Jornalistas Livres

Tag: gentrificação

  • Ladeira da Preguiça resiste à tentativa de higienização social no Centro Antigo de Salvador

    Ladeira da Preguiça resiste à tentativa de higienização social no Centro Antigo de Salvador

    Por Yuri Silva, com fotos de Marcelo Teles

    Aconteceu durante todo o dia deste sábado, 12, como também ocorreu no último final de semana, uma extensa mobilização de pintura de casarões na Ladeira da Preguiça (a mesma que inspirou a música de Gilberto Gil cantada por Elis Regina), em Salvador.

    A comunidade é alvo da especulação imobiliária, da gentrificação do Centro Histórico e do Centro Antigo de Salvador e de um processo que tenta colocar em prática o projeto elitista de higienização social nessa área da cidade.

    Trata-se do velho racismo territorial, já que a Ladeira fica no Centro Histórico, em área privilegiada, à beira da Baía de Todos os Santos e de empreendimentos luxuosos, entre eles o Trapiche e a Bahia Marina, além dos hotéis Fasano e Fera Palace (este último do empresário milionário Antônio Mazzafera), todos points da elite política e econômica da capital baiana.

    Durante quatro sábados, a comunidade resolveu pintar as fachadas das suas casas, a partir de um processo de mobilização amplo, que incluiu diversos atores e parceiros, como o MUSAS (Museu de StreetArt Salvador), a incubadora de projetos sociais Salvador Meu Amor, o movimento Nosso Bairro É Dois de Julho, Articulação do Centro Antigo de Salvador, Coletivo de Entidades Negras – CEN e o Centro Cultural Que Ladeira É Essa?, instituição representativa dos moradores.

    O ato, que vai até o sábado do dia 26 de janeiro, é um grito contra o racismo do poder público e um clamor pelo direito à cidade.

    Os moradores, responsáveis por preservar uma série de casarões abandonados pelos especuladores, são constantemente alvo de tentativas de expulsão por parte do poder municipal. A resistência, contudo, tem sido palavra central na vida desta comunidade.

     

     

  • O povo é um intruso no Parque do Povo

    O povo é um intruso no Parque do Povo

    Quem fizer uma pesquisa na internet à procura de imagens do Parque do Povo, um parque da prefeitura de São Paulo localizado no bairro do Itaim Bibi, uma região nobre de escritórios, comércio e residências da cidade, encontrará fotos de ciclistas, skatistas, corredores, crianças se divertindo nos brinquedos, cachorros correndo pelos gramados, pessoas praticando yoga e propagandas em inglês de academias particulares de ginástica que atendem seus clientes naquele espaço. No entanto, terá dificuldade de encontrar alguma foto das centenas de trabalhadoras e trabalhadores que diariamente tentam atravessar o parque em direção aos pontos de ônibus ou à estação de trem.

    Portão fecham cinco horas antes do restante do parque, para dificultar acesso de trabalhadores que saem do serviço

    O transporte público liga a região nobre do parque às periferias, onde reside a maior parte das pessoas que trabalham no seu entorno. Mesmo os que não trabalham no bairro, precisam atravessar ou circundar o parque para fazer a baldeação entre os ônibus e os trens. Um dos portões que lhes permitiriam fazer a travessia é fechado às 17 horas, cinco horas antes do parque encerrar suas atividades. Durante a semana, o gramado principal, que oferece o trajeto mais belo e curto entre os pontos de ônibus e a estação de trem, ganha uma cerca móvel que impede a passagem das pessoas. Nos fins de semana e feriados, quando o parque é frequentado prioritariamente pelos moradores da região, a cerca é retirada.

    As trabalhadoras e trabalhadores não são impedidos de entrar no parque pelo portão principal, tampouco são impedidos de atravessá-lo em direção à estação de trem pelos caminhos pavimentados. No entanto, o portão fechado, justamente, no horário de maior movimento da estação e as cercas móveis do gramado principal parecem indicar que eles são tomados como intrusos naquele espaço público, parecem indicar que o povo é tomado como um intruso no Parque do Povo.

    Tendo sido criado nos anos 30, o Parque do Povo já foi um espaço mais popular (SCIFONI, 2013). Como em outros lugares da cidade, o parque possuía vários campos de futebol de várzea, administrados por diferentes clubes e agremiações. Após as obras de retificação (1938-1958), o parque passou da margem esquerda à margem direita do Rio Pinheiros. Encostadas ao parque surgiram algumas favelas. Os clubes ofereciam escolinhas de futebol, tanto para os meninos que moravam nessas favelas, quanto para os que moravam nos prédios luxuosos do bairro.

    Com o processo de redemocratização, os prefeitos da cidade assumiram posições muito diferentes a respeito das favelas e do parque. Na prefeitura de Mário Covas (1983-1985), o secretário da cultura e dramaturgo Gianfrancesco Guarnieri autorizou a instalação no parque do Circo-Escola Picadeiro e do Teatro Vento Forte (ABREU, 2009). Além de formarem inúmeros artistas e professores, e de estimular a criação de várias companhias, o circo e o teatro também desenvolveram escolas para as crianças das favelas da região (CALVINATO, 2003). Em 1987, numa parceria com o governo do Estado, o Circo-Escola Picadeiro ajudou a criar o Projeto Enturmando, que levou escolas de circo para diversas comunidades da periferia (MATHEUS, 2016).

    Na prefeitura de Jânio Quadros (1986-1988), colocou-se em prática um plano de “desfavelamento” que, ao fim e ao cabo, apenas promoveu a remoção de algumas favelas que ficavam na região do Parque do Povo (FRANÇA, p. 2009). Em novembro de 1986, as 70 famílias da Favela da Cidade Jardim foram levadas para um conjunto habitacional na Estrada do Campo Limpo; em maio de 1988, foi a vez das 800 famílias da Favela Juscelino Kubitschek serem encaminhadas para conjuntos habitacionais localizados na Rodovia Raposo Tavares e na periferia da Zona Leste.

    Atentos às pressões das empresas de construção civil junto ao poder público, em 1987, um conjunto de intelectuais, de artistas, de moradores e de representantes dos clubes de futebol de várzea, do circo e do teatro fundaram a Associação Amigos do Parque do Povo (SCIFONI, 2013). Havia um projeto da construtora Mendes Júnior de construir um shopping center no local do parque. Em 1994, referendando um detalhado estudo que destacava a importância social e cultural das atividades realizadas no Parque do Povo, o CONDEPHAAT aprovou o seu tombamento.

    Em 2001, durante a prefeitura de Marta Suplicy (2001-2004), após onerosas batalhas judiciais dirigidas individualmente aos clubes de futebol de várzea, ao circo e ao teatro, a Associação dos Amigos do Itaim Bibi (SAIB) conseguiu a interdição das entradas do parque. O argumento sustentado foi que as atividades daquelas entidades estavam se desviando das suas finalidades esportivas e culturais e degradando as dependências do Parque do Povo (SCIFONI, 2013). Nesse sentido, essas entidades não estariam cumprindo os termos do tombamento. Em 2006, mesmo sem ter a autorização do CONDEPHAT, a prefeitura de Gilberto Kassab (2006-2012) apresentou um projeto de reformulação do parque que seria financiado por empresas da construção civil. Em outubro de 2007, ocorreu o despejo dos clubes de futebol de várzea, do Circo-Escola Picadeiro e das 42 famílias que residiam no local (PAGNAN, 2007). Graças à intervenção do Ministério da Cultura, o Teatro Vento Forte conseguiu manter suas instalações no Parque do Povo (SCIFONI, 2013).

    Numa reflexão sobre a palavra povo, o filósofo Giorgio Agamben (2014) argumenta que, em português e em outras línguas europeias modernas, povo significa o sujeito político ou o conjunto das pessoas que têm o direito de participar da política, pelo menos numa democracia e, também, a classe dos sujeitos pobres e deserdados que estão excluídos do campo das decisões políticas. Quanto menos os pobres dividirem espaço com os não-excluídos, menos as palavras povo e democracia irão expor suas contradições no interior de uma sociedade de classes. Com a estratégia de mostrar ao povo que ele é um intruso, o Parque do Povo parece pretender retirar das trabalhadoras e trabalhadores a vontade de promover uma nova partilha do sensível naquele lugar.

     

     

     

    Bibliografia:

     

    ABREU, Ieda. Ilo Krugli: poesia rasgada. São Paulo Imprensa Oficial, 2009.

    AGAMBEN, Giorgio. O que é um povo? Análise de uma fratura biopolítica. In. FOLHA DE S.PAULO, 16 de novembro de 2014.

    CALVINATO, Andrea. Uma experiência em teatro e educação: a história do menino navegador Ilo Krugli e seu indomável Ventoforte. Dissertação (Mestrado em Artes) – Universidade de São Paulo, 2003.

    FRANÇA, Elisabete. Favelas em São Paulo (1980-2008). Das propostas de desfavelamento aos projetos de urbanização: a experiência do Programa Guarapiranga. Tese (Doutorado em arquitetura e urbanismo) – Universidade Presbiteriana Mackenzie, 2009. 

    PAGNAN, Rogério. Prefeitura inicia despejo no Parque do Povo, In. FOLHA DE S.PAULO, 16 de outubro de 2007.

    SCIFONI, Simone. Parque do Povo: um patrimônio do futebol de várzea de São Paulo. Anais do Museu Paulista, v. 21, n. 2. jul-dez. 2013.

    MATHEUS, Rodrigo. As produções circenses dos ex-alunos das escolas de circo de São Paulo, na década de 1980 e a constituição do circo mínimo. Dissertação (Mestrado em Artes) – Universidade Estadual Paulista, 2016.

     

     

     

  • EXCLUSIVO! PSDB consegue na (in)Justiça o direito de descartar como lixo os cadáveres de 1.600 pessoas

    EXCLUSIVO! PSDB consegue na (in)Justiça o direito de descartar como lixo os cadáveres de 1.600 pessoas

    Que a Prefeitura de São Paulo está movendo mundos e fundos para privatizar os 22 cemitérios públicos da cidade, as 15 agências funerárias, as 118 salas de velórios e o crematório municipal da Vila Alpina, já se sabe desde a posse de João Doria, em 1º de janeiro de 2017. O negócio é milionário. A Prefeitura de São Paulo possui 350 mil jazigos públicos, realiza mais de 45 mil sepultamentos e 10 mil cremações por ano na cidade. Passar isso nos cobres, cobrando da população pelo que hoje é gratuito, além de uma taxa anual pelas sepulturas (tipo IPTU), é o que está na mira dos tucanos e dos investidores interessados. Para tornar o negócio mais atraente aos compradores, entretanto, a Prefeitura precisa lidar com um passivo desconcertante… Os milhares de mortos indigentes ou que não foram nunca localizados pelas famílias. Miséria post mortem existe também. Sem famílias, quem pagaria pelo descanso eterno desses corpos? A Prefeitura precisa se livrar desses pobres, expulsá-los da terra urbana escassa, a fim de que mortos pagantes tomem-lhes o lugar.

    Como?

    Em abril, a Prefeitura conseguiu que o Tribunal de Contas do Município levantasse o embargo à privatização dos cemitérios públicos. Então, iniciou-se imediatamente o processo visando ao despejo dos mortos inconvenientes. No último dia 13 de junho, a Prefeitura obteve autorização judicial para começar a destruir 1.600 ossadas sem identificação, provenientes de exumações realizadas entre os anos de 1941 e 2000 no Cemitério da Quarta Parada, o cemitério do Brás, fundado em 1893, sendo um dos mais antigos na cidade de São Paulo com mais de 122 anos.

    Ocupando área de 183 mil metros quadrados e “dormitório” de cerca de 400 mil pessoas, que ali estão sepultadas, o cemitério da Quarta Parada é uma espécie de “jóia da coroa” entre as necrópoles paulistanas, porque tem milhares de túmulos de famílias de classe média. Mas Doria e seu sucessor, Bruno Covas (PSDB), querem que entre mais gente endinheirada e por isso precisam despejar os pobres. É algo muito parecido com o que acontece quando se expulsam os pobres de uma região da cidade para em seu lugar instalar a classe média pagante. Chama-se de “gentrificação”. Agora, os pobres e miseráveis não terão nem um lugar para cair mortos. Literalmente.

    No total, a cidade de São Paulo tem mais de 50.000 corpos assim, que serão destruídos, descartados como lixo. Entre eles, estão pessoas oficialmente reclamadas como desaparecidas por suas famílias ou conhecidos, e que foram enterradas como indigentes, sem que seus familiares tenham sido avisados da localização do corpo.

    É gravíssimo.

    São famílias, amigos e conhecidos que sofrem diariamente a angústia de nunca mais saber de um ente querido desaparecido, que vivem um luto sem fim por absoluta incúria do poder público. O Ministério Público do Estado de São Paulo apurou que pessoas oficialmente reclamadas como desaparecidas, muitas vezes portando seus próprios documentos, são enterradas como indigentes, sem que os seus familiares sejam informados. É o que se chama de “redesaparecimento”.

    Também devem se encontrar entre esses corpos que a Prefeitura pretende destruir as ossadas de opositores da Ditadura Militar que vigorou no país entre 1964 e 1985. Já se localizaram as ossadas de presos políticos desaparecidos, que foram enterrados como indigentes no Cemitério de Perus e é razoável supor que haja mais porque centenas desses opositores seguem figurando nas estatísticas de “desaparecidos” políticos.

    Ativista dos Direitos Humanos e ex-presidente da Comissão Estadual da Verdade de São Paulo, Adriano Diogo foi o descobridor da decisão tomada em 4 de junho de 2018 pela juíza Renata Pinto Lima Zanetta, autorizando a destruição das 1.600 ossadas do Cemitério da Quarta Parada. Segundo ele, trata-se de um grave erro, um atentado à memória, à Justiça e aos direitos fundamentais das famílias de desaparecidos, uma vez que nessas ossadas reside a possibilidade de um reencontro.

    “A destruição das ossadas, que serão cremadas, vai acontecer em todos os cemitérios. Começa na Quarta Parada, atingirá todos os cemitérios mais tradicionais, cercados pelos bairros mais ricos. Depois chegará à Vila Formosa, Guaianazes, Itaquera”, explica Adriano. “A morte e o luto não poderiam nunca ser transformados em objeto de lucro, entregues a empresas de papa-defuntos”.

    A promotora Eliana Faleiros Vendramini Carneiro, que atua no Plid (Programa de Localização e Identificação de Desaparecidos), do Ministério Público, calcula que só no ano de 2013, 23.194 pessoas foram dadas como desaparecidas no Estado de São Paulo. Muitas delas desaparecem por muitos anos ou para sempre, a exemplo das 7.501 crianças do Estado de São Paulo, que nunca foram localizadas.

    Boa parte dessas desaparições, entretanto, ocorrem por falha do serviço público. Dimas Ferreira Campos Júnior, então com 42 anos, desapareceu no dia 3 de junho de 2015. Ele saiu de casa, foi a uma lan house e sumiu. A família dele providenciou um boletim de ocorrência de desaparecimento. Mas Dimas havia morrido em decorrência de um infarto fulminante, que aconteceu no meio da rua, no próprio dia de seu desaparecimento. Sem identificação, o corpo foi periciado pelo Instituto Médico Legal que em quatro dias obteve sua identificação pelo exame das impressões digitais. Mesmo assim, o IML não procurou saber se havia familiares em busca do “desaparecido” e mandou enterrá-lo como indigente. Bastava ter cruzado os dados do boletim de ocorrência de desaparecimento com o boletim de ocorrência da morte. Mas isso não foi feito. Os pais de Dimas só foram avisados da localização do corpo mais de um mês depois, porque a equipe da doutora Eliana Vendramini fez o que a polícia e os órgãos públicos que cuidam da morte não fizeram.

    “Essas pessoas desapareceram, apareceram e o Estado redesapareceu com elas. Em absoluto desrespeito ao sofrimento das famílias e à memória do morto”, diz ela, que coleciona casos tristíssimos de longas e incansáveis buscas de familiares por seus entes queridos, como Dimas Ferreira Campos Júnior. As famílias querem o corpo. Porque querem saber o motivo da morte. Porque precisam viver o luto para reencontrar a vida”, diz a promotora Eliana.

    Há ainda a questão da Justiça. Contabilizam-se milhares de crimes sem solução (inclusive muitos da Ditadura) no Estado de São Paulo.

    “Para evitar a apuração de seus crimes, uma das medidas adotadas pelo regime militar foi desaparecer com os corpos de suas vítimas. Essa prática de desaparecimentos continuou durante a democracia, com a militarização da segurança pública, com a noção de inimigo interno, as execuções extrajudiciais. Por causa disso, é importantíssimo identificar os corpos em vez de tentar sumir com eles, destruindo-os, apagando provas de crimes e a possibilidade de Justiça”, diz o advogado Pádua Fernandes.

    Tem mais.

    Corpos identificados, enterrados como indigentes, recebem etiquetas escritas a caneta. E são empilhados em piscinas de corpos e ossos. Resultado: as etiquetas misturam-se, a tinta borra e então esses corpos se tornam de fato inidentificáveis por incúria do poder público. É o tal “redesaparecimento”, de que fala a doutora Eliana, promovido pela omissão do poder público.

    Adriano Diogo localizou nos cemitérios da Quarta Parada e da Vila Formosa duas dessas piscinas de ossos, “que são caixas de concreto cheias até a borda de sacos de ossos, a maioria sem identificação, socados, um em cima do outro, cheias de água, cheia de bichos, em total desrespeito.”

    “Eugenia, higienização dos cemitérios, é o que se fará agora, visando a liberar espaço para comercialização de novas sepulturas, novas tumbas, novas caixas. É a barbárie”, diz Adriano.

    A juíza que autorizou o descarte dos ossos de 1.600 pessoas registra essa aberração como se fosse um acidente natural: “O Serviço Funerário atestou a impossibilidade de identificar os ossos em correlação aos assentamentos de óbitos, em razão do tempo decorrido, da perda das inscrições nas etiquetas e, em alguns casos, das próprias etiqueta”. Ou seja, o poder público não cuida e a forma de resolver isso é “jogando fora”, fazendo desaparecer mais uma vez –agora para sempre.

     

    “Neoliberalismo implica negação dos Direitos Humanos. São imigrantes engaiolados como animais, favelados sendo fuzilados por helicópteros e os mortos sendo transformados em lixo descartável. Não sobrou mais nada!”, revolta-se o padre Julio Lancellotti, membro da Pastoral do Povo de Rua e pároco da Igreja São Miguel Arcanjo no bairro da Mooca. O padre tem vários parentes enterrados no cemitério ,da Quarta Parada, que fica a 1,8 km de sua paróquia.

    Em vez da dignidade de ossários bem organizados, o que se pretende é incinerar a história da vida e da morte dos pobres. Deletar-lhe a existência. “Isso é mais um sintoma da Aporofobia, doença social que implica ódio aos pobres”, diz o padre Julio. Deles, nem a memória restará.

    É um jeito de acabar com a pobreza, não resta dúvida.

  • “A Sós”: Só um grande jornalista poderia fazer um documentário como este

    “A Sós”: Só um grande jornalista poderia fazer um documentário como este

     

    Vinicius Lima é um jornalista recém-formado pela PUC-SP. Há anos ele trabalha no projeto SP invisível, um movimento que conta histórias  de moradores de rua e de pessoas que vivem ou trabalham nas ruas de São Paulo. Veja a página aqui.

    A experiência serviu para apurar o olhar do jovem repórter. Ali, onde as pessoas genericamente vêem “mendigos”, “vagabundos”, “vítimas do sistema”, “craqueiros”, “coitados”, dependendo de onde o observador esteja no espectro político, Vinicius encontra histórias de vida, alegrias, tristezas, amores, escolhas, os porquês de estarem onde estão e fazendo o que fazem.

    Vinicius vai muito além dos estereótipos porque sabe que eles servem apenas para reforçar as barreiras da invisibilidade e, por que não?, justificar nossa insensibilidade diante da dor e do sofrimento do “Outro” —ele não é um ser como nós, dotado de sentidos como os nossos.

    Já foi moda no jornalismo o repórter se fantasiar de morador de rua, de imigrante turco na riquíssima Alemanha, de miserável no Império Americano. Maquiagem, roupas esfarrapadas, sotaque fajuto, tudo para “vivenciar na própria pele” o que o Outro sentiria na condição de marginalizado e excluído.

    Caô total. Verdadeiro estelionato.

    Primeiro, porque esse método de investigação jornalística cassa a palavra de quem já tem a palavra, quando não a própria existência, negada. Quem fala é o repórter fantasiado.

    Depois, porque nunca, nem com todos os artifícios, reproduz-se a singularidade das histórias de vida de quem acabou indo morar nas ruas. O máximo que se consegue é reverberar os preconceitos e clichês de quem se arvora a intérprete do “marginalizado e excluído”.

    Bem mais difícil foi o percurso investigativo escolhido por Vinicius para falar do amor que acontece nas ruas, pela voz dos próprios amantes. Porque pressupôs um trabalho delicado de prospecção e seleção dos cases apresentados. E porque exigiu o estabelecimento de uma profunda relação de confiança entre entrevistador e entrevistado, algo sempre difícil de obter no território inóspito das calçadas.

    Emocionante, delicado, veraz. Tudo isso poderia ser dito deste documentário, produzido como trabalho de conclusão de curso, sob orientação do professor Marcos Cripa, do jornalismo da PUC-SP. Prefiro dizer que é um pungente resgate jornalístico. Torna visível o que foi invisibilizado por camadas e mais camadas de estereótipos. Dá voz a quem sempre foi calado. Preenche com alma e amor os corpos desumanizados pelo preconceito.

    Você não olhará mais para um morador de rua como olhava antes. É para isso que serve o Jornalismo, afinal! Assista agora:

  • Vamos internar o Doria?

    Vamos internar o Doria?

    Vamos Internar o Doria?

    Alguns vão dizer que, para idade que eu tenho e outros fatores pessoais da minha vida, começar um texto com tal título é pura imaturidade, falta de senso, pedido por atenção, falta de entendimento e/ou de esclarecimento.

    Mas, falando sério, eu pergunto se não falta entendimento e esclarecimento exatamente ao prefeito João Doria Jr. Só assim para ele ser capaz de tomar medidas tão brutais na Cracolândia, com sua política de exclusão social amparada na ignorância do que seja uma cidade real (não um jogo de Lego) e toda a diversidade de gente que ela abriga. Esse tipo de conhecimento, diga-se nenhuma escola burguesa consegue dar.

    Vamos internar Doria, sim!

    “O viciado em exterminar a minoria, e resolver os problemas varrendo para debaixo do tapete.”

     

    O lixo, os assessores e Doria

    É assustador saber que ainda no ano de 2017 tantas pessoas acreditem que a droga seja a única responsável pela “destruição” de vidas e famílias, como afirma a grande mídia, a polícia e os médicos interessados em lotar suas clínicas particulares. Essa fala preconceituosa, embora pareça ok, impede-nos de lidar com os problemas que vemos à frente. Me explica como é possível ajudar os dependentes químicos, tratando-os com nojo, como se não fossem humanos?

    Tenho certeza de que Doria não deve tratar os animais dele de estimação quebrando a casinha deles. Mas fazer isso com seres-humanos, como ele fez na Cracolândia, derrubando uma pensão com os moradores dentro, tudo bem — “aliás eles já estão fodidos na vida mesmo”.

    Gentrificação é o nome que se dá aos processos de valorização imobiliária de uma região ou bairro, o que pode ocorrer pela construção de um museu, de um shopping center ou de novos edifícios, expulsando a população local de baixa renda. Guarde essa palavra, porque ela expressa muito bem as perspectivas do governo Doria para a cidade de São Paulo em geral, e para a Cracolândia em particular.

    Sim, porque é gentrificação a expulsão brutal dos moradores da Luz (usuários de crack entre eles) com 0 discurso de que é necessário prestar-lhes atendimento, por intermédio da internação compulsória. Isso nada mais é do que uma estratégia para encobrir um novo empreendimento imobiliário, que trará benefício para os grande proprietários e capitalistas que especulam com o terreno urbano.

    A faxina social que Doria vem fazendo, na tentativa de criar uma cidade em que todos os moradores pareçam ter saído de um comercial de margarina, nada mais é do que a demonstração máxima de que este prefeito não se encontra preparado para administrar São Paulo. Sim, porque a obrigação de um prefeito é cuidar dos seus sem olhar a quem.

    A situação fica ainda pior porque nossa Justiça ainda hoje é racista, machista e lgbtfóbica. É explícito que, ao contrário da sonhada “justiça cega”, a que temos criminaliza, diminui, e tenta expor ao ridículo a situação das pessoas que vivem na Cracolândia.

    Vamos internar o Doria, sim!

    “O viciado em ridicularizar pessoas pra ganhar status social.”
    O improviso do projeto Redenção, que seria a base das ações do prefeito na Cracolândia, é tal, que Doria informou antes mesmo da confirmação que o médico Drauzio Varella estaria apoiando internar dependentes químicos sem a  autorização deles ou de pessoa da família, passando por cima de leis. Mas o próprio Varella disse em seu site pessoal:

    “Hoje fui surpreendido com as notícias divulgadas pela imprensa de que os dois colegas a que me referi e eu fazíamos parte de um ‘Comitê Superior de Saúde contra a dependência química’, encarregado de ‘acompanhar e auditar as ações governamentais na Cracolândia. Não recebi convite formal para fazer parte de um comitê com essas funções. Caso recebesse, não aceitaria: não tenho preparo técnico nem tempo livre para um trabalho dessa natureza.”

    Vamos internar o Dória, sim!

    “O viciado em oficializar convites, sem de fato tê-los feito, apenas para conseguir aprovação do povo.”
    Carl Hart. Nasceu em Miami, nos Estados Unidos. Tendo crescido em um bairro periférico parecido com a periferia das grandes cidades brasileiras, onde o crime e as drogas sempre foram de fácil acesso, Hart relata que foi se questionando por que essa realidade era tão comum entre os seus amigos e a população de seu bairro. Após servir na Força Aérea dos Estados Unidos, Hart voltou-se ao ensino superior. Sua experiência prévia despertou-lhe interesse em se especializar em neurociência e demais estudos voltados a drogas. Atualmente, é professor de psicologia e de psiquiatria da Universidade de Columbia, e há muito tempo vem estudando os efeitos do crack. Em entrevista com o dr. Drauzio Varella, Hart pontua:
    “Depois de duas décadas, ficou claro que o uso de crack era mero sintoma de problemas maiores como as dificuldades econômicas, a falta de oportunidade e de educação. O Brasil está repetindo os erros dos EUA.”

    Uma cena que sempre esteve muito presente para a população negra — seja aqui no Brasil ou nos Estados Unidos — é a nossa falta de oportunidade. E quando as perspectivas de vida que temos são sempre negativas, não é incomum que busquemos nas drogas a tão sonhada felicidade que o capitalismo e a sociedade burguesa ainda tentam nos vender. É errado? Mas qualquer pessoa que vive dentro da nossa sociedade capitalista busca prazeres, seja por meio de drogas lícitas, ilícitas, relacionamentos, dinheiro poder. E apenas digo que é HIPOCRISIA ouvir da população burguesa que todas as sextas-feiras se encontra no bar para afogar as mágoas, que são os usuários de crack que estão se viciando, e se matando.

    Vamos internar o Dória, sim!

    “O viciado em achar a solução dos seus problemas, colocando a culpa nos outros.”

    Bem que minha mãe sempre disse que enquanto você aponta um dedo para alguém, haverá quatro dedos apontando para você. Temos como prefeito da nossa cidade um mau ator, que tentar se apropriar cinicamente de símbolos dos trabalhadores que vivem nas situações mais precárias de vida, como os garis. Mas em vez de pelo menos tentar viver como um pobre, Doria faz a glamourização da pobreza, o que é indecente. Ele vem cheiroso, banho recém-tomado, vestindo uniforme de gari devidamente costurado e ajustado por um alfaiate chique. Tudo marketing.

    Se, de fato, Doria se preocupa tanto com a população da Cracolândia, que tal se preocupar com as estruturas que levam as pessoas até lá?
    Doria já conversou com algum usuário de crack que mora na Cracolândia? Já viu qual é a situação deles? Vou te dar uma ajudinha. Aproximadamente 60% dos usuários de crack e cocaína se encontram morando em casas bem organizadas, trabalhando e estudando. Portanto, a maioria dos usuários de crack não está na Cracolândia.
    Quem está usando drogas na Cracolândia é apenas a franja mais vulnerável, mais frágil da sociedade, aquela que mais precisa de respeito e de ajuda, na forma de saúde, educação, formação e trabalho.

    Enfim,

    Vamos internar o Doria, sim!

    “O viciado em fingir que sabe cuidar de uma cidade.”