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  • NEOLIBERALISMO OU DEMOCRACIA

    NEOLIBERALISMO OU DEMOCRACIA

    ARTIGO

    Rodrigo Perez Oliveira, professor de Teoria da História na Universidade Federal da Bahia

     

    A eleição presidencial na Argentina é fato político de primeira importância para a América Latina. Nas prévias realizadas em 11 de agosto, Alberto Fernandez, candidato peronista ligado à família Kirchner, derrotou com folga o neoliberal Maurício Macri, que é o atual presidente. Ao que tudo indica, Macri será derrotado novamente no primeiro turno das eleições, que acontecerá em 27 de outubro.

    Novamente, o neoliberalismo está sendo derrotado nas urnas. Não será a primeira vez e provavelmente não será a última. O neoliberalismo é semente que não dá fruto no terreno da democracia.

    No Chile, o neoliberalismo só se tornou vitorioso porque foi imposto por uma ditadura. No Brasil, o neoliberalismo, travestido de socialdemocracia, chegou ao poder pela via democrática em meados da década de 1990. Quando o povão entendeu o que significa na realidade a retórica do “Estado Mínimo”, rejeitou o neoliberalismo nas eleições de 2002. O neoliberalismo somente conseguiu voltar ao poder em 2016, e através de um golpe. Temer governou durante dois anos e mostrou à nação um neoliberalismo puro sangue. Deixou o governo como o presidente mais mal avaliado da história.

    Reforma Trabalhista, PEC dos gastos. Somente um presidente que não foi eleito poderia chegar tão longe.

    Bolsonaro venceu as eleições de 2018 e o neoliberalismo venceu junto, é verdade. Mas não foram eleições normais. A corrida presidencial foi fraudada pela interferência do Judiciário e pela máquina de fake news, que deixou Paulo Guedes e seu programa econômico nas sombras.

    Nos EUA, que certamente é o país mais liberal do mundo, esse neoliberalismo extremo sagrou-se vitorioso no começo da década de 1980, no governo de Ronald Reagan. A vitória de Reagan se deu em clima eleitoral atípico. Reagan venceu Jimmy Carter em disputa confusa, onde o debate programático foi ofuscado pela pauta dos costumes. A candidatura de Reagan foi impulsionada por uma coalizão de direita formada por católicos, protestantes fundamentalistas e intelectuais conservadores. Todos eles acusavam a social-democracia, vigente no país desde os anos do new deal, de “excitar os desejos egoístas da sociedade e onerar demasiadamente o Estado”, segundo as palavras do intelectual conservador William Buckley, um dos principais ideólogos da campanha de Reagan.

    E não podemos esquecer do “nacional-socialismo” alemão dos anos 1930, que de socialismo não tinha nada. O programa econômico do III Reich foi caracterizado pela parceria com os grandes empresários, pela defesa do capital privado, pelas privatizações e, é claro, pela repressão aos sindicatos e a qualquer movimento reivindicatório. Aqui, pela primeira vez, o cão do neoliberalismo acasalou com a cadela do fascismo. Paixão à primeira vista!

    O que estou querendo dizer é que em um ambiente democrático saudável, onde programas de governo se confrontam livremente, sem cortinas de fumaça, o neoliberalismo encontra dificuldades para se sustentar como agenda politica viável, e isso é especialmente verdadeiro na América Latina. Por isso, o neoliberalismo costuma se associar a projetos políticos autoritários. É que só dá pra empurrar Estado mínimo no povão se for na marra, na força.

    Desde o final do século XVIII, o liberalismo é uma das mais importantes linhagens do pensamento político ocidental. O liberalismo está fundado numa premissa fundamental: a liberdade individual deve ser protegida da tirania do Estado. O indivíduo, portanto, é a célula social mais fundamental, aquele que deve ter seu corpo e propriedade protegidos de qualquer interferência externa.

    Pode parecer contraditório o fato de o ideário político fundado na promessa da liberdade individual ser capaz de se combinar com tanta desenvoltura com ditaduras e fascismos. Parece, mas não é. Não é porque o neoliberalismo se desassociou da política e da economia. A liberdade defendida é a liberdade econômica, é a liberdade de exploração. Uns precisam ser lives pra explorar. Outros precisam estar desprotegidos para serem explorados.

    Nos últimos 300 anos, o pensamento liberal se transformou bastante, mas sempre manteve viva a ideia de que o Estado não deve intervir na economia, que deveria se regular por si próprio, tendo como controle a “mão invisível do mercado”. Não há falácia maior que essa. Não existe Estado mínimo em sociedades complexas. O que existe é a disputa pelo Estado pelo controle das riquezas sociais que são administradas pelo Estado.

    O objetivo do neoliberalismo é impor o Estado mínimo para a maioria e garantir Estado máximo para uma minoria. Como Estado mínimo só é bom se for nos olhos dos outros, a maioria, quando consultada, quando pode se manifestar, diz “não, não, Estado mínimo aqui não”. Para sua sobrevivência, o neoliberalismo precisa silenciar a maioria, fechar os canais de representação e participação política.

    Após quatro anos de tsunami neoliberal, os argentinos lembraram o que é viver no neoliberalismo. Os brasileiros também estão lembrando, o que se traduz na queda da popularidade de Bolsonaro.

    Guedes pediu dois anos para a economia começar a dar sinais de melhora. O desespero bateu. O governo não tem dois anos. Talvez não tenha sequer mais seis meses.

    A Reforma Trabalhista já está sendo sentida, com profissionais contratados em regime intermitente, com a precarização das relações de trabalho. Em breve, a Reforma da Previdência fará suas primeiras vítimas. A PEC dos gastos está paralisando serviços públicos. Foi aprovada no Congresso Nacional a PEC da Liberdade Econômica, que mais uma vez promete gerar empregos através da “desregulamentação” das relações de trabalho.

    A narrativa sempre a mesma: o neoliberalismo promete prosperidade material em troca de direitos sociais garantidos pelo Estado. Os direitos são cassados, mas a prosperidade não chega. Em algum momento, as pessoas perdem a paciência.

    O tempo passa e a crise econômica se avoluma. Tá cada vez mais difícil continuar culpando o PT. O governo está nas cordas, Bolsonaro é fraco como presidente, apesar de ser forte como agitador fascista. Se não conseguir aplicar o autogolpe que vem prometendo desde o final de 2018, Bolsonaro será engolido pelo que ainda resta de democracia no Brasil.

    O povão pode estar confuso e desinformado, mas não é burro. Não há histeria que dure para sempre. Em breve, sobrará ao governo apenas a base social fascista, disposta a ir com Bolsonaro até o fim. Não é o bastante para governar na democracia.

    O neoliberalismo já tem plano A e plano B: se o autogolpe funcionar, não haverá nenhum constrangimento em continuar acasalando com a barbárie. Nada melhor para impor o Estado mínimo ao povo do que um Estado máximo, armado, violento e disposto a prender e matar.

    Se Bolsonaro cair, o neoliberalismo vai tentar se afastar do defunto e apresentar uma solução mais limpinha e civilizada. Candidatos não faltam: João Dória, Luciano Huck, Tábata Amaral, Marina Silva. Pode ser que a mudança dê alguma sobrevida ao projeto neoliberal. Não durará muito.

    Ou tem neoliberalismo ou tem democracia. As duas coisas juntas dá pra ter não.

     

     

  • Lula está preso e Moro é ministro, babacas!

    Lula está preso e Moro é ministro, babacas!

     

    Rodrigo Perez Oliveira, professor de Teoria da História na Universidade Federal da Bahia, com charge de Bacellar

     

    Ora ou outra aparece no Brasil alguém defendendo o “Estado mínimo”. Pura bravata! Na verdade, na verdade mesmo, ninguém quer Estado mínimo. Os ricos não querem. Os pobres também não. Todos querem mesmo é o “Estado Máximo” para si, o que significa impor Estado mínimo ao outro. Não existe Estado mínimo em sociedades complexas. O que existe é a disputa pelo Estado. Temos aí a síntese da crise brasileira contemporânea: um período de radicalização das disputas pelo Estado.

    Este cenário fica muito claro quando lançamos luz sobre programa ultraliberal de Paulo Guedes, que pretende extinguir a vocação assistencialista do Estado moderno brasileiro. O projeto de desmonte do Estado brasileiro é muito antigo e sempre foi rejeitado pela opinião pública. Por isso, o sucesso de Paulo Guedes depende da confusão mental da maioria da população.

    O governo precisa de uma nuvem de fumaça densa, capaz de confundir os sentidos daqueles que mais precisam da ação protetora do Estado. Por isso, Sérgio Moro é o ministro da Justiça. Por isso, Lula está preso. Uma coisa está diretamente ligada à outra.

    Moro quer aumentar o tamanho do poder punitivo do Estado. O projeto do Ministro da Justiça pretende dar carta branca para a polícia matar um certo tipo social, exatamente aquele que é visto pelas classes proprietárias como a representação perfeita do crime: o homem jovem, preto, vestindo bermuda, calçando chinelo de dedos e envolvido com o tráfico varejista de drogas.

    Se Guedes quer Estado mínimo na assistência social, Moro quer Estado máximo na repressão e na violência.

    A sociedade civil, acuada pela violência nos grandes centros urbanos e tomada por um certo sentimento hobbesiano, apoia a iniciativa e aplaude o projeto do Ministro da Justiça. Este é o capital político necessário para fortalecer o governo e preparar terreno para outra pauta, essa nada popular: a reforma da previdência e a radicalização da reforma trabalhista propostas por Paulo Guedes.

    Moro sob os holofotes e Guedes nas sombras. Essa é a estratégia.

    Todas as pesquisas de opinião mostram que a população não apoia a agenda ultraliberal de Paulo Guedes. É que ainda sobrevive no imaginário popular a ideia de que o Estado deve atuar como provedor de direitos sociais. Por isso, Paulo Guedes foi silenciado durante a campanha. Por isso, antes de ser eleito, Bolsonaro se manteve distanciado de Michel Temer, de quem não é apenas sucessor, mas também herdeiro.

    As pessoas ainda não entenderam que aquilo que elas reprovam é exatamente o que o governo pretende fazer. Para que elas continuem não entendendo, Lula precisa permanecer preso, completamente incomunicável. Lula é uma ameaça a esse projeto de desmonte do Estado. Talvez seja a única.

    Antes de tudo, Lula é um pedagogo.

    É exatamente a sobrevivência da imagem do Estado provedor que explica a força política de Lula, mesmo preso e alvo de uma campanha negativa com grau de agressividade nunca antes visto na história do Brasil.

    Mas o PT perdeu as eleições. Jair Bolsonaro, o mesmo que nomeou Paulo Guedes para a chefia do Ministério da Fazenda, venceu por uma diferença expressiva de votos. Será que Lula continua sendo tão forte assim?

    A derrota do PT não significa a derrota de Lula. A força política de Lula não está vinculada ao PT.

    Como já demonstrou André Singer, a partir de 2006, as bases da sociedade passaram a votar no PT porque queriam votar em Lula (ou com Lula, no caso das eleições de Dilma). Quando os brasileiros e brasileiras mais pobres apertavam “13” na urna, não estavam querendo votar na esquerda, tampouco no PT. Queriam votar em Lula. Hoje, o grande desafio do Partido dos Trabalhadores é formar uma nova liderança que seja capaz de herdar o capital político de Lula e sensibilizar os afetos da população mais pobre. Não é nada fácil. Não nasce um Lula do dia para noite. Sequer nasce um Lula a cada geração.

    Em 22 de agosto de 2018, o Instituto Data Folha publicou a última pesquisa eleitoral que apresentava o nome de Lula na lista dos presidenciáveis. Lula liderava com 39%. Muito atrás vinha Bolsonaro, com 19%. Na simulação de segundo turno, Lula batia Bolsonaro por 52 a 32.

    Definitivamente, não foi Lula que perdeu as eleições. Foi o PT. Lula estava preso. Lula está preso.

    E está preso porque o atual regime de poder sabe perfeitamente o tamanho do seu capital político. Eles sabem que Lula, personificando a imagem do Estado provedor, é a única liderança capaz de confrontar o governo de Jair Bolsonaro.

    Imaginem, leitor e leitora, Lula saindo por esse país em caravana explicando pras pessoas o que é o projeto de Reforma da Previdência de Paulo Guedes. Lula dizendo pras pessoas que o governo quer que elas deixem de comer coxa e peito e voltem a assobiar o pescoço e chupar o pé. Lula tem uma capacidade única de traduzir a luta de classes na anatomia do frango.

    O Estado mínimo de Guedes, na prática, significa o Estado máximo para os proprietários e rentistas. A viabilidade política desse projeto depende da distração da sociedade. Os brasileiros e brasileiras mais pobres precisam continuar não entendendo o que significa esse tal de “Estado mínimo”. Se entenderem, não vão querer, não vão apoiar o governo. Os pobres podem até estar confusos e mal informados, mas não são burros.

    É por isso que o populismo penal de Sérgio Moro é tão estratégico quanto o desaparecimento de Lula. Afinal, Lula tá preso porque Sérgio Moro é ministro da Justiça, e vice-versa.

     

  • Há um curto-circuito no coração do golpe

    Há um curto-circuito no coração do golpe

    Artigo de Rodrigo Perez Oliveira, professor de Teoria da História na Universidade Federal da Bahia*

    Acho que poucos de nós duvidam que a palavra “corrupção” é o termo chave da crise brasileira contemporânea. Uma crise que começou em junho de 2013, mas que deita suas raízes mais profundas lá em 2005, na ocasião do que já na época ficou conhecido como o “julgamento do mensalão”.

    Aqui neste ensaio, quero mostrar como essa palavrinha mágica pode ser entendida de várias maneiras e como a história da crise brasileira contemporânea pode ser contada a partir do privilégio de um desses sentidos: o sentido “liberal”, segundo o qual a “corrupção” está diretamente vinculada ao Estado, a tudo que é público. É como se o Estado fosse naturalmente corrupto e corruptor e o combate à corrupção passasse, necessariamente, pelo combate ao Estado, pelo desmonte do Estado.

    O privilégio dessa leitura liberal do fenômeno da corrupção diz muito sobre a crise, especialmente sobre os seus movimentos mais recentes. De uns dias pra cá, os veículos mais poderosos da imprensa hegemônica brasileira (Folha de São Paulo, o departamento de jornalismo da Rede Globo, Estadão) vêm abrindo fogo contra os privilégios dos juízes, que já são conhecidos por todos nós há muito tempo. Por que somente agora a imprensa hegemônica denuncia os privilégios nababescos dos juízes brasileiros? Penso que estamos entrando num novo momento da cronologia da crise, em que a aliança entre o judiciário e a mídia hegemônica, até então sólida como pedra, começa a fazer água. Também aqui a leitura liberal do conceito “corrupção” tem uma importante função política a cumprir.

    Bom, pra começar a conversa é importante esclarecer melhor o que estou querendo dizer quando afirmo que o conceito “corrupção” é polissêmico, que possui vários sentidos. Pra isso, cito, bem rápido, alguns autores que ao longo da história da cultura política ocidental usaram a palavra “corrupção”, fazendo-o de diferentes formas.

    Para Aristóteles, que que no IV século antes de Cristo escreveu o tratado da “Política”, a “corrupção” era o efeito natural do tempo sobre os organismos políticos. Maquiavel, escrevendo no século XVI da era cristã, seguiu a trilha aberta por Aristóteles e definiu a “corrupção” como a perda da capacidade da República em institucionalizar os conflitos travados entre seus cidadãos. Chamo de “republicana” essa forma de tratar a corrupção.

    Karl Marx, escrevendo no século XIX, enfrentou o tema da corrupção em um livro pouco conhecido, cujo título é “A luta de classes na França entre 1848 e 1850”. Basicamente, Marx argumenta que falar em “corrupção política” no sistema capitalista é uma redundância, pois o próprio capitalismo já é corrupto, na medida em que se fundamenta na exploração de uma classe pela outra. Essa é a definição marxista.

    Nenhuma dessas formas de pensar associou a “corrupção” ao roubo do dinheiro público. Vamos encontrar essa associação sendo feita de forma mais clara nos textos que Friedrick Hayek escreveu ao longo do século XX. Preocupado em discutir o tema da “ética na política”, Hayek definiu a corrupção como a apropriação para fins particulares dos recursos públicos. Como o objeto da corrupção seria o dinheiro público, a definição proposta por Hayek sugere que o terreno da “coisa pública”, do “Estado”, é solo fértil para a corrupção. Podemos chamar essa definição de “liberal”.

    Bom, o conceito “corrupção” tem, pelo menos, três significados distintos: o republicano, o marxista e o liberal. Nem carece de gastar muito papel e tinta pra mostrar que na crise brasileira contemporânea um desses significados foi privilegiado: o liberal. Ao menos na minha avaliação, isso não aconteceu à toa, sendo um projeto planejado deliberadamente por segmentos poderosíssimos das elites brasileiras para realizar um antigo sonho, para viabilizar um projeto que vem sendo frustrado desde a década de 1940.

    Que projeto é esse? Que sonho é esse que animou durante esse tempo todo o sono da direita brasileira, mas que jamais foi plenamente realizado?

    Pra responder, apresento uma breve síntese da história contemporânea do Brasil. Síntese histórica é igual prudência e canja de galinha: é sempre bem-vinda. O conhecimento histórico é útil à vida.

    Trata-se do sonho do “Estado Mínimo Brasileiro”, projeto que começou a ser defendido no final dos anos 1940 pela UDN, partido político que na época foi o portador da narrativa da redemocratização que marcou a transição da Ditadura do Estado Novo para a ordem democrática que se consolidaria em 1945. Não era, ainda, o “Estado Mínimo” neoliberal, mas sim um projeto desenvolvimentista internacionalista que priorizava o mercado e o capital, considerando o Estado um obstáculo para a prosperidade nacional.

    Esse projeto desenvolvimentista jamais foi aprovado nas urnas, o que explica em parte o transformismo golpista da UDN. Em algum momento da década de 1950, a UDN cansou de brincar de eleição e passou a recorrer ao expediente golpista. Já que o povo não colaborava, a UDN resolveu caminhar sem o povo mesmo. A aproximação com os militares foi uma consequência quase natural.

    A aliança entre a UDN e os militares viabilizou o golpe civil-militar de 1964. Mas como os militares não são seres acéfalos, não serviram como simples instrumento para a realização do projeto udenista. Acabou mesmo que a UDN deu com os burros n’água, pois os milicos sentaram na cadeira do poder e ali ficaram por mais de 20 anos, perseguindo até mesmo os aliados de véspera, como o líder udenista Carlos Lacerda.

    E o pior para o sonho do “Estado Mínimo Brasileiro” vou contar agora: os militares não efetivaram o projeto udenista, pelo contrário, já que em vários aspectos os governos militares podem ser definidos como estatais-desenvolvimentistas. Isso não significa um elogio aos militares, bem longe disso, pois a ditadura foi fundada em um golpe que destituiu um governo democraticamente eleito. Diante desse vício de origem, nenhum ato da ditadura militar pode ser considerado legítimo.

    Enfim, não foi com a UDN e não foi com os militares que o sonho do “Estado Mínimo Brasileiro” se tornou realidade.

    O projeto voltou com força no final dos anos 1980 e pautou as eleições presidenciais de 1989. Sob a batuta do “Consenso de Washington”, um jovem político alagoano, bonitinho mas ordinário, prometeu “caçar os marajás”. Ou em outras palavras, combater a “corrupção”. Adivinhem como? Enxugando o Estado.

    Sabemos bem o que aconteceu com esse jovem e charmoso político alagoano. Collor também não conseguiu realizar o velho sonho do “Estado Mínimo Brasileiro”.

    Com um discurso de propaganda em muitos aspectos parecidos com o de Collor, só que acrescido da narrativa da “estabilidade econômica resultante do plano real”, Fernando Henrique Cardoso se submeteu às urnas em 1994. E venceu. Havia chegado a vez do príncipe da sociologia uspiana tentar realizar o sonho do “Estado Mínimo Brasileiro”, dessa vez com a legitimidade de uma vitória eleitoral.

    O sucesso foi relativo. Sem dúvidas, FHC avançou mais que seus antecessores, mas no final dos seus oito anos de governo ficou a sensação de que foi pouco, de que dava pra entregar mais. O neoliberalismo é um lobo faminto.

    Por mais que o governo de Lula tenha negociado com a agenda neoliberal, apenas com muita desonestidade intelectual seria possível dizer que o desmonte iniciado pelos tucanos foi mantido pelos governos petistas. Com a eleição de Lula, o sonho do “Estado Mínimo Brasileiro” sofreu um duro revés. Mas o lobo não é só faminto. É insistente e teimoso também.

    O que estou querendo dizer é: A crise brasileira contemporânea representa uma nova ofensiva desse lobo neoliberal contra o Estado brasileiro e pra isso é necessário algo a mais do que o simples argumento macroeconômico. É que esse negócio de economia, de números, não convence muito, tem pouca eficiência retórica.

    É aqui que o tratamento da “corrupção” na perspectiva liberal vai cumprir sua função discursiva, ao definir o Estado como o antro da corrupção, como o cabaré da imoralidade. A diferença é que a experiência mostrou que o marketing político não basta, que é necessário algo mais forte: a judicialização da política. Nasce assim, lá em 2005, a aliança que até a semana passada era a força política mais poderosa da República: o concubinato entre a mídia hegemônica e setores do poder judiciário.

    Quem não lembra de Joaquim Barbosa, o homem da capa preta que prometia colocar todos os políticos corruptos na cadeia?

    O tal combate à corrupção foi seletivo e serviu apenas para desestabilizar os governos petistas, que estavam fortalecendo o Estado como grande agente de regulação estratégica do desenvolvimento nacional. Lideranças petistas foram perseguidas judicialmente, como foi o caso de José Dirceu e José Genoíno, e isso sob os aplausos de uma opinião pública raivosa, com fome de vísceras.

    Pouco importava o devido processo legal, desde que os “corruptos” fossem punidos e os “corruptos”, é claro, eram as lideranças petistas. Pronto! A matriz da crise está aqui. Só que do outro lado tinha um certo Luiz Inácio, cabra esperto, inteligente, que conseguiu sobreviver à primeira ofensiva do conglomerado “judiciário/imprensa hegemônica”.

    Nos anos seguintes, com a prosperidade econômica resultante do boom das commodities, os ânimos foram pacificados. Tava entrando dinheiro no bolso de todo mundo e a opção lulista em não tensionar as contradições estruturais fez com que o lobo faminto e temporariamente saciado pudesse dormir.

    O jogo mudou a partir de 2013, em virtude da combinação da crise econômica com algumas escolhas políticas da presidenta Dilma. Pois sim, em muitos aspectos o “dilmismo” é diferente do “lulismo”. Ainda precisamos avançar na conceituação do “dilmismo”. Não é isso que faço aqui.

    O lobo acordou, mais faminto que nunca e viu naquele momento uma chance de ouro para realizar o sonho do “Estado Mínimo Brasileiro”. Outra vez foi evocada a narrativa liberal do combate à corrupção. Foi assim que o governo da presidenta Dilma foi desestabilizado, foi com essa semântica que o golpe de 2016 se efetivou, novamente sob os aplausos dos “brasileiros de bem”, indignados com a corrupção.

    Mal sabiam os “brasileiros de bem” que eles estavam sendo bombardeados por uma narrativa que deu ao conceito “corrupção” um sentido específico, que de forma alguma é o único. Assim, com essa narrativa, Dilma foi derrubada e Lula condenado, em processos jurídicos profundamente politizados e questionados pela comunidade jurídica nacional e internacional.

    Acontece que a crise é um processo em movimento que ainda não acabou. Ao que parece, acabamos de entrar num outro momento da cronologia da crise: com Lula condenado e virtualmente preso, chegou a hora do lobo neoliberal devorar todo o banquete. O lobo é insaciável.

    E pra matar a fome do lobo, nada melhor do que servir, numa bandeja de prata, os privilégios do judiciário. Não é possível a realização do sonho do “Estado Mínimo Brasileiro” com um judiciário tão caro, cheio dos privilégios, cheio das pensões vitalícias.

    Bastaram menos de 72 horas após a condenação de Lula para aliança entre o judiciário e a mídia hegemônica, até aqui marcada por lealdade recíproca, se dissolver. Moro, Dallagnol, Bretas, até então representados como heróis nas páginas dos principais jornais da imprensa brasileira, se tornaram aproveitadores da coisa pública, se tornaram corruptos.

    Justo agora, os privilégios tão conhecidos por todos nós começaram a incomodar a imprensa hegemônica. De forma alguma, quero defender os juízes, mas precisamos entender que os ataques midiáticos ao judiciário fazem parte do mesmo projeto neoliberal que desestabilizou o reformismo petista. O lobo é faminto, teimoso e criativo. Tomara que as esquerdas brasileiras não se deixem seduzir pelo uivo do lobo, travestido de canto de sereia. Tem sereia não, meus amigos. É lobo mesmo, com os dentes enormes, mais perigoso que aquele jantou a chapeuzinho vermelho. Ou almoçou? Não sei.

    Escrever no olho do furacão é sempre um desafio e aquele que se arrisca acaba botando a língua na guilhotina. Não tem jeito. Por isso, arrisco a integridade da minha língua dizendo que temos um elemento novo na cronologia da crise brasileira.

    As duas forças que juntas foram as responsáveis pela aplicação do golpe têm projetos distintos e até mesmo rivais para o futuro da nação: de um lado, o judiciário querendo uma República dos bacharéis, onde os magistrados serão os guardiões da moral pública, com a devida recompensa, sob a forma de privilégios que não estão disponíveis a nenhum outro setor do funcionalismo público. Do outro lado, a imprensa hegemônica, que representando os interesses do neoliberalismo vê na atual conjuntura de crise a chance para tornar realidade, de uma vez por todas, o antigo sonho do “Estado Mínimo” brasileiro.

    Há um curto-circuito no coração do golpe! Em tempos tão difíceis, com tantas notícias ruins, talvez exista aqui algo a se comemorar.

    (*) Com ilustração de Cau Gomez