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  • O povo é um intruso no Parque do Povo

    O povo é um intruso no Parque do Povo

    Quem fizer uma pesquisa na internet à procura de imagens do Parque do Povo, um parque da prefeitura de São Paulo localizado no bairro do Itaim Bibi, uma região nobre de escritórios, comércio e residências da cidade, encontrará fotos de ciclistas, skatistas, corredores, crianças se divertindo nos brinquedos, cachorros correndo pelos gramados, pessoas praticando yoga e propagandas em inglês de academias particulares de ginástica que atendem seus clientes naquele espaço. No entanto, terá dificuldade de encontrar alguma foto das centenas de trabalhadoras e trabalhadores que diariamente tentam atravessar o parque em direção aos pontos de ônibus ou à estação de trem.

    Portão fecham cinco horas antes do restante do parque, para dificultar acesso de trabalhadores que saem do serviço

    O transporte público liga a região nobre do parque às periferias, onde reside a maior parte das pessoas que trabalham no seu entorno. Mesmo os que não trabalham no bairro, precisam atravessar ou circundar o parque para fazer a baldeação entre os ônibus e os trens. Um dos portões que lhes permitiriam fazer a travessia é fechado às 17 horas, cinco horas antes do parque encerrar suas atividades. Durante a semana, o gramado principal, que oferece o trajeto mais belo e curto entre os pontos de ônibus e a estação de trem, ganha uma cerca móvel que impede a passagem das pessoas. Nos fins de semana e feriados, quando o parque é frequentado prioritariamente pelos moradores da região, a cerca é retirada.

    As trabalhadoras e trabalhadores não são impedidos de entrar no parque pelo portão principal, tampouco são impedidos de atravessá-lo em direção à estação de trem pelos caminhos pavimentados. No entanto, o portão fechado, justamente, no horário de maior movimento da estação e as cercas móveis do gramado principal parecem indicar que eles são tomados como intrusos naquele espaço público, parecem indicar que o povo é tomado como um intruso no Parque do Povo.

    Tendo sido criado nos anos 30, o Parque do Povo já foi um espaço mais popular (SCIFONI, 2013). Como em outros lugares da cidade, o parque possuía vários campos de futebol de várzea, administrados por diferentes clubes e agremiações. Após as obras de retificação (1938-1958), o parque passou da margem esquerda à margem direita do Rio Pinheiros. Encostadas ao parque surgiram algumas favelas. Os clubes ofereciam escolinhas de futebol, tanto para os meninos que moravam nessas favelas, quanto para os que moravam nos prédios luxuosos do bairro.

    Com o processo de redemocratização, os prefeitos da cidade assumiram posições muito diferentes a respeito das favelas e do parque. Na prefeitura de Mário Covas (1983-1985), o secretário da cultura e dramaturgo Gianfrancesco Guarnieri autorizou a instalação no parque do Circo-Escola Picadeiro e do Teatro Vento Forte (ABREU, 2009). Além de formarem inúmeros artistas e professores, e de estimular a criação de várias companhias, o circo e o teatro também desenvolveram escolas para as crianças das favelas da região (CALVINATO, 2003). Em 1987, numa parceria com o governo do Estado, o Circo-Escola Picadeiro ajudou a criar o Projeto Enturmando, que levou escolas de circo para diversas comunidades da periferia (MATHEUS, 2016).

    Na prefeitura de Jânio Quadros (1986-1988), colocou-se em prática um plano de “desfavelamento” que, ao fim e ao cabo, apenas promoveu a remoção de algumas favelas que ficavam na região do Parque do Povo (FRANÇA, p. 2009). Em novembro de 1986, as 70 famílias da Favela da Cidade Jardim foram levadas para um conjunto habitacional na Estrada do Campo Limpo; em maio de 1988, foi a vez das 800 famílias da Favela Juscelino Kubitschek serem encaminhadas para conjuntos habitacionais localizados na Rodovia Raposo Tavares e na periferia da Zona Leste.

    Atentos às pressões das empresas de construção civil junto ao poder público, em 1987, um conjunto de intelectuais, de artistas, de moradores e de representantes dos clubes de futebol de várzea, do circo e do teatro fundaram a Associação Amigos do Parque do Povo (SCIFONI, 2013). Havia um projeto da construtora Mendes Júnior de construir um shopping center no local do parque. Em 1994, referendando um detalhado estudo que destacava a importância social e cultural das atividades realizadas no Parque do Povo, o CONDEPHAAT aprovou o seu tombamento.

    Em 2001, durante a prefeitura de Marta Suplicy (2001-2004), após onerosas batalhas judiciais dirigidas individualmente aos clubes de futebol de várzea, ao circo e ao teatro, a Associação dos Amigos do Itaim Bibi (SAIB) conseguiu a interdição das entradas do parque. O argumento sustentado foi que as atividades daquelas entidades estavam se desviando das suas finalidades esportivas e culturais e degradando as dependências do Parque do Povo (SCIFONI, 2013). Nesse sentido, essas entidades não estariam cumprindo os termos do tombamento. Em 2006, mesmo sem ter a autorização do CONDEPHAT, a prefeitura de Gilberto Kassab (2006-2012) apresentou um projeto de reformulação do parque que seria financiado por empresas da construção civil. Em outubro de 2007, ocorreu o despejo dos clubes de futebol de várzea, do Circo-Escola Picadeiro e das 42 famílias que residiam no local (PAGNAN, 2007). Graças à intervenção do Ministério da Cultura, o Teatro Vento Forte conseguiu manter suas instalações no Parque do Povo (SCIFONI, 2013).

    Numa reflexão sobre a palavra povo, o filósofo Giorgio Agamben (2014) argumenta que, em português e em outras línguas europeias modernas, povo significa o sujeito político ou o conjunto das pessoas que têm o direito de participar da política, pelo menos numa democracia e, também, a classe dos sujeitos pobres e deserdados que estão excluídos do campo das decisões políticas. Quanto menos os pobres dividirem espaço com os não-excluídos, menos as palavras povo e democracia irão expor suas contradições no interior de uma sociedade de classes. Com a estratégia de mostrar ao povo que ele é um intruso, o Parque do Povo parece pretender retirar das trabalhadoras e trabalhadores a vontade de promover uma nova partilha do sensível naquele lugar.

     

     

     

    Bibliografia:

     

    ABREU, Ieda. Ilo Krugli: poesia rasgada. São Paulo Imprensa Oficial, 2009.

    AGAMBEN, Giorgio. O que é um povo? Análise de uma fratura biopolítica. In. FOLHA DE S.PAULO, 16 de novembro de 2014.

    CALVINATO, Andrea. Uma experiência em teatro e educação: a história do menino navegador Ilo Krugli e seu indomável Ventoforte. Dissertação (Mestrado em Artes) – Universidade de São Paulo, 2003.

    FRANÇA, Elisabete. Favelas em São Paulo (1980-2008). Das propostas de desfavelamento aos projetos de urbanização: a experiência do Programa Guarapiranga. Tese (Doutorado em arquitetura e urbanismo) – Universidade Presbiteriana Mackenzie, 2009. 

    PAGNAN, Rogério. Prefeitura inicia despejo no Parque do Povo, In. FOLHA DE S.PAULO, 16 de outubro de 2007.

    SCIFONI, Simone. Parque do Povo: um patrimônio do futebol de várzea de São Paulo. Anais do Museu Paulista, v. 21, n. 2. jul-dez. 2013.

    MATHEUS, Rodrigo. As produções circenses dos ex-alunos das escolas de circo de São Paulo, na década de 1980 e a constituição do circo mínimo. Dissertação (Mestrado em Artes) – Universidade Estadual Paulista, 2016.

     

     

     

  • EXCLUSIVO! PSDB consegue na (in)Justiça o direito de descartar como lixo os cadáveres de 1.600 pessoas

    EXCLUSIVO! PSDB consegue na (in)Justiça o direito de descartar como lixo os cadáveres de 1.600 pessoas

    Que a Prefeitura de São Paulo está movendo mundos e fundos para privatizar os 22 cemitérios públicos da cidade, as 15 agências funerárias, as 118 salas de velórios e o crematório municipal da Vila Alpina, já se sabe desde a posse de João Doria, em 1º de janeiro de 2017. O negócio é milionário. A Prefeitura de São Paulo possui 350 mil jazigos públicos, realiza mais de 45 mil sepultamentos e 10 mil cremações por ano na cidade. Passar isso nos cobres, cobrando da população pelo que hoje é gratuito, além de uma taxa anual pelas sepulturas (tipo IPTU), é o que está na mira dos tucanos e dos investidores interessados. Para tornar o negócio mais atraente aos compradores, entretanto, a Prefeitura precisa lidar com um passivo desconcertante… Os milhares de mortos indigentes ou que não foram nunca localizados pelas famílias. Miséria post mortem existe também. Sem famílias, quem pagaria pelo descanso eterno desses corpos? A Prefeitura precisa se livrar desses pobres, expulsá-los da terra urbana escassa, a fim de que mortos pagantes tomem-lhes o lugar.

    Como?

    Em abril, a Prefeitura conseguiu que o Tribunal de Contas do Município levantasse o embargo à privatização dos cemitérios públicos. Então, iniciou-se imediatamente o processo visando ao despejo dos mortos inconvenientes. No último dia 13 de junho, a Prefeitura obteve autorização judicial para começar a destruir 1.600 ossadas sem identificação, provenientes de exumações realizadas entre os anos de 1941 e 2000 no Cemitério da Quarta Parada, o cemitério do Brás, fundado em 1893, sendo um dos mais antigos na cidade de São Paulo com mais de 122 anos.

    Ocupando área de 183 mil metros quadrados e “dormitório” de cerca de 400 mil pessoas, que ali estão sepultadas, o cemitério da Quarta Parada é uma espécie de “jóia da coroa” entre as necrópoles paulistanas, porque tem milhares de túmulos de famílias de classe média. Mas Doria e seu sucessor, Bruno Covas (PSDB), querem que entre mais gente endinheirada e por isso precisam despejar os pobres. É algo muito parecido com o que acontece quando se expulsam os pobres de uma região da cidade para em seu lugar instalar a classe média pagante. Chama-se de “gentrificação”. Agora, os pobres e miseráveis não terão nem um lugar para cair mortos. Literalmente.

    No total, a cidade de São Paulo tem mais de 50.000 corpos assim, que serão destruídos, descartados como lixo. Entre eles, estão pessoas oficialmente reclamadas como desaparecidas por suas famílias ou conhecidos, e que foram enterradas como indigentes, sem que seus familiares tenham sido avisados da localização do corpo.

    É gravíssimo.

    São famílias, amigos e conhecidos que sofrem diariamente a angústia de nunca mais saber de um ente querido desaparecido, que vivem um luto sem fim por absoluta incúria do poder público. O Ministério Público do Estado de São Paulo apurou que pessoas oficialmente reclamadas como desaparecidas, muitas vezes portando seus próprios documentos, são enterradas como indigentes, sem que os seus familiares sejam informados. É o que se chama de “redesaparecimento”.

    Também devem se encontrar entre esses corpos que a Prefeitura pretende destruir as ossadas de opositores da Ditadura Militar que vigorou no país entre 1964 e 1985. Já se localizaram as ossadas de presos políticos desaparecidos, que foram enterrados como indigentes no Cemitério de Perus e é razoável supor que haja mais porque centenas desses opositores seguem figurando nas estatísticas de “desaparecidos” políticos.

    Ativista dos Direitos Humanos e ex-presidente da Comissão Estadual da Verdade de São Paulo, Adriano Diogo foi o descobridor da decisão tomada em 4 de junho de 2018 pela juíza Renata Pinto Lima Zanetta, autorizando a destruição das 1.600 ossadas do Cemitério da Quarta Parada. Segundo ele, trata-se de um grave erro, um atentado à memória, à Justiça e aos direitos fundamentais das famílias de desaparecidos, uma vez que nessas ossadas reside a possibilidade de um reencontro.

    “A destruição das ossadas, que serão cremadas, vai acontecer em todos os cemitérios. Começa na Quarta Parada, atingirá todos os cemitérios mais tradicionais, cercados pelos bairros mais ricos. Depois chegará à Vila Formosa, Guaianazes, Itaquera”, explica Adriano. “A morte e o luto não poderiam nunca ser transformados em objeto de lucro, entregues a empresas de papa-defuntos”.

    A promotora Eliana Faleiros Vendramini Carneiro, que atua no Plid (Programa de Localização e Identificação de Desaparecidos), do Ministério Público, calcula que só no ano de 2013, 23.194 pessoas foram dadas como desaparecidas no Estado de São Paulo. Muitas delas desaparecem por muitos anos ou para sempre, a exemplo das 7.501 crianças do Estado de São Paulo, que nunca foram localizadas.

    Boa parte dessas desaparições, entretanto, ocorrem por falha do serviço público. Dimas Ferreira Campos Júnior, então com 42 anos, desapareceu no dia 3 de junho de 2015. Ele saiu de casa, foi a uma lan house e sumiu. A família dele providenciou um boletim de ocorrência de desaparecimento. Mas Dimas havia morrido em decorrência de um infarto fulminante, que aconteceu no meio da rua, no próprio dia de seu desaparecimento. Sem identificação, o corpo foi periciado pelo Instituto Médico Legal que em quatro dias obteve sua identificação pelo exame das impressões digitais. Mesmo assim, o IML não procurou saber se havia familiares em busca do “desaparecido” e mandou enterrá-lo como indigente. Bastava ter cruzado os dados do boletim de ocorrência de desaparecimento com o boletim de ocorrência da morte. Mas isso não foi feito. Os pais de Dimas só foram avisados da localização do corpo mais de um mês depois, porque a equipe da doutora Eliana Vendramini fez o que a polícia e os órgãos públicos que cuidam da morte não fizeram.

    “Essas pessoas desapareceram, apareceram e o Estado redesapareceu com elas. Em absoluto desrespeito ao sofrimento das famílias e à memória do morto”, diz ela, que coleciona casos tristíssimos de longas e incansáveis buscas de familiares por seus entes queridos, como Dimas Ferreira Campos Júnior. As famílias querem o corpo. Porque querem saber o motivo da morte. Porque precisam viver o luto para reencontrar a vida”, diz a promotora Eliana.

    Há ainda a questão da Justiça. Contabilizam-se milhares de crimes sem solução (inclusive muitos da Ditadura) no Estado de São Paulo.

    “Para evitar a apuração de seus crimes, uma das medidas adotadas pelo regime militar foi desaparecer com os corpos de suas vítimas. Essa prática de desaparecimentos continuou durante a democracia, com a militarização da segurança pública, com a noção de inimigo interno, as execuções extrajudiciais. Por causa disso, é importantíssimo identificar os corpos em vez de tentar sumir com eles, destruindo-os, apagando provas de crimes e a possibilidade de Justiça”, diz o advogado Pádua Fernandes.

    Tem mais.

    Corpos identificados, enterrados como indigentes, recebem etiquetas escritas a caneta. E são empilhados em piscinas de corpos e ossos. Resultado: as etiquetas misturam-se, a tinta borra e então esses corpos se tornam de fato inidentificáveis por incúria do poder público. É o tal “redesaparecimento”, de que fala a doutora Eliana, promovido pela omissão do poder público.

    Adriano Diogo localizou nos cemitérios da Quarta Parada e da Vila Formosa duas dessas piscinas de ossos, “que são caixas de concreto cheias até a borda de sacos de ossos, a maioria sem identificação, socados, um em cima do outro, cheias de água, cheia de bichos, em total desrespeito.”

    “Eugenia, higienização dos cemitérios, é o que se fará agora, visando a liberar espaço para comercialização de novas sepulturas, novas tumbas, novas caixas. É a barbárie”, diz Adriano.

    A juíza que autorizou o descarte dos ossos de 1.600 pessoas registra essa aberração como se fosse um acidente natural: “O Serviço Funerário atestou a impossibilidade de identificar os ossos em correlação aos assentamentos de óbitos, em razão do tempo decorrido, da perda das inscrições nas etiquetas e, em alguns casos, das próprias etiqueta”. Ou seja, o poder público não cuida e a forma de resolver isso é “jogando fora”, fazendo desaparecer mais uma vez –agora para sempre.

     

    “Neoliberalismo implica negação dos Direitos Humanos. São imigrantes engaiolados como animais, favelados sendo fuzilados por helicópteros e os mortos sendo transformados em lixo descartável. Não sobrou mais nada!”, revolta-se o padre Julio Lancellotti, membro da Pastoral do Povo de Rua e pároco da Igreja São Miguel Arcanjo no bairro da Mooca. O padre tem vários parentes enterrados no cemitério ,da Quarta Parada, que fica a 1,8 km de sua paróquia.

    Em vez da dignidade de ossários bem organizados, o que se pretende é incinerar a história da vida e da morte dos pobres. Deletar-lhe a existência. “Isso é mais um sintoma da Aporofobia, doença social que implica ódio aos pobres”, diz o padre Julio. Deles, nem a memória restará.

    É um jeito de acabar com a pobreza, não resta dúvida.