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Tag: feminismo

  • Juliana, um sonho, uma utopia

    Juliana, um sonho, uma utopia

    Fui assistir às falas do Mujica e do Lula em São Bernardo no último sábado. Foram magníficas. E muito esclarecedoras. A determinada altura, Lula disse para o Mujica: “Você quer legalizar a maconha no Brasil, Pepe?”. A plateia foi abaixo, deu muita risada. E ele continuou: “Aqui o conservadorismo é tão grande que, para se votar a questão de gênero e diversidade nos planos municipais de educação, tem que conversar com todo mundo nas câmaras e, mesmo assim, não aprova.” A pleteia ficou em silencio, mas Lula parecia que estava na sala da casa dele, muito à vontade. “O pior é que temos de convencer os nossos, porque no ano que vem tem eleição e nem os nossos querem votar o plano. Só pensam na eleição. E você pensa que vamos legalizar o plantio…. A educação é a base de tudo. É lá que devemos investir.” A plateia ficou perplexa, num silencio arrebatador. E eu pensei que ele tinha razão mais uma vez.

    Nos últimos meses aconteceu uma briga feia na câmara municipal de São Paulo sobre as questões de gênero e diversidade e combate ao racismo no plano municipal de educação. A vereadora Juliana Cardoso, líder da bancada do PT, defendia um plano mais moderno, inclusivo, de combate ao racismo, ao machismo, de inclusão da discussão de gênero e diversidade sexual na pauta escolar. Tudo isso para diminuir o bullying, o preconceito e o ódio entre pessoas, algo que tem de começar na infância. Para a vereadora Juliana Cardoso, que tem dois filhos pequenos, a família é, sobretudo, amor. Com essas ideias, Juliana não segue apenas as diretrizes do Ministério da Educação e do governo federal. Ela segue o próprio coração.

    Do outro lado, uma ideia antiga, de que família seria constituída apenas pela mãe, o pai e os filhos. De que conversar sobre sexo, sexualidade ou orientação sexual na escola pode influir negativamente na vida das pessoas — isso, quando todos sabemos que é exatamente o contrário. Que conversar sobre a diversidade sexual e sobre o machismo diminui o preconceito e o sofrimento das pessoas.

    O vereador Ricardo Nunes, do PMDB, parece capitanear os que defendem essa ideia antiquada e tão preconceituosa na câmara. Ultra-religioso e maçom, ele tem o apoio, entre muitos outros, de Benjamin Ribeiro da Silva, um empresário da educação e líder no Sindicato da Escolas Particulares do Estado, que comanda a ONG Sobei. A Sobei cresceu muito nos últimos anos abrindo creches, escolas e centros para idosos e jovens em Interlagos. É uma instituição de caridade, mas vive basicamente dos convênios firmados com a prefeitura. Com ele, votaram todos os vereadores da bancada do PT — menos Juliana, a única mulher do partido na câmara.

    É tão interessante, para não dizer óbvio, pensar que é exatamente um homem quem vai liderar, e vencer, a briga contra uma vereadora que luta para que o respeito às mulheres seja ensinado na escola, como parte de um Plano Municipal inclusivo e tolerante. Enquanto escrevia, lembrei de uma música de minha juventude, “Domingo no parque”, de Gilberto Gil primeiro por causa da coincidência de nomes, a Juliana vereadora e a Juliana da música. Depois, fui lembrando da letra, da história e do ritmo crescente da canção.

    José trabalhava na feira e era o rei da brincadeira. João, capoeirista, trabalhava na construção e era o rei da confusão. Juliana foi ao parque de diversões com João. José viu os dois na roda gigante, tomando sorvete e se divertindo. Ficou com ciúmes e matou os dois, Juliana e João, com uma faca. É uma história terrível, a da música.

    A Juliana, cantada por Gilberto Gil, foi vítima de uma briga de ciúmes. João também morreu por causa do machismo. E José teve a vida destruída: na segunda-feira, não tem mais feira, não tem mais construção. José aprendeu com o machismo que um homem enciumado podia matar o amigo e a mulher que amava.

    Nesses últimos meses, a Juliana Cardoso brigou para que a escola pudesse ensinar os meninos, desde pequenos, a respeitarem as meninas, suas namoradas, amigas ou mulheres. A construir uma igualdade respeitosa entre os gêneros. A viver a experiência do respeito à individualidade e à sexualidade.

    O machismo, o silêncio, o preconceito e o ódio matam. Evitar esses assuntos é perpetuar uma lógica perversa que destrói famílias. Era disso que falava Lula para Pepe. E mais uma vez ele tinha razão.

     

  • Quantas vezes uma mulher merece ser chamada de ‘noiada’?

     

    Conheço-o há um ano, mas saímos raríssimas vezes. Ele é bacana, bonito, de esquerda. O que eu quero contar aqui é como o feminismo me ajuda a enxergar relações abusivas quando estou cega de amores.

    Anteontem, ele me convenceu a não usar camisinha, isso depois de enfatizar várias vezes que eu era noiada. No dia seguinte, o arrependimento. Fui a uma farmácia comprar uma bomba atômica hormonal humana, vulga pílula do dia seguinte. Pedi um copo d’água e engoli aquilo junto a meu sentimento de culpa. Passado o susto, comecei a pensar no impacto da frase “você é muito noiada” sobre a minha vida e toda a minha relação com a sociedade na condição de mulher.

    “Quando ele me disse isso, automaticamente, fui parar no vale das mulheres loucas, neuróticas, desesperadas, do qual tentei sair de prontidão, cedendo àquele pedido implícito.”

    Há dois dias nesse vale, me sentindo um lixo, comecei a me identificar com ele e com todas as mulheres que o habitam (que são todas, mas todas as mulheres do mundo, mesmo).

    Sim, somos todas noiadas. Noiadas porque passamos meses tentando acreditar que não contraímos nenhuma doença. Noiadas porque sempre tomamos as nossas pílulas do dia seguinte sozinhas. Noiadas porque ainda assim, corremos o risco de engravidar. Noiadas porque se resolvermos levar a gestação e ter um filho, toda a responsabilidade reprodutiva vai cair sobre nós. Noiadas porque se não quisermos, é o nosso corpo que vai passar pela turbulência de um aborto.

    Se existisse uma espécie de Google translator para traduzir simultaneamente todas as merdas que já ouvi de macho, talvez essa noite tivesse sido diferente: Ele — Você é muito noiada. Tradução — O meu pinto é mais importante que a sua saúde, que a sua vida.

     

  • Isso não é um convite

    Isso não é um convite

     

    Centenas de mulheres enfrentaram o frio de Curitiba e tiraram as camisas, casacos e cachecóis para lutar por respeito


    Em Curitiba, no último sábado (4), centenas de mulheres foram às ruas para protestar por seus direitos e ecoar suas vozes que, mesmo muitas vezes silenciadas, continuam pedindo justiça. A concentração teve início às 10h30 na Praça 19 de Dezembro — intitulada também como Praça da Mulher Nua — e percorreu as principais ruas do centro da cidade.

    Foto: Amanda Souza

    Em frente à Catedral Basílica de Curitiba, cantavam: “se o Papa fosse mulher o aborto seria legal, seria legal e seguro, se o Papa fosse mulher”, questionando a “laicidade dos ventres” e reivindicando o direito de decisão sobre seus próprios corpos.


    No Brasil, o aborto é o quinto maior causador de mortes maternas. A estimativa é que entre 7,5 milhões e 9,3 milhões de brasileiras tenham interrompido a gravidez entre 2004 e 2013.

    Foto: Gabriel Dietrich

    O ato ainda deu voz a luta contra a LGBTfobia e contra o racismo. Segundo dados divulgados pela Associação Internacional de Gays e Lésbicas em 2014, o Brasil é o líder do ranking em mortes decorrentes da LGBTfobia, com 325 assassinatos registrados entre 2008 e 2011.

    O ato teve fim na Boca Maldita, espaço localizado entre a Praça Osório e Rua das Flores, essencialmente uma confraria de homens, os “Cavaleiros da Boca Maldita”, que se reuniam para discutir as manchetes dos jornais — “y otras cositas más” — em uma espécie de tribuna livre dos pensamentos e opiniões. E foi lá que um beijo gay ao lado do pastor que, aos berros, jurava que todos ali seriam convertidos — mesmo que não quisessem -, selou a Marcha das Vadias de 2015. A marcha teve fim, a luta não.

    “Eu não posso salvar todas..”

    A cada hora o Sistema Único de Saúde (SUS) recebe em suas unidades de atendimento uma média de duas mulheres com sinais de violência sexual, de acordo com dados divulgados pelo Ministério da Saúde em 2013. Uma outra pesquisa, realizada em 56 países e publicada pela revista The Lancet, mostrou que 1 em cada 14 mulheres já sofreu, ao menos uma vez na vida, abuso sexual por alguém que não era seu parceiro. Mas, quando se analisa a porcentagem de mulheres no mundo que já sofreu violência, não apenas a sexual, o número chega a 70%, segundo dados divulgados pela Organização das Nações Unidas (ONU).

    Fotos: Rafael de Andrade

    Contudo, a própria The Lancet reconhece que o número de registros de abuso e o próprio atendimento às vítimas são prejudicados pelo medo que assombra as mulheres. O medo de não receber apoio, de que não acreditem nelas, o medo de sofrer represálias. “A violência contra as mulheres não está confinada a uma cultura, uma região ou um país específicos, nem a grupos de mulheres em particular dentro de uma sociedade. As raízes da violência contra as mulheres decorrem da discriminação persistente contra as mulheres”, afirma a ONU.

    Um estudo divulgado em 2013 pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) afirma que, entre 2009 e 2011, quase 17 mil mulheres foram assassinadas no Brasil por conflito de gênero, chamado de feminicídio — casos nos quais a vítima morre apenas por ser mulher. Uma segunda pesquisa, realizada também pelo Ipea, mas divulgada em 2014, mostra que 26% dos brasileiros, mesmo concordando com as punições aplicadas aos agressores, acredita que as mulheres são culpadas pelas agressões sofridas por causa de suas roupas e de seu comportamento.

    Foto: Amanda Souza

    O Paraná, por sua vez, foi considerado o terceiro estado com o maior número de casos de violência contra a mulher. Os dados fazem parte do Mapa da Violência produzido pelo Instituto Sangari, divulgado em 2012, e mostram ainda que o estado possui cinco municípios com mais de 26 mil habitantes entre os 50 com mais casos de assassinatos de mulheres, sendo que Piraquara, região metropolitana da capital paranaense, ocupa o segundo lugar.

  • Quem cala não consente

    Quem cala não consente

     

    A Marcha das Vadias sai às ruas paulistanas pela quinta vez defendendo a liberdade e a autonomia sobre o corpo contra a violência da cultura do estupro

    A 5a Marcha das Vadias de São Paulo, realizada no sábado, 30 de maio, reuniu cerca de 2.000 pessoas que saíram em passeata pela avenida Paulista até a praça Roosevelt. A concentração começou às 11 horas no vão livre do Masp, onde cartazes, faixas e corpos foram grafados com frases em repúdio ao estupro e à violência de gênero.

    Fotos William Oliveira/MIRA

    Nossa equipe de jornalistas livres contava com quatro homens cisgêner@s e um homem trans: eu. Fomos chamados pelas jovens feministas da organização e devidamente fichad@s: foto, nome e telefone. A explicação, compreensível, era de que, se alguma das mulheres (muitas saíram às ruas com os corpos total ou parcialmente nus) fosse assediada, facilitaria a identificação do agressor.

    Foto William Oliveira/MIRA

    Consegui falar com um@ d@s organizador@s, Sâmie Bonfim, do coletivo Juntas, que me concedeu uma breve entrevista. “A Marcha das Vadias é um grito das mulheres contra o machismo, a violência sexual, e assédios em geral, onde o feminismo moderno tem a sua melhor expressão e seu momento mais genuíno”, ela disse. “É um movimento bastante amplo, diversificado e internacional, com a adesão de ícones da música pop e atores de cinema.”

    Foto Ennio Braun

    Marcia Balades, articuladora estadual da Liga Brasileira de Lésbicas de São Paulo, define a Marcha das Vadias: “É um dos feminismos, há vários. É superválido porque luta pela plena autonomia do próprio corpo. Tem feminista tradicional que torce o nariz pra elas, mas é inveja do sucesso”.

    Não vi nenhuma mulher transexual ou travesti na marcha, e segundo a ativista transfeminista Daniela Andrade, “nunca houve disposição delas para nos chamarem, ao contrário de outros lugares como na de Aracaju que é construída com travestis e mulheres transexuais”.

    Foto William Oliveira/MIRA

    Daniela cita as radfems, que são as feministas radicais que não aceitam transexuais no movimento, como possível impedimento. Para ela, a Marcha das Vadias “é o feminismo mainstream (termo inglês que expressa uma tendência ou moda dominante), e o resto é tratado como subfeminismos, ou feminismos de segunda classe ou inexistentes, como o feminismo negro ou o transfeminismo.” Poucas negras participaram da marcha de São Paulo. Vendo tantos corpos brancos pintados, a impressão que ficou é de que a maioria das participantes da Marcha das Vadias de São Paulo era de classe média branca.

    Foto William Oliveira/MIRA

    Por volta das 14 horas, uma pequena e bela multidão colorida fechou uma pista da Paulista e desceu a rua Augusta rumo à praça Roosevelt. A bateria de frente, formada por militantes feministas, cantou músicas e gritou palavras de ordem contra o machismo, o racismo e a hetero-lesbo-transfobia. No final do trajeto, vítimas de estupro deram depoimentos e participantes leram cartas de vítimas de violência sexual.

    Foto Ennio Braun

    A origem da Marcha das Vadias remonta a janeiro de 2011, quando uma aluna da Faculdade de Toronto, no Canadá, foi violentada por colegas em uma festa. Depois do estupro, um policial declarou que as mulheres evitassem “se vestir como vadias (sluts, no inglês original), para não serem vítimas”.

    A aluna Jaclyn Friedman, que é hoje uma escritora e ativista feminista, bebia e usava roupas não convencionais na festa quando foi atacada. No dia 3 de abril de 2011, 3.000 pessoas foram às ruas no Canadá para protestar contra a violência cometida contra Jaclyn e denunciar os frequentes abusos ocorridos na Universidade de Toronto. Desde essa data, o movimento se internacionalizou e passou a ser realizado em diversas partes do mundo.

    Foto Ennio Braun

    A primeira Marcha das Vadias no Brasil foi realizada em São Paulo, em 4 de junho de 2011, e no mesmo ano foram realizadas outras em Brasília, Minas Gerais e Pernambuco. Hoje, a maioria dos estados brasileiros realiza essa manifestação.

    Segundo a crença disseminada na sociedade, na maioria dos estupros a vítima é vista como vilã, enquanto os agressores são redimidos por terem sido “seduzidos”. A Marcha das Vadias protesta contra essa crença de que as mulheres que são vítimas de abuso sexual são culpadas porque provocam a violência devido ao seu comportamento.

    O termo “vadia” foi ressignificado e reapropriado para um discurso político que defende a liberdade e a autonomia sobre o corpo contra a violência da cultura do estupro, que permeia as relações de poder sustentadoras do patriarcado.

    Neste ano, o tema da marcha foi “Aborto ilegal = Femicídio de Estado”. responsabilizando o Estado por criminalizar uma prática recorrente e disseminada na sociedade, que expõe pessoas a riscos que muitas vezes levam à morte. Obviamente uma pequena parcela rica recorre a boas clínicas ou vai para outros países onde o aborto é legalizado.

    Foto William Oliveira/MIRA

    Em agosto do ano passado, Jandira Magdalena dos Santos Cruz, de 27 anos, morreu numa clínica clandestina na zona oeste do Rio de Janeiro, onde foi realizar um aborto. Sua mãe disse que a filha tinha medo de perder o emprego por estar grávida. Seu corpo foi encontrado carbonizado dentro de um carro dias depois.

    No mesmo mês, a autópsia no corpo da carioca Elizângela Barbosa encontrou um tubo de plástico dentro do seu útero. Esses são dois dos milhares de casos em que a morte foi provocada por procedimentos abortivos clandestinos. Nesse sentido, o Estado é, sim, o responsável, ao negar acesso à saúde, descumprindo o artigo Artigo 196 da nossa Constituição Federal, que diz que “saúde é direito de todos e dever do Estado”.

    Foto William Oliveira/MIRA

    Além de mulheres cisgêneras, homens trans e pessoas não-binárias (que são aquelas que não se identificam com nenhum dos dois gêneros, mas que ao nascer foram designadas como mulheres) também podem ter uma gravidez indesejada. Por fazerem parte de um dos segmentos sociais mais vulneráveis, com certeza serão vítimas preferenciais dessa situação de ilegalidade. Em caso de estupro, uma pessoa trans, que já tem dificuldades em lidar com seu próprio corpo e/ou ser bem tratado nas unidades de saúde, dificilmente irá procurar hospitais numa situação de emergência.

    Foto William Oliveira/MIRA

    No Brasil, o aborto só é liberado em caso de estupro, risco de vida para a mulher ou anencefalia fetal. Em todos os outros casos, é crime punido com pena de até três anos de cadeia. Muitas pessoas, quando realizam abortos em clínicas de fundo de quintal ou com as próprias mãos, correm o risco de ter complicações e sequelas, mas acabam nem recorrendo aos serviços emergenciais de saúde com medo de serem criminalizadas.

    De acordo com as estatísticas do SUS (Sistema Único de Saúde), são realizados 240 mil procedimentos emergenciais por ano em consequência de abortos clandestinos, o que gera um gasto extra de cerca de R$ 45 milhões ao Estado.

    Descriminalizar o aborto é sem dúvida nenhuma uma questão de saúde pública e justiça social.

    Foto William Oliveira/MIRA

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  • Mãe, um conceito em mutação

    Mãe, um conceito em mutação

    Mãe é aquela que gerou? Pai é aquele que inoculou o sêmen? Um casal de transexuais argentinos provou ao mundo que não. Alexis Taborna engravidou da esposa, Karen Bruselario, e deu à luz uma menina, que recebeu o nome de Gêneses Angelina. O casal também formalizou a união no civil, e Karen declarou que realizou “o sonho de toda mulher transexual que teve uma vida difícil: casar de branco e ter uma festa celebrada com amor”.

    A advogada e empresária paulista Márcia Rocha, de 49 anos, fez um outro caminho. Antes de fazer a transição para sua atual expressão de gênero, que ela define como “travesti”, teve uma filha do primeiro casamento e nos conta como foi assumir seu desejo de mudança:

    “Minha filha me chama de pai, mas eu sempre fui mãe dela. Quado ela era pequena, minha mulher estudava à noite, e era eu quem trocava fralda e punha pra dormir. Eu sempre joguei limpo com a minha filha e nunca escondi nada dela. Quando contei que ia me hormonizar, minha filha disse: ‘Ah, pai, o senhor sempre foi assim’. Aí eu disse: ‘Mas eu vou ficar mais, vou me hormonizar e colocar próteses’. Nesse tempo eu me separei da minha esposa e a minha filha teve uma crise. Eu mandei ela estudar fora do país, na Nova Zelândia. Pus as próteses e assumi publicamente. Quando minha filha chegou, ela me pediu pra eu parar de me expor, porque ela não queria que o preconceito respingasse nela nem ser motivo de comentários dos amigos. Mas, com o tempo, os amigos foram aceitando, o namorado aceitou, e ela ficou mais calma. Ela não gosta, mas acabou aceitando, porque ela sabe que é importante pra mim”.

    Foi a partir do século XVII, com as novas teorias biológicas da sexualidade e a exigência jurídica de se definir a identidade de cada um, que os conceitos de homem e mulher que conhecemos hoje se consolidou. Ao longo dos séculos, o modelo tradicional da família ocidental cisgênera e heterossexual se constituiu historicamente, se cristalizando em relações sociais bem definidas e tendo como base a matriz binária reprodutora.

    As representações e os valores sociais do que é ser pai e ser mãe foram fundamentados num pensamento essencialista que acredita que o comportamento de homens e mulheres são definidos geneticamente. Mas, depois de Simone de Beauvoir ter revelado ao mundo que “não se nasce mulher, torna-se” e Foucault ter arrematado dizendo que não existe corpo pré-discursivo, a emergência de novos arranjos biológicos e parentais colocam em xeque as “verdades absolutas”, desconstruindo esse modelo maniqueísta de família fundada na cis-hetero-normatividade.

     
    Da esquerda para direita: Letícia Lanz com sua esposa Angela Autran Dourado, o casal argentino Alexis Taborna e Karen Bruselario e a travesti Márcia Rocha.

    Para fechar com chave de ouro, a psicanalista transexual Letícia Lanz, casada há 39 anos com a mesma mulher, com a qual tem um casal de filhos, me concedeu uma entrevista “no meio do corre-corre de cozinheira oficial da casa, no dia das mães”:

    “Que adolescente rebelde não ouviu da mãe a advertência-maldição de ‘quando você for mãe, a sua opinião vai ser outra’? Mãe é um dos papéis mais conservadores e reacionários que existem na sociedade. Uma vez ingressadas nesse papel, a maioria absoluta das mulheres ‘muda de opinião’. Mãe definitivamente não é um papel progressista, inovador, questionador. E as poucas mães que ainda tentam manter uma posição independente e crítica em relação a esse papel vez por outra estão mergulhadas em conflitos existenciais absolutamente insolúveis. Por isso mesmo, é tão difícil ser mãe de pessoas transgêneras, como também é difícil ser uma mãe transgênera”.

    Letícia sintetiza as dificuldades de ser mãe de pessoas transgêneras: “Nesse caso, o fato mais comum é a mãe ficar dividida entre amar e acolher @ filh@ transgêner@ do jeito que el@ é e ‘forçar a barra’, exercendo todas as pressões e técnicas de sedução que o cargo lhe disponibiliza no sentido de ‘recuperar’ @ filh@ transgêner@ para o convívio ‘normal’ dentro da sociedade”.

    E fala, a seguir, dos impasses de ser mãe transgênera: “Nesse caso, o fato também muito comum é a mãe transgênera esmerar-se para reproduzir, com requintes de perfeição, o modelo tradicional de mãe, aquela que busca produzir membros totalmente enquadrados aos dispositivos da sociedade patriarcal-cisgênera”.

    Letícia conclui trazendo à tona, entre outros, o tema da educação: “A resposta a tantos conflitos e contradições é consciência política e evolução social, coisas que só se conseguem, como todo mundo sabe, através de uma educação crítica, sólida e contínua de toda a população”.


    Leo Moreira Sá é ator, ativista transexual e um dos Jornalistas Livres. Mais textos e fotos em facebook.com/jornalistaslivres

     

     

  • Ocupação José Bonifácio e Rua do Ouvidor

    Ocupação José Bonifácio e Rua do Ouvidor

     

    O olhar das mulheres que participaram das ações de ocupação de imóveis abandonados

    “Antes ou pagava o aluguel, ou comia.”

    Joélia, casada, 4 filhos — Nascida no Ceará, reside em São Paulo há 12 anos, na Ocupação São Francisco.

    Foto: Sato do Brasil

    “Depois que vim morar numa ocupação, diminuiu o custo do aluguel, que antes pagava muito caro. Agora, com a taxa colaborativa, consigo comprar comida e vestir meus filhos. Antes ou pagava o aluguel, ou comia. Sou trabalhadora assalariada e com o pouco que ganho não dava pra sustentar a família. Se estou na luta hoje é pelo futuro dos meus filhos.”


    “Graças ao movimento, hoje, voltei a ter esperança”

     

    Nilda de Souza — 66 anos, enfermeira, mora em São Paulo há 16 anos, atualmente sem residência — 1ª Ocupação J. Bonifácio.

    Foto: Sato do Brasil

    “A situação que me encontro é degradante. Graças ao movimento, hoje, voltei a ter esperança. Depois de trabalhar como enfermeira durante toda a vida, não consegui me aposentar por problemas de saúde. Sem nenhum tipo de renda fixa, não tenho como pagar aluguel, comer, ter os mínimos direitos à saúde e a moradia, fui resgatada das ruas pelo movimento Frente de Luta por Moradia (FLM).”


    “A maioria trabalha e ninguém tem condições de pagar um aluguel e ao mesmo tempo sobreviver”

    Glaucia — 34 anos — no movimento há vários anos — Ocupação Cambridge.
    Trabalhadora e ex-sindicalista dos Operadores de Telemarketing.

    Foto: Sato do Brasil

    “Entre nós, a grande maioria trabalha e ninguém tem condições de pagar um aluguel e ao mesmo tempo sobreviver. Resido no Cambridge há dois anos e depois disso muita coisa mudou na minha vida. E hoje estamos aqui lutando pelas pessoas que ainda não tem moradia. Aqui é uma união, um ajuda o outro, a gente conquista o espaço para outros morarem.”


    “Hoje eu estou aqui lutando para conseguir uma moradia pro meu filho e pro meu neto, que moram na favela”

    Ruana — 67 anos — No movimento há 3 anos — Ocupação Antigo INSS.

    Foto: Sato do Brasil

    “Aluguel é muito caro e eu ganho salário mínimo. Não dá pra viver uma vida estabilizada. Hoje eu estou aqui lutando para conseguir uma moradia pro meu filho e pro meu neto que moram na favela. Meu sonho é conseguir minha moradia própria, com dignidade, e sei que com o movimento isso será possível. Me sinto mal de ver os manifestantes indo pra Paulista em ato contra a Dilma, sendo que ela é a única que ainda olha por nós.”


    “Minha vida mudou muito após a ocupação, principalmente por poder ter moradia com um custo acessível, dignidade, o que reflete em estrutura familiar.”

    Miriam — 32 anos — Uma filha — No movimento há dois anos e seis meses — Ocupação Ipiranga/São João.

    Foto: Sato do Brasil

    “Minha vida mudou muito após a ocupação, principalmente por poder ter moradia com um custo acessível, dignidade, o que reflete em estrutura familiar. Hoje consigo fazer uma faculdade e dar um estudo melhor pra minha filha. Espero que gente vença mais uma luta e que façamos valer nossos direitos, a cada dia, construindo um futuro melhor para nossos filhos.”


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