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  • Que tal ajudar Mariana Ferrer a obter Justiça?

    Que tal ajudar Mariana Ferrer a obter Justiça?

    A reportagem do Intercept Brasil sobre a denúncia de estupro da influencer Mariana Ferrer tornou-se viral nas redes. Sob o título JULGAMENTO DE INFLUENCER MARIANA FERRER TERMINA COM SENTENÇA INÉDITA DE ‘ESTUPRO CULPOSO’ E ADVOGADO HUMILHANDO JOVEM, o texto da repórter Schirlei Alves serviu de base para milhares e milhares de postagens sobre a excrescência jurídica que teria embasado a absolvição do empresário André de Camargo Aranha. Até as 15h30 de ontem (4/11), o Google devolvia 781.000 resultados, quando se procurava pela expressão “estupro culposo”. Memes, charges, textões e textinhos foram produzidos em escala industrial para provar que um estuprador havia conseguido sentença absolutória graças a uma invencionice jurídica obrada pela Justiça, com vistas a proteger um macho branco, amigo de poderosos e, ele mesmo, “filho do advogado Luiz de Camargo Aranha Neto, que já representou a rede Globo em processos judiciais”, segundo a reportagem do Intercept.

    Lida toda a sentença de 51 páginas do juiz do caso, Rudson Marcos, da 3ª Vara Criminal de Florianópolis, entretanto, constata-se que, em nenhum momento da sentença é dito que houve “estupro culposo” contra a jovem. Ao contrário, é dito que não existe essa tipificação e que o estupro é necessariamente doloso. Portanto, está errada a formulação do título do Intercept Brasil.

    Está tão errada que o próprio site The Intercept Brasil foi obrigado, às 21h54, nada menos do que 19 horas e 50 minutos depois de publicada a história, a fazer uma “atualização” que diz assim:

    “A expressão ‘estupro culposo’ foi usada pelo Intercept para resumir o caso e explicá-lo para o público leigo. O artíficio é usual ao jornalismo. Em nenhum momento o Intercept declarou que a expressão foi usada no processo.”

    O Intercept faz como a música de Tom Zé: “Eu tô te explicando pra te confundir. Eu tô te confundindo pra te esclarecer.” Uma explicação que confunde. E, sim, o Intercept disse que a sentença inédita baseou-se no “estupro culposo”.

    É só ler o título indigitado de novo:

    JULGAMENTO DE INFLUENCER MARIANA FERRER TERMINA COM SENTENÇA INÉDITA DE ‘ESTUPRO CULPOSO’ E ADVOGADO HUMILHANDO JOVEM

    Com as redes ajudando a espalhar a bobagem, todo mundo louco atrás de cliques, de “bombar”, da lacração, poucos deram-se ao trabalho de ler a sentença que, sim, absolveu o réu André de Camargo Aranha por “falta de provas”.

    Uma pena.

    Se, em vez da lacração, tivessem mirado no fato em si da absolvição do crime de estupro “por falta de provas”, talvez tivessem ajudado muito mais. Sabe-se que a cada 8 minutos uma mulher ou menina é estuprada no Brasil. Mas a maior parte desses crimes jamais será nem sequer investigada pela falta de indícios e elementos probatórios, já que ocorrem escondidos e, preferencialmente, sem testemunhas.

    Mariana Ferrer, diz a sentença, não conseguiu provar a acusação que fez contra André de Camargo Aranha. Será? Está na sentença que o exame toxicológico não apontou o consumo de substâncias estupefacientes, como seria de se esperar se ela tivesse ingerido involuntariamente alguma droga do tipo “Boa Noite Cinderela”. A maioria das testemunhas ouvidas, várias mulheres inclusive, disse que a vítima não cambaleava e que não parecia dopada. As câmeras internas do Café de la Musique, onde teria ocorrido o estupro, mostram Mariana Ferrer subindo para um camarote e descendo, seis minutos depois, sem necessidade de ajuda (e de salto!!!!, como faz questão de ressaltar a sentença). Teria transcorrido nesses seis minutos o crime de estupro, de que Mariana Ferrer não tem memória.

    Mas Mariana Ferrer diz ter inúmeras provas irrefutáveis do estupro e que nem sequer foram levadas em consideração pelo julgador.

    E, no entanto, todas as mulheres sabem da dificuldade de “provar” a violência sexual, quando ela ocorre entre quatro paredes, sem testemunhas. Mariana Ferrer não seria exceção. Nos trechos da vídeo-conferência que foi o julgamento, assombra a solidão da menina que denuncia, vítima de outros homens violentos, que a acusam de ser (ela sim), um monstro querendo prejudicar a reputação de um “pobre milionário”.

    Como sempre acontece, a vítima deixa de ser vítima para se transformar no monstro sensual e ardiloso que precisa ser contido. A qualquer custo.

    A verdade é que Mariana Ferrer estava sozinha.

    Desde o dia em que alega ter sido estuprada (15/dezembro/2018), Mariana Ferrer tem pedido ajuda pelas redes sociais e tem narrado todo o sofrimento e a depressão que a assolam em decorrência do fato.

    Quem foi ajudá-la a reunir provas? Quem foi ajudá-la a colher testemunhos que aumentassem a credibilidade de sua acusação? Quem foi ao Café de la Musique, onde ocorreram os fatos julgados, procurar indícios de que ali funcionaria um “abatedouro” de meninas destinadas ao gozo masturbatório de machos alfa? Quem?

    Ou achamos razoável condenar alguém sem elementos probatórios que apoiem a denúncia?

    Não, não é razoável.

    Apenas a voz da vítima não pode embasar uma condenação. E quem defende isso precisa saber que abdicar de provas é apenas a reedição do velho punitivismo, é vingança. Não é Justiça. Pior, resultará na condenação sem provas dos mesmos criminalizados de sempre: os pretos, pobres e periféricos.

    A única forma de evitar a perpetuação desse ciclo perverso requer de nós nós, feministas, que encaremos o estupro, cada estupro, como um problema nosso!

    Temos de ajudar as vítimas a robustecer as provas da violência que sofreram. Temos de afrontar a Justiça machista, exigindo a presença de mulheres no julgamento. Tem de ser um trabalho nosso enfrentar a misoginia cuspida e escarrada de gente como Cláudio Gastão da Rosa Filho, o advogado de defesa de André de Camargo Aranha, que humilhou e ofendeu Mariana Ferrer enquanto exibia fotos dela que nada tinham a ver com o processo! Que nenhuma mulher mais tenha de enfrentar um julgamento de estupro apenas diante de homens, na solidão absoluta, como acontecia com as antigas feiticeiras.

    Temos de incentivar a solidariedade entre nós, mulheres, para que acolhamos as vítimas, em vez de fingir que se trata de um problema só delas. Não há mulher ou menina que não tenha sido atacada ao menos uma vez em sua vida pela violência sexual. E nós sabemos disso em nossos próprios corpos!

    É o pai, é o tio, é o avô, é o tarado que mostra o pinto para a adolescente, é o abusador que se acha no direito de ejacular na mulher dentro do trem lotado…

    Temos de organizar o “Socorro Feminista”, para apoiar as mulheres que decidem denunciar a violência sexual.

    Os tribunais brasileiros são câmaras de tortura contra mulheres, negros, indígenas e pobres em geral. As cenas de humilhação de Mariana Ferrer não são, infelizmente, exceções. São a regra.

    É preciso atuar sobre esse front.

    Então, precisamos entender que não se trata de um problema privado de Mariana Ferrer o desenlace de sua denúncia. É de todas nós!

    Lembro da França, em 1971, quando uma mulher foi presa e julgada pelo crime de aborto, na época punível com a pena de morte pela guilhotina!

    Em vez de “solidariedades”, textões de repúdio, e essas lacrações inúteis, 343 mulheres, entre elas as atrizes Catherine Deneuve e Jeanne Moreau, assinaram o manifesto escrito por Simone de Beauvoir, e assumindo que haviam feito, elas também, um aborto. A força desse texto e a coragem das signatárias empolgaram intelectuais como Françoise Sagan e Annie Leclerc, jornalistas conhecidas, de muitas feministas, a começar por Antoinette Fouque, da advogada Gisèle Halimi ou ainda da deputada socialista Yvette Roudy. Todas declararam ter realizado um aborto, como forma de quebrar o tabu de uma injustiça social.

    A Justiça no Brasil é machista, é racista e é classista. Só incidindo juntas sobre ela será possível mudar esse regramento que sempre condena a vítima e libera o agressor.

    Mariana Ferrer deve recorrer da sentença em primeira instância. Agora, é organizar a luta para mudar o rumo da História. Quem se dispõe?

  • “Estupro culposo”, culpa da vítima?

    “Estupro culposo”, culpa da vítima?

    Por Sonia Coelho*

    O caso de André de Camargo Aranha veio à tona nas redes sociais por conta de sua absolvição pela denúncia de estupro de vulnerável. Segundo o The Intercept Brasil, durante o processo o promotor Thiago Carriço de Oliveira apresentou a tese de que não se pode comprovar, na conduta do acusado, a intenção de estuprar, a capacidade de perceber que Mariana não poderia consentir.

    A audiência foi gravada e mostra como as vítimas de violência são revitimizadas pela Justiça que deveria acolhê-las. O tratamento à denúncia de estupro feita por Mariana Ferrer escancarou o que nós do movimento feminista temos denunciado sistematicamente: o quanto o Judiciário brasileiro é machista, misógino, patriarcal.

    O advogado de defesa de André Aranha, Cláudio da Rosa Filho, armou um show contra Mariana, chegando a falar de sua roupa e de sua conduta para “justificar” o estupro. Expondo e julgando fotos que nada tinham a ver com o caso, e usando uma série de questões morais, tentou justificar que Mariana tivesse consentido com o estupro. É inaceitável que juiz e promotor presenciem a humilhação e o assédio moral proferidos pelo advogado de defesa em relação à vítima e não façam nada, não se pronunciem nem interrompam o advogado.

    Não existe estupro “sem querer”

    A interpretação do caso pela promotoria afirmou, segundo citação da Folha de São Paulo, que “não restou provada a consciência do acusado acerca de tal incapacidade, tendo-se, juridicamente, por não comprovado o dolo do acusado”– o que o portal The Intercept Brasil resumiu como “estupro culposo” em sua reportagem. O caso revela a dificuldade que as vítimas de crimes de estupro enfrentam para ver os agressores punidos, especialmente quando eles são brancos e ricos. O que Mariana relata é que o estupro aconteceu numa situação em que estava absolutamente vulnerável, sem condições de tomar qualquer decisão. Estupro não é acidente e a palavra da vítima deve prevalecer.

    Embora a sentença não tenha citado a classificação do “estupro sem intenção” ou “estupro culposo”, a discussão do tema é essencial para evitar que mais uma tese seja emplacada no Judicário para absolver estupradores no Brasil. Teses machistas estão sendo retomadas no Judiciário, como as de “defesa da honra” e “violenta emoção”. São muitas as teses que o Judiciário brasileiro tem aceitado para manter a impunidade dos agressores no Brasil. Isso só fortalece a cultura do estupro.

    O estupro não é um exercício da sexualidade. O estupro é o exercício do poder dos homens sobre as mulheres. Serve para colocar as mulheres no lugar de subordinação, e foi isso que essa audiência tentou: colocar Mariana Ferrer num lugar de subordinação.

    O recente caso do jogador de futebol Robinho apresenta uma situação semelhante: ele mesmo dizia que a mulher sequer tinha condição de ficar em pé ou se expressar, mas continuou dizendo que ela quis, e que aquilo não era problemático porque “nem era sexo”. Essa é a tese machista de que os homens não têm essa capacidade de discernir, e é muito perigosa porque aceita como consentimento situações em que o consentimento é impossível. Na nossa sociedade, há um acobertamento dessas situações de violência, propondo uma aceitação como se fosse “algo da vida”. Isso é a banalização do estupro.

    Os dados recentes do Fórum Brasileiro de Segurança Pública são alarmantes: em 2015, acontecia um estupro a cada 11 minutos, um dado já muito preocupante; em 2019, a situação piorou muito, passando a um estupro a cada oito minutos. Além disso, nesse período de pandemia que nos exigiu aumentar o isolamento social, vimos diversos estudos apontando um aumento ainda maior dos números de estupro e violência contra a mulher no Brasil. O que o Estado tem feito para se responsabilizar por essa calamidade?

    Denunciar não pode acarretar em mais violências

    A situação de Mariana Ferrer escancara uma realidade gravíssima. Oestupro já é um crime subnotificado, pela dificuldade de denunciar e ser ouvida. Muitas meninas e mulheres sentem vergonha de denunciar e expor sua intimidade, sua vida pessoal, seus traumas. A dificuldade aumenta quando não há confiança com a Justiça. O que aconteceu com a Mariana é uma prova dessa dificuldade: a vítima torna-se ré, torna-se culpada e é exposta, enquanto o violador sai impune e preservado, porque a palavra dele detém mais poder e confiança.

    São várias mulheres e meninas que passam a vida convivendo com o fantasma do estupro que viveram sem conseguir denunciar, exatamente por medo e por vergonha. É por isso que muitas mulheres só conseguem falar sobre o que viveram depois de muitos anos. A desresponsabilização do Estado gera ciclos profundos de violência, anos de silêncio e dor, e afeta até mesmo a saúde mental das mulheres.

    No Judiciário, a injustiça tem gênero, classe e raça. É bastante perceptível que a Justiça hoje criminaliza e ataca aqueles que oferecem algum risco ao sistema, ao mesmo tempo que permite a violência contra esses setores. O sistema que protege André de Camargo Aranha (um empresário branco que pode pagar por um dos advogados mais caros de Santa Catarina) é o mesmo que permite que a Polícia Militar assassine e encarcere a população negra, violando de forma brutal os direitos humanos.

    Os homens poderosos acusados de estupro têm uma segurança de que as mulheres não vão ter coragem de denunciar e que, mesmo que denunciem, seu dinheiro e posição social são argumentos suficientes para jogar a culpa nas mulheres, dizendo que elas que “não se comportaram como deveriam”. Esse tipo de postura conivente do Judiciário dá a certeza para esses homens de que eles podem continuar estuprando e violentando as mulheres. E esse é um problema da Justiça brasileira e de toda a sociedade.

    Isso significa que a Justiça só irá se mexer se nos mobilizarmos. Até 2005, por exemplo, o casamento do estuprador com sua vítima anulava o crime no Brasil. Não fosse o avanço do movimento feminista sobre esse tema, talvez isso ainda vigorasse até hoje. São diversos os casos de violência contra a mulher em que a manifestação do movimento feminista foi crucial para que a Justiça avançasse e a violência recuasse.

    Só o feminismo pode mudar a nossa realidade

    Graças à luta do movimento feminista, temos avanços importantes para que haja justiça diante de casos de violência e estupro.

    Já tivemos muitos avanços, como a aprovação da Lei Maria da Penha em 2003, que possibilitou toda uma gama de políticas públicas de enfrentamento à violência. Ainda assim, precisamos de uma série de políticas que consigam concretizar o que está escrito nas leis, e isso só é possível com o movimento feminista organizado e com a responsabilização do Estado. No período dos governos do PT na Presidência da República, tivemos uma Secretaria de Política para as Mulheres responsável por políticas e programas muito importantes contra a violência e por ampliação da autonomia das mulheres. Infelizmente, muitas delas foram desmontadas pelo governo golpista de Temer ou pelo Ministério da Família de Damares e Bolsonaro.

    Todas essas experiências nos mostram que, além de um sistema de justiça efetivo, é preciso uma série de políticas públicas para combater a violência. Essas políticas precisam ser permanentes, e se concretizar na vida das pessoas: serem acessíveis em todos os cantos das cidades, terem orientação feminista, combaterem a violência de forma integral. Para isso, não basta a política nacional. Políticas no âmbito estadual e municipal são cruciais, tanto para garantir a efetivação das políticas e dos serviços públicos, quanto para relacioná-las com a realidade de cada território, enfrentando os desafios próprios e se articulando com as organizações de mulheres e comunitárias em cada lugar.

    O caso de Mariana Ferrer é mais um que mostra a necessidade da luta feminista e a necessidade de pensarmos em políticas para o combate à violência contra a mulher, incluindo aí um amplo debate sobre como esses casos são tratados pela Justiça brasileira. Precisamos nos manifestar e exigir que esses casos sejam tratados com a seriedade que lhes é devida. Temos que lutar para denunciar esse caso, fazê-lo retornar para um novo julgamento, onde haja respeito e o combate à violência seja levado a sério. Não iremos aceitar teses machistas, criadas para manter a impunidade do estupro no Brasil.

    (*) Sonia Coelho é militante da Marcha Mundial das Mulheres, assistente social e candidata a vereadora em São Paulo.

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  • INQUISIÇÃO: Fundamentalistas perseguem ONG de católicas e Justiça faz coro

    INQUISIÇÃO: Fundamentalistas perseguem ONG de católicas e Justiça faz coro

    Agora vai, Brasil! A 2ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo decidiu que a ONG Católicas Pelo Direito de Decidir não poderá mais usar a palavra “Católicas” em seu nome.

    Católicas Pelo Direito de Decidir existem desde 1993 e se caracterizam pela defesa intransigente da descriminalização e legalização do aborto. Segundo o grupo, no interior do catolicismo “há vozes diversas, há teologias diversas”. “Essa pluralidade existe, ainda que o pensamento único fundamentalista queira negá-la”, dizem elas, que se reivindicam feministas.

    As Católicas falam em fundamentalistas e foi exatamente uma organização fundamentalista dessas, a Associação Centro Dom Bosco de Fé e Cultura que resolveu levar aos tribunais sua contrariedade com o nome da ONG feminista.

    O Centro Dom Bosco parece não confiar muito na fé do rebanho católico e é reincidente em tentar calar divergências religiosas na Justiça, em vez de convencer os corações dos fiéis. Foi esse grupo da ultra-direita católica que processou a Igreja Universal do Reino de Deus por causa de uma revista em quadrinhos (!!??!) chamada “A Força”, porque conteria “mentiras e ofensas à Igreja Católica”. Os inquisidores do Centro Dom Bosco queriam que a Justiça retirasse de circulação a publicação. Perderam!

    Também foi o Centro Dom Bosco que processou o coletivo de humoristas Porta dos Fundos, depois que este produziu um especial de Natal em que retratou Jesus como homossexual. Os “guerreiros da fé” do Centro Dom Bosco queriam retirar o especial de Natal da plataforma de streaming Netflix e bani-lo pela eternidade. Mas perderam também.

    Agora, o grupo colhe uma recentíssima vitória, já que ainda passível de recurso, com a decisão do TJ de São Paulo. Se prevalecer, as Católicas terão de adequar o estatuto social e retirar a expressão “católicas” de seu nome em 15 dias, sob pena de multa diária de R$ 1.000.

    O relator, desembargador José Carlos Ferreira Alves, escreveu um textão de 61 páginas para justificar o acolhimento do pedido do Centro Dom Bosco. Coalhado de referências ao Código Canônico, ao Catecismo, a textos de clérigos ultraconservadores, a homilias papais, a ideólogos da Opus Dei e até, pasme-se, a Olavo de Carvalho, com a citação de sua obra “Católicas, uma ova”, lavrada naquele estilo inconfundível pela falta de educação, o relatório do desembargador parece esquecer que o Brasil é um País laico e não uma pequena paróquia de um obtuso rincão conservador.

    Quer o desembargador católico que “nenhuma associação adote a designação de ‘católica’, a não ser com o consentimento da autoridade eclesiástica competente, segundo as normas do cânone 312” [do Código Canônico]. O Código de Direito Canônico é o conjunto das normas que regulam a organização da Igreja Católica, a hierarquia do seu governo, os direitos e obrigações dos fiéis e o conjunto de sacramentos e sanções que se estabelecem pela infração das mesmas normas. Impor aos cidadãos brasileiros a obediência a esse tal Código Canônico é um ultraje à Constituição do Brasil.

    Ferreira Alves diz que o uso da expressão “católicas” constitui “flagrante ilicitude e abuso de direito (…) pela notória violação à moral, boa-fé e bons costumes na atuação [da ONG]”. Trata-se de acusação gravíssima que, entretanto, não dispõe de um único argumento que a ponha em pé.

    A guerra contra as mulheres: uma história de violências

    Acusar mulheres, identificando-as a seres imorais, dotados de má-fé e de comportamento maligno tem dado, desde sempre, ensejo a perseguições e a toda série de violências e iniquidades (incluindo a tortura) praticadas contra o gênero feminino desde o século 12. Agora não é diferente.

    As Católicas Pelo Direito de Decidir, que conheço desde seus primórdios, pela catequese feminista de Maria José Rosado, fundamentam sua militância na crença de que a Igreja de 2.000 anos é capaz de errar (muito) e de se auto-reformar mediante a crítica —muitas vezes heroica— dos dissidentes (ou hereges).

    Foi assim com Giordano Bruno e Galileu Galilei, opositores da tese segundo a qual a Terra estaria no centro do Universo. Pela sua petulante defesa da Ciência, Galileu acabou condenado por desobediência e por difundir conteúdos contra a doutrina católica. Com Giordano Bruno, foi pior. A Inquisição o considerou culpado e ele foi queimado na fogueira no Campo dei Fiori, em Roma, em 1600. No ano 2000, o Papa João Paulo II finalmente pediu desculpas por todos os erros cometidos pela Igreja Católica nos últimos 2.000 anos, incluindo o julgamento de Galileu Galilei pela Inquisição. Será que João Paulo II não era muito católico?

    Mas tem muito mais erros! A mesma Igreja Católica ainda hoje condena o divórcio, as pesquisas científicas com embriões humanos, a eutanásia e os contraceptivos artificiais, o sexo antes do casamento, a homossexualidade e o uso de preservativos. Apesar disso, o Papa Francisco acaba de dar seu OK às uniões civis entre homossexuais, mostrando que a Igreja (também ela) é permeável ao espírito do tempo, e que a luta dos homossexuais católicos por reconhecimento valeu a pena. Será que Bergoglio também não é muito católico?

    As Católicas consideram-se católicas, mas católicas que lutam contra o machismo e a misoginia das instituições católicas, que proíbem a ordenação sacerdotal de mulheres, mantêm o celibato clerical e estão na base dos milhares de casos de abusos sexuais cometidos contra meninos e meninas em todo o mundo.

    Quem são o desembargador José Carlos Ferreira Alves e seus colegas na 2ª Câmara de Direito Privado, José Joaquim dos Santos e Álvaro Passos, para dizer que elas não podem mais se dizer católicas? Ainda mais usando como argumento um código estranho ao ordenamento jurídico do Brasil, como é o Código Canônico?

    Ou será que vamos também usar o “Evangelho Segundo o Espiritismo”, de Allan Kardec, ou “As 95 Teses”, de Martinho Lutero, para orientar os juízes sobre quais condutas serão consideradas lícitas ou ilícitas pelos tribunais brasileiros?

    A decisão do TJ de São Paulo é mais um barbarismo a atestar que a generosa Constituição de 1988 está sob grande ameaça. É preciso resistir. Ou logo as fogueiras serão acesas!

    Homofobia, armas e Educação de meninos: Veja quem é e o que defende o Centro Dom Bosco
    https://www.facebook.com/watch/?v=608039206566114

  • Assistir “…E o Vento Levou” com extras não nos impede de gostar do filme

    Assistir “…E o Vento Levou” com extras não nos impede de gostar do filme

    Por James Cimino, especial para os Jornalistas Livres de Nova York

    Era uma vez um filme, vencedor de oito Oscar, indicado a 13, um dos primeiros grandes épicos do cinema, que tinha como pano de fundo a guerra civil americana, mas que mostrava a escravidão como algo “benigno”, quase que um refúgio para os ineptos negros, cuja missão nobre na Terra era servir os seus senhores brancos. Está é uma versão de “…E o Vento Levou” que, digamos, o vento levou do catálogo da HBO Max após o roteirista John Ridley (“12 Anos de Escravidão”) publicar um editorial criticando o caráter revisionista do filme.

    Apesar do debate infundado de que o filme estaria sendo censurado, ele volta para o catálogo do serviço de streaming, apenas duas semanas depois, em uma nova versão: mais completa, mais honesta, mais informativa, mais histórica, tudo isso sem cortar ou adicionar uma cena, um diálogo sequer no corte original de 1939, dirigido por Victor Fleming e estrelado por Vivien Leigh, Clark Gable, Olivia de Havilland, Leslie Howard e Hattie McDaniel.

    Agora, quem assistir ao filme verá um prólogo de cinco minutos apresentado pela professora de cinema da Universidade de Chicago Jacqueline Stewart em que ela aponta ao mesmo tempo a grandiosidade da obra e seus erros históricos. Após essa pequena introdução, começam os créditos: primeiro Clark Gable, o cafajeste Rhett Butler, embora quem apareça em quase todas as cenas do longa que tem cerca de 3 horas e 40 minutos seja o segundo nome, a inglesa Vivien Leigh, que interpreta a inescrupulosa e cativante heroína Scarlet O’Hara. Em seguida, aparecem os nomes de Leslie Howard, que interpreta o melancólico Ashley Wilkes, e Olivia de Havilland, a íntegra Melanie Hamilton. De Havilland, aliás, é a única atriz viva do elenco e completou nessa quinta-feira (2) 104 anos.

    Após a ficha técnica, elenco é reapresentado por núcleos. Hattie McDaniel, Oscar Polk e Butterfly McQueen, respectivamente os escravos Mammy, Pork e Prissy, aparecem no núcleo de Tara, obviamente após os atores brancos.  Os créditos do filme, aliás, representavam as desigualdades raciais e de gênero existentes na indústria do cinema e em uma sociedade ainda racialmente segregada por força de lei.

    Mas também os créditos representam o tamanho do cacife do artista. Clark Gable era a estrela do filme, e Vivien Leigh, embora tenha dado uma das duas grandes performances de sua vida e certamente uma das melhores da história do cinema, era apenas uma atriz inglesa iniciante, por isso o nome dele aparece primeiro. No caso dos coadjuvantes, no entanto, tanto Leslie Howard quanto Olivia de Havilland tinham o mesmo quilate, embora Melanie seja uma personagem que também apareça muito mais que seu marido Ashley. Que o nome de Howard apareça antes de De Havilland nos faz pensar no machismo que em muitos casos ainda persiste em Hollywood.

    Logo em seguida vem a primeira fantasia do filme: um texto introdutório que explica ao espectador que mundo é esse em que ele está entrando. E este mundo à parte, como diz textualmente a personagem de Olivia de Havilland, é “uma terra de cavalheiros e campos de algodão chamada O Velho Sul”. E continua: “Aqui neste belo mundo, o cavalheirismo rendeu sua última homenagem. Aqui foram vistos os últimos cavalheiros e suas belas; escravos e seus senhores. Procure este lugar apenas nos livros, porque ele nada mais é que um sonho a se recordar. Uma civilização que o vento levou…”

    Antes de continuar a analisar suas falhas e destacar seus acertos, é importante destacar outros dois extras que aparecem no catálogo da HBO Max logo abaixo do filme, além do prólogo. Em 2019, quando o filme completou 80 anos de lançamento, o canal TCM promoveu um debate chamado “…E o Vento Levou — Um Legado Complicado” com a participação da produtora Stephanie Allain, de “Cara Gente Branca”, da autora do livro “Frankly My Dear”, Molly Haskell, além da professora Jacqueline Stewart.

    E para celebrar o legado de Hattie McDaniel, a Mammy, primeira atriz negra da história a ganhar um Oscar, há um episódio de cinco minutos da série do canal TCM “What a Character” (“Que Personagem”) dedicado à atriz.

    Os erros

    A grandiosidade do filme nos cega para suas falhas no que diz respeito à escravidão. Mas também é importante mostrar que o material extra nos abre os olhos para o esforço que o produtor do filme, David O. Selznick, teve em não repetir o legado de “Birth of Nation”, de D.W. Griffith, que provocou o renascimento da Ku Klux Klan. O uso da palavra “negro”, por exemplo, foi negociada com a NAACP (Associação Nacional para o Avanço das Pessoas de Cor, na sigla em inglês), para, ironicamente, dar mais veracidade à história.

    Aliás, o longa elimina a Ku Klux Klan de uma sequência em que Scarlet é atacada ao atravessar de carroça pelo meio de uma favela. No filme, ela é salva por um ex-escravo de sua fazenda. Posteriormente, seu marido Frank Kennedy e o nobre Ashley Wilkes vão vingar sua honra e incendeiam a favela, não sem antes matar alguns negros. No livro, quem pratica essa vingança é a KKK, conforme explicar a professora Jacqueline Stewart. “No livro, aqueles personagens fazem parte da KKK.”

    A principal crítica feita durante o painel de 80 anos do filme, no entanto, é sobre o caráter dos escravos neste fantasioso mundo que ignora a brutalidade da escravidão sobre a qual essa sociedade foi erigida. Nele, os negros são ou serviçais, nobres por sua devoção a seus senhores brancos, ou ineptos.

    Segundo a professora da universidade de Chicago, a secessão é retratada como “causa perdida” não apenas na indústria do entretenimento, mas também na academia. Segundo ela, “…E o Vento Levou” relata uma “perda irreparável” desse modo de vida.

    Inclusive, quando os Yankees (os soldados da União) se aproximam de Atlanta, vemos uma cena em que Scarlet cruza com os escravos de Tara que estão marchando, sorridentes e felizes, para a linha de frente, onde irão cavar trincheiras para os confederados.

    “No filme, a escravidão é vista como benigna. Há uma suposta nobreza nisso, porque mantém o negro em seu lugar devido, que na verdade é um lugar feliz e seguro, enquanto que após a guerra, no período imediatamente posterior à abolição, a reconstrução, tudo cai por terra. Ou seja, os negros não têm capacidade de se guiarem a si mesmos”, complementa a professora.

    A autora Molly Haskell também aponta esse retrato “demonizante” do pós guerra, segundo ela como se a abolição tivesse sido uma falha completa, já que os negros acabam se tornando ou favelados ou se aliando aos malvados Yankees. No entanto, Haskell destaca que o filme dá ao sul o que eles não tiveram na vida real: a fantasia da vitória.

    Mas o filme também deixa implícito que o trabalho dos escravos nos campos de algodão não era necessariamente honrado. Quando Scarlet e as irmãs trabalham na colheita de algodão após Tara ter sido saqueada pelos Yankees, vemos elas ficarem com as mãos calejadas, emagrecendo, terem os cabelos desgrenhados, os vestidos sujos e rasgados e cada vez menos parecerem com aquelas beldades do começo do filme que disputavam os “cavalheiros” nos churrascos na fazenda.

    No entanto, logo depois, vemos o pai de Scarlet, já delirante após a guerra, falando para a filha que não estava gostando do jeito que ela tratava Mammy e Prissy. “Devemos tratar muito bem os nossos servos, especialmente os escurinhos (darkies, em inglês)”, num diálogo que claramente tem como intuito dizer que os escravos eram tratados com humanidade.

    Isso não era verdade nem mesmo nos bastidores do filme, quando nem havia mais escravidão. Butterfly McQueen, que interpreta a mentirosa Prissy, teve que negociar com o diretor uma cena em que Scarlet a esbofeteia. Segundo os debatedores, durante a filmagem, Vivien Leigh foi orientada a bater de verdade em McQueen. Em resposta, ela não estava entregando o resultado desejado pelo diretor. Ela então disse ao diretor que só daria a performance desejada se aquela branca não batesse mais em sua cara.

    A força do filme é feminina

     

    Apesar de tudo isso, como ainda conseguimos gostar do filme e nos emocionar com ele? Essa foi a primeira questão respondida pelas debatedoras: a força das personagens femininas, especialmente, Scarlet e Mammy, mas também Melanie.

    “Scarlet é inescrupulosa, maltrata todos que ela ama, mas além da excitação de ver uma mulher tão dona de si, especialmente no sul, onde os homens brancos não possuíam apenas os escravos, mas também suas mulheres, eu acho que a gente torce por ela porque Rhett, Mammy, Melanie e Ashley a amam apesar de todos seus defeitos”, analisa Molly Haskell.

    A produtora Stephanie Allaine diz que o que sempre a atraiu no filme foi o fato de Scarlet ser uma personagem que não é submissa, mas que se coloca em pé de igualdade com os homens. Mesmo em uma cena em que Rhett Butler, ferido de ciúme, ameaça esmagar sua cabeça com as próprias mãos, ela não se intimida: “Tire suas mãos de mim, seu bêbado idiota!”, diz a altiva personagem.

    “Ela é resiliente, não desiste nunca. Mas o filme tem outra personagem que me atrai muito que é a Mammy, que é inteligente, sábia e destemida. Ela é a consciência do filme. E, além disso, ela é a única que enfrenta Scarlet e, com astúcia, a convence a fazer o que é certo.”

    No filme, aliás, Mammy é um papel muito maior que no livro, graças ao produtor David O. Selznick e à performance cativante de Hattie McDaniel, que em inglês não tem os cacoetes ridiculamente racistas da dublagem brasileira. Até a autora do livro, Margareth Mitchell, apontou que, na plantation, nenhuma escrava, por mais status que tivesse dentro de casa, gritaria da janela com uma sinhazinha como acontece no filme.

    Filme é anti-guerra

     

    “…E o Vento Levou” pode ser um filme que romantiza a escravidão, mas seus dois protagonistas são os maiores críticos da Confederação e da guerra que dela se sucedeu. Isso fica bem claro na primeira aparição de Rhett Butler, quando os sulistas estão reunidos na fazenda de Ashley Wilkes se vangloriando de um ataque do general Robert E. Lee que forçou o exército do presidente Lincoln a recuar. Butler, um homem de reputação duvidosa, explica que o sul não tem sequer uma fábrica de canhões e que a única coisa que eles têm são escravos, algodão e arrogância. Em uma cena posterior, ele diz a Scarlet que aquela guerra é um desperdício em nome da teimosia em se manter no passado.

    Mas, novamente, é o no cinismo de Scarlet O’Hara que vemos talvez a maior declaração de repulsa ao regime escravagista do sul. Quando ela assume a madeireira de seu marido, contrata prisioneiros de guerra sulistas para cortar árvores para seu negócio. Eles lhes são apresentados por um feitor, que lhe pede “carta branca” para lidar com eles.

    O nobre Ashley faz uma objeção dizendo a ela que a tal carta branca significa liberdade para bater e subnutrir os prisioneiros, que ele prefere contratar negros libertos, mas Scarlet se opõe dizendo que o preço que eles cobram iria quebrar o negócio. Ashley então diz que se recusa a lucrar às custas de trabalho forçado e do sofrimento dos outros. Ela, então, lhe dá um xeque-mate: “Você não era tão seletivo assim quando possuía escravos.”

    Neste ponto da narrativa, Scarlet já havia jurado por Deus que jamais passaria fome novamente, nem que precisasse matar, roubar ou trair. Também havia decidido vencer os Yankees em seu próprio jogo, ou seja, ela se torna uma yankee, nem que seja às custas de seu próprio povo.

    Para as debatedoras, essa postura da personagem torna o filme um crítica à guerra civil americana. “Scarlet não é mais aquela menina simplória, mas sobrevivente como é ela vai fazer de tudo para vencer. Porque no fundo ela não acredita na guerra nem naquela filosofia ultrapassada que a originou. Scarlet na verdade se torna a antítese do sul.”

    Portanto, a experiência de assistir a “…E o Vento Levou” com todo esse debate e contextualização não apenas é mais rica intelectualmente, como tampouco nos impede de gostar do filme apesar e também, por que não, por causa de suas contradições. Ao contrário, todo esse material nos abre os olhos para o caráter insidioso daqueles que usam o cinema para moldar a realidade e reescrever a história, como bem aponta, ao fim do debate, uma pessoa da plateia.

    “Acho que estamos sendo muito tolerantes com o retrato que se faz dos confederados, não apenas no filme. Hoje você faz uma tour por Charleston e eles mostram um lugar onde foi um mercado, mas não dizem que era um mercado ‘de escravos’. Nas plantations, a mesma coisa. Você vê em algumas delas uma placa explicando que ‘aquela plantation foi construída com trabalho não remunerado’, como se aquelas pessoas tivessem ido voluntariamente trabalhar ali.”

  • Neonazistas invadem reunião de mulheres sobre racismo

    Neonazistas invadem reunião de mulheres sobre racismo

    Publicado em 12 de junho 2020

    Uma reunião virtual que discutia estratégias de combate ao racismo com mais de 70 convidados, a maioria mulheres, foi interrompida por imagens de cabeças sendo cortadas, um homem se masturbando, pedidos de morte a mulheres e a figura de uma suástica na quarta-feira (10/06), em Florianópolis.

    Os relatos de duas das organizadoras, ouvidas pela BBC News Brasil, seguem um padrão semelhante ao de pelo menos seis outros ataques registrados em debates virtuais feitos por meio de aplicativos nos últimos dois meses. O encontro havia sido organizado pelo Icom (Instituto Comunitário Grande Florianópolis) com o tema “Que tipo de práticas antirracistas podem ser adotadas pela sociedade civil organizada?”.

    A maioria dos convidados havia se inscrito previamente por meio de um formulário disponibilizado pelo instituto. “Mas, uma hora antes, divulgamos o link direto para o evento em nossas redes sociais para aqueles que quisessem participar de última hora”, explica Mariana de Assis, uma das organizadoras. “Eles entraram depois de uma hora de webnário, quando tínhamos mais de 70 pessoas participando. Toda a nossa equipe é formada por mulheres, 95% das presentes também eram mulheres. De repente, entra uma música dizendo que mulher tem que morrer, depois outra janela mostrando pornografia, outro comentando, fazendo ataques. Foram dois minutos de ataques até que a equipe conseguiu tirá-los”, explicou Assis.

    O instituto, uma organização sem fins lucrativos criada há 15 anos na capital catarinense, registrou um boletim de ocorrência após o episódio, ao qual a BBC News Brasil teve acesso. À reportagem, a diretora da polícia civil na Grande Florianópolis, delegada Eliane Chaves, disse que vai instaurar um inquérito para apurar as denúncias. O vídeo da reunião foi gravado e será uma das fontes para a investigação.

    Ataques semelhantes

    Homem se masturba durante reunião de zoomFOTO: REPRODUÇÃO
    Homem se masturbou durante ataque a reunião virtual na plataforma Zoom, na última quarta-feira

    O episódio em Florianópolis segue padrão semelhante ao de outros ataques registrados nas últimas semanas em diferentes estados. No início de abril, uma vídeochamada organizada pela SBI Imuno e pela Agência Bori pelo aplicativo Zoom discutia a pandemia do novo coronavírus com 60 participantes quando foi interrompida por imagens de Hitler.

    Em maio, um debate sobre divulgação científica organizado pela Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência foi interrompido por ofensas racistas e saudações nazistas. Na última semana, pelo menos quatro ataques semelhantes foram registrados. Na segunda-feira, um debate universitário sobre negritude com professores da Universidade Federal da Bahia também foi interrompido por imagens de conotação racista. Segundo uma das organizadoras, a reunião foi suspensa após inúmeras tentativas de retirar os estranhos do ambiente, que festejaram a decisão aos gritos de “mito, mito” – em referência ao presidente Jair Bolsonaro.

    Já na terça-feira, um ataque durante o webinário Atlântico Negro, organizado por professores da Unicamp, também foi “invadida de forma massiva por vozes e imagens que impediram o direito de fala da professora da Unicamp, dra. Lucilene Reginaldo, bem como de todos que acompanhavam a atividade, numa clara agressão à missão que a sociedade entregou à universidade de produzir conhecimento e difundi-lo de forma livre e democrática”, segundo nota emitida pela universidade.

    “Esse gesto violento e autoritário procura também, por meio da intimidação, calar os avanços que a sociedade realizou nas últimas décadas no reconhecimento da injustiça representada pela escravidão. Procura, na mesma lógica racista que sustentou a escravidão, ocultar a competência intelectual dos negros, impedir sua manifestação pública e seu direito elementar de ter protagonismo na construção do conhecimento a respeito de sua própria história”, prossegue a nota.

    No mesmo dia, um evento organizado pelo centro acadêmico da faculdade de direito da UFRJ foi “alvo de uma invasão promovida por um grupo neonazista durante o evento do Conhecendo o CACO na plataforma Zoom”. “Diante de imagens nazistas, vídeos de pornografia e fotos de pessoas mutiladas exibidas em nossa reunião com calouros e calouras, vimos necessidade em levar a ocorrência às autoridades competentes”, diz o centro, em nota.

    Porta fechada

    VideoconferênciaGETTY IMAGES
    Especialista defende que acesso a reuniões por videoconferência seja restrito, para evitar ataques como os que foram registrados nas últimas semanas

    Para Renato Opice Blum, especialista em crimes digitais e um dos advogados da plataforma Zoom no Brasil, os ataques poderiam ser tipificados como uma série de crimes, incluindo ameaça, calúnia, injúria e difamação, além de injúria qualificada e racismo. “A figura da suástica é inclusive citada na descrição do crime de racismo”, diz.

    Professor de proteção de dados e direito digital do Insper, Blum afirma que a plataforma Zoom “não tem responsabilidade” sobre este tipo de ataque. “Não são problemas que decorrem da ferramenta, mas da situação comportamental”, diz. “As plataformas, não só o Zoom, são muito seguras. Inseguro é o ser humano.”

    “Recomenda-se que, quando uma reunião for realizada, não se divulgue o link nas redes sociais e que a reunião fique restrita. O administrador tem que autorizar ingressar na videoconferência”, afirmou a delegada-chefe da polícia da Grande Florianópolis.

    O advogado sugere que o acesso às reuniões seja restrito. “Normalmente, essas invasões acontecem porque as pessoas divulgam o canal de acesso, o link. É como deixar as portas de casa abertas”, diz. Mas ele completa: “Mas não é porque você deixou a porta de casa aberta que você é responsável por um eventual ataque à sua casa.”A recomendação, segundo o advogado, é registrar a queixa em qualquer delegacia. “Não precisa ser uma delegacia especializada em crimes digitais.”

    Mariana Assis, uma das organizadoras do evento em Florianópolis, conta que precisou abandonar a reunião. “Eu estou traumatizada. Fiquei com muito medo e caí no choro. Ainda faltavam 40 minutos e eu, enquanto mulher preta, não tive mais condições de continuar, não, não tive força para me posicionar nas minhas mídias sociais e não sei como vou conseguir lidar com isso daqui para frente. Nem sozinha eu estou conseguindo ficar em casa”, diz.

    A professora Lia Vainer Schucman, do Departamento de Psicologia da UFSC, foi quem continuou a condução do debate. “Na hora, eu fiquei super assustada, não sabia que havia essa prática de invasões e demorei para entender. Uma coordenadora disse que havíamos sido invadidos e, na hora, um dos homens desenhou uma suástica”, contou Schucman, que é judia, à reportagem. “Os mediadores conseguiram tirá-los. Eu já fui muito atacada e hoje lido bem. Parei, respirei e propus uma análise sobre o que tinha acontecido. Falei sobre como esse tipo de ataque é comum quando as vozes negras questionam a hegemonia branca”, disse.

    “Apesar de tudo isso, nós temos uma rede forte e isso me dá esperanças. Muita gente veio se solidarizar. Para além disso, espero do fundo do meu coração que a justiça seja feita e que os responsáveis sejam presos”, diz Assis.

  • Marcha Mundial das Mulheres faz 24 horas de ação global contra as empresas transnacionais

    Marcha Mundial das Mulheres faz 24 horas de ação global contra as empresas transnacionais

    Nesta sexta-feira, dia 24 de abril, a Marcha Mundial das Mulheres (MMM) promove uma ação global contra as empresas transnacionais. Neste ano, as 24 Horas de Solidariedade Feminista serão realizadas exclusivamente pela internet, devido à pandemia do novo coronavírus e às recomendações de isolamento social. As atividades denunciam os ataques das grandes corporações sobre a vida das mulheres e sobre a natureza, ao mesmo tempo em que buscam visibilizar as alternativas feministas, construídas cotidianamente por mulheres em movimento no mundo todo.

    No Brasil, a Marcha realizará uma transmissão ao vivo, das 12h às 13h, com militantes de diversos estados do país. Os diálogos podem ser acompanhados pelas redes da organização (Youtube e Facebook). A atividade será repercutida nas redes por meio do uso da hashtag  #SolidariedadeFeminista. Pelo mundo todo, haverão manifestações semelhantes, quase sempre das 12h às 13h. Por conta do fuso horário de cada país, a soma de todas as manifestações resultam em 24 horas de ação global.

    A data foi escolhida para relembrar o desabamento do edifício Rana Plaza, em Bangladesh, no ano de 2013, que matou 1138, sendo que 80% eram mulheres. Nesse pŕedio funcionavam confecções de grandes marcas de roupa, como Walmart, Benetton, H&M e C&A. Um dia antes do desmoronamento, uma imensa rachadura se abriu sobre os andares da edificação, fazendo com que trabalhadoras e trabalhadores das oficinas têxteis se negassem a trabalhar. Contudo, diante da ameaça de perda de empregos, acabaram cedendo. O crime feriu mais de 2.500 pessoas. Desde então, a data marca a luta feminista contra a impunidade das empresas transnacionais que precarizam o trabalho e a vida das mulheres.

     

    5ª Ação Internacional da Marcha Mundial das Mulheres

     

    As 24 Horas de Solidariedade Feminista fazem parte do calendário da 5ª Ação Internacional da MMM, que foi lançada no dia 8 de março. A cada cinco anos, uma Ação Internacional conecta os processos organizativos do movimento e lutas a nível local. Neste ano, “Resistimos para viver, marchamos para transformar” é o lema da Ação. De 08 de março a 17 de outubro, a Marcha mobiliza uma intensa agenda de lutas no Brasil e no mundo.

    As informações sobre o calendário estão disponíveis nos sites da MMM nacional e internacional.

    Acesse: www.marchamundialdasmulheres.org.br/

    marchemondiale.org