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  • Reflexões sobre o pós-Covid, uma crônica sobre o destino do “E daí?”

    Reflexões sobre o pós-Covid, uma crônica sobre o destino do “E daí?”

    ARTIGO
    Leandro Souza Moura, professor do Departamento de Turismo da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)

     

     

    A pandemia da Covid-19 traz ao mundo uma situação jamais vivida pela atual geração de habitantes do nosso redondo (sempre bom lembrar) planeta. Do ponto de vista histórico, chama atenção o paralelo com a chamada “gripe espanhola” do início do século XX que, apesar do nome, não surgiu na Espanha. Um olhar atual sobre aquela epidemia traz, em nossos dias, alarmantes preocupações. Já sob a ótica da psicologia, muito há que se estudar e se falar sobre os efeitos do confinamento, aliado ao medo e às preocupações, especialmente dos mais vulneráveis e de seus entes mais próximos. Lamentavelmente, o que têm orientado os discursos, em especial no Brasil e nos países que mais sofreram e estão sofrendo com a pandemia, é um ponto de vista míope, caolho, retrógrado e extremamente enviesado sobre
    Economia.
    É óbvio que é importante olhar para a economia, não seria eu, um economista, que diria o contrário. No entanto, mais do que nunca é preciso entender a complexidade do mundo e ser capaz de enxergar a economia em meio a outras também importantes áreas do conhecimento, como a história, a psicologia, a filosofia, a sociologia, a medicina entre outras. Além disso, é desalentador observar a visão e o uso que se faz da área de estudo que escolhi ao me inscrever no vestibular no já longínquo início dos anos 90.
    Preocupa-me ver reflexões sobre o mundo que encontraremos após a pandemia que focam em aspectos relacionados estritamente à questão econômica e seus desdobramentos, apresentando problemas seculares como se fossem consequências futuras da Covid-19, apesar de tais problemas estarem sempre presentes nos discursos, embora muitas vezes sejam ignorados (quando não provocados) na prática. Daria pra entender, embora eu não seja especialista em psicologia, o subconsciente agindo em pessoas preocupadas com a preservação de seus privilégios tentando justificá-los com um discurso mais palatável de preocupação com os menos favorecidos, mas dói ver esses discursos serem propagados por pessoas já massacradas pelo secular sistema de privilégios de um dos países mais desiguais do planeta.

    Vale lembrar que bem antes da Covid-19, já tinha muita gente falando em menos direitos em troca de um trabalho, sem perceber o conteúdo abertamente escravocrata desse
    discurso. Como era de se esperar, os direitos se foram e os empregos, que continuam no
    centro das “preocupações”, justificando todas as ações do “governo”, não vieram. Tampouco
    vieram depois das “salvadoras” reformas trabalhista e da previdência, mas o nosso eterno
    “agora vai”, na escalada propagandista já encardida do “sou brasileiro e não desisto nunca”
    induz as pessoas a acreditarem que, finalmente, o que faltava da nossa “cota de sacrifício” pra
    “salvar a economia” é colocar nossas vidas e as das pessoas próximas em risco.

    Se ninguém te contou uma novidade, eu agora vou contar: o estrago na economia está dado, e em boa parte do mundo, independentemente do quanto você arrisque a sua vida. Resta saber três coisas: 1) Quanto tempo levaremos para podermos começar a planejar nossa retomada, inclusive, mas não somente, econômica (necessidade que já existia antes da epidemia, é bom lembrar)?; 2) Sobre quantos cadáveres buscaremos essa retomada?; e 3) Qual a possibilidade de você e de pessoas próximas estarem entre as vítimas?

    Inegavelmente a resposta a essas perguntas será melhor à medida que você, as pessoas próximas a você, e a população de onde você vive adotarem os cuidados necessários, respeitarem a ciência e não acreditarem em “mitos”. Se
    você, em um passado recente, foi infectado pela crença em “mamadeira de piroca” é a chance de se redimir ou de se contaminar de vez, dessa vez literalmente, e com possíveis consequências às pessoas próximas.
    É preciso ressaltar os chamados “serviços essenciais”. É claro que tem pessoas que não podem deixar de trabalhar, seja pela necessidade do serviço, seja pela necessidade de sobrevivência, e essas merecem todo nosso apoio, cuidado, carinho, atenção, admiração e respeito. É também necessário lembrar que, infelizmente, pessoas já vulneráveis social e economicamente, eventualmente estão sendo obrigadas, coagidas, ameaçadas e, por esse motivo, estão, apesar
    do medo, indo trabalhar.

    Se aprendêssemos a, em vez de colocar o dedo na cara dessas
    pessoas, repudiarmos e responsabilizarmos os criminosos que atentam contra a vida de seus
    “colaboradores” e cobrássemos principalmente de quem tem OBRIGAÇÃO de apoiar
    trabalhadores e pequenos empresários, mas preferem proteger os sempre polpudos lucros
    dos bancos sem exigir nenhuma contrapartida, certamente já teríamos um mundo pós-
    pandemia mais evoluído e civilizado. Entretanto a permissividade com pessoas que agridem
    enfermeiras, que protestam por condições mínimas de trabalho, de quem toda a sociedade
    depende nesse momento não me deixa ser otimista. A realidade do Brasil 2020, infelizmente, é
    a de um país que normaliza manifestação barulhenta em frente a hospitais, em meio a uma
    pandemia, sem ação repressiva da polícia, desde que feita por “cidadãos de bem”.
    Mas, e se pudéssemos pedir uma mudança simples e definitiva para o período pós-pandemia, o que pediríamos? De minha parte, acredito que deveríamos tirar o “E daí?” do vocabulário. O “E daí?”, como expressão simples com requintes de um sentir-se superior, é uma expressão reveladora de um autoritarismo e de uma prepotência típicos daqueles que são incapazes de ter empatia por quem quer que seja, resumindo o descomunal descaso e a indiferença cotidiana que nos trouxe até aqui. Certamente não fossem os estrondosos “E daí?” que se acumulam historicamente no crescente individualismo sistêmico replicados nas vozes de ministros que “odeiam os povos indígenas”, que querem “passar a boiada” enquanto tratamos de sobreviver, que querem privatizar a “porra” do Banco do Brasil e acham que não valem os esforços de salvar as pequenas empresas, a tal Covid-19 não seria tão grave quanto ora se apresenta.

    Certamente ela não seria páreo para um mundo que tivesse aprendido com a história e tirado as lições necessárias da gripe espanhola, da crise de 29, das duas guerras mundiais, das ditaduras e das experiências nazifascistas. A história só se repete como tragédia ou como farsa? Talvez, mas certamente não se repete sem cúmplices, e essa cumplicidade se alimenta do mau-caratismo, da ignorância e do individualismo expressos de maneira resumida e tosca, no cadáver linguístico insepulto mais malcheiroso da história: o “E daí?”. Que ele seja a principal vítima da COVID-19.
    Beijos no coração de todos e todas.
    Fiquem em casa.

     

  • Tamires Sampaio: Palácio do Planalto ou Escritório do Crime, STF abre inquérito contra Bolsonaro. E daí?

    Tamires Sampaio: Palácio do Planalto ou Escritório do Crime, STF abre inquérito contra Bolsonaro. E daí?

    Por Tamires Gomes Sampaio, especial para os Jornalistas Livres 

    O Brasil possuí a maior taxa de contágio pelo coronavírus do mundo, os casos confirmados e o número de mortes estão aumentando a cada dia e o presidente Bolsonaro deixou explicito seu total descaso com a crise que estamos vivendo no país. Bolsonaro se preocupa mais com os crimes com os quais sua família está envolvida do que com a vida de milhões de brasileiros que está em risco diante de suas ações no governo.

    Depois das declarações do ex-ministro Sérgio Moro na sexta-feira (24) sobre a tentativa de Bolsonaro em interferir nas investigações da Polícia Federal e em inquéritos que correm em sigilo no Supremo Tribunal Federal (STF), fomos surpreendidos por uma revelação do site de jornalismo investigativo The Intercept que divulgou a existência de possível relação de seu  filho, Flávio Bolsonaro, com um esquema de construção civil ilegal liderado pela milícia do Rio de Janeiro. Além disso, no domingo, foi divulgado que Carlos Bolsonaro, também filho do presidente, estaria ligado a um esquema criminoso de disparos em massa de notícias falsas, fato que também está sendo investigado.

    No mesmo dia da revelação de Sérgio Moro, assistimos em nossas casas, com um misto de indignação e revolta, o pronunciamento dado em resposta por Bolsonaro. Primeiro, porque sua total incompetência para ocupar o cargo de presidente fica escancarada em seus discursos Segundo, porque o ouvimos não só reconhecer a interferência em investigações na PF, como também deixar escapar que o assassinato da vereadora do Rio de Janeiro, Marielle Franco, era um dos casos que estavam sendo investigados e que ele tentava interferir.

    Ao mesmo tempo, é importante que se entenda que Moro não pode se eximir de sua responsabilidade pelo tempo que ocupou o cargo de Ministro da justiça. Os crimes que hoje ele acusa Bolsonaro de ter cometido, podem ter se iniciado com sua conivência, o que igualmente merece investigação. Ele que ironicamente reconheceu em seu pronunciamento que durante as gestões do PT a PF possuía realmente autonomia para as investigações, afinal foi durante os governos Lula e Dilma que foram construídas políticas de combate à corrupção e de fortalecimento ao Ministério Público e a Polícia Federal.

    A interferência de Bolsonaro na Polícia Federal, ao tentar nomear Alexandre Ramagem como diretor-geral da PF, um notório amigo de sua família, que provavelmente irá engavetar todas as investigações relacionada aos Bolsonaros, configura crime de responsabilidade e demonstra que Bolsonaro não medirá esforços para manipular qualquer investigação contra ele e sua família. Diante desse verdadeiro escândalo, o Procurador Geral da República (PGR), Augusto Aras, solicitou ao Supremo a abertura de um inquérito para apurar os fatos narrados por Sérgio Moro e solicita que ele seja ouvido pelo STF sobre as acusações que fez durante a coletiva.

    O Ministro Celso de Mello determinou a abertura do inquérito e, assim, Bolsonaro será investigado pelos crimes de falsidade ideológica, pois Moro declarou que não assinou a demissão do antigo diretor geral da PF; coação no curso do processo e obstrução de justiça, pelas tentativas de Bolsonaro ter acesso às investigações feitas pela PF e aos inquéritos do STF; advocacia administrativa, ao tentar fazer os interesses de sua família se sobrepor às investigações que estão em curso; prevaricação, por agir de acordo com os interesses pessoais e não como presidente; e, por fim, corrupção passiva privilegiada.

    Dentre as acusações que Moro fez, a tentativa de interferir em investigações da PF e inquéritos do STF chamaram atenção, afinal: o que estaria Bolsonaro tentando impedir de ser investigado? Em sua própria coletiva Bolsonaro nos respondeu essa pergunta ao falar sobre como a PF estava dando mais interesse ao assassinato de Marielle Franco ao invés da facada que recebeu durante a campanha em 2018. A declaração chamou atenção pois seu filho Flávio Bolsonaro foi apontado como um dos possíveis envolvidos no assassinato de Marielle por sua relação com componentes de um dos grupos da milícia do Rio de Janeiro, o Escritório do Crime.

    No sábado (25), o site The Intercept Brasil divulgou provas de que Flávio Bolsonaro estava envolvido em um esquema de construção ilegal de prédios no Rio de Janeiro. A matéria publicada apresenta documentos sigilosos e dados levantados pelo Ministério Público do Rio de Janeiro a que o Intercept teve acesso.

    De acordo com a investigação que o MPRJ está fazendo, Flávio Bolsonaro financiou e lucrou com a construção de prédios erguidos pela milícia usando dinheiro público. O financiamento teria sido feito por meio de “rachadinhas”, nome popularmente dado à prática de desvio de parte da remuneração de funcionários públicos, no caso, funcionários do gabinete de Flávio Bolsonaro na Assembleia Legislativa do Rio e que era organizada por seu ex-assessor Fabricio Queiroz. Esta investigação preocupa a família Bolsonaro e é um dos motivos do presidente para trocar o comando da Polícia Federal.

    Gráfico com as declarações absurdas de Bolsonaro desde o início da pandemia de COVID 19 no Brasil. (Autor desconhecido)

    Essa revelação do Intercept torna ainda mais próxima a relação da família Bolsonaro com o brutal assassinato de Marielle, porque após dois anos de investigações sabemos não só que o assassino era vizinho dos Bolsonaros como era membro do chamado “Escritório do Crime” (organização miliciana especializada em assassinatos por encomenda) e que seu assassinato provavelmente estaria ligado ao fato de que os milicianos acreditavam que ela poderia atrapalhar os negócios ligados à grilagem de terras na zona oeste do Rio de Janeiro, como revelado pelo Secretário de Segurança do RJ, Richard Nunes.

    O cerco contra a família Bolsonaro está apertando e a sua relação com a milícia do Rio de Janeiro fica a cada dia mais escancarada. Estamos hoje, graças às “fake news” propagadas durante às eleições de 2018 – coordenadas pelo Carlos Bolsonaro de acordo com investigação feita pela PF  – e a atuação do então juiz Moro ao prender Lula injustamente e impedi-lo de concorrer às eleições, sendo governados por uma família de milicianos.

    Com o Inquérito do PGR instaurado pelo STF, caso a tentativa de Bolsonaro de interferir nas investigações da Polícia Federal seja confirmada, ele não terá a menor condição de continuar ocupando o cargo de Presidente da República e deverá ser afastado de imediato, seja por meio de sua renúncia ou de abertura de processo de impeachment.

    O Brasil, assim como o restante do mundo, está passando por uma crise sanitária sem precedentes em sua história com o avanço do coronavírus, que já matou mais de 5.100 pessoas e que infectou 73 mil pessoas, de acordo com o número de casos confirmados. Portanto, mais do que nunca, precisamos de um governo que garanta que a população tenha acesso a políticas de inclusão social que permitam que elas fiquem em casa e façam o isolamento com a segurança de que poderão pagar suas contas e se alimentar. Além disso, que também garanta seus direitos trabalhistas sejam assegurados e não destruídos, como está acontecendo durante a gestão Bolsonaro. No Palácio do Planalto deve ser um espaço de formulação de políticas de combate às desigualdades e de proteção da vida dos milhões de brasileiros e não esta política de morte que estamos vendo sendo implementada neste verdadeiro escritório do crime.

     

    Dra. Tamires Gomes Sampaio é advogada, mestra em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e militante da Coordenação Nacional de Entidades Negras (CONEN). Foi a primeira presidente negra do Centro Acadêmico de Direito do Mackenzie.

     

     

     

    Fontes utilizadas no artigo:

    https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2020/04/27/celso-de-mello-stf-inquerito-bolsonaro-moro.htm

    https://www.jota.info/stf/do-supremo/pgr-requer-abertura-de-inquerito-ao-stf-para-apurar-fatos-narrados-por-sergio-moro-24042020

    https://oglobo.globo.com/brasil/celso-de-mello-sorteado-relator-do-pedido-de-inquerito-sobre-discurso-de-moro-1-24392794

    https://theintercept.com/2020/04/25/flavio-bolsonaro-rachadinha-financiou-milicia/

    https://www.em.com.br/app/noticia/nacional/2018/12/14/interna_nacional,1013283/milicia-matou-marielle-pela-ocupacao-de-terras-diz-secretario-de-se.shtml

    https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/04/pf-identifica-carlos-bolsonaro-como-articulador-em-esquema-criminoso-de-fake-news.shtml?aff_source=56d95533a8284936a374e3a6da3d7996