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  • A mão invisível do Paulo Guedes e a destruição da economia brasileira

    A mão invisível do Paulo Guedes e a destruição da economia brasileira

    Por: Licio Caetano do Rego Monteiro*

    Vocês ouviram o que o Weintraub falou do STF? E a Damares sobre os governadores? E o Araújo sobre a China? E a intervenção na PF? E os palavrões do Bolsonaro? Um show de horrores, todo mundo se abraçando e o Paulo Guedes… pá! Coloca uma granada no bolso do inimigo! O inimigo, no caso, somos nós.

    Essa é a mão invisível do Paulo Guedes. O ministro mais aloprado do Bolsonaro é o que menos apanha nos jornais e TV. Quando acordou no dia seguinte, depois de saber que era Paulo Guedes no comando e não o fajuto “plano Marshall”, o mercado aliviado, mandou avisar aos jornalões: “avisa aí que acordei tranquilo”. Ora, direis, ouvir mercado? Sim, o dólar baixou, a bolsa subiu. Isso significa em mercadês: “o mercado acordou tranquilo”. Nas redações existem aqueles que escrevem sobre mercado, previsão do tempo e horóscopo. Nem sempre acertam, mas não deixam de escrever.

    De todos os aloprados do governo, o Paulo Guedes é o único que não é apresentado como tal. Ora, é a voz racional, que pensa nas contas. Ora, é a voz da ousadia, dos arroubos de sinceridade, um capitalista agressivo, instintivo. Mas não há dúvidas lançadas sobre ele. Nem mesmo sobre sua capacidade em fazer o que promete. Nem espanto quanto ao casamento explícito entre o liberalismo e o autoritarismo, que ele advoga constantemente, desde sua influência chicago-pinochetista.

    O vídeo da reunião ministerial é um exemplo em que podemos notar duas coisas. A primeira é que o Paulo Guedes subiu na goiabeira e viu o livre mercado numa epifania. A segunda é que nem que aparecesse com a cueca no lugar da máscara ele seria questionado pela grande mídia e pelas vozes do “mercado”.

    Vamos então decifrar o grande projeto apresentado há exatamente um mês, quando a pandemia já corria todo o mundo e o Brasil. Ele diz que a retomada do crescimento só viria pelos investimentos privados, turismo, abertura da economia e reformas. Que não caberia voltar a uma agenda de trinta anos atrás, com investimentos públicos financiados pelo governo, que foi o que a Dilma fez durante trinta anos (sic!).

    Se o mundo for diferente, teremos capacidade de adaptação: colocar 1 milhão de jovens aprendizes recebendo R$ 200 para bater continência, aulas de OSPB e abrir estradas. Eis nossa capacidade de adaptação.

    Cassinos! Chamados aqui de resorts integrados, para não espantar. Atrair bilionários, executivos do mundo inteiro para fazer convenções e jogatina. O exemplo é o de Cingapura, cidade-estado que atrai milhões de turistas por ano – abstrai-se o fato de que está localizada num centro financeiro e de exportação industrial que gera uma circulação de milhões de magnatas ao longo do ano. Mas Angra dos Reis viraria a Cancún brasileira. Cada bilionário deixaria no cassino brasileiro o dinheiro ganho no dia anterior – ganho aonde, ele não explicou. “Ô Damares, deixa cada um se fuder!” Venha se fuder em Angra dos Reis, poderia ser o slogan da campanha. Critério: ser bilionário, vacinado e maior de idade. Não entra nenhum brasileirinho lá – os brasileirinhos provavelmente estarão ganhando R$ 200 por mês no quartel.

    Ele recebeu um recado do embaixador dos EUA: vamos colocar centenas de bilhões de dólares no Brasil, mas precisavam de um “bom ambiente de negócio”. O Braga Netto traduziu: segurança, segurança… (Talvez pudesse ter dado o exemplo de quantos bilhões de dólares entraram no Rio de Janeiro quando ele assumiu a intervenção federal na segurança).

    Guedes diz: aprovamos a reforma da previdência e vamos seguir a agenda de reformas. Já leu oito livros sobre cada episódio de “reconstrução” da Alemanha pós-I Guerra e II Guerra e do Chile, de Pinochet. A conta é de mentiroso, como sua estante de livros entrega.

    O Braga Netto ouviu na OCDE que eles já consideram o Brasil dentro. Depois repetiu que “estamos com o apoio do Trump”. Guedes diz: “o Brasil vai surpreender o mundo”. “Nosso presidente é democrata e vai fazer as mudanças”. E que o Brasil está sendo elogiado no exterior. Diplomacia do tapinha nas costas, enquanto a fuga de dólares corre solta desde o ano passado.

    Guedes diz: não vamos perder a bússola, vamos derrubar as torres do inimigo: excesso de gastos na previdência, juros e… salário dos servidores. Não tem jeito de fazer impeachment se estiverem com as contas arrumadas.

    Guedes diz: a China e a Índia precisam comer e o Brasil vai vender soja pra eles. É a trading da água. Eles não têm água, vão ter que abrir mão da agricultura para fazer outras coisas, e aí nós exportamos para eles. Falta dizer do que o Brasil estará abrindo mão para se concentrar na exportação de alimentos para a Ásia – provavelmente seguindo o caminho de abandonar todas as indústrias e serviços de maior agregação de valor, o que, convenhamos, já vem de algumas décadas.

    Guedes diz: somos um urso hibernando, quando acordar é sair pra comer o primeiro bicho que passar. Não vamos perder o rumo. Pode botar peruca loura, passar batom vermelho, mas não vamos perder o rumo. Estou passando uma mensagem de tranquilidade. Se fosse um piloto de avião enunciando essa mensagem no microfone, certamente seria uma continuação de Apertem os Cintos…

    Resumindo: R$ 200 por cabeça pra 1 milhão de jovens trabalharem nos quartéis, cassinos para bilionários, vender comida para China e Índia, botar granada no bolso do servidor público, ter o apoio de Trump, passar batom vermelho, não perder o rumo, transmitir tranquilidade. Era pra ser mais chocante que um tuíte do Weintraub, um discurso do Araújo ou um vídeo da Damares. Mas é o “homem do mercado”, o cara a ser protegido, a voz da razão.

    Os militares se escondem evitando a cena principal na frente das câmeras, o Guedes fala as maiores asneiras, mas é sempre tratado como o “normal” da sala. Até um dia que vai ser revelado como o alfaiate dos tecidos invisíveis, quando o rei estiver nu em praça pública. Mas não contem com a grande mídia para apontar o dedo ao óbvio.

    *Professor de Geografia Humana, UFF-Angra

    https://www.facebook.com/654417977/posts/10158164696612978/?d=n

  • Uma justiça de mercado

    Uma justiça de mercado

     

    Um modo claro para compreender o golpe que depôs Dilma e a condenação de Lula é inserir nosso país na reação conservadora que se iniciou lá nos anos 1970 e que consolidou as ideias de que o mercado deve ser deixado livre, sem regulações que o impeçam de ser “eficiente”, aos olhos de suas elites, e que o Estado, ao contrário, é sempre ineficiente e não deve se meter nos “negócios”. Essa ideologia, chamada de neoliberal, foi a reação contra o aumento da participação dos trabalhadores na renda e na vida geral das sociedades com maior desenvolvimento econômico, que aconteceu após a Segunda Guerra. O sistema judiciário, juízes e cortes, não ficou de fora dessa guinada conservadora.

     

     

    Voltemos alguns anos na história.

     

     

    As origens [do ataque ao sistema econômico] são variadas e difusas. Elas incluem, o que não chega a surpreender, Comunistas, Novos Esquerdistas e outros revolucionários que destruiriam o sistema por completo, tanto o político quanto o econômico. Esses extremistas da esquerda são muito mais numerosos, mais bem financiados e, crescentemente, mais bem-aceitos e encorajados por outros elementos da sociedade, do que em qualquer outra época de nossa história. (Ver em inglês na nota 4)

     

     

    Lewis Powell, que era advogado e tornou-se juiz da Suprema Corte dos Estados Unidos, escreveu esse parágrafo acima em 1971, como parte de um documento que ficou conhecido como “Memorando Powell”, reconhecido como um dos primeiros documentos a descrever as estratégias para reverter o crescimento do poder econômico e político dos trabalhadores no período que se seguiu à Segunda Guerra.

     

     

    O manifesto era endereçado a líderes da Câmara de Comércio dos Estados Unidos e visava unir esforços e recursos dos empresários para combater a “ameaça” da esquerda. Sua proposição não deixava de dar extrema importância ao convencimento de parlamentares, da mídia, das forças armadas, de acadêmicos e de juízes para atuarem em favor do livre mercado e da retirada de regras que “inibiam” a ação das empresas.

     

     

    Powell salientava que o Judiciário poderia ser o instrumento mais importante para mudança social, política e econômica. Ele aconselhava congregar advogados de alta competência para atuar como conselheiros “amigos” da Suprema Corte.

     

     

    Outro advogado e professor na Universidade de Chicago, Richard A. Posner, também exerceu forte influência sobre o conservadorismo das cortes com seu livro, de 1973, “Análise Econômica da Lei”, em que aplicava a ideologia do livre mercado às cortes. A atenção dada ao sistema de justiça, por Powell, Posner e outros, culminou com a formação de cortes com forte inclinação conservadora, cortes que aplicam a ideologia neoliberal às suas decisões, configurando uma justiça de mercado.

     

     

    Voltemos, agora, ao Brasil do século XXI.

     

     

    Carol Proner, doutora em direito e professora na UFRJ, escreveu o artigo “O lawfare neoliberal e o sacrifício de Lula”, que nos inspirou e guiou para essas linhas. Ela argumenta que o atropelo do judiciário empurrou as esquerdas brasileiras para a união e que a prisão de Lula, seu sacrifício, contribuirá para desmascarar a politização da justiça. Ela aponta a tramoia entre o Poder Judiciário, o Ministério Público, a Polícia Federal, apoiados pela mídia e ressalta o constrangimento causado pelos votos, antecipadamente combinados, dos desembargadores do TRF4.

     

     

    Ela se impacienta com os funcionários públicos (juízes, delegados e procuradores) que, em absoluto desrespeito às normas legais, retiram o direito da sociedade de escolher ou rejeitar Lula:

     

     

    É exasperante constatar que funcionários públicos investidos na função de administrar a justiça possam, ignorando normas e princípios legais consolidados, produzir um resultado que afeta diretamente o direito de uma sociedade escolher o seu soberano representante. Afeta até mesmo o direito de não escolher este candidato, comprometendo a sanidade do processo eleitoral.

     

     

    Não é preciso conhecer mais do que um mínimo da teoria do direito, afirma ela, para saber que esses três desembargadores decidiram fora do direito. Dando, assim, o exemplo para que outros juízes e outras cortes atropelem a técnica jurídica produzindo “vítimas e algozes em outras jurisdições”.

     

     

    Carol Proner nos faz recordar que mesmo nas guerras respeitam-se certos princípios que a Lava-jato desprezou ao não garantir devido processo legal, ao aceitar o processo do triplex que não cabia a Moro julgar por não haver provas da ligação com a Petrobras, ao aplicar uma pena muito maior do que é comum em casos semelhantes, ao condenar na ausência de provas, ao desrespeitar o estado de inocência, ao usar uso de provas ilícitas, ao violar os direitos do réu, ao exibir clara condução parcial do juiz, ao desrespeitar o princípio da paridade de armas, “regra medieval que remonta a ordem da cavalaria como sustentáculo de legitimidade de um julgamento justo até mesmo no direito da guerra”.

     

     

    Lawfare

     

     

    A origem da palavra lawfare (que se pronuncia “lofér”, com “o” aberto) é a junção das palavras law, que é lei, e warfare, que significa arma de guerra. Lawfare passou, assim, a referenciar o uso da lei como uma arma de guerra.

     

     

    Susan Tiefenbrun, professora de direito na Universidade de Nova York, explica que lawfare: “é uma arma projetada para destruir o inimigo através do uso, mau uso e abuso do sistema legal e dos meios de comunicação, para levantar o clamor público contra aquele inimigo.”

     

     

    A defesa de Lula enumera 11 táticas lawfare utilizadas pela Operação Lava Jato:

     

    Manipulação do sistema legal, com aparência de legalidade, para fins políticos;

     

    Utilização de processos judiciais sem qualquer mérito;

     

    Abuso do direito para danificar e deslegitimar um adversário;

     

    Promoção de ações judiciais para descredibilizar o oponente;

     

    Tentativa de influenciar opinião pública: utilização da lei para obter publicidade negativa;

     

    Judicialização da política: a lei como instrumento para conectar meios e fins políticos;

     

    Promoção de desilusão popular;

     

    Crítica àqueles que usam o direito internacional e os processos judiciais para fazer reivindicações contra o Estado;

     

    Utilização do direito como forma de constranger e punir o adversário;

     

    Bloqueio e retaliação das tentativas dos atores políticos de fazer uso de procedimentos disponíveis e normas legais para defender seus direitos;

     

    Acusação das ações dos inimigos como imorais e ilegais, com o fim de frustrar objetivos contrários.

     

    A racionalidade neoliberal a corromper todas as esferas da existência humana

     

     

    “Tomando distância, é evidente que o processo tem muito mais a ver com a des-democratização das sociedades mundiais e as ofensivas para desarmar soberanias.” Carol Proner faz, assim, a junção da ideologia neoliberal e os eventos recentes no caso Lula:

     

     

    Para compreender o que move a roda de golpes que atinge o Brasil, já tendo passado pela fase do golpe parlamentar e agora na etapa jurídica, é preciso emprestar as ferramentas de análise da sociologia e da ciência política, de autores como Laval e Dardot que descrevem “a nova razão do mundo”, a racionalidade neoliberal a corromper todas as esferas da existência humana, indo do individual ao estatal, passando por novas formas de gestão do capitalismo financeiro que borram a separação entre público e privado, entre direito público e direito privado, entre funcionário público e empresário-lobista, entre Estado e mercado.

     

     

    Para entendermos o retrocesso de direitos, precisamos reconhecer que o direito está submetido à racionalidade privada. Um quadro em que o direito penal é aplicado de modo diferenciado para “amigos” e “inimigos” da sociedade, em que o direito do trabalho sofre a “modernização flexibilizadora” e em que o direito constitucional é regido pelos ideais neoliberais de liberdade do mercado e desregulamentação das atividades empresariais privadas. Como já pregava a Escola de Chicago na segunda metade do século passado:

     

     

    A Escola de Chicago já pregava, em meados do século XX, a necessidade de formar juízes e convencê-los, por meio de cursos e seminários, das teses da desregulação do setor privado em favor de um laissez-faire absoluto. Controlar as cortes e os tribunais arbitrais passou a ser meta para a lex mercatoria em busca de um poder ilimitado que, juntamente com o controle da mídia e das forças armadas, garantiriam o triunfo do capitalismo contemporâneo. Registre-se, um capitalismo extremamente agressivo, que prescinde de qualquer acordo democrático e cuja faceta política é o neoconservadorismo nacionalista.

     

     

    Carol Proner termina seu artigo afirmando que Lula seguirá liderando processos democráticos e auxiliando a pensar instrumentos que revoguem as reformas que, a pretexto de austeridade fiscal e maior eficiência, retiram direitos dos mais carentes, restringem investimentos públicos, privatizam empresas públicas que são motores do desenvolvimento. Reformas que têm sido provadas ineficientes e danosas ao emprego e ao crescimento independente e soberano do país:

     

    Vendo-se a partir dessa moldura ampliada, há razões de sobra para a iminente prisão de Lula ou ao menos a sua inabilitação jurídica para concorrer ao pleito de 2018, o que não ocorrerá sem grande oposição das forças democráticas que já demonstram farta disposição para o confronto. De toda a sorte, após a grotesca perseguição jurídica, Lula sai maior, mais altivo, e seguirá liderando processos democráticos dentro e fora do país, auxiliando a pensar instrumentos revogatórios das reformas austericidas e propondo projetos restauradores dos direitos usurpados.

     

     

    A justiça de mercado, que tem feito suas vítimas, há anos, entre os pobres, alçou um voo mais audacioso que põe à mostra suas vergonhas à população que ainda a achava legítima.

     

     

    Notas

     

    1 Para ler o artigo de Carol Proner no Sul21:

     

    https://www.sul21.com.br/jornal/o-lawfare-neoliberal-e-o-sacrificio-de-lula-por-carol-proner/

     

     

    2 Para ler o Memorando Powell em inglês:

     

    http://scalar.usc.edu/works/growing-apart-a-political-history-of-american-inequality/the-powell-memorandum

     

     

    3 Para ler o Memorando Powell em português:

     

    http://scalar.usc.edu/works/growing-apart-a-political-history-of-american-inequality/the-powell-memorandum

     

    4 “The sources are varied and diffused. They include, not unexpectedly, the Communists, New Leftists and other revolutionaries who would destroy the entire system, both political and economic. These extremists of the left are far more numerous, better financed, and increasingly are more welcomed and encouraged by other elements of society, than ever before in our history.”