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  • O pato tem razão

    O pato tem razão

     

    Depois de um longo período, após a segunda guerra, de aumento da participação dos trabalhadores na renda e na riqueza, a regressão já se arrasta por 40 anos. A financeirização da economia, com seus reflexos no aumento da desigualdade e no enfraquecimento das democracias, atinge, igualmente, países mais ricos e mais pobres. É nesse contexto que se dá o golpe no Brasil, aponta Dilma, no início de sua aula, ontem (13), na Fundação Perseu Abramo.

     

     

    Mas, o que é financeirização da economia?

     

     

    As transações financeiras, que eram meio de direcionar recursos para a produção, passaram a ser um fim em si mesmas. As empresas, hoje, ou são donas de bancos ou tem áreas financeiras que atuam como bancos. Os interesses das empresas, antes antagônicos, passaram a ser convergentes com os interesses dos bancos. “Dos 100% dos recursos de crédito voltados para a economia [nos EUA], 15% são usados em atividades produtivas, 85% em atividades financeiras”, revela. Dinheiro que cria dinheiro, em outras palavras.

     

     

    A financeirização deslocou o foco das empresas, financeiras ou não, para o maior lucro financeiro possível, no menor prazo possível. E é com esse fim que capturam legisladores, agências reguladoras, governos e jornalistas econômicos, em sua empreitada de banir regras que as controlem e baixar custos, especialmente aqueles relativos ao trabalho.

     

     

    “O mais grave efeito da financeirização, sem dúvida, é provocar um aumento extraordinário da desigualdade. Nos EUA, por exemplo, não é segredo que ocorre um espantoso crescimento da desigualdade que, desde a década de 1980, vinha aumentando. A grande recessão tornou as coisas bem piores do que já estavam, porque a recuperação econômica recente tem sido desigual e socialmente mal distribuída.” (Nota 1)

     

     

    O golpe e suas razões econômicas

     

     

    A eleição de Lula brecou o avanço da financeirização no Brasil. O processo de implantação de uma agenda neoliberal integral, característico dos governos Fernando Collor e Fernando Henrique Cardoso, foi fortemente desacelerado.

     

    “O golpe foi dado porque nós tínhamos, ao contrário de quase todos os outros países da América Latina, no Brasil, impedido que os processos neoliberais ocorressem de forma acelerada. Nós impedimos, por exemplo, que privatizassem a Caixa, o Banco do Brasil, a Petrobras, a Eletrobras, o que for, quando Lula foi eleito em 2003 […] Além disso nenhuma das reformas fundamentais do neoliberalismo foi implantada aqui: não desregulamentaram o mercado de trabalho, nós não tínhamos uma direção clara no sentido de mudar o sistema previdenciário. Enfim, houve um processo incompleto com Collor e Fernando Henrique.”

     

     

    Dilma lembra, ainda, que o país estava quebrado e sob o jugo do FMI quando Lula assumiu o poder em 2003. A ordem vinda da instituição era cortar despesas e investimentos, sociais ou não, para conseguir pagar os juros da dívida que o país contraiu com a instituição no final do governo FHC.

     

     

    “Nós assumimos com o Fundo Monetário aqui dentro. E aguentamos o Fundo Monetário em 2003, 2004 e metade de 2005. Neste momento nós tivemos recursos suficientes para saldar a dívida do Brasil com o Fundo Monetário. Eles não queriam receber, eu me lembro perfeitamente bem. Eles não queriam receber, obviamente, porque ter um país, do tamanho do Brasil, atrelado a eles era, sem dúvida nenhuma, uma afirmação de poder do Fundo Monetário.”

     

     

    Vamos deixá-los sangrar”

     

     

    O partir daí, o governo Lula assume inteiramente o país e, logo, se defronta com a primeira tentativa de “resolver o problema eleitoral através de um golpe político”. Lula é pressionado a renunciar à disputa eleitoral, que ocorreria em 2006, caso em que “eles barrariam as investigações do Mensalão. Obviamente, o presidente Lula não só não aceitou como foi para a rua fazer sua campanha. Cogitaram no impeachment. Apostaram que não fariam”. A ordem era deixar o governo sangrar.

     

     

    Na opinião de Dilma, o país cresceu impulsionado pelo crescimento do consumo e não pelo aumento dos preços das commodities, como afirmam muitos economistas. As exportações representam apenas 11% do PIB, enquanto que o consumo perfaz 60%. A redução da desigualdade, indo na contramão da tendência internacional, contribuiu para que o consumo fosse, naquele primeiro momento, o motor para o crescimento. No segundo momento, o motor foi o crescimento do investimento público.

     

     

    “Nós abandonamos a característica maior dos programas do PSDB que é fazer programas sociais com dimensão bastante reduzida, o que os transformam em programas piloto. Exemplo, se você tem 56 milhões de pessoas que precisam receber Bolsa Família, não adianta você dar para 10 mil. Você não resolve o problema.”

    Dilma complementa que seu governo e de Lula iniciaram a distribuição de riqueza com “grande distribuição de terra” e com o programa Minha Casa Minha Vida.

     

     

    O pato tem razão. Do ponto de vista dele pato

     

     

    Ela ressalta que este programa, Minha Casa Minha Vida, evidencia uma característica importante do orçamento público: “Não há como, no Brasil, fazer um programa de habitação popular que não seja com base em subsídio. Porque a equação da renda não fecha”. As prestações integrais de um imóvel custa entre 50 e 60 mil reais não cabem no orçamento de quem ganha um ou dois salários-mínimos. Ou o governo banca uma parte, ou não faz um programa de habitação popular, assegura ela.

     

     

    “O que acontecia naquele momento? Uma parte expressiva do orçamento foi sim destinada aos pobres. Foi sim. Isso é inequívoco. O pato tem razão. Do ponto de vista dele pato. Não do ponto de vista do resto da população […] Não existe como o Estado brasileiro fazer face às imensas desigualdades sociais existentes no país, não só em termos de agora, o que está acontecendo, mas em termos de todo o passado acumulado, sem, sem impostos”

     

     

     

    Notas

     

     

    1 Para ler o artigo de Dilma Rousseff sobre a financeirização da economia, o neoliberalismo e o golpe, no livro Brasil: uma política externa altiva e ativa, organizado por Valter Pomar: https://fpabramo.org.br/publicacoes/wp-content/uploads/sites/5/2017/05/Brasil-web-042017.pdf

     

     

    2 Para assistir a aula de Dilma Rousseff veja em https://www.facebook.com/ENFPToficial/videos/1606574186055514/

     

  • “Moradia se tornou sinônimo de mercadoria”, diz a ex-relatora da ONU Raquel Rolnik

    “Moradia se tornou sinônimo de mercadoria”, diz a ex-relatora da ONU Raquel Rolnik

    Em entrevista, a arquiteta fala sobre financeirização das políticas habitacionais em diversas partes do mundo

    “A mudança de paradigma é que a moradia se transformou em um setor econômico, mais do que numa política social. Passa-se a enxergar o setor da produção residencial como uma das novas fronteiras de expansão do capital financeiro”, explica a arquiteta e ex-relatora da ONU para o Direito à Moradia Adequada, Raquel Rolnik.

    Raquel Rolnik é professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAO-USP). Foi relatora especial do Conselho de Direitos Humanos da ONU para o Direito à Moradia Adequada, por dois mandatos (2008–2011, 2011–2014). Também atuou como diretora de Planejamento da Cidade de São Paulo, coordenadora de Urbanismo do Instituto Pólis e secretária nacional de Programas Urbanos do Ministério das Cidades.

    Em entrevista aos Jornalistas Livres e ao Brasil de Fato, durante sua participação no Circo da Democracia, Rolnik fala sobre a financeirização a partir das transformações nas políticas habitacionais em diversas partes do mundo, tema de seu novo livro “Guerra dos Lugares”, recém-lançado em Curitiba. “A mudança de paradigma é que a moradia se transformou em um setor econômico, mais do que numa política social. Passa-se a enxergar o setor da produção residencial como uma das novas fronteiras de expansão do capital financeiro”, explica a arquiteta.

    No Brasil, segundo a ex-relatora da ONU, essa mudança de paradigma acontece com forte liderança e subsídio do Estado, inclusive avançando sobre os fundos públicos dos trabalhadores para o financiamento de grandes obras, como é o caso do Porto Maravilha, no Rio de Janeiro, que teve maciça injeção de recursos do FGTS.

    O elemento fundamental desse processo, de acordo com ela, é a oferta de acesso de compra via crédito para a casa própria aos mais pobres. “Há um paradoxo na ‘era Lula’. Ao mesmo tempo em que se ensaia talvez pela primeira vez a implantação de um Estado de bem-estar social com a expansão das políticas públicas e de uma rede de proteção social, ela se dá através de um modelo que traz consigo toda a lógica da financeirização”, lamenta Rolnik, sinalizando também as ameaças e perigos da atual conjuntura para a o direito à moradia e à cidade.

    Confira a entrevista.

    Jornalistas Livres/Brasil de Fato  — Seu livro mais recente, “Guerra dos Lugares” fala sobre o impacto da financeirização nas políticas públicas de vários países pelos quais você passou durante dois mandatos consecutivos como relatora especial da ONU. Em primeiro lugar, o que devemos entender por financeirização, neste contexto?

    Raquel Rolnik  — Meu mandato na ONU começou em 2008 e, imediatamente, estourou a crise financeira e hipotecária nos Estados Unidos, que gerou um efeito dominó em vários países. E os primeiros relatos que chegaram até mim, com denuncias de violações de direitos, eram sobre os atingidos por esta crise. Eu precisei começar a entender o que estava se passando no mundo, para além de verificar a situação das famílias e a vulnerabilidade em que se encontravam. Precisei compreender a conexão entre o que essas famílias estavam vivendo e a crise financeira.

    O que aconteceu nos EUA também aconteceu na Espanha, na Irlanda e no Casaquistão, por exemplo. Quando cheguei no Casaquistão, me deparei com uma greve de fome de pessoas sem casa, que não tinham nada. Começamos a entender que isso não aconteceu só nos Estados Unidos, mas fazia parte de um processo global. A entrada da minha pesquisa sobre a financeirização foi por aí, via o processo de transformação das políticas habitacionais no planeta, que possui diferentes versões.

    A mudança de paradigma é que a moradia se transformou em um setor econômico. Passa-se a enxergar a produção residencial como uma das novas fronteiras de expansão do capital financeiro, com um papel de destaque para o crédito hipotecário. Mas eu diria que entre o crédito hipotecário dos EUA e dos países europeus e o microcrédto da favela, que é outro extremo, nos deparamos com uma enorme variação de formas e modelos.

    O elemento fundamental, porém, o acesso à habitação via crédito para a casa própria — isso já acontece pelo menos desde os anos 30 nos EUA -, mas que esse mercado se expanda na direção dos mais pobres. A moradia se transforma em sinônimo de mercadoria e de ativo financeiro, deixando de ser algo historicamente definido como política social, numa perspectiva de universalização, assim com ocorre com a educação e com a saúde.

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    JL/BDF — Mas então, em que essa fase do capitalismo se difere das anteriores?

    RR  — Essa é a fase da hegemonia da lógica financeira na definição do destino das cidades: do que, de onde e de como será produzido, única e exclusivamente pautando-se na lógica do fluxo de rentabilidade futura. Ela é muito diferente do fordismo e da era industrial, em que as perguntas eram ‘como expandir mercado?’, ‘como produzir mais’? e ‘como vender mais?’. A pergunta fundamental agora é onde posso investir capital excedente global, que é fruto da mais valia global e que fica pairando sobre o planeta, procurando permanentemente oportunidades que permitam que ele seja remunerado através dos juros. Por isso se fala em ‘Wall of Money’.

    Para dar um exemplo, o fundo de investimento da Apple — o que a Apple precisava investir para gerar juros — é maior do que a reserva do Banco Central da Alemanha. Isso acaba sendo o determinante das políticas em geral das grandes empresas. Aquilo que a Apple vai usar do seu fundo de investimento para reinvestir em tecnologia ou produção é um percentual ínfimo, e o resto fica pairando por aí como uma nuvem procurando ativos.

    A questão — e aí é que está o link entre finaceirização e transformação urbanística, na qual a moradia é um elemento importante — é que o espaço urbano é um campo particularmente interessante e adequado para o circuito financeiro. Ao contrário do jogo especulativo de ações que podem virar pó do dia para a noite, o espaço construído pode perder ou ganhar valor, mas não some. Em segundo lugar, ele é tipicamente algo que pode acolher investimento de longo prazo, mesmo em um espaço mal construído. Finalmente, a terra e o espaço podem funcionar como garantia de empréstimos. Então, são ativos para alavancar mais dinheiro.

    JL/BDF  — Muitos avaliam que estamos experimentando, no Brasil, um momento de neodesenvolvimentismo e não propriamente de financeirização no modelo dos Estados Unidos e de países europeus. Como você enxerga isso?

    RR  — De fato é muito diferente. E de fato há uma controvérsia sobre o quanto se pode falar em financeirização da moradia no Brasil. Primeiro, porque o controle da produção de espaço pelas finanças é um processo que está em curso, mas começa no país já no final dos anos 1990. Ou seja, com um timing diferente dos Estados Unidos e dos países centrais europeus. E outra característica especifica é que hoje ele se dá, aqui, muito mais na construção do espaço comercial do que no espaço residencial. A produção residencial no Brasil é muito pouco financeirizada.

    Um dos elemento fundamentais que gerou a crise financeira e hipotecária nos Estados unidos, na Espanha e em alguns outros países é a chamada securitização. Isso significa que a pessoa pega um empréstimo para comprar uma casa ou apartamento e essa casa ou apartamento ficam como garantia. O banco que gera o empréstimo não fica com essa hipoteca, mas vende a expectativa das prestações futuras que essa pessoa irá pagar para um outro investidor. E este outro investidor irá empacotar esses créditos com a expectativa futura de valorização de outras commodities — e irá vender para terceiros, de modo que a relação que se estabelecia entre a pessoa e o lugar começa a circular como um ‘paper’ em um circuito completamente abstrato. Assim, vinculou-se muito mais a relação das famílias com o seu lugar de moradia ao circuito financeiro global. No Brasil, quase não se tem esta securitização do crédito.

    Destruição das políticas sociais

    A partir de 2005 e 2006, vivemos uma expansão do crédito para consumo que se transformou numa grande expansão do crédito para a moradia, através do programa ‘Minha Casa, Minha Vida’, que subsidia segmentos com menor renda. Isso significa também uma ampliação das fronteiras do capital financeirizado na direção dos mais pobres.

    Embora a hipoteca fique circulando, as pessoas é que estão endividadas. Isso é uma característica do processo de financeirização, que no Brasil ainda não se completou, mas está em curso. Enquanto os imóveis estavam valorizando, como no caso dos EUA e de outros países da Europa, as pessoas até hipotecavam duplamente ou triplamente a casa para pagar a universidade do filho ou para comprar um carro.

    O mercado financeiro é um jogo, tem seus riscos, ele sobe e desce. Na hora que desceu e o castelo de cartas começou a desabar, foram as pessoas endividadas que foram atingidas, porque não podiam pagar prestações, perderam sua moradia. Aquele sistema de proteção social que existia antes para atender às necessidades dos mais pobres havia sido completamente desmontado. Muitos foram para as ruas.

    É muito importante entender que estamos falando da construção de uma política [de mercado], mas, sobretudo, da destruição de outras [sociais]. E estamos vivendo isso de modo muito forte no Brasil hoje. Não é só a política que foi destruída, mas todo o imaginário social vinculado à ideia desta política. Aqui no Brasil nunca houve Estado de bem-estar social, mas a gente viveu uma expectativa consagrada na Constituinte de 1988 da construção desse Estado de bem-estar social. Portanto, a destruição desse imaginário é muito radical. E isso também é desmontado em nome de uma sociedade 100% estruturada através da lógica do mercado, da rentabilidade e do investimento.

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    JL/BDF  — Na atual conjuntura política, com o afastamento da presidenta Dilma Rousseff, já existem medidas que aprofundam esse processo de financeirização ou que ameaçam o direito à moradia?

    RR  — Primeiro, é importante dizer que houve um paradoxo durante a era Lula. Não gosto de chamar o momento que vivemos no Brasil de ‘neodesenvolvimentismo’, porque ao mesmo tempo em que se ensaia talvez pela primeira vez a implantação de um Estado de bem-estar social através do aumento de uma intervenção forte do Estado na disponibilização de políticas sociais ou de uma rede de proteção social, ele se dá através de um modelo que traz consigo toda a lógica da financeirização.

    Isso não aconteceu apenas na política de moradia, mas na política de educação também. Houve uma inclusão educacional, com expansão das vagas das universidades públicas, o que foi extremamente importante. Mas o grande movimento de inclusão foi através do Prouni, que é o subsídio para a aquisição de um produto educacional fornecido não por instituições educacionais mas por um fundo de investimento global, porque o setor educacional privado é um dos mais financeirizados do Brasil. Assim como a saúde, com os hospitais.

    Esse processo de transformação do paradigma das políticas públicas — ao contrário do que alegam os propagandeadores do neoliberalismo, ao defenderem um Estado fraco e a entrada irrestrita do mercado — tem a participação ativa, a liderança, a condução e o financiamento por parte do Estado. No Brasil, mais ainda do que nos Estados Unidos e na Europa. Acredito que o exemplo mais eloquente seja o do Porto Maravilha, no Rio de Janeiro. É o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço, o FGTS, dos trabalhadores, que financiou uma operação urbana de ampliação da fronteira do complexo imobiliário-financeiro no Rio de Janeiro. Essa é a contradição. Minha leitura é que chegou uma hora em que não se precisava mais do pedaço “redistribuição”, porque o marco regulatório da financeirização já está todo armado.

    Olhando na perspectiva internacional, é possível entender o caminho que o Brasil foi construindo nessa direção, embora ele, contraditoriamente, apostasse na outra. Mas isso era insustentável e uma hora iria explodir. E explodiu da pior maneira, através de um golpe de Estado. Jamais as elites brasileiras e os pontas de lança do neoliberalismo iriam ganhar as eleições. Apesar disso, não podemos deixar de apontar todos os passos que foram dados durante a era Lula na direção de abrir espaço para a penetração do capital financeiro global.

    JL/BDF  — Em seu livro, você descreve situações delicadas pelas quais passou como relatora da ONU, como quando autoridades britânicas questionaram sua atuação por ser ‘uma mulher e de um país do sul’. O que significou essa experiência na sua trajetória?

    RR  — Vou fazer um depoimento muito pessoal. Eu nunca havia tido, até a relatoria, qualquer tipo de militância feminista. E aqui há uma questão de classe, porque tive que enfrentar talvez poucas barreiras na vida em relação à maior parte das mulheres.

    Além disso, pela minha origem de imigrante polonesa- criada em ambiente multicultural, multilinguístico e cosmopolita-, me via como uma cidadã do mundo. Era difícil me enxergar como brasileira, antes de mais nada.

    Para mim foi um enorme choque quando cheguei na Inglaterra. Em todos os países adotei esta postura: examinei, visitei os governos, conversei com comunidades, realizei audiência públicas e, no final, de forma muito independente, me manifestei sobre as situações de violação de direito à moradia que estavam ocorrendo.

    Mas o Reino Unido foi o único lugar em que o governo não gostou do que falei e que a reação do partido foi de questionamento. Como era possível- e foi nesses termos- uma mulher brasileira, de um país marcado pela presença de favelas e pela falta de saneamento, ousar emitir qualquer opinião crítica sobre a política habitacional britânica? Afinal de contas, o que se pensa é que o papel dos países do sul, na sua condição de subalternidade no cenário internacional, é almejar implantar as políticas dos países europeus.

    Naquele momento me caiu uma ficha sobre a própria posição de subalternidade em que nos colocamos como pensadores e militantes, como se fosse impossível sairmos dessa posição.

    Foi importante para pensamos, inclusive, nos próprios modelos e nos caminhos que a gente tem que seguir. E senti o estigma de ser mulher. Evidentemente, eu sei que aquela foi a velha estratégia do “shoot de mesanger”: quando não se gosta da notícia que o mensageiro traz, você desconstitui o mensageiro. Entramos em conexão com pessoas que estavam sendo extremamente violadas e cujas vozes estavam sendo reprimidas. A presença da relatoria da ONU confirmando essas violações gerou grande repercussão na política interna.

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    Fotos: Leandro Taques/Jornalistas Livres
    • Thiago Hoshino é doutorando em direito na UFPR e pesquisador do INCT Observatório das Metrópoles.