi”. O atual presidente da Fundação Cultural Palmares, Sérgio Camargo, é o caso mais exemplar em relação a isso. Ele é pago pelo Estado, com recursos de homens e mulheres negras, para negar a existência do racismo, invertendo inteiramente o propósito de seu cargo.
    Por fim, se George Floyd fosse brasileiro, o raciocínio racista-neofascista traria para primeiro plano a cínica afirmação feita em tantos casos: “Mas também, alguma coisa ele deve ter feito para merecer aquilo”. Uma afirmação, por vezes silenciosa, por vezes explícita, que revela o extravasamento do racismo praticado aqui. Aliás, nunca foi tão questionável a afirmação de que por aqui o racismo é velado, silencioso. Aqui se pratica política de morte, posta à prova de maneira contundente contra o corpo negro, acertado pela bala ou pelo joelho de um policial. Depois, atingido pela narrativa que banaliza e justifica sua morte, normaliza a violência, relativiza a brutalidade dos assassinos.
    Se George Floyd fosse brasileiro, seu corpo negro seria alvo da política de morte praticada aqui e a barbárie racista-neofascista trataria de liquidar não só seu corpo, mas sua memória. Por aqui, mais do que nunca, está muito difícil respirar… Por isso, no Brasil de hoje, uma premissa é inescapável: qualquer iniciativa de luta democrática e antifascista só será efetiva se for antirracista.
  • Polícia mata jovem negro na cidade de Martin Luther King

    Polícia mata jovem negro na cidade de Martin Luther King

    Rayshard Brooks estava dormindo no estacionamento de um restaurante drive thru, dentro de seu carro, quando funcionários chamaram a polícia alegando que ele estava atrapalhando outros clientes que queriam  parar o carro ali. A reclamação resultou em sua morte com um tiro pelas costas nesta sexta-feira 12.06, na cidade de Atlanta. Ao contrário do que aparece nas imagens de vídeo da abordagem, os policiais disseram que ele estava bêbado e drogado. Pai de quatro filhos, Brooks tinha apenas 27 anos e havia saído do aniversário de oito anos de sua filha mais nova.

    Não é um caso isolado na cidade de Atlanta, na Georgia, onde nasceu o pastor ativista Martin Luther King, a mais proeminente liderança dos movimentos civis dos EUA de 1955. Segundo o jornal Atlanta Constitution, esse é a 48º abordagem em que policiais atiram em suspeitos APENAS neste ano no município. Quinze  desses episódios resultaram em morte. A chefe do departamento de polícia local, Erika Shields, que estava nesse posto desde 2016, pediu demissão após morte de Brooks na sexta-feira.

    No sábado, a indignação tomou conta da população. Enquanto ainda há protestos em todo país por causa do assassinato de Geoge Floyd, manifestantes em Atlanta queimaram o restaurante onde a morte de Brooks o correu. A prefeita da cidade, Keisa Lance, mulher negra, fez um discurso em que ressaltou papel de mãe de quatro filhos negros nos EUA. “Rezo por meus filhos todos os dias”, ela manifestou. E fez uma crítica aos protestos com fogo no estabelecimento comercial. Veja o vídeo original e leia a tradução do pronunciamento da prefeita Lance abaixo:

    Antes de tudo, sou uma mãe de 4 garotos negros nos Estados Unidos. Um deles tem 18 anos de idade e quando eu vi o assassinato de George Floyd, senti a dor da mãe dele. Ontem, quando ouvi rumores de protestos violentos em Atlanta, fiz o que uma mãe faria, liguei para o meu filho e perguntei: onde você está? Hoje não é um bom dia para um menino negro estar na rua.

    Eu não ligo como nós estamos hoje nos Estados Unidos, eu vivo isso todos os dias, eu rezo pelos meus filhos todos os dias. O que eu vejo acontecendo nas ruas de Atlanta hoje não é Atlanta, isso não é um protesto, não é o espírito de Martin Luther King Jr, isso é o caos.

    Um protesto tem objetivo. Quando Marthin Luther King foi assassinado nós não fizemos isso com a nossa cidade. Então, se você ama essa cidade, essa cidade que tem um legado de prefeitos negros, de chefes de polícia negros e pessoas que se importam com essa cidade, onde mais de 50% dos negociantes são pequenos negociantes, você deveria ir para casa, rezar e pedir para alguém como o reverendo Beasley venha falar com você e te dê algumas instruções de como um protesto deve ser, e como você pode realmente transformar os Estados Unidos.

    Essa mulher, chefe de polícia, fez um vídeo ontem sobre como estava horrorizada ao assistir a morte de George Floyd. Essa mulher fez isso. Vocês não estão honrando a memória de Martin Luther King e o movimento pelos direitos civis. Vocês não estão representando nada enquanto esse líquido marrom correr pelas suas mãos, quebrando janelas dessa cidade.

    Quando vocês queimam nossa cidade, vocês estão queimando nossa comunidade. Se você quer mudar os Estados Unidos, se registre e vote. Apareçam no dia 9 de junho! O façam em novembro. É essa a mudança que precisamos nesse país. Vocês estão desonrando nossa cidade, desonrando a memória de George Floyd e de qualquer outra pessoa que foi assassinada nesse país. Nós somos melhor que isso. Nós somos melhor como cidade, nós somos melhores como país. Vão para casa.

    Da mesma forma que não pude proteger o meu filho ontem, não posso protegê-los nessas ruas. Vocês estão jogando facas nos nossos policiais, vocês estão queimando carros, vocês quebraram o prédio da CNN. Ted Turner começou a CNN aqui em Atlanta, há 40 anos, porque ele acreditou em quem nós somos como cidade.

    Tivemos um repórter negro que ficou preso hoje de manhã com a sua câmera (no prédio), eles estão contando nossas histórias, e vocês estão destruindo o prédio deles. Este não é o legado dos direitos civis nos EUA. Isso é o caos e vocês estão se unindo a ele. Isso não vai mudar nada, nós não estamos mais falando da morte de um homem inocente, nós estamos falando de como vocês estão queimando carros de polícia nas ruas de Atlanta, Georgia. Vão para casa.

  • Nove, o botão da morte!

    Nove, o botão da morte!

    Na palavra elevador, agora, só vejo o pequeno Miguel, penso no menino Miguel, o anjo preto, só rezo Miguel, combato com Miguel! Afinal de contas por que ela apertou o botão nove se o garoto ia para o térreo? Quem é aquela que a câmera mostra? O que a cena revela? Mostra o menino quase fugindo daquela pessoa, era uma escapada dela, me pareceu. Sari pensa um segundo e aperta o 9. Este ato, para mim, faz o crime migrar para doloso.

    À medida que, no pensamento dela, pessoas negras valem menos. Está convicta de que aquela pessoa “de cor” é uma sub pessoa. Entre Miguel e um menino branquinho, este último vale mais, é de uma raça melhor, ou melhor, é da melhor raça. Tal qual o cachorro da madame. A cena da doméstica indo caminhar com o cachorro da patroa deixando seu filho com a madame me remete ao menino que era tirado do peito da escrava. O filho preto está sendo amamentado, mas é tirado do peito porque o filho da sinhá está chorando de fome e precisa da SUA ama de leite. Ela tem que tirar o filho dela do seio para dar comida ao filho da sinhá. Ela tem que deixar o filho dela chorando para levar o cachorro da patroa. Não estou comparando o filho da patroa com o cachorro, mas estou comparando importâncias.

    É chocante que haja quem ainda não entenda que o fundamento desse gesto é o racismo. Ela não faria isso, provavelmente, com filho de uma amiga. Outra pergunta que paira no ar: por que menino foi pelo elevador de serviço? Criança vai por qual elevador? O que é o elevador de serviço, qual é a sua função? É pra que categoria? Muito estranho que tenhamos que provar sempre o doloso dessa violência institucionalizada contra nós. Ela têm intenção de nos matar. Nossas vidas não importam. O racismo estrutural organiza um funcionamento necropolítico que tenta há séculos o extermínio do povo negro, e vem sendo doloso há muito tempo porque quem nos mata tem privilégios com as oportunidades que nos negam e com a nossa morte.

    Bem, no caso de George Floyd a flagrante prova de que foi homicídio com dolo, com vontade, com querer, está na imagem: ninguém vai ficar nove minutos em cima de um homem indefeso com o joelho sobre o pescoço dele, se não quiser matá-lo, principalmente sendo essa pessoa um policial que sabe bem como matar, onde matar e até que ponto seguir ou parar. Mesmo filmado o frio assassinato com o policial Derek Chauvin de mão no bolso, executando gelidamente a vítima, ainda assim, não se estampa uma imagem aos olhos do mundo de que estamos diante de um branco sanguinário matador e matador de um homem desarmado. Acontece que a supremacia branca tratou de livrar a sua barra de tal jeito, que mesmo a gente tendo sabido há anos de grandes transações corruptas articuladas e realizadas por altos homens brancos, quando se senta à mesa diante de qualquer homem branco, se tem respeito, não se tem medo de ser passado pra trás. O “filme“ do branco continua limpo. Impressionante.

    Ano passado fui trocar a tela do meu celular, um funcionário me deu um preço de manhã, o outro me deu outro preço quando fui autorizar de tarde. Eu vi. Ele não sabia que eu já sabia do preço certo e mentiu. Mas era cem a menos mais cedo, protestei. Ele quase sorriu, sem-graça. Flagrante. Na minha cara. O branquinho querendo me passar a perna e mesmo assim ninguém fala: Mas ô branco bandido! Ladrão. Fica difícil manchar seu nome, queimar seu filme, sujar sua barra. Então, a primeira dama de Tamandaré, Sari Gaspar não conseguiu acolher uma criança por dez minutos enquanto a mãe cumpria suas ordens? Percebe como esta cena revive o trágico e cotidiano dia a dia das senzalas onde mães choraram dores que não estão nos livros. Aquela cena sagrada da amamentação foi muitas vezes cortada na base da chicotada, na alma do coração materno e na do bebê. Essa conta não foi para a estatística. Não conta. Para a sinhá pouco importava que a cena fosse interrompida, porque uma vidinha negra não importava. E isso não mudou. Assim pensavam os antepassados de Sari Gaspar e assim pensa ela. Quando a empregada doméstica sai com o seu cachorro e deixa o próprio filho, é também uma troca de partir o coração. Quando alguém nos confia um filho, temos ouro nas mãos e a responsabilidade dobra, porque quando a mãe vier , temos que dar conta da criança, seu tesouro. Isso não está em nenhuma cartilha, mas por empatia, podemos todos entender facilmente o dogma. No entanto, o que vemos no vídeo, é a acusada, a branca vilã do filme, meio que correndo atrás do menino, sem cara de bons amigos e, pior que tudo, disposta a mudar ali um destino. Essa leitura me ocorreu quando vi o tempo em que ela para, pensa, e decide apertar o botão do nono andar.

    As matérias até agora dão conta de que: a empregada estava trabalhando na quarentena, em meio à indicação de isolamento social, juntamente com uma manicure que se encontrava também indevidamente no apartamento, que a doméstica e sua mãe eram contratadas pela prefeitura e, para completar, ainda há um rumor de que a sinhá estaria inscrita na lista dos que podem receber auxílio emergencial. A mulher do prefeito!!!A que paga a fiança. A pior parte da lista de crimes, foi vê-la acompanhar o menino até o elevador de serviço e apertar o botão da morte. A mãe estava no térreo, o elevador social não dava na área perigosa em que o menino foi metido. Em inúmeras famílias brasileiras ainda se pode ver os filhos dos empregados da casa agindo como empregados, escravinhos das crianças da casa, dos filhos dos patrões. Aquela vida negra valia pra a madame tanto quanto não valia o menino que a mãe parava de amamentar na senzala para alimentar a boquinha da casa grande. Quem ela exclui como um saco de lixo no elevador de serviço é o mesmo que não está nos comerciais de tv como um bebê lindo, saudável. É o mesmo invisível que ela “não vê “ num calçadão de Recife ou de Ipanema. Crianças pretas abandonadas nas ruas, pra essa gente, estão ali porque mereceram. “São incapazes, está na índole.“ A nossa elite escrota, obscurantista, vingadora, hipócrita, corrupta, racista nem sempre esconde sua pior face e a exibe por exemplo, através do explicitado naquele vídeo que viralizou mostrando um morador de Alphaville, alterado, mal educado, grosseiro, descontrolado, esfregando na cara do oficial que ele ganha trezentos mil por mês contra mil daquele operário. Excelente ilustração. A esposa pediu socorro pois ele estava agressivo e ameaçador. A polícia veio, e a elite a escorraçou humilhantemente de sua porta. Não ouvi ninguém da branquitude dizer, mas que branco escroto! Mesmo merecendo, mesmo parecendo ser o caso. Da mesma maneira que os policiais que estavam em volta do crime do George Floyd são seus cúmplices, também são cúmplices da Sari Gaspar todos que pensam como ela e que são negligentes cruéis com os filhos da “criadagem.”

    André Rebouças, grande engenheiro e pensador do Brasil livre, propôs, através de seu “Republica Nacional”, uma distribuição de terra, uma reforma agrária exatamente como programa de pós abolição. A idéia era dar pequenas propriedades para os pretos alforriados, com o fim da escravatura. Afinal, é como ele dizia: “quem possui a terra, possui o homem.” Os antepassados de Sari Gaspar, sejam eles italianos, alemães, espanhóis, holandeses, receberam terra para trabalhar quando aqui chegaram, ao contrário dos negros do pós abolição que tinham sido sim, propriedades dos senhores e nunca teriam direito fácil a alguma território legítimo. Deu no que deu. A casa grande que sempre desprezou as leis, exibe sua ignorância homicida e paga vinte mil por tirar a vida de uma criança. Que vergonhoso e assustador negócio. Coisa que esfrega na cara da sociedade essa lança, essa indecência, coisa que se fosse ao revés, essa doméstica estaria em péssimos lençóis e sem direito à fiança até. Espero que os advogados da família do Miguel atentem para o gesto em que ela apertou o 9, com uma criança de cinco anos dentro do elevador que provavelmente não tinha costume de andar naquilo. Acredito que ela tenha dispensado a ele menos atenção e valor do que se conferiria a um filho branco de uma amiga, principalmente de sobrenome importante lá pras bandas de Pernambuco. Seu crime pra mim é doloso, sua negligência não considerou aquela vida. Ela pôs o menino em risco e perigo. Abusou do incapaz. E provocou sua morte. Já vimos aquela cena, e ela deve acontecer muito por aí. A madame desta vez deu azar porque esse é o assunto da hora e o tempo de agora é de gente fazendo protesto na porta de racista. Quem me lê corra atrás do prejuízo pois há um longo caminho a percorrer para os escravocratas. Ou se é antirracista ou se suja as mãos com sangue preto inocente. A morte de Miguel em Recife me mostra isso. Quando Sari Gaspar pôs o menino sozinho no elevador de serviço provou seu desprezo por ele, e total descaso ainda, pela antiga lei do ventre livre, de 1871, a partir da qual o filho de escravo não era escravo mais não. Avante, neo abolicionistas daqui e do mundo! Ou o antirracismo geral e atuante fará diferença substancial nesta democracia, ou então, esta democracia não será nada!

    Elisa Lucinda, junho injusto de 2020

  • Quem é o autor da foto que viralizou do BRT no Rio

    Quem é o autor da foto que viralizou do BRT no Rio

    A foto que mostra um vagão do BRT (ônibus de transito rápido), na cidade do Rio de Janeiro, com uma super lotação viralizou na internet enquanto o Brasil assume a liderança de infectados pelo novo coronavírus e assume um dos primeiros lugares de número de mortes.

    Quem tirou a foto foi Yan Marcelo Carpenter, após sair do trabalho na segunda por volta das 21:30, “assim que eu bati a cara no VRT,  vi que estava impraticável. [Estava]  o auge da doença. Estava ali, proliferando”. Ele conta que não manifesta nenhum sintoma até agora, mas se preocupou. A cidade esta em processo de flexibilização do isolamento, mas o movimento já é mais intenso do que nas ultimas semanas. O fotógrafo ainda conta o que impressionou “voltou a ser os dias comuns, só que com a maioria de máscara. É sinistro. E todos os veículos de transporte público são assim, em praticamente todas as linhas”.

    O fotógrafo Yan Marcelo Carpenter / Arquivo Pessoal

    O Yan, que atualmente trabalha em uma hamburgueria, é formado em história e começou a fotografar após sair de uma banda na qual tocava como baterista “no tempo em que a bateria estava ali encostada, eu já vinha fotografando com câmeras emprestadas. Depois consegui comprar a minha câmera. Já estou há seis anos na fotografia”.

    A imagem que mostra uma cena comum dos transportes públicos brasileiros, os pequenos espaços de vagões de trens e cabines de ônibus lotados, ganha mais simbolismo enquanto explode no mundo protestos antiracistas que começaram por conta do assassinato de George Floyd, nos EUA, e passaram a adotar pautas internas em outros países, como aconteceu no Brasil. Os dois últimos finais de semana viram grandes atos nas principais cidades do país em solidariedade aos atos estadunidenses, mas também por conta de assassinatos causados por policiais, como a do menino João Pedro , ou de casos de racismo explícito, como o que resultou na morte do garoto Miguel. A foto (que já passou a ocupar lugar na história da fotografia brasileira) mostra que os trabalhadores aglomerados no vagão são, em sua maioria, negros. Não é preciso dizer mais nada.

    Ao longo dos últimos três meses, quando  o país passou a adotar as primeiras medida de isolamento social,  o abismo econômico e racial brasileiro se mostrou novamente. Quem pôde parar de se locomover nas cidades foi a classe média, majoritariamente branca. Quem teve que se manter em movimento? A foto de Yan responde.

    Conheça mais o trabalhode Yan

    https://instagram.com/yanzitx?igshid=1u1ex87gav3gb

     

  • Barack Obama: “Como tornar este momento o ponto de virada para mudanças reais”

    Barack Obama: “Como tornar este momento o ponto de virada para mudanças reais”

     

     

     

     

    Segunda-Feira dia 1 de junho de 2020 Barack Obama compartilha em seu Medium (Medium é uma plataforma de publicação online) um texto cujo título:

     

    “How to Make this Moment the Turning Point for Real Change” 

     

     

     

    Em tradução livre:

    “Como tornar este momento o ponto de virada para mudanças reais”

     

    “À medida que milhões de pessoas em todo o país saem às ruas e levantam suas vozes em resposta ao assassinato de George Floyd e ao problema contínuo de justiça desigual, muitas pessoas se perguntam como podemos sustentar o momento para provocar mudanças reais”


    Barack Obama No Twitter

     

    Após o discurso de Trump em Rose Garden na segunda-feira, BarackObama voltou ao Twitter, citando o irmão de George Floyd, que falou no início do dia em Minneapolis.

    “Vamos fazer isso de outra maneira. Vamos parar de pensar que nossa   voz não importa e vota. Não apenas para o presidente … eduque-se e saiba em quem você está votando. E é assim que vamos atingi-los […] “

     

     

      Obama escreveu, anexando um clipe da NBC News do discurso de Terrence Floyd.

    https://twitter.com/BarackObama/status/1267606608953192449?s=20

     

     

     

     

     

    “Por fim, caberá a uma nova geração de ativistas moldar estratégias que melhor se ajustem aos tempos. Mas acredito que há algumas lições básicas a serem tiradas dos esforços passados ​​que merecem ser lembradas. […]

    […] Artistas e Ativistas como Kylie Jenner, Beyoncé, Madonna e  Lady Gaga, Dr Dre, Anitta, Snoop Dogg se manifestaram através do instagram, Chance the Rapper se manifestou na rua, Jordan, a marca do esportista Michael Jordan postou no seu instagram “faça parte da mudança. […]

    […] Primeiro, as ondas de protestos em todo o país representam uma frustração genuína e legítima ao longo de décadas de falha na reforma das práticas policiais e no sistema de justiça criminal mais amplo nos Estados Unidos. A esmagadora maioria dos participantes tem sido pacífica, corajosa, responsável e inspiradora. Eles merecem nosso respeito e apoio, não condenação – algo que a polícia de cidades como Camden e Flint compreendeu louvável.”Barack Obama no the Medium

     

     

     

    O chefe de polícia do condado de Camden, Joe Wysocki, que trabalha na cidade há décadas, juntou-se à linha de frente de uma marcha em Camden na tarde de sábado, ostentando seu uniforme, uma máscara protetora e um sinal de paz. Wysocki em comunicado por e-mail à Associated Press, disse:

     

    “Ontem foi outro exemplo de nosso compromisso contínuo e um diálogo muito real que estamos tendo com os moradores de Camden que tornaram nossa agência parte da estrutura desta cidade” […]

    […] Por outro lado, a pequena minoria de pessoas que recorreram à violência de várias formas, seja por raiva genuína ou por mero oportunismo, está colocando em risco pessoas inocentes, agravando a destruição de bairros que costumam ter poucos serviços e investimentos. e prejudicando a causa maior. Vi uma negra idosa sendo entrevistada hoje em prantos, porque o único supermercado do bairro havia sido destruído… o objetivo do protesto é aumentar a conscientização do público, destacar as injustiças e tornar desconfortáveis ​​os poderes… – e em uma democracia, que só acontece quando elegemos funcionários do governo que respondem às nossas demandas.

    […] Além disso, é importante entendermos quais níveis de governo têm maior impacto em nosso sistema de justiça criminal e nas práticas policiais…São prefeitos e executivos do condado que nomeiam a maioria dos chefes de polícia e negociam acordos coletivos com sindicatos policiais….Portanto, a questão é: se queremos trazer mudanças reais, a escolha não é entre protesto e política. Temos que fazer as duas coisas. Temos que nos mobilizar para aumentar a conscientização, e precisamos organizar e votar para garantir que elegemos candidatos que atuarão em reforma.”

     

     

    Cardi B no seu Twitter fala a respeito das saques que ocorrem nos Estados Unidos em resposta a morte de George Floyd

     

    “Eles saquearam em Minnesota e, por mais que eu não goste desse tipo de violência, é isso: marchas pacíficas demais, muitas hashtags de tendências e SEM SOLUÇÕES! As pessoas ficam sem escolha.”

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

    https://twitter.com/iamcardib/status/1265831359425073153?s=20

     

    Barack Obama:

     

    “Por fim, quanto mais específicos pudermos exigir demandas por justiça criminal e reforma da polícia, mais difícil será para os funcionários eleitos oferecerem apenas elogios à causa e depois voltarem aos negóciosE se você estiver interessado em tomar medidas concretas, também criamos um site dedicado na Obama Foundation para agregar e direcionar você a recursos e organizações úteis que lutam pela boa luta nos níveis local e nacional há anos… Se, daqui para frente, pudermos canalizar nossa raiva justificável em ações pacíficas, sustentadas e efetivas, esse momento poderá ser um verdadeiro ponto de virada na longa jornada de nossa nação para cumprir nossos ideais mais elevados.”

    Barack Obama se dirige também no seu Twitter no dia 29 de maio e publica sua declaração sobre a morte de George Floyd:

    https://twitter.com/BarackObama/status/1266400635429310466?s=20

    “Eu chorei quando vi o vídeo. Ele me quebrou. O’ joelho no pescoço ‘é uma metáfora de como o sistema detém tão negativamente os negros, ignorando os pedidos de ajuda”.

    – Barack Obama

     

    Seguindo o texto diz:

     

    “Isso não deveria ser ‘normal’ na América de 2020”. Barack Obama

     


    LEIA MAIS SOBRE O ASSUNTO EM:

     

    Policial americano tortura e mata no meio da rua homem negro que estava algemado

    Protestos se intensificam contra o assassinato de George Floyd

     

  • ELISA LUCINDA: “EU NÃO CONSIGO RESPIRAR”

    ELISA LUCINDA: “EU NÃO CONSIGO RESPIRAR”

     

    “Barreira”: apoiadores brancos fazem paredão entre polícia e manifestantes negros em Minneapolis
    Mulheres brancas fazem paredão entre polícia e manifestantes negros em Minneapolis

    Você está me sufocando. Em todos os lugares você é privilegiada, ô branquitude!

    Em todos os lugares ditos importantes, para mim e minha gente entrarmos temos que ser verdadeiros gênios, vitoriosos e sobreviventes de todos os obstáculos que você põe na pista para a gente nunca chegar.

    Você fala em meritocracia sendo que poucos tem mil carros e outros nem uma cama pra se deitar? Um livro, um silêncio para se concentrar? Condições desiguais ferem o critério do mérito. O bom Estado é o que garante a dignidade de seu povo. Por isso é público! Ser público é ser representante do povo. E é por isso que você, branquitude, não gosta de um Estado igualitário.

    Na tevê, de repente, surge Ronilso Pacheco, professor da Universidade de Columbia. Negro. Precisou filmarem a morte de George Floyd a sangue gélido, para que o chamassem como comentarista na televisão. Até então não se via um infectologista, uma pesquisadora, um médico, uma defensora dos direitos humanos, uma jurista, um advogado, uma psicanalista ou um enfermeiro negros sendo entrevistados. É como se não existissem. Estou falando de formação de pensamento, estou falando de voz.

    Me irrita muito você me dizer que não reparou nisso.

    Me choca muito sentir você infectar o ar com seu nojo de pobre, nojo de trabalhador. Seu desprezo por quem anda de ônibus, por quem come um prato muito cheio de comida, por quem não sabe distinguir uma taça de vinho de uma taça de champanhe. O lixo da Casa Grande é imenso e lhe deixou marcas através desses tantos séculos que não sei como isso não te constrange tanto quanto me machuca.

    Branquitude, seu domínio está em todas as estruturas de poder.

    Como um velho menino ou uma velha menina dona da bola que, se o jogo pender para um lado que não a favoreça, ela segura a bola. Se você visse pelos meus olhos também veria algo muito familiar na cena de um policial branco em Brasília, nesse momento, espancando as costas nuas de um homem negro em situação de rua. Sem motivo. São onze e meia da manhã. Ontem também vimos uma senhora branca racista raivosa, vestida de verde e amarelo, armada com um taco de basebol na manifestação antirracista, provocando todos os pretos ali. Deu tudo na televisão. Tem crianças vendo isso. Isso é a crueldade da senzala moderna cheia de grades que não vemos mas sentimos.

    Na reunião de “demônios“ que houve no dia 22 de abril, dia também em que sujos brancos portugueses chegaram aqui com o mal costume de não tomar banho, não havia um negro sequer e era uma reunião de brancos em um filme sem mocinho. No entanto, nas estruturas todas de poder, tem sempre a branquitude como um detector, que se move em lugares estratégicos, focado em nos deter e barrar, como se o mal todo se concentrasse nos pretos.

    As estéticas, os saberes todos vêm envoltos numa embalagem onde o modelo exemplar do ser humano é eurocêntrico e cuja propaganda tem como perfeição a lourice de olhos azuis. Tal modelo foi esfregado em nossa cara, nos oprimindo, para que ficássemos sendo o lado negativo da história, os exóticos sem beleza, por muitos e muitos anos. Reagimos, nos estruturamos, fomos catando os cacos, acionando cada vez mais as informações e as experiências da ancestralidade e da diáspora para que nos reerguêssemos. Mesmo sabedora de que “quem dá luz a cego é bengala branca e Santa Luzia”, eu vou explicar: Diáspora é a África espalhada pelo mundo, uma espécie de pátria global de africanos. Sem essa força e esse diálogo entre nós, ficaria muito difícil brigar contra as Cinderelas, Brancas de Neve e princesinhas Barbies que amalgamam o imaginário do feminino na cabeça de uma sociedade que se pensa ainda como senhora de escravos.

    Ô branquitude, você conseguiu se blindar de tal maneira que, mesmo que haja uma série de crimes cometidos por brancos nas empresas, na política, na corrupção em compras de respiradores, exatamente na hora em que o povo luta para respirar, ninguém diz que branco é bandido, ninguém diz que branco é psicopata, frio, traidor. Ninguém racializa qualquer ação malévola sua, ô branquitude. Fizesse um negro 0,1% das iniquidades desse genocida que está na presidência, não faltaria boca a dizer: só podia ser preto. Tô de saco cheio, sabe? Cansada de lutar contra esse racismo estrutural há décadas! Trago também a luta do meu pai, e dos muitos que me precederam.

    O que é sordidamente curioso é que você é violenta todos os dias contra nós e toda vez que reagimos, ouvimos sempre uma boca branca dizer: “Como esses pretos são radicais!” Ora, nos matam indefesos e nós é que somos os violentos, branquitude?! Amanheci com uma consciência plena do que li nas palavras de Angela Davis: não existe democracia sem uma democracia racial.

    É de mentira essa nossa democracia. É de mentira a americana também.

    Isto significa que a nossa é falsa, que muitos dos que lutam por ela não estão lutando direito. Sabe-se que, para tal desigualdade ocorrer no país, é preciso que haja uma sistêmica e profunda injustiça. Sem trégua.

    Você sabe o que eu quero dizer, branquitude, eu tô falando com você. Você sabe também como você custa a compreender que, não só a nossa gênese, mas a de todos os seres humanos é africana, como também somos iguais e às vezes melhores do que você. Qual o problema? Que jogo é esse de ganhar sempre? O que aconteceu com as leis do quintal da infância? Lembro que alternávamos. Se você realmente entra num restaurante que só tem brancos e acha que tá tudo bem, se você está naquele clube, naquela ala vip do hospital, está aí no camarote onde só tem branco, mesmo que seja pra ver o samba? E acha que tudo isso é normal, meu papo é mesmo contigo. Numa investigação rigorosa e ampla, certamente acharíamos seus vestígios, suas digitais onde você colabora para não ceder um pingo do seu privilégio em prol de uma igualdade. Me preocupam seus filhos: crianças brancas que crescem ao lado de crianças brancas ricas, se encontram no clube com as mesmas crianças brancas ricas, depois vão ser colegas: chefes dos bancos, diretores nas tevês, como num túnel de ouro, onde o lugar pro sucesso é seguro e independe de qualquer meritocracia, vamos combinar.

    Repara que, não é à toa, se a gente for analisar, que tinha maioria branca nas ruas a favor do impeachment da Dilma, tem maioria branca nos 30% que ainda não se livraram do cabresto bolsonarista. Você acha que é coincidência? Por que tanta gente se incomodou com a PEC das domésticas? Quem se incomodou? A branquitude. Você queria que tudo seguisse como sempre na nossa escravidão moderna explícita: senhoras trabalhando todo dia desde às cinco da manhã para por os meninos pro colégio, até as onze e meia quando o marido vem daquela “reunião” que foi até mais tarde. A PEC veio regular um serviço de escravização urbana, normatizado aqui por muitas pessoas de “bem”, que hoje são minhas destinatárias. O seu silêncio e sua inação em não mexer uma palha nesse tema, como se não fosse assunto seu, matou João Pedro.

    Sei que é pesado dizer isso, mas quem cala consente e, enquanto não houver um grupo de brancos anti-racistas neste país que entenda que esse jogo está podre, a branquitude toda estará mancomunada com os crimes raciais nesta terra. É cúmplice, sim senhora!

    Por que seus filhos crescem e só se casam com brancos? Por quê? Não, não é gosto.

     

    Sua educação foi estruturada na hegemonia e na homogeneidade; é gente que, sai governo, muda governo, e o cardápio não muda, e nada se altera. Educação rigorosamente racista. Seus filhos cresceram com a lição de que pretos só servem para servi-los: a babá, o motorista, a cozinheira de estimação que está na família há 60 anos. “Oh, como gostamos da Dedé, pra nós ela é da família…” Ah é, então eu pergunto qual é o nome, qual é o sobrenome da Dedé? Onde nasceu? Tem irmãos, tem mãe?

    Que de família que nada, conta outra, ô branquitude! No quarto dela tem aquela televisão meio ruim, não tem janelas, o chuveiro levemente em cima do vaso, formando um mix de box e louça sanitária sem direito à cortina ou qualquer outra divisão. Gente, haver dependência de empregada, esse nome, tudo é um escândalo! Você não repara não? Você que enche sua boca para dizer… ”é gente de favela“… êpa êpa, eu pergunto: quem é você? O que você sabe dela? Tem tanta preciosidade numa comunidade que dependendo de quem me lê agora, digo: limpe a boca pra falar o nome dela. Respeite a favela!

     

    É isso, acordei atravessada, sentindo dificuldade, metafórica, de respirar. Vendo esse ar empesteado de preconceito, de segregação, de apartheid; nosso território está sanguinário, você nos trata todo dia com violência, duvidando da nossa potência, duvidando do nosso saber, desprezando nossa cultura por ignorância e soberba, mistura letal donde não brotará um homem sábio. Seus filhos não casam com negros porque precisam casar com pessoas do seu “nível “, pois por gerações, sua família, mesmo que tenha sido uma família progressista e muitas vezes uma família de esquerda, seguiu tal cartilha separatista. Quem fala aqui é de esquerda, chamo até de esquerda raiz, pois me desconstruo todo dia, me reeduco, me curo a duras penas do machismo tóxico, remexo meus preconceitos, e me ajeito junto aos muitos que querem mexer no caldeirão da história a favor também dos que sempre foram sacaneados pelos que a escreveram.

    Não se assuste, muitas palavras e seus sentidos estão sendo vilipendiados nesse momento pela milícia virtual das fake news. Ser de esquerda é nada mais, nada menos do que querer ver o Estado honrando os impostos que pagamos e que os divida igualitariamente para todos e ainda taxe mais um pouco quem ganha muito mais. Sou a favor da distribuição de renda, a favor de pobres terem direito a uma educação de alto nível e uma saúde igual. Não consigo compreender quem não veja ainda, à luz do recorte racial, a pobreza, a população carcerária, a população em situação de rua, os orfanatos e as crianças que neles sobram. Tudo preto.

    Vivemos numa máquina de moer preto na nossa cara. Você branquitude, é também quem mandou prender o pai do menino que pode ficar anos preso por ter tentado roubar um celular e que talvez seja condenado por algum juiz branco envolvido no desvio de milhões na compra de leitos. Quem está na fila hoje, você sabe, dos hospitais, em seus corredores, é quem sempre lá esteve. Gente que morre querendo respirar esperando leito, consulta, órgão, médico, atenção: maioria negra.

    Você não pode dizer que não tem nada com isso. A parte que sobra na sua vida, em dignidade e cidadania, é que está faltando na vida de muitos pretos do país que você diz amar. Que loucura! Há situações em que a religião fica tão perto do armamento que talvez seja melhor ser ateu para ser mais revolucionariamente cristão. Não sei. Veja aí branquitude, é contigo mesmo. Se eu fosse um de vocês me apressaria em limpar minha barra provando que não sou racista, que não tenho pensamento torto e eugenista, e mais do que isso, que sou anti-racista! Se eu fosse branca seria essa minha bandeira principal.

    Outro dia, antes da pandemia, na praia, uma moça me disse: ”Meu deus, que pele boa, não acredito que vocês tenham uma pele boa assim sem rugas, isso não é justo!!!” Tratava-se de uma Barbie. Deu quase pena, mas não poupei, olhei bem dentro dos olhos dela e perguntei: Realmente você acha injusto que vocês não tenham uma pele tão boa quanto a nossa, você acha injusto isso também? Um silêncio esmagador se estendeu como um tapete curto entre nós. Quase um perigo. Ninguém sabia de quê. Sei que estou dizendo coisas aqui que, como diz minha amiga querida Flávia Oliveira, não é nem nesse andar que se estuda. É no prédio do ensino fundamental.

    Mas te escrevo, porque vi uma barreira de brancos antirracistas na frente dos pretos americanos, enfrentando a polícia e dizendo com a coragem que a democracia exige: “E agora, em nossos corpos brancos, vocês vão atirar também?“. Inspirada nesse gesto, comecei a te escrever essa carta.

    A sensação de não conseguir respirar por tanto impedimento que há na circulação social do negro em cada parte, sem descansar, é também asfixiante. É difícil se constituir um ser humano negro decente sem ser confundido com ladrão ou com bandido, como um condenado a princípio, bem antes do direito de ser inocente.

    Ainda bem que confio nos filhos dos nosso movimento negro, os que já cresceram com cabelos crespos e auto-estima, vendo em alguns livros protagonistas negros. É isso! Estamos avançando no quilombo moderno! A diáspora está cada vez mais conectada, o levante americano só não tomou definitivamente as ruas do Brasil, por causa da pandemia. Mas nos aguarde. E corra agora atrás do seu prejuízo, ô branquitude!

    Escuta: tira o joelho do meu pescoço! Pela milésima vez, estou te dando a chance de não ser mais assassina.

     

    Elisa Lucinda, junho antirracista, 2020

     

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