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  • Prefeitura de Salvador permitiu construção do La Vue

    Prefeitura de Salvador permitiu construção do La Vue

    por Julio Fisherman, para os Jornalistas Livres

    A construção do edifício de luxo La Vue – pivô da queda do então ministro da Secretaria de Governo, Geddel Vieira Lima, e culminando ainda com a denúncia pelo ex-ministro da Cultura, Marcelo Calero, de que o próprio presidente Michel Temer intercedeu em benefício da posição e interesse de Geddel – compreende um escândalo político não apenas nacional, mas também recheado por ingredientes locais.

    As razões técnicas que fundamentaram a suspensão da obra em diversos momentos, a última delas determinada em caráter liminar pela Justiça Federal na última quinta-feira (24), se referem essencialmente ao tema da proteção de edificações tombadas presentes na área. A preservação destes sítios é uma atribuição do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico (Iphan), órgão subordinado ao Ministério da Cultura.

    Mas se a repartição do Iphan na Bahia, durante a fortemente criticada superintendência de Carlos Amorim, concedeu permissão que mais tarde foi tratada como irregular e rechaçada pela direção nacional do órgão, a Secretaria Municipal de Urbanismo (Sucom) concedeu o alvará de construção para o empreendimento não só sem fiscalizar a real adequação deste aval como sem observar outros aspectos necessários.

    Segundo Solange Araujo, presidente do Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB-Bahia), a prefeitura foi alertada pelo próprio IAB sobre a ilegalidade da poligonal traçada pelo Iphan-Bahia estabelecendo a área de proteção das construções tombados na região.

    “A prefeitura sempre manteve o discurso de que liberava o alvará de construção porque tinha autorização do Iphan (Bahia). Se o Iphan (Bahia) permitiu, ela não teria mais nada com o tema. Mas também cabe aos órgãos da cidade que fiscalizam as construções verificar se aquilo está correto ou não. Este foi o caso do IAB (Bahia), que percebeu a inadequação e alertou para a ilegalidade da obra. Como não fomos ouvidos aqui, entramos com a ação civil pública na esfera federal”, disse Araujo.

    Outra voz crítica do papel da prefeitura no episódio foi o vereador Gilmar Santiago (PT). Provocado por moradores da Barra, Santiago chamou a atenção para os problemas da construção do prédio. Ainda no fim do ano passado realizou uma audiência pública sobre a obra, o que só conseguiu não na Comissão de Planejamento Urbano e Meio Ambiente, mas na Comissão de Defesa dos Direitos do Cidadão.

    “O que muito me interessa neste debate é denunciar que a Sucom está à mercê dos interesses privados do setor imobiliário na cidade. E tenta aparecer nesta história do La Vue como se não tivesse nenhuma responsabilidade. Até parece que a central de liberação de obras na cidade agora se mudou para o Iphan. É a Sucom a responsável pela gestão do solo urbano em Salvador”, declarou.

    Na ocasião da liberação da licença, a Sucom tinha a frente como secretário Silvio Pinheiro. Amigo pessoal do prefeito reeleito, ACM Neto (DEM), Pinheiro chegou a ser cotado para ser o candidato a vice-prefeito na chapa de ACM Neto, mas o escolhido foi o deputado estadual Bruno Reis (PMDB) do mesmo partido de Geddel.

    Sílvio Pinheiro e ACM Neto fazem cooper na Ladeira da Barra. Reprodução/Insatagram
    Sílvio Pinheiro e ACM Neto fazem cooper na Ladeira da Barra. Reprodução/Insatagram

    Impacto na paisagem e vizinhança

    De acordo com Solange Araujo, o projeto original de 30 andares (nem todos eles residenciais) criaria um grande impacto no conjunto de edificações em seu entorno. Lá a vizinhança é de casas e edifícios de no máximo 12 andares. Visto da Baía de Todos os Santos, o La Vue se sobressairia sozinho afetando a paisagem urbana do bairro e da cidade.

    Além de não levar em consideração o impacto da obra para a paisagem local, a prefeitura não exigiu, do proeminente empreendimento, o Estudo de Impacto de Vizinhança (EIV).

    “Foi o IAB (Bahia) quem convidou o professor Heliodoro Sampaio para encaminhar um estudo sobre a implantação deste empreendimento na área. No estudo fica demonstrado, deixando de lado a questão do patrimônio tombado, o impacto na paisagem e a possibilidade de que outros edifícios como esse passassem a ser construídos ali descaracterizando a área. Sem contar o choque com o próprio conceito de requalificação realizada por esta administração na faixa de orla do bairro que limitou a velocidade e o trânsito de veículos”, afirmou Araujo.

    Risco de sombra na praia

    O empreendimento chamou atenção ainda pelo risco de sombreamento que pode causar na praia do Porto da Barra, uma das mais simbólicas da cidade e por diversas vezes eleita por periódicos internacionais como uma das praias de área urbana mais belas do mundo.

    Diversas simulações passaram a circular nas redes alertando para esta consequência. O tema é ainda mais controverso porque a obra foi liberada sob a vigência do antigo Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano (PDDU) e Lei de Ordenamento de Uso e Ocupação do Solo (Louos). Só no segundo semestre deste ano é que o novo PDDU e a Louos, ambos bastante criticados por movimentos sociais e instituições de classe como o IAB e o Conselho de Arquitetura e Urbanismo, foram aprovados e sancionados.

    Entre outros pontos, os novos marcos legais passaram a ser permissivos, abrindo a possibilidade para que empreendimentos imobiliários como o La Vue em diversos pontos da faixa de orla acabem causando sombras nas praias. Até aqui as praias eram preservadas, com raras exceções, deste risco. O tópico guarda relação ainda com o tema da ventilação no interior da cidade.

  • Geddel e o Calerogate: a vista à vista

    Geddel e o Calerogate: a vista à vista

    Por Ernesto Marques, especial para os Jornalistas Livres.

    A marca da influência dos irmãos Vieira Lima sobre Salvador começou a se configurar no final do primeiro mandato de João Henrique Carneiro (2005-2008), quando Geddel abduziu o tíbio e populista prefeito, anexando-o ao seu PMDB. Já no segundo turno de 2008, o hoje homem forte de Temer consorciou-se com ACM Neto para reeleger João e assim partilharem o poder. A logomarca do primeiro governo, influenciado pelo PT, trazia figuras humanas estilizadas com as mãos levantadas, como se votassem numa assembleia, e o slogan “Prefeitura de participação popular”. A identidade visual do segundo governo JH traz o nome da cidade sobreposto a uma sequência de barras verticais coloridas, como se fossem arranha-céus e, abaixo, a tradução do fetiche pretensamente futurista: “Prefeitura de um novo tempo”.

    Identidade visual da prefeitura de Salvador na segunda gestão de João Henrique
    Identidade visual da prefeitura de Salvador na segunda gestão de João Henrique antecipa o projeto de lotar a cidade de arranhacéus.

    Ironicamente, a promessa do “novo tempo” ficou limitada ao fetiche dos espigões que fizeram a alegria do baronato da especulação imobiliária e tanto fascinavam João Henrique. À mudança estética correspondeu uma transformação ética, incorporando as cores do PMDB e o estilo dos Vieira Lima. O que aconteceu em seu segundo mandato, pelo menos em sentido figurado, pode ser definido como esbulho, considerando a apropriação violenta da cidade por uns poucos. Com outro estilo e a velha autoproclamada eficiência do “carlismo”, o prefeito ACM Neto deu continuidade ao processo, mas antes mandou seu antecessor e cabo eleitoral às favas, excluindo-o da partilha do butim.
    Como na Bahia de Octávio Mangabeira todo absurdo tem um precedente, o ACM original, quando prefeito biônico “eleito” pelos generais, operou o milagre da transmutação das terras públicas em propriedade privada. A pretexto de financiar a modernização da primeira capital do Brasil, ACM fez os vereadores aprovarem uma reforma urbana que transferiu terras do Município para empreiteiras. Naquela altura, o pai de Geddel, Afrísio Vieira Lima, era procurador da Prefeitura e, anos mais tarde, viria a se tornar um dos mais dedicados vassalos de ACM quando este foi “eleito” governador duas vezes pelos generais.

    A sucessão de gerações no patronato político baiano mudou personagens e atualizou procedimentos, mas o método sobreviveu ao tempo. A crise instalada com a demissão ruidosa do ex-ministro da Cultura, Marcelo Calero, gerou um escândalo de grandes proporções pela suposta prática de advocacia administrativa, crime que teria sido praticado pelo ministro Geddel a ser investigado pela Comissão de Ética da Presidência da República. Mas o Brasil precisa saber que o espigão de 30 andares e 106 metros de altura, motivo das pressões sobre Calero, é apenas a ponta do iceberg do alvo da cobiça gentrificadora da especulação imobiliária sobre o trecho mais deslumbrante da orla de Salvador.

    A obra embargada do La Vue, no início da Ladeira da Barra, está a poucos metros do marco de fundação da cidade por Thomé de Souza, assentado na praia do Porto. A ladeira leva à Cidade Alta, pouco mais de 70 metros acima do nível do mar, começando pelo Corredor da Vitória, uma das áreas mais nobres da capital baiana. Mas contemplar a vista (la vue) da Baía de Todos os Santos, naquele trecho, é privilégio para poucos, porque o Corredor da Vitória, antes ocupado apenas por mansões, há décadas foi sendo tomado por prédios altos e quase colados uns aos outros. O deus mercado passou por cima de leis e órgãos de fiscalização, suprimiu vegetação nativa, ergueu piers particulares e teleféricos para os seus escolhidos descerem de bondinho de seus apartamentos-mansões até suas lanchas. Com o Corredor da Vitória já saturado, a especulação cresceu os olhos para os quilômetros seguintes da falha geológica que faz de Salvador uma cidade singular, única do lado de cá do Atlântico onde o sol se põe no mar, nas águas calmas e mornas da Baía de Todos os Santos.


    “As pessoas também gostam da discricionariedade do Iphan para servir a um ou outro interesse”, disse a então presidenta do Iphan, Jurema Machado, em um evento na Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal da Bahia. O contexto da declaração: Jurema tinha ao seu lado o então superintendente do Iphan na Bahia, Carlos Amorim, a presidenta do Instituto dos Arquitetos, Solange Araújo, o presidente da OAB-BA e antecessor de Amorim no comando regional do Iphan, Luiz Viana Queiroz, o secretário de Urbanismo de Salvador, Silvio Pinheiro, entre outros. Diante dela, algumas centenas de arquitetos, estudantes, ativistas de movimentos sociais e moradores do Centro Antigo.

    Além do tema geral, aquele encontro tinha em comum com a polêmica de agora, pelo menos três personagens: o secretário Silvio Pinheiro, Carlos Amorim e o então coordenador técnico do Iphan-Ba e atual superintendente, Bruno Tavares. A interação entre os três e mais outras figuras importantes daria um bom livro-reportagem, por não caberem num artigo. Pela primeira vez debatiam abertamente as licenças assinadas por Tavares e convalidadas por Amorim para demolição de 31 imóveis no Centro Antigo – dois dos quais, tombados. Ao colocarem os casarões abaixo da forma como o fizeram, levaram o Conselho Regional de Arquitetura e Urbanismo a promover aquele evento.
    Pairando acima de governos e querelas partidárias, o patrão de Carlos Amorim é o mercado imobiliário, associado a setores da área pública capturados pelo que o economista Carlos Lessa, ex-presidente do BNDES, chama de “sagrada aliança”. Cabe a CEOs desses consórcios de grandes interesses, como Geddel, colocar operadores leais em postos-chave, como a superintendência do Iphan. Lealdade a ser provada através de atos oficiais, ironicamente baixados em nome do interesse público. Nas explicações sobre o “Calerogate”, por exemplo, Geddel expõe sua preocupação com os empregos não gerados pela paralisação da obra do La Vue. Para justificar as demolições, Amorim e Tavares argumentam em defesa da vida dos pretos e pobres que neles moravam e/ou trabalhavam e por isso estariam sob risco iminente.

    Para arrancar a fórceps as licenças do La Vue, do Cloc Marina Residence (entre o bairro 2 de Julho e a Avenida Contorno), assim como para demolir imóveis entre o Cloc e o Elevador Lacerda, os leais à sagrada aliança operaram em alta. Ao assumir a superintendência regional do Iphan, Amorim extinguiu o conselho consultivo criado por Luiz Viana, do qual participavam arquitetos, urbanistas e representantes de entidades da sociedade. Mais recentemente, extinguiu o Escritório Técnico de Licenciamento e Fiscalização (Etelf) com base num parecer assinado pelo engenheiro Bruno Tavares. Sem meias palavras, o documento desqualifica arquitetos e técnicos do Etelf.
    Com a deposição da presidenta Dilma e a ascenção de Temer e Geddel, Bruno Tavares vira superintendente do Iphan e Carlos Amorim é presenteado com a invenção de uma tal Secretaria do Patrimônio, junto com a recriação do Ministério da Cultura. A grita geral de profissionais e entidades da área, denunciando a nova estrutura como manobra para esvaziar uma instituição de 80 anos, repercutiu internacionalmente e o governo recuou.
    São da lavra de Tavares as licenças para os dois mega-empreendimentos, assim como as demolições nas históricas ladeiras da Preguiça, da Conceição e da Montanha. A coincidência entre todos esses imóveis é “la vue” para a Baía de Todos os Santos. Todos os alvarás passam pela mesa de Silvio Pinheiro, secretário municipal de Urbanismo e um dos rapazes de ouro do prefeito ACM Neto.

    Geddel, ACM Neto e Aécio Neves em campanha em 2014. Foto: Igo Estrela/ Coligação Muda Brasil
    Geddel, ACM Neto e Aécio Neves em campanha em 2014. Foto: Igo Estrela/ Coligação Muda Brasil

    É alvissareiro ver um CEO da sagrada aliança na berlinda, ainda mais quando a denúncia parte de um golpista, como ele. Mas é preciso que peixes menores comecem a pagar pelos pecados que cometem contra o interesse público, quando estão investidos em funções de comando em governos. Têm menos poder, mas, sem a participação deles, reduz-se a margem do poder discricionário do Iphan, ora destruidor, ora salvador. Não existe corrupto na área pública sem o seu correspondente corruptor. E esse “mercado” paga à vista.

    Ernesto Marques é jornalistas e vice-presidente da Associação Bahiana de Imprensa.