Para alegria dos donos de clínicas psiquiátricas e certos prefeitos conservadores, a Lei nº 13.840, que prevê, entre outras medidas, a internação involuntária de dependente de drogas, está publicada no Diário Oficial da União desta quinta-feira, 6. Ela foi sancionada ontem pelo presidente da República, Jair Bolsonaro, e trata sobre o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas e as condições de atenção aos usuários ou dependentes e sobre o financiamento das políticas sobre drogas.
A lei aprovada pelo Congresso é defendida pela extrema-direita e por religiosos fundamentalistas, que têm fundado “comunidades terapêuticas”. No entanto, profissionais de saúde e entidades de direitos humanos condenam a iniciativa. A lei foi proposta pelo deputado Osmar Terra (MDB-RS), atual ministro da Cidadania. O projeto foi aprovado pela Câmara em 2013 e no Senado no último dia 15 de maio.
Pesquisa da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) revela que não existe no país uma “epidemia de drogas”. Recentemente, o governo tirou do ar o site do Observatório Brasileiro de Políticas sobre Drogas (Obid) com levantamentos nacionais sobre uso de drogas no país.
No seu artigo 23-A, o texto diz que o tratamento do usuário ou dependente de drogas deverá ser ordenado em uma rede de atenção à saúde, com prioridade para as modalidades de tratamento ambulatorial, incluindo “excepcionalmente formas de internação em unidades de saúde e hospitais gerais nos termos de normas dispostas pela União e articuladas com os serviços de assistência social e em etapas”.
Entre essas etapas, está a que trata da internação do dependente, que somente deverá ser feita em “unidades de saúde ou hospitais gerais, dotados de equipes multidisciplinares e deverá ser obrigatoriamente autorizada por médico devidamente registrado no Conselho Regional de Medicina (CRM) do estado onde se localize o estabelecimento no qual se dará a internação”.
De acordo com a lei, serão consideradas dois tipos de internação: voluntária e involuntária. Na internação involuntária, ela deve ser realizada após a formalização da decisão por “médico responsável e indicada depois da avaliação sobre o tipo de droga utilizada, o padrão de uso e na hipótese comprovada da impossibilidade de utilização de outras alternativas terapêuticas previstas na rede de atenção à saúde”.
O documento indica que a internação involuntária deve ocorrer no prazo de tempo necessário à desintoxicação do paciente, “no prazo máximo de 90 dias, tendo seu término determinado pelo médico responsável; e que a família ou o representante legal poderá, a qualquer tempo, requerer ao médico a interrupção do tratamento”.
A lei prevê também que todas as internações e altas deverão ser informadas, em, no máximo, de 72 horas, ao Ministério Público, à Defensoria Pública e a outros órgãos de fiscalização, por meio de sistema informatizado único”.
No último dia 14 de agosto completou 43 anos que o pastor protestante Martin Luther King Jr. recebeu o Prêmio Nobel da Paz pela sua liderança nos movimentos por direitos civis, que tomaram os Estados Unidos entre as décadas de 1950 e 1960. De forma arrebatadora, o movimento promoveu muitos desdobramentos na vida da população negra daquele país, sua participação política, econômica, midiática, em um lugar onde, àquela época, ainda havia as placas restringindo a entrada de pessoas negras em banheiros, ônibus, bares e restaurantes, bem como em escolas, serviços de saúde. A mesma época onde se garantia a não participação da população negra no exercício do voto a partir de uma complexa estrutura de discursos e instituições brancas.
E lá estávamos nós na sexta cidade mais negra dos Estados Unidos, Atlanta, para debater com mais de 1700 pessoas de cerca de 80 países, estratégias para a reforma das políticas sobre drogas no mundo, no Congresso da Drug Policy Alliance. A cidade abriga uma elite negra, é verdade, e é bastante comum pessoas negras ocupando carros caros circulando pelo centro da cidade, ou frequentando o aeroporto internacional mais movimentado do mundo, e sendo proprietárias dos estabelecimentos que frequentávamos na noite da cidade. Atlanta foi também a cidade a eleger o primeiro homem negro à prefeitura (Maynard Jackson, em 1973), e a primeira mulher negra para algum cargo no Sul do país (Shirley Franklin, eleita em 2001 para a Presidência da Câmara). O atual prefeito de Atlanta é negro, Kassim Reed. [O Portal Correio Nagô entrevistou Reed logo após a sua reeleição em 2013]. E é também a cidade onde em 1886 se vendia o primeiro copo de Coca-Cola da história, uma fórmula do farmacêutico John Stith Pemberton, que buscava uma bebida que lhe pudesse aliviar as dores das feridas trazidas da Guerra Civil. Assim, poderia substituir o seu uso abusivo de morfina.
O Papa Leão XIII já havia condecorado, com uma medalha honorífica, a fórmula do químico Angelo Mariani, que em 1863 utilizava as propriedades dos alcalóides da folha de coca em uma receita de vinho. Até aquele momento não era nem considerada a possibilidade de tornar ilegal ou ao menos desaprovar os alcalóides da planta andina que, isolada ainda na primeira metade de 1800, era ministrada como anestésico e estimulante, e surpreendia especialistas os seus miraculosos efeitos. Sigmund Freud recomendava o seu consumo terapêutico aos pacientes, e produziu uma de suas mais conhecidas obras sobre o tema, ÜberCoca. A surgimento da psiquiatria tem uma relação bastante próxima com a difusão dos alcalóides andinos entre as populações brancas européias e dos Estados Unidos. No Brasil, o seu consumo era parte do conjunto de substâncias consumidas na high society carioca, no período conhecido como a Belle Epoque.
Em 1914, o Brasil subscreveu um protocolo suplementar da Convenção Internacional do Ópio, por meio do Decreto 2.861 de 08 de julho daquele ano, e logo um ano depois, mais um decreto, de número 11.481 de 10 de fevereiro de 1915, que menciona “o abuso crescente do ópio, da morfina e seus derivados, bem como da cocaína” e a necessidade de observância dos termos da Convenção. Ao fim da primeira guerra mundial, segue a Convenção de Genebra de 1925, também subscrita pelo Brasil. E onde tem um lugar fundamental a configurar-se a transnacionalização do controle de substâncias psicoativas.
A noz de cola utilizada na fórmula de Pemberton é de origem africana, e é uma denominação genérica de várias árvores da família das esterculiáceas. Seu fruto, chamado noz de cola, também possui alcalóides, e poderosas propriedades estimulantes. Pode ser encontrada com os nomes de mukezu, oribi, orobó, obi, orobô e abajá. O uso de suas amêndoas foi difundida na região norte da América Latina por intermédio das pessoas negras escravizadas que mascavam a cola para suportar os trabalhos penosos. Junto aos panos da costa, o sabão preto, o dendê (sobre o qual escrevi na semana passada), a noz de cola era uma das mercadorias africanas mais comuns no tráfico transatlântico com o Brasil.
Mas ao longo dos seus 125 anos de história, a bebida mais popular do mundo, que tem mais países consumidores do que os participantes da Organização das Nações Unidas, deixou um rastro de sangue, fraudes, sonegações e corrupção por onde passou. Afeta a vida de produtores de coca e cola através da exploração do trabalho escravo, sendo responsável pela falta de água em diversos comunidades negras e indígenas, e patrocina mudanças nas políticas públicas de gestão das águas em diversos locais do mundo, em prol de seus interesses. Em algumas comunidades indígenas de Chiapas, zapatistas declararam a muitos anos zonas livres do comércio de Coca-Cola, onde não seriam consumidos seus produtos. No Brasil, recentemente a Coca-Cola foi responsabilizada pelo Ministério Público do Trabalho por práticas de escravização em Minas Gerais.
Em Memphis, às vésperas do seu assassinato em 1968, Dr. King e outras lideranças convocaram um boicote à Coca Cola, justamente por observar que as pessoas negras, desde a Atlanta a Memphis, e por todo o país, faziam todo o trabalho duro na cadeia de produção e comércio, e não alcançavam posições de destaque na empresa, além de não serem os maiores consumidores. A partir das denúncias e do boicote de outras lideranças dos direitos civis, a empresa foi pressionada a se posicionar publicamente, afirmando que não praticava discriminação de qualquer origem. Ainda assim, foi condenada a pagar uma ação judicial de mais de 2 milhões de dólares movida por trabalhadoras e trabalhadores da empresa.
Dudu Ribeiro, da Iniciativa Negra Por Uma Nova Política de Drogas, fala na Conferência Mundial de Politicas de Drogas em Atlanta
Quando chegamos na cidade de Atlanta para discutir a política sobre drogas, o peso da questão racial nos impõe desde a história de Martin Luther King Jr aos efeitos do capitalismo industrial no controle dos corpos negros produzido também na própria guerra às drogas. O novo papel a ser cumprido pela prisão, explanados nos postulados do século XIX e nas demandas produzidas pelo e para o avanço do capitalismo industrial no mundo, que alcançará a reforma do sistema de punições, não só produzirá uma nova percepção da intenção do cárcere, como também, uma nova percepção da dimensão do autor de desvios. E se aliará com a emergência dos discursos e práticas que buscavam consolidar a existência no “outro”, negro, uma raça biológica e culturalmente inferior, propensa aos vícios e potencial agente da degeneração da raça.
O discurso de Michelle Alexander na abertura do evento, afirmando que não estava otimista com os caminhos percorridos pelas reformas recentes nas políticas sobre drogas nos Estados Unidos hoje nos levanta questões importantes para serem pensadas a nível global, mas também local, sobre os processos de reforma em debate pelos diversos setores. O presidente Trump se pronunciou dizendo que “vencerão a nova epidemia” no que tem sido chamado também de “crise dos opióides”, com o país lidando com o aumento crescente do consumo de heroína com alta taxa de pureza vida da China, e outros derivados. Atingiram a marca de 120 mil mortes por overdoses nos últimos 24 meses, duas vezes mais do que as perdas na guerra de 19 anos no Vietnã.
Na mesma eleição que deu a vitória a Donald Trump, eleitoras e eleitores dos Estados Unidos aprovaram através de plebiscito o uso recreativo e medicinal da maconha em diversos estados. Califórnia, Massachusetts, Nevada, Maine, bem como a Flórida, Arkansas, Montana e Dakota do Norte se somaram assim aos estados do Colorado, Oregon, Washington e Alasca. O uso medicinal hoje já alcança 29 dos 50 Estados do país. (ver sobre isso)
E poderia parecer paradoxal os Estados Unidos terem avançado nas reformas das políticas sobre drogas, justamente nas últimas eleições que tiveram como resultado a vitória do conservador Donald Trump. Mas não é. De fato, Alexander nos lembra que o que conecta a vitória dos conservadores nas eleições nos Estados Unidos e o avanço na regulamentação da maconha e do debate sobre as respostas às questões do uso e abuso de drogas no país, responde por um nome: branquitude.
Atualmente, a campanha sobre a crise dos opióides incentiva um sentimento na população do país através de campanhas midiáticas, de compaixão às vítimas, de apelo pelo cuidado, para que as mortes sejam evitadas, e diversas figuras públicas, representantes conservadoras do Congresso, por exemplo, se dedicam a uma disputa por quem oferece mais pelas pessoas e pelas famílias. O governador da Flórida Rick Scott, um republicano conservador, declarou em maio deste ano estado de emergência de saúde e concedeu 54 milhões de dólares para serem investidos em prevenção, tratamento e reabilitação. (ver aqui).
Brasil
No Brasil, o lançamento do filme Ilegal por exemplo, que teve ampla repercussão nos principais veículos de imprensa no Brasil, movimentou os sentimentos de preocupação e comoção com a condição da pequena Anny, 5 anos na época, paciente de uma grave e incurável síndrome que desencadeia episódios frequentes de epilepsia, desde que nasceu, chegando a 80 crises por semana. O único remédio encontrado para o caso foi o CBD, extraído da Cannabis. Imediatamente até os mais conservadores no Congresso Nacional, como é o caso do Senador Magno Malta, buscaram prestar apoio a mudanças na legislação que permitissem o acesso, ainda que através da importação do produto já processado, a Anny e a outras famílias brancas que tivessem condições de custear o remédio. E nos últimos meses, inúmeras decisões foram proferidas e a própria ANVISA segue a passos firmes no processo de regulamentação da maconha para fins medicinais no Brasil.
Ou seja, quando as dificuldades com drogas atingem a população branca, quando os efeitos dos abusos, ou as condições do comércio ilegal interessam às pessoas brancas, as políticas mudam, as pessoas mudam, as propagandas mudam. Quando as vítimas são pessoas brancas diversos processos de mudanças são disparados, dinheiro é investido, e a população precisa ser comovida. No entanto, o mesmo tratamento não é dirigido à população mais comumente afetada pelo consumo e pela repressão ao uso de crack, a maioria negras e pobres, constituindo a representação comum na realidade brasileira ou nos Estados Unidos.
Se a maioria das pessoas envolvidas com o comércio, a produção e a venda de heroína fossem negras, não estaria havendo a mesma disputa nos Estados Unidos, como lembrou Alexander, bem como se colocássemos a vida de uma criança negra para movimentar a mudança de políticas no país, tão pouco teríamos grandes efeitos. Justamente, porque a comoção promovida, financiada, organizada pelas estruturas orientadas pelo racismo é seletiva. E a população é incentivada a comover-se seletivamente. Bandeiras no Facebook para as mortes em Paris e não para as mortes na Somália, lembra? (Por que não somos todos Somália?)
Por isso que os ciclos de reformas e mudanças que defendemos nesse país e em qualquer local do globo, trará sempre a centralidade das questões ligadas à raça. A reconfiguração dos dispositivos de controle, dos mercados e das políticas, instrumentalizada pelos discursos jurídicos, econômicos e midiáticos, herdados do escravismo, consolidam saberes e práticas sobre o crime e o desvio, mas também sobre o cuidado e a compaixão que são profundamente racializadas. Assim como a patologização do uso de drogas versus a criminalização do uso de drogas é um oposto e um complemento que guardam racializações profundas, as mudanças em curso trarão essas mesmas condições. A articulação entre velhas e novas formas de dominação nas modernas democracias, farão surgir novas governamentalidades, e onde continuarão no centro a sujeição da vida ao poder da morte, como uma necropolítica do Mbembe, e o olhar sobre quem se quer cuidar, proteger, promover, resgatará a nossa história de colonização sempre.
Em 1963, o pastor King anunciava sobre a Proclamação da Emancipação dos Estados Unidos, que “esse importante decreto veio como um grande farol de esperança para milhões de escravos negros que tinham murchados nas chamas da injustiça. Ele veio como uma alvorada para terminar a longa noite de seus cativeiros. Mas cem anos depois, o Negro ainda não é livre”.
Estaremos sempre atentos portanto em cada processo de mudança sobre nossas vidas que não tragam em sua centralidade a extensão das nossas vozes, as reparações à nossa história, a superação dos traumas que são de todas as sociedades, e que a nossa comoção seja algo da nossa própria humanidade, estendida, ampla e verdadeira, e não apenas um espelho dos brancos para nos dizer por quem devemos chorar.
Nas últimas semanas, em algumas oportunidades, sugeri para algumas colegas que refletíssemos sobre a questão da proibição do dendê na Bahia. Um assunto até que já vem rendendo um caldo pelo mundo, o que acabei descobrindo nesta ocasião. A indústria de óleo de palma, um produto extraído do dendezeiro, passou a sofrer pressão na Europa depois que autoridades afirmaram que o produto aumentaria o risco de câncer. Na indústria do biocombustível, interesses econômicos se confrontam sobre a utilização do dendê versus outras matrizes energéticas. (ver também).
Mas o meu convite se referia a uma comparação mais profunda, sobre a proibição da maconha do Brasil, essa sim em vigor a várias décadas, e a possibilidade da restrição do uso, comércio e produção do dendê. Todas as possibilidades estão abertas na Era dos Absurdos. Pena Hobbsbawn não ter sobrevivido…
O café por exemplo, já foi uma bebida perseguida em diversos lugares do mundo. [O professor Henrique Carneiro nos narra muito bem a relação entre alimentos, drogas e proibição na história da humanidade].
Na data de 4 de outubro de 1830, a Câmara Municipal do Rio de Janeiro penalizava o pito de pango, “fumar maconha”, na postura que regulamentava a venda de gêneros e remédios pelos boticários. Ficaria proibida assim, a venda e o uso do pito do pango, bem como a conservação dele em casas públicas. Os contraventores serão multados, a saber: “o vendedor [multado] em 20$000, e os escravos, e mais pessoas que dêle usarem, em 3 dias de cadeia”. Ao escravo, seria destinada a prisão, portanto.
As pessoas escravizadas, para as quais não eram reservados direitos e portanto, excluídas dos demais códigos jurídicos, não deixava de aparecer no entanto nas posturas criminais. Nesse caso, se destacaria inclusive entre as demais pessoas que usassem. Só poderiam ser consideradas cidadãs, pessoas portanto, para serem criminalizadas.
A criminalização da população negra tinha relação com o controle da raça negra para que não boicotassem o projeto civilizatório das elites políticas brancas, que ao final do século XIX, às vésperas do fim da escravidão formal, se perguntavam: “O que fazer com o negro?”. [Questionamento que a professora Celia Maria Marinho Azevedo tentou observar].
Antes mesmo da primeira constituição republicana, já se deixava bem claro com quem se esperava compor a população do Brasil a partir dali: É inteiramente livre a entrada, nos portos da República, dos indivíduos válidos e aptos para o trabalho, que não se acharem sujeitos a ação criminal do seu país, excetuados os indígenas da Ásia ou da África, que somente mediante autorização do Congresso Nacional poderão ser admitidos, de acordo com as condições estipuladas. Somente mediante a autorização do Congresso Nacional, importante frisar. [Quem muito bem escreve sobre os enlaces e entraves dessa dissimulação brasileira, é a autora Wlamyra Albuquerque, querida professora].
O código penal de 1890, já continha as cartas que seriam usadas no começo do século seguinte para a repressão ao samba e à capoeiragem (perseguida pela lei desde o código do Império), assim como às pessoas consideradas vadias, através de uma caracterização ampla contida no termo de “desordem”, e outros códigos. Uma portaria no Rio de Janeiro em 1889, determinava que, em caso de conflito, a polícia deveria usar preferencialmente “meios suasórios”, “cacetadas, maus tratos e até tiros, se possível for”. (Ver sobre isso)
Em 1915, o professor da Faculdade de Medicina da Bahia Rodrigues Dória, assume que criminalizar a maconha no Brasil era uma tarefa de controle da população negra egressa da escravidão. Ele afirma que, a raça (negra) outrora cativa, trouxera bem guardado consigo para ulterior vingança, o algoz que deveria mais tarde escravizar a raça opressora. (…) O vício de fumar a erva maravilhoso, que, nos êxtases fantásticos, lhe faria rever talvez as areias ardentes e os desertos sem fim da sua adorada e saudosa pátria, inoculou também o mal nos que o afastaram da terra querida, lhe roubaram a liberdade preciosa, e lhe sugaram a seiva reconstrutiva (sobre o tema). A maconha seria assim uma vingança dos negros contra os brancos por terem nos roubado a liberdade preciosa e sugado a seiva reconstrutiva.
Em 1938, diversas autoridades se reúnem em Salvador para discutir a elaboração de instrumentos para coibir o comércio, o consumo e a produção da planta, no I Convênio Interestadual da Maconha, e assim, pôr em prática a decisão editada na lei de seis anos antes, e uma das orientações retiradas daqueles dois dias, de uma sala quente no centro da cidade da Bahia, foi a obrigatoriedade de inscrição dos terreiros de candomblé em autoridade policial, medida que não é suspensa até 1978.
E a perseguição à planta deveria ser por todo o Brasil: “Uma luta sem tréguas contra os fumadores de maconha. No Rio de Janeiro, em Pernambuco, Maranhão, Piauí, Alagoas e mais recentemente Bahia, a repressão se vem fazendo cada vez mais enérgica e poderá permitir crer-se no extermínio completo do vício”, comemoravam os proibicionistas. A polícia sempre como agente de destaque para a manutenção da ordem e dos bons hábitos na cena urbana. Nas zonas rurais, outras milícias menos institucionalizadas, por assim dizer.
A proibição da maconha surge não a partir dos efeitos da planta no organismo, dos seus usos, ou dos seus possíveis agravos, mas sim como uma nova engrenagem do projeto de controle da população negra egressa da escravidão, para manutenção dos mecanismos de hierarquia racial construída naquele período. E aqui eu misturo o dendê e o pinho sol.
O jovem negro Rafael Braga deixou um casarão abandonado no centro do Rio de Janeiro, onde catava algumas quinquilharias, e não tinha ainda se dado conta de que haviam mais de 300 mil pessoas do lado de fora que se manifestavam contra a realização da Copa das Confederações no Brasil, e uma enorme confusão causada pela repressão policial. Em seu percurso para a casa de uma tia que morava próximo, onde pretendia deixar uma garrafa de água sanitária e outra com desinfetante que havia encontrado junto às escadarias do local onde estava, foi abordado por policiais e levado à delegacia.
Dois policiais civis afirmaram que Rafael portava duas garrafas de plástico com um estopim laranja, e que o material parecia com coquetel molotov. O laudo técnico da Polícia Civil atestou que a água sanitária não poderia ser utilizada como material inflamável (para espanto de todos, surpreendendo até a obviedade). O desinfetante, no entanto, do jeito que estava, teria, no máximo, “mínima aptidão para funcionar como ‘coquetel molotov’”. O juiz Guilherme Schilling Polo Duarte, branco, resolveu assim, baseado naquele laudo e na declaração dos policiais, condenar Rafael Braga Vieira a cinco anos de reclusão, que deveriam ser cumpridos inicialmente em regime fechado. Rafael foi ainda condenado pelo diretor da unidade que cumpria pena a dez dias na solitária por ter tirado uma foto em frente a um muro, quando progrediu meses depois para o semiaberto. No muro, a frase: “Você só olha da esquerda para a direita, o Estado te esmaga de cima para baixo”. Pena de 2 m², sem acesso à luz e a outras pessoas.
Quando saiu da prisão em 1º de dezembro de 2016, para o regime aberto com tornozeleira eletrônica, Rafael foi abordado de novo por polícias, 40 dias depois. Ao ser parado, Rafael afirma que foi chamado de “bandido” e conduzido até um beco, onde, foi agredido com socos no estômago e o ameaçado. Surgiram então 0,6 gramas de maconha, 9 gramas de cocaína e um rojão nos bolsos de quem havia deixado a casa da sua mãe com três reais para comprar o pão. Rafael foi condenado a 11 anos e nove meses de prisão. O juiz Ricardo Coronha Pinheiro, branco, impediu inclusive a verificação dos dados da tornozeleira que Rafael usava, pois isso colocaria em xeque o depoimento dos policiais que o prenderam.
Jhonata Dalber Matos Alves tinha 16 anos quando foi atingido por polícias da UPP no Morro do Borel no Rio de Janeiro, que “confundiram” o saco de pipoca que ele tinha na mão com drogas*. O menino Joel morreu aos 10 anos dentro de casa no Nordeste de Amaralina, também numa operação policial. Luciana segue presa em Natal. Cláudia Ferreira foi arrastada em rede nacional.
Chegamos então às conclusões que me trouxeram de um simples post para o facebook a uma tarde dedicada a escrever essa breves palavras para vocês.
O que eu trazia para as minhas colegas em Salvador era que a questão da substância em si, maconha, pinho sol, dendê, explosivo, feijão, café ou açúcar, pouco importa para o processo criminalizador. A construção da pessoa criminosa no Brasil se dá antes mesmo da realização do crime. E ela tem raízes profundas no nosso processo de escravização, que é a maior parte da história brasileira. As noções de crime, castigo, punição, pena, em nosso país, são oriundos dos quintais da Casa Grande, e são a base do nosso sistema penal, como nos lembra a professora Ana Flauzina.
A arquitetura punitiva herdada do modelo imperial-escravista, onde as práticas de controle se desenvolveram no terreno das relações entre o senhor e o escravo em séculos e, portanto, dentro do âmbito privado, ao transferir-se para o Estado republicano, gerenciado pelos mesmos senhores, esforçava-se na extensão do discurso da inferioridade negra, desenhando novos manejos que reforçassem a naturalização da subalternidade.
Entre o conjunto de mecanismos que permitiam a gerência real sobre a circulação material do corpo negro na cena urbana, e que alimentava a apreensão racista do fenômeno do crime pelo conjunto responsável por normalizar a acusação social, e reproduzi-la, tornando o criminoso, construído anteriormente ao crime, um corpo real, material, a ser punido, encontraremos a perseguição à vadiagem para o processo almejado de profilaxia social, intimamente ligada ao controle do uso de substâncias psicoativas, sejam legais como o álcool, ou ilegais como a maconha. Mas os corpos foram criminalizados antes de alcançarem essas substâncias e as suas classificações legais. Afinal de contas, vejo jatinhos e helicópteros circulando livremente com insígnias oficias e proteção judicial… mas desde que não carreguem dendê ou pinho sol, tá tudo certo…. pros brancos.
* História lembrada pela querida amiga Luísa Saad, a quem também agradeço aquele “revisãozinha pro broder”.
Por Jessica de Almeida, para os Jornalistas Livres
Foto: Rafael Marques/Coletivo Chão/divulgação
“Se pensarmos no ser humano como um ser que é dotado de desejo e curiosidade e que busca aliviar tensões pela via do prazer, é mais do que justo que ele utilize essas substâncias em determinados contextos para se sentir bem, compartilhar momentos e é isso que o espaço de festa é, um espaço de amor, de busca, e a nossa ideia é como deixar o espaço de confraternização mais seguro e saudável para as pessoas que estão ali compartilhando. O recorte aqui será a redução de danos em contextos de festa”, introduz uma mulher ruiva e de vestido longo. A partir dali, a discussão teve como norte a ética e o respeito sobre escolha de consumir substâncias, reflexões sobre possíveis riscos e estratégias de autocuidado, cuidado com o outro e a sociedade.
A redução de danos tem como base um conjunto de estratégias cuidadosas que refletem sobre as vulnerabilidades em relação ao uso de drogas. Considera-se que as pessoas assumam a responsabilidade sobre suas escolhas, mas sempre prezando o mundo e os outros envolvidos. O conceito de redução de danos não é novo e os efeitos da aplicação dessas estratégias são célebres, como a iniciativa de troca de seringas para usuários de drogas injetáveis na Holanda, em 1984. A medida reduziu intensamente o contágio por doenças como a hepatite B e a propagação do vírus HIV. É facilmente acessível, hoje, materiais sobre a redução de danos enquanto política pública e tratamento efetivo de dependentes químicos a partir do uso de diversas outras substâncias. Mas o diálogo sobre redução de danos cruza, em vários momentos, com as discussões sobre a fronteira entre os usos recreativo, problemático e medicinal de drogas, a inclusão da população em situação de rua, a luta antimanicomial e práticas de sexo seguro.
A plataforma brasileira de política de drogas é majoritariamente embasada no paradigma proibicionista, responsável pelo distanciamento da relação uso de drogas-controle sanitário (nos processos de produção, armazenamento e distribuição), tornando altamente duvidosa a composição de substâncias psicoativas, ampliando o risco de consumi-las e mantendo seus efeitos no campo do desconhecido.
Surgida no início do século XX e pautada na ideia de que algumas substâncias devam ser inacessíveis para a sociedade. Os alvos de perseguição se tornam, então, essas substâncias específicas; as pessoas que a produzem, transportam e vendem; o próprio uso. Enquanto isso, outras substâncias são permitidas ou mantidas no regime médico. No caso da redução de danos, o impacto é no tratamento. Domiciano Siqueira, redutor de danos e presidente da Associação de Redução de Danos de Minas Gerais, destaca que “o uso de drogas é, sim, presente nas organizações sociais desde os tempos mais remotos, mas ninguém fala que ele [o uso] se tornou um problema há apenas 120 anos, com o proibicionismo”.
Uma das proposições do paradigma proibicionista é que a única forma de reduzir o dano ou tratar uma pessoa em situação de dependência é cessar o consumo. Siqueira explica que a meta das ações de redução não é a abstinência e que há diversas formas de lidar com a questão, incusive a abstinência, ideal para alguns casos, mas não para todos. E é exatamente a totalidade que a política deve abarcar.
Nem todos os envolvidos na contestação do proibicionismo tem uma direção clara sobre como deve ser a política de drogas ideal – já que nada além do que está posto foi tentado em grande escala – mas todos compartilham o diagnóstico de que este modelo é um fracasso, não só do ponto de vista da preservação dos direitos humanos, mas na garantia da promoção da saúde pública e da redução de danos. O propósito é mudar a discussão no Brasil de patamar e declarar oficialmente o fracasso da guerra às drogas.
AÇÕES LOCAIS
Já passa de duas de manhã e o celular de Frederico vibra. A demanda vem de uma pessoa que fez uso drogas e se viu diante de uma experiência difícil. No Whatsapp Frederico recomenda, primeiramente, o simples: tome um banho. Minutos depois, o resultado: “Tomei banho e fiquei de boa. ‘Brigadão aí”. É com um quê de orgulho que o redutor de danos do Coletivo Egrégora conta uma das ocorrências cotidianamente comuns de um ofício voltado para a boa “viagem” de alguém. “O tráfico é o maior produtor de danos individuais e sociais”, emenda.
Segundo Frederico, uma das ações fundamentais para conter os riscos em espaços de festa é o uso de aparelhos de testagem. O drug checking exige reagentes químicos para “examinar” a composição de drogas. “Não é o ideal, mas é o que é possível fazer no Brasil, pois máquinas para fazer análises técnicas são caras para o contexto brasileiro”. O maquinário seria adequado para mostrar, com precisão, a dosagem da substância ou quais outros elementos compõem a droga.
O emprego de reagentes químicos é a ação possível nos microespaços. Para usá-los, a recomendação é raspar levemente o comprimido ou fazer um recorte de ⅛ de um blotter – o “quadrado” de LSD – e, ao pingar apenas uma gota do reagente químico (armazenado em um frasco), a cor da reação identificará basicamente os componentes. O testador mais comum é o Marquis, usado frequentemente para testar comprimidos. Se uma gota do Marquis sobre a “bala” trouxer a cor roxa, ali contém MD (methedrina), mas, segundo Frederico, “pode ser ‘MD alguma coisa’, ou trinta coisas”, alerta.
A comunidade de usuários de drogas em contexto de festas cada vez mais se preocupa com a redução de danos. “As pessoas tem se preocupado mais em perguntar, repassar informações para os amigos e há cada vez mais estandes de testagem em festas”, explica o redutor de riscos. Belo Horizonte está sendo incipiente nesse sentido. Um dos exemplos é o Festival Pulsar, festival de cultura alternativa e psicodélica com duração de cinco dias e circulação de cerca de três mil pessoas de todo o país. Neste ano o evento ocorreu em Ipoema, distrito de Itabira, mais especificamente na Cachoeira Alta. Frederico conta que desde a segunda edição a produção traz um coletivo de fora para fazer testagens e acompanhamento com redução de danos.
RECORTE DE CLASSE
Considerando a colossal diversidade de drogas e modos de consumo, é urgente o reconhecimento de que as políticas de drogas não podem, nem sequer devem, se dissolver de um entendimento amplo de sociedade. Ao abordar o uso de substâncias psicoativas, o recorte de classe deve ser lembrado, uma vez que “problemas” relacionados a drogas são concentradamente territorializados, aqueles considerados agentes desse problema tem classe e cor de pele bem definidas e a cidadania afetada. A abordagem foi lembrada pelo médico epidemiologista Mauro Cardoso.
“A questão das drogas não se separa da questão de classe porque o problema das drogas é um problema do pobre. O rico não tem problema com droga. A gente pode falar que o consumidor de crack é um problema, mas há silêncio sobre o usuário da cocaína que é transportada por helicóptero”, lembrou e emendou: “A questão do crack é uma discussão em campo inimigo. A substância [o crack] é a pior situação do uso de drogas que eu conheço na realidade brasileira e quando começamos a discutir drogas a só pelo crack, estamos destacando o pior exemplo da situação, sendo que a prevalência de outras substâncias é mais comum”.
Liberação de conteúdo inconsciente, recuperação de memórias, reflexão introspectiva, regressão – às vezes até o nascimento, insights religiosos psicofilosóficos são alguns dos efeitos de drogas psicoativas citadas por Cardoso. “Sintomas que, pelo menos para essa classe de drogas, praticamente remetem à terapia e esses efeitos dão a ideia de que você pode explorar tudo isso do ponto de vista da psicoterapia além da questão da escuta, como é feito”, opinou.
EXERCÍCIO DE DIREITO
A transformação da política de drogas enquanto questão social propõe ampliar os canais de comunicação e decisão entre os envolvidos na efetivação do direito à saúde previsto na Constituição de 1988: “A saúde é direito de todos e dever do Estado”. O cenário proibicionista brasileiro representa a necessidade de trazer aperfeiçoamento e melhor entendimento das contribuições possíveis de um pensamento humano sobre drogas.
Por Paulo Faria, diretor da Cia Pessoal do Faroeste, especial para os Jornalistas Livres
“O criminoso na Cracolândia é o Doria. Não é o nóia.” Foi isso o que ouvi em coro quando cheguei à Cracolândia para ver e entender o que está acontecendo ali. São famílias pobres que pedem escola, habitação, segurança, limpeza e água, que Doria mandou tirar do Braços Abertos, para que os usuários não tenham água pra beber.
É vil demais.
Passei o final de semana fora e voltei ontem à noite. Após a manhã no Faroeste em reunião, fui em seguida até a Cracolândia. Presenciei mais uma cena inescrupulosa, criminosa e doentia do prefeito. Doria foi até a Rua Dino Bueno, na hora do almoço, acompanhado de uma caravana de bombeiros, polícia – com um caminhão cheio de cães farejadores. Em alguns momentos, os cachorros eram chutados pelos próprios policiais. Ah, havia ainda caminhões de construtoras.
Não sei se Doria foi vestido de bombeiro, ou de polícia americana, como ele foi no domingo. Mas estava com seu cabelo acaju, que teve ter pintado em NY, para onde viajou em companhia do deputado Rocha Loures, do PMDB-PR –aquele que recebeu a mala de R$ 500 mil da JBS, e foi afastado do Congresso Nacional.
Doria derrubou uma parede de um casarão histórico, acompanhado da Rede Globo, que não usa mais em seus equipamentos a logomarca da empresa, mas somente um jaleco azul em que se lê “imprensa”.
Quando ele foi filmado, inaugurando a quebradeira que iniciou, a escavadeira derrubou uma parede. Atrás dela, famílias de um cortiço, que moram ali há mais de 30 anos, receberam sobre suas cabeças, em sua morada, em sua cama, os entulhos. Logo, Doria foi escorraçado pela população. Encaminharam-se os seres humanos feridos para um hospital.
Quando cheguei, essa cena já tinha sido filmada e passada na Globo. Um ao vivo à custa de mortos. Estavam na rua a ouvidora, a defensoria, o conselho tutelar e militantes de direitos humanos. Havia rumores que ainda tinha gente no prédio que começou a ser demolido. Mas o corpo de bombeiro não permitiu que ninguém, nem a defensoria, nem a ouvidoria e nem o conselho tutelar, entrasse ali. Disse que não tinha ninguém, e que o prédio estava em risco de desabar.
Parte dos moradores queria entrar para tirar seus parcos pertences, que Doria chama de “lixo”. A mãe da rua Lucia Freire Moreau me levou pra ver o seu quarto num cortiço ao lado que também deve ser demolido. Ela queria me mostrar o painel que estava construindo. Entrei. Fiquei parado em lágrimas diante do que ela criou. Havia ali algo de religioso. Aquela obra deveria ser preservada e estar num museu de humanidades. Uma cartografia construída, um resumo dos seus 30 anos vivendo na Cracolândia. Imagens fortes e genialmente enredadas. Tudo ali. Tudo.
Ao sair de lá, vi que três casarões do inicio do século, que eram cortiços, foram incendiados pelo prefeito. Um art déco e dois neoclássicos. Todo o entorno do Largo Sagrado Coração de Jesus é histórico. Um dos poucos conjuntos arquitetônicos dessa época preservado. E é isso o que está por trás da ação que pretende comover a plateia bestial com a derrubada da cracolândia pra construir o projeto Nova Luz, seu e de todos os vampiros desta cidade, incluindo o governador não menos monstruoso, Geraldo Alckmin.
Doria não pode destruir aqueles prédios. É a história da cidade.
No domingo, a assessoria do prefeito, ligou pra Rede Globo, às 4 da manhã para informar que às 6h haveria a ação criminosa. E a Globo foi. A TV agora tem comunicação direta com o prefeito, pois assim ele fica na mídia nacional, pra alavancar seu nome à presidência do País.
Globo criminosa
Não à toa, Doria fez isso durante a Virada Cultural, pra ocupar mais o espaço na mídia. Perdeu e a decência e a dignidade.
Saio dali e vou até a praça Princesa Isabel, onde fica a estátua do Duque de Caxias. Bem no meio, vejo uma roda com 500 usuários. Em volta, muita polícia. Wellington, um morador do entorno, me fala que eles vão atacar os usuários a qualquer momento. A PM diz que ali concentram-se armas e traficantes. A polícia persiste com essa mentira para justificar os ataques. Wellington me fala que desde domingo todos estão em pânico. O comércio abre a meia porta e fecha antes das seis. E ninguém sai de casa depois.
Wellington já fez as compras para hoje e amanhã, pois não sabe o que vai acontecer, se ficará sitiado novamente em sua casa. Cada vez mais helicópteros sobrevoam a área e a avenida já está com trânsito parado. Vou andando até em casa e perguntando a todos o que acham. Pela primeira vez, ouvi de todos e todas, que o Doria é um louco, que essa ação foi desastrosa. A avaliação é compartilhada mesmo por pessoas que votaram nele. Ninguém quer uma Cracolândia aqui, mas todos querem ajudar a resolver a questão que é humana e de saúde. Nunca ouvi isso antes ali. Todos estavam contra o prefeito, que nunca foi à região antes e mandou a polícia pra cuidar dos doentes com bombas. Alguns eram seus eleitores arrependidos.
Doria é um criminoso, um fascista, e São Paulo não pode permitir que esse monstro continue à frente da cidade. A Câmara tem que fazer alguma coisa. O Ministério Público tem que fazer algo. A Defensoria tem que defender o povo. Ele está matando os munícipes da cidade. Seja quando ele volta com a velocidade alta nas marginais, o que aumentou o número de mortos em desastres e atropelamentos. Temos gravada na nossa retina a cena dele jogando a flor da gentil mulher que foi pedir em nome das vidas que se perderam.
Ao derrubar todo o nosso bairro, ele está matando os pobres que aqui vivem. Que tanto já sofreram. Excluídos dos direitos básicos garantidos na Constituição. Cinquenta milhões de brasileiros quase escolheram o Aécio Neves pra presidência. Não acreditando em todas as provas que o envolveram em roubos, tráfico de drogas e assassinatos. E agora, a maioria da cidade de São Paulo escolheu outro criminoso pra administrar essa cidade tão linda e tão acolhedora, com um povo deslumbrante, feito de todas as partes do mundo.
Eu clamo aqui pra que nos revoltemos com o prefeito e que peçamos a quem possa nos salvar que tire esse verme da prefeitura. Dória não pode seguir à frente da cidade. E nem seguir seu objetivo de chegar a presidência do Brasil.
São Paulo não pode permitir. A cidade é mais do que ele. Somos todos nós. O criminoso é o Doria, não é o nóia.
Todo mundo confundindo a série “Narcos”, do Netflix, produzida e dirigida por José Padilha, com documentário, certo? Pois o próprio José Padilha alimenta essa ideia ao mesclar cenas filmadas agora com outras, extraídas do noticiário da época em que o meganarcotraficante Pablo Escobar reinava, aterrorizando a Colômbia. Em entrevista à “Deutsche Welle”, Padilha defendeu a historicidade de sua série: “Na Colômbia, quando você fala em realismo mágico, os colombianos dizem: ‘Olha, realismo mágico para os outros. Para nós, é documental.’ Por isso que eu usei material de arquivo na série: se eu não contasse a história por material de arquivo, as pessoas não iriam acreditar.”
Pois é bom não acreditar mesmo, apesar das aparências e do marketing agressivo da série.
“Narcos” abre com um texto em off, supostamente representando o pensamento do personagem da vida real Steve Murphy, agente da DEA (Drug Enforcement Administration) responsável pela caçada a Escobar.
Está lá, sem contestação ou contexto:
“Veja Richard Nixon, por exemplo. As pessoas esquecem, mas 47 milhões de pessoas votaram no Nixon. Nós achávamos que ele era um dos mocinhos. E Nixon achou que o general chileno Pinochet era um dos mocinhos porque ele odiava os comunistas. Então, nós ajudamos Pinochet a tomar o poder. Depois, Pinochet acabou matando milhares de pessoas. Talvez ele não seja um dos mocinhos. Mas, às vezes, os vilões fazem coisas boas. Ninguém sabe, mas em 1973, o Chile estava a caminho de se tornar o maior centro processador e exportador de cocaína do mundo. Havia desertos para esconder laboratórios e quilômetros de litoral não patrulhado para despachar o produto. Mas Pinochet estragou a festa. Ele fechou 33 laboratórios e prendeu 346 traficantes de drogas. Depois, sendo Pinochet, mandou matar todos eles.”
É Padilha sendo Padilha. Como se fosse verdade, Padilha faz um daqueles seus previsíveis jogos de prestidigitação que garantiram o sucesso de “Tropa de Elite”, no qual pretende mostrar que mocinhos às vezes comportam-se como bandidos e vice-versa.
Então, a plateia é levada a crer que apesar de vilão, Pinochet fez “coisas boas” porque estragou a festa da cocaína no Chile quando “fechou 33 laboratórios”, “prendeu 346 traficantes de drogas” e “mandou matar todos eles”.
Só que não! Isso é apenas a fantasia de Padilha –sempre tão diligente em seu esforço para encontrar o “lado bom” em torturadores como o capitão Nascimento e, agora, em agentes da DEA, em grupos de extermínio colombianos e no campeão do terror de Estado, Augusto Pinochet.
Já está bem assentado o papel dos sicários a serviço de Augusto Pinochet no tráfico internacional de drogas. Coube a Manuel Contreras, braço direito do ditador e chefe da sinistra Dina (Direção de Inteligência Nacional), a polícia secreta do regime militar, a tarefa de transformar plantas inteiras do Exército chileno em unidades de processamento da coca.
Contreras deu proteção a narcotraficantes em troca de financiamento para as atividades da Dina e do lobby cubano anticastrista. Em depoimento à Suprema Corte do Chile, em 1998, o próprio Contreras declarou que nada empreendeu nessa área que não fosse de conhecimento prévio do ditador Pinochet. Em nova acusação, feita em 23 de junho de 2006, Contreras afirmou que a origem da fortuna de Pinochet, estimada em 28 milhões de dólares, foi o tráfico internacional de cocaína.
Segundo reportagem do jornal inglês “The Guardian” de 10 de dezembro de 2000, “apenas entre 1986 e 1987, 12 toneladas de drogas (…) saíram do Chile com destino ao território espanhol. A distribuição na Inglaterra e em outros países europeus era controlada pela polícia secreta baseada nas embaixadas de Estocolmo e Madri.”
Pinochet era isso. Um vilão sem lado bom, apesar da boa vontade de Padilha.